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Bernardo Soares
A literatura, que é a arte casada com o pensamento,

A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem


a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o
esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade
do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o
terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores,
se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores
de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o


não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar
que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está
bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa.
Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e
assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da
exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade
do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houver-
mos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que
a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de
interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista
é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas ver-


dadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não
escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e
eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia
ter dito.

s. d.

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Obra Aberta · 2015-06-08 01:25


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Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição
dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do
Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982: 520.

"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo
Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

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