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Do Mangue Ao Mito
Do Mangue Ao Mito
mito
As raízes do mito
A força que a influência de Chico Science adquiriu torna-se extraordinária quando se constata
que ele e o Manguebeat surgiram à margem da chamada indústria cultural. Sua música não era
tocada nas FMs, ele não aparecia nos programas de TV que conseguem fazer celebridades em
apenas um domingo e suas composições não traziam aqueles ingredientes do sucesso fácil – ao
contrário, até. Além disso, gravou apenas dois CDs – Da Lama ao Caos e Afrociberdelia –, que,
juntos, até a sua morte, venderam cerca de 120 mil cópias. Hoje a vendagem de ambos bateu nas
265 mil cópias. Um terceiro CD (na verdade um álbum duplo), CSNZ, foi lançado em sua
homenagem, em 98, com músicas cantadas por ele ao vivo, remixes e quatro inéditas de sua
banda, a Nação Zumbi. Este vendeu até agora 60 mil cópias.
Como explicar, então, o processo de mitificação que o vem cercando desde a sua morte? O que
transforma o artista em mito? Fácil responder quando o artista vem carregado nos ombros de
uma poderosa indústria cultural – como James Dean, outro ídolo da juventude a morrer jovem
(24 anos) e em um acidente automobilístico. Mas e quando não há uma "poderosa indústria
cultural por trás"? A característica trágica da morte do cantor pernambucano, e o fato de estar no
início da carreira, com um futuro brilhante pela frente, esclarece um pouco a mitificação. Um
pouco, só. Para compreendê-la de forma mais aprofundada é necessário bater às portas da
universidade. Lá a explicação é que Chico Science surgiu num momento histórico em que uma
juventude social e culturalmente excluída não se via representada no cenário musical do País
(com uma ou outra exceção) e do Estado (sem exceção). Era um período em que Pernambuco
importava ídolos. A música, a postura, as composições dele identificaram-se com o momento.
Enquanto bandas de rock e outros artistas do resto do País falavam de temas mais comuns a uma
juventude burguesa, ele falava em urubu, molambo, lama, palavreado que nunca esteve em
primeiro plano na música pop. Ele abordava originalmente temas do cotidiano de uma juventude
que necessitava expressar-se e não tinha os meios para tal. Essa combinação de necessidade e
oferta, conjugada com sua morte, teria desembocado na sua mitificação.
O economista Paulo Teixeira, que está fazendo uma tese no mestrado em Ciência Política, na
UFPE, sobre o Manguebeat, chama a atenção para a "sintonia" entre as letras do cantor e a
realidade do momento em que ele vivia. "Ele falava exatamente do mundo dessa geração
excluída, e isso facilitou a comunicação com este público", afirma.
O pesquisador – que está sendo orientado pelo cientista político Michel Zaidan – vê o
movimento e o cantor como articuladores de uma cidadania que metaforicamente nasce da lama.
"A temática deles é a questão da exclusão social, da denúncia da violência, da fome", ressalta. "A
partir daí é que é possível afirmar, como o faz um amigo meu, que a música desse pessoal, e em
especial a de Chico, é a trilha sonora do momento de indefinição, insegurança e violência dos
anos 90".
O movimento Manguebeat, que teve em Science seu mais retumbante nome, está sendo
esquadrinhado em pelo menos duas outras teses de mestrado em Pernambuco. Uma na área de
comunicação, pela jornalista Carolina Leão, e a outra em Antropologia, pela psicóloga Paula Lira
de Vasconcelos. Pesquisadores de universidades estrangeiras – Daniel Davison Charder, John
Murphi, Kirsten Ernst, Philip Galinski – também estão elaborando teses sobre o tema.
Alunos de graduação igualmente se servem do Manguebeat como assunto para o trabalho final
de conclusão dos cursos. Foi este, por exemplo, o tema utilizado pelo baterista da banda
Querosene Jacaré, Adélson Luna, em sua conclusão do curso de Jornalismo. Atualmente Luna
concilia sua atividade musical com a de editor da revista cultural divulgada na Internet,
Manguenius (www.manguenius.com.br), criada pelo músico e produtor Zé da Flauta.
