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ANO Xix • Nº 74 • JULHO/AGOSTO/SETEMBRO de 2016 issn 1517-6940

OS
INTOCÁVEIS
Quem vigia os vigilantes da Constituição?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Conselho EDITORIAL Décio Clemente


ISSN 1517-6940
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2 EXPEDIENTE
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soluções para o
amanhã

mundo
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Respeitável público, hoje vai ter marmelada? A vida será algodão
doce? E a realidade, caramelizada? E vãs todas as filosofias?
E açucaradas as transgressões? Insight-Inteligência arrisca
responder as questões em um passeio pelas ilustrações extraídas
da obra “The Circus”, de Noel Daniel. Nossos patrocinadores
assistem à exposição em localização privilegiada. Afinal, eles
fazem o espetáculo acontecer.
Morro do
Bumba: o
desastre
dentro da
tragédia
Bruno Pereira
Quem coloca o guizo nos da Cunha
semideuses do supremo? Leitura obrigatória
para gestores
Uma carta cada vez menos magna públicos
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Douglas Carvalho
Ribeiro e Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa
28
16

Segurança
pública:
muita política e
poucas políticas
Gláucio Soares
Quando o achismo supera
a ciência, dá nisso

42

Bestial
Poemas de Alex Polari
A tortura permanece Banco Scholar:
mesmo quando acaba
O ensino com fins
(muito) lucrativos
54 Edson Nunes e
Ivanildo Fernandes
Hora do lanche que
hora tão feliz

sumário
64

14 SUMÁRIO
I N S I G H T

INTELIGÊNCIA
nº 74 julho/agosto/setembro 2016

Transgênicos:
Cabe a educação toda a semente
na Lei Rouanet? será perdoada
Antonio Freitas e Francisco Linhares
Ana Tereza Spinola Controvérsia geneticamente
modificada
Enfim, uma proposta
acima da média
80
70 A mais-valia da
lorota
José Vicente Santos
de Mendonça
Esta é a mais pura
verdade. Ou não

76

O mais
querido do
Brasil: a
construção
de uma nação
Cibernética, Renato Soares
neurociência e Coutinho
outros impulsos As outras torcidas
podem começar
Leonardo Braga a vaiar
Martins
E o homem pensava
que pensava
114
98

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16 Concílio
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
Douglas Carvalho Ribeiro
Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa
Advogados

Semideuses
Quem coloca o guizo nos

do supremo?

talvez de Franz cias da infração de seu comando:


Kafka um dos re- “Eu sou poderoso. E sou apenas o
latos mais pun- último dos guardiões. De sala para
gentes sobre a sala, porém, existem guardiões cada
relação existente um mais poderoso que o outro. Nem
entre o cidadão mesmo eu posso suportar a simples
e a lei. Em seu texto “Diante da Lei”, visão do terceiro.3 O acesso à lei é
parte da coletânea Um médico rural, negado ao homem por um guardião,
o autor tcheco explicita a angústia de que supostamente é controlado por
um homem do campo que se coloca diversos outros, em uma estrutura
diante do portão da lei, com a cren- de vigilância que se reproduz ad infi-
ça de que ela “deve ser acessível a nitum. Se o primeiro guardião vacila
todos e a qualquer hora”.1 O homem, e deixa o homem adentrar o portão,
entretanto, se frustra, ao perceber tem-se a certeza que há outra pro-
que havia um guardião [Türhüter],2 teção à lei propriamente dita, e as-
que o impedia de adentrar o portão sim por diante, na medida em que a
que dava acesso à lei. O guardião capacidade de salvaguarda de um
ainda o alerta sobre as consequên- guardião é posta em xeque.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

parábola “Dian- defendia Hans Kelsen.7 O desenvol- Diretas de Constitucionalidade nºs 43


te da Lei” parece vimento posterior do debate parece e 44, todas elas em torno do tema da
se encaixar com ter conferido unissonância à res- presunção de inocência. Como afir-
perfeição ao di- posta em relação à salvaguarda da mou o constitucionalista Conrado
lema das demo- constituição no seio das democra- Hübner Mendes, aquele tribunal se
cracias consti- cias ocidentais: essa caberia pri- encontra refém da fragmentação das
tucionais do Ocidente – em especial mordialmente ao Tribunal Constitu- convicções pessoais de seus julga-
a brasileira – e isso se deve princi- cional. Alguns tribunais mencionam, dores,10 o que leva a certo sentimen-
palmente a dois motivos. Em primeiro inclusive, essa função no âmbito de to de insegurança sobre a sua capa-
lugar, quando o foco investigativo re- seus julgados, como se vê na deci- cidade de salvaguarda da Constitui-
pousa nos termos usados por Kafka, são nº 21/52 do Tribunal Constitu- ção. Afinal, se a posição do Supremo
percebe-se que o termo Hüter, parte cional alemão referente ao funcio- Tribunal Federal é posta em xeque,
integrante da composição linguística namento regular do partido Deuts- surge a pergunta sobre “quem vi-
“guardião do portão”, é o mesmo uti- che Friedens-Union, em que expres- gia os vigilantes” (quis custodiet ip-
lizado em um longo debate no âmbi- samente é assumida uma tarefa de sos custodes), como já nos colocou
to da teoria do direito constitucional salvaguarda da Constituição como o poeta romano Juvenal. O objetivo
que se inicia na década de 1930 e se decorrência direta da interpretação do presente ensaio é, justamente, a
arrasta até os dias atuais, a saber, literal do art. 93 da Lei Fundamental.8 partir da discussão sobre os julga-
quem deve ser o guardião da Cons- Fala-se, inclusive, quando se vislum- dos acerca da presunção de inocên-
tituição,4 Com a crise do paradigma bra a posição do Tribunal Constitu- cia, refletir sobre os limites do poder
do Estado Liberal5 e a concepção de cional face à consagrada teoria da de decisão do STF e a tensão exis-
interpretação atrelada a este, a her- separação dos poderes, que ele fi- tente entre as garantias consagra-
menêutica de textos normativos dei- guraria enquanto um “poder confe- das historicamente pela dogmática
xa de ser vista como mero ato cog- ridor de medida” [maßstabsetzende penal e a pretensão de efetividade
nitivo, sendo atribuída ao intérprete Gewalt].9 A partir dessa concepção, das decisões em matéria penal ain-
uma função de criação em todo ato afirma-se corriqueiramente que a da que em contraposição às garan-
interpretativo. constituição seria aquilo que o Tri- tias fundamentais previstas no tex-
O direito constitucional representa, bunal diz que ela é. to constitucional.
nesse sentido, a área mais sensível às Da associação entre a figura do
reviravoltas na teoria hermenêutica, guardião e o Tribunal Constitucional, Presunção de inocência
pois, se não é possível a cognição de advém o segundo motivo da aproxi- Em recente palestra, o Minis-
um sentido imanente ao texto consti- mação do conto kafkiano com a rea- tro do STF Luís Roberto Barroso co-
tucional, resta a pergunta acerca da lidade brasileira contemporânea. O mentou a decisão colegiada que, por
competência em relação à intepreta- Supremo Tribunal Federal (STF), co- maioria, relativizou a presunção de
ção que deve viger sobre as outras. nhecido como aquele que deteria a inocência ao permitir a execução
À época da deflagração do debate, última palavra sobre o texto consti- antecipada da pena. Segundo o ma-
as soluções variavam entre o pre- tucional, vem tomando decisões de gistrado, somente após tal decisão
sidente do Reich, como preconizado forma peculiar, seja de forma mono- é que o direito penal passou a ser
pela interpretação de Carl Schmitt,6 crática ou de forma colegiada, vide a levado a sério no Brasil.11 O julgado
e um órgão colegial, compreendido decisão no Habeas Corpus 126.292/ em questão se deu no âmbito do HC
enquanto legislador negativo, como SP e, mais recentemente, nas Ações nº 126.292/SP, de relatoria do Min.

18 Concílio
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Teori Zavascki,12 em que o STF con- que se corra o risco de absolver um tos sociais instituídos.17 Além disso,
traria entendimento jurisprudencial culpado, não se condenará sem justi- Francesco Carrara, também repre-
anteriormente assentado quando do ficativa um inocente. Portanto, os di- sentante desta escola, considerou a
julgamento do HC 84.078/MG, de re- reitos dos cidadãos são ameaçados presunção de inocência como prin-
latoria do Min. Eros Grau. Na origem não só pelos delitos, como também cípio fundamental de toda a ciência
do caso específico, como lembra Le- pela arbitrariedade do poder puniti- processual e do qual decorrem to-
nio Streck, 13 impetrou-se HC em face vo estatal.16 Desde a escola clássica das as outras garantias envolven-
de decisão do Tribunal de Justiça do italiana, com seu precursor Cesare do o processo judicial, em virtude
Estado de São Paulo, uma vez que Beccaria, afirmou-se que, antes da do seu conteúdo atento à liberdade
este negou provimento ao recur- sentença definitiva, não pode a so- do imputado e a formação do lastro
so de apelação em favor do pacien- ciedade tolher a proteção pública probatório.18
te e determinou de ofício a imediata garantida ao cidadão, somente po- Contra esse conjunto de ideias,
execução provisória da condenação, dendo fazê-lo quando decidido defi- desde sua concepção, há muito se
com a ordem: “Expeça-se mandado nitivamente sobre a violação dos pac- observam tendências históricas de
de prisão contra o acusado”. Tratava- ocorrência de regressos autoritários
-se não de prisão cautelar, mas sim no sentido do fortalecimento do pu-
de execução provisória da pena. No nitivismo estatal. Já no séc. XIX, por
voto do Min. Zavascki, assenta-se a exemplo, ganhou relevância a produ-
controvérsia na necessária análise ção da escola positiva, na qual seus
entre “(a) o alcance do princípio da representantes, tais quais Raffaele
presunção da inocência aliado à (b) Garofalo e Enrico Ferri, sustentavam
busca de um necessário equilíbrio en- a inversão da lógica da presunção
tre esse princípio e a efetividade da de inocência, chegando, inclusive, a
função jurisdicional penal, que deve exigir a prática da prisão preventiva
atender a valores caros não apenas imediata, quando da prática de crimes
aos acusados, mas também à socie- mais graves, o que subverte o racio-
dade, diante da realidade de nosso cínio de caracterização da culpabili-
intricado e complexo sistema de jus- dade. Posteriormente, já no séc. XX,
tiça criminal”, conforme se extraí do
se a posição do a escola fenomenológica, conhecida
acórdão.14 Em suma, o que a decisão
Supremo Tribunal como Escola de Kiel, também se no-
do relator consagra é a supremacia
Federal é posta tabilizou pelas críticas ferrenhas ao
dos interesses punitivos estatais pe-
em xeque, surge conjunto de garantias classicamente
rante a liberdade individual.
a pergunta sobre albergadas pelo direito penal liberal.
“quem vigia os

Vigilantes”
Montesquieu já se referia n’O Es- Georg Dahm, principal expoente da-
pírito das Leis sobre a tensão entre quela tradição teórica, retirou sua ins-
liberdade e segurança dos cidadãos, piração no pensamento de Carl Sch-
orientado pela ideia de que “Quando mitt, especificamente na sua crítica
a inocência dos cidadãos não está ao normativismo como faceta típica
garantida, a liberdade também não do fenômeno denotado de liberalis-
o está”.15 O corolário político desta mo.19 Daí resulta que, para os mem-
conclusão é a ideia de que mesmo bros da Escola de Kiel, as garantias

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

penais típicas do Estado de Direito pelo penalista alemão Claus Roxin,22 cial, cuja tradição filosófica e acadê-
ocidental eram apenas fraseologias dado que foi considerada como uma mica ficou conhecida como “Escola
pertencentes a uma época marcada teoria que permitiria a condenação de Frankfurt”. Em seu artigo intitula-
pelo capitalismo concorrencial, su- sem um lastro probatório mínimo e do “Ansiedade e Política”, Neumann
postamente superada pela chega- não para diferenciar autor e partí- fundamenta seu argumento nas di-
da de Hitler ao poder.20 Digno, pois, cipe como originalmente concebida. versas funções que a ansiedade as-
de nota é a relação colaboracionis- sume para o indivíduo, a partir do es-
ta entre os teóricos seguidores de quema psicanalítico freudiano. Afir-
Dahm e o regime nacional-socialista. ado esse estado ma ele que “a ansiedade pode desem-
Parece-nos, outrossim, que o de coisas, mar- penhar muitos papéis na vida do ho-
regresso ao direito penal máximo se cado pela re- mem, o que quer dizer que a ativa-
repete na atualidade, em especial no lativização das ção de um estado de ansiedade por
direito brasileiro, tanto no âmbito le- garantias ma- meio de um perigo pode ter um efeito
gislativo quanto na esfera judicante. teriais e proces- benéfico ou destrutivo”.25 A ansieda-
No primeiro, menciona-se o exemplo suais penais, a comunidade jurídica de pode desempenhar um papel de
da recém-promulgada Lei Antiterro- como um todo se coloca em alerta. aviso para o homem, na medida em
rismo (Lei 13.260/2016) e a proposta E o motivo parece evidente: a ansie- que o previne de experimentar ris-
legislativa de medidas contra a cor- dade política sobre a incerteza dos cos concretos advindos do ambiente
rupção, entre as quais se destacam limites e possibilidades do alcance exterior, entretanto pressentidos an-
a possibilidade de execução imedia- da atividade interpretativa pratica- teriormente. Mas há, contudo, outra
ta da condenação quando o tribunal da por aquele tribunal. Citando Luigi modalidade de ansiedade, a chamada
reconhece abuso do direito de recor- Ferrajoli, “toda vez que um imputa- ansiedade neurótica, que “é produzi-
rer; a extinção dos embargos infrin- do inocente tem razão de temer um da pelo ego com o fim de evitar, por
gentes e de nulidade; regras restriti- juiz, quer dizer que isto está fora da antecipação, a mais remota ameaça
vas para o direito a habeas corpus; o lógica do Estado de direito,23” já que de perigo”.26 Segundo Neumann, essa
uso de provas obtidas por meios ilí- essa forma de organização política é ansiedade pode paralisar o homem,
citos; e a possibilidade de execução caracterizada pelo esforço máximo impedindo-o de tomar decisões de
provisória da pena após julgamento de racionalização do exercício do po- maneira racional.
de mérito por tribunal de apelação. E der político e, dentro deste, também Nesse sentido proposto por Neu-
no segundo, o citado julgamento da do poder punitivo. Continua o mes- mann, infere-se que a função do Es-
relativização da presunção de ino- mo autor afirmando que “o medo e tado de Direito consiste – no mínimo
cência por parte do STF. mesmo só a desconfiança ou a não – na prevenção das possíveis causas
Pensar-se-ia, no entanto, que tal segurança do inocente assinalam a geradoras desse estado patologizan-
episódio é fato isolado na história re- falência da função mesma da juris- te que aflige os cidadãos. Estamos
cente da Suprema Corte brasileira. dição penal e a ruptura dos valores convencidos que relativizar a pre-
No julgamento da Ação Penal 470,21 políticos que a legitimam”.24 sunção de inocência não contribui
de relatoria do Min. Joaquim Barbo- Sobre a relação entre ansieda- com o mister do Estado de Direito,
sa, conhecida como o caso Mensa- de e política, a melhor contribuição mas, ao contrário, somente dissemi-
lão, aquele tribunal aplicou a Teoria acerca do tema talvez tenha sido a na o temor da encarceramento sem
do Domínio do Fato sobre pressu- de Franz L. Neumann, jurista alemão o devido exercício do direito de de-
postos diversos daqueles pugnados membro do Instituto de Pesquisa So- fesa. Diante desse panorama de de-

20 Concílio
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cisões sem o mínimo de atenção às de”.30 Voltando à parábola kafkiana e ções de mundo existentes. Soma-se
garantias consagradas na Constitui- à associação da figura do guardião a isso o fato de que os direitos fun-
ção da República, surge o seguinte com o tribunal constitucional, tem- damentais passam a ser entendidos
o questionamento: quem controla os -se que o tribunal não pode se colo- em uma dimensão também positiva,
controladores? car entre o cidadão e a lei constitu- isto é, na forma de prestações esta-
cional, mas antes deve ser um facili- tais ativas direcionadas ao cidadão
O tribunal constitucional tador no sentido do alargamento do comum. Essa ressignificação da fun-
e a crítica jurídica rol de participantes no processo de ção das constituições trouxe consi-
Acerca dessa questão, pode-se interpretação e efetivação da Cons- go um aumento da importância dos
dizer que foi Platão, n’A República, tituição. O tribunal não deve impedir tribunais constitucionais no seio das
quem deu contornos iniciais a tais o acesso à porta, mas sim guiar o ci- democracias ocidentais contempo-
reflexões, quando a Sócrates é per- dadão comum naquele processo de râneas, uma vez que caberia ao tri-
guntado, afinal, quem guardaria os concretização das diretrizes esta- bunal a interpretação dos “valores
guardiões. Naquele momento, o de- belecidas no projeto esboçado pelo contidos na constituição” e, se por
bate girava em torno da questão da constituinte originário. um lado, todos os poderes constituí-
Paideia dos guardiões, do tema da A transição do paradigma do dos se submeteriam à constituição,
“nobre mentira”, segundo a qual eles Estado Liberal para o Estado Social é o tribunal, por outro lado, que pos-
mesmos se guardariam.27 É evoca- trouxe consigo um papel de centrali- suiria a última palavra sobre o que a
da também a partir dos versos satí- dade das constituições, uma vez que constituição é – a partir desse mode-
ricos do poeta romano Juvenal (quis foram conferidas a elas funções que lo originado no pós-Segunda Guerra.
custodiet ipsos custodes?), como já excediam a mera organização do po- Com o aumento substancial do âm-
mencionado, e em Norberto Bobbio, der político e o estabelecimento de di- bito de atuação dos tribunais cons-
na obra O Futuro da Democracia, reitos fundamentais em sua dimen- titucionais, estamos convencidos,
em que o autor se propõe a discu- são meramente negativa, isto é, en- portanto, que uma volta à teoria de
tir o problema da transparência e quanto âmbito de limite à ingerên- Peter Häberle se faz necessária.32
da exigência do caráter público do cia estatal na esfera do indivíduo. As Quando mencionamos o nome do
exercício do poder político em uma constituições passaram a conter em jurista alemão, automaticamente so-
democracia.28 si um projeto de comunidade políti- mos remetidos a sua mais conhecida
A partir do caso da recente rela- ca, ao determinar “os princípios di- obra, A sociedade aberta dos intér-
tivização da presunção de inocência retivos segundo os quais deve for- pretes da Constituição, texto origi-
por parte do STF, cabe refletir, a partir mar-se a unidade política e tarefas nalmente publicado no ano de 1975
da filosofia política de Jürgen Haber- estatais a serem exercidas”,31 como na revista Juristenzeitung, mas que
mas, em que medida aquele tribunal afirmou Konrad Hesse. A asserção somente teve uma versão brasilei-
se distancia de um papel de garanti- de Hesse deixa clara a mudança de ra cerca de 20 anos mais tarde.33
dor ou, no máximo, de um tutor das função das constituições, implicada Temos consciência da centralida-
condições deliberativas de formação pela transição paradigmática, uma de deste texto na produção acadê-
da vontade política,29 aproximando-se vez que, em primeiro lugar, ao esta- mica de Häberle; contudo, gostaría-
mais da função de regente, “que avo- belecer princípios diretivos acerca