Um outro aspecto a ser considerado na mitificação de Chico Science é o seu papel – dada a
repercussão nacional e mundial que o seu trabalho obteve – no soerguimento da auto-estima dos
pernambucanos. A originalidade de sua produção logo chamou a atenção local e dos grandes
centros do País.
Science colocou Pernambuco no mapa-mundi da música. O seu primeiro CD, Da Lama ao Caos,
lançado em 1994, foi escolhido como um dos 10 melhores discos do ano pelo vetusto The New
York Times. Um dos críticos mais destacados do jornal, Jon Pareles, um cara pra lá de antenado
com a música brasileira, considerou o trabalho de Chico como "o rock brasileiro de alcance mais
amplo desde a Tropicália". Science e sua banda, Nação Zumbi, fizeram três turnês pela Europa e
Estados Unidos, o que contribuiu para que o trabalho deles obtivesse maior ressonância
internacional.
Quando ele morreu, um crítico do Estado de São Paulo o definiu como "porta-voz de sua
geração". O The New York Times noticiou a sua morte, com destaque: "Chico Science, 30, estrela
da música pop brasileira", foi o título da matéria. Nela Chico é apontado como o "fundador do
movimento de maior impacto da música brasileira, desde a Tropicália" (edição de 5 de fevereiro
de 97).
O legado do mangue
Muitos artistas e críticos consideram que Science e o mangueBeat alteraram "a ordem das coisas
na música brasileira". Teriam influenciado produções de artistas de tendências diversas, como
Gilberto Gil, Max Cavalera (ex-Sepultura), Elba Ramalho, Pedro Luís e a Parede ( "É difícil não
se deixar influenciar pela música dele"), do Rio, Moraes Moreira (BA), Planet Hemp (RJ),
Fernanda Abreu (RJ), O Rappa (RJ), Pavilhão 9 (grupo paulista de rap).
Também é ressaltado que ele abriu as portas para vários grupos que, em Pernambuco,
batalhavam por uma oportunidade para se mostrar. "Ele foi o bico de foguete de novas
mudanças", disse Silvério, ex-Cascabulho e agora em carreira solo. "Um cara que estava na
frente. Teríamos ganho muito mais se ele ainda estivesse conosco", completa Cannibal, da banda
Devotos, do Alto José do Pinho, zona norte da cidade. "É o nosso Bob Marley", afirmou Lenine,
fazendo uma comparação que se tornou freqüente.
À margem desse cipoal de elogios encontram-se algumas vozes dissonantes. Soam de dois
puristas da brasilidade, avessos a influências estrangeiras: José Ramos Tinhorão, considerado
por alguns o mais eminente crítico musical do País, e Elomar, o compositor baiano que foi uma
espécie de precursor da expansão da música nordestina no sudeste do País, nos anos 70. "A
nossa diversidade cultural dispensa coisas como o Chico Ciência, que acasalou o rock no baião e
desovou o Manguebeat", ressalta Elomar "O Chico Science mergulhou o internacional na lama do
Mangue (...). Não é nada. É uma indústria de consumo", sentenciou Tinhorão.
Contudo, os partidários do Manguebeat lembram a preocupação de Science e de alguns grupos
em buscar inspiração na cultura popular, o que abriu espaço para artistas populares
participarem de eventos dos quais, antes, nunca se imaginaria pudessem fazer parte. Mestre
Salustiano e D. Selma do Coco, convidados de festivais de rock, são dois exemplos. A projeção
obtida em manifestações semelhantes propiciaram que alguns desses artistas gravassem seus
próprios CDs.
Tudo isso explica a mitificação do cantor. Apesar da força que mostra no momento, porém, há
quem a considere um fenômeno passageiro, como o cientista político Michel Zaidan. Outros
crêem que o processo tende a consolidar-se nos próximos anos. Independente do que venha a
acontecer, uma certeza é evidente: Chico Science, o "caranguejo com cérebro", o artista que dizia
ter "Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão", fincou raízes no imaginário do povo.
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março / 2011
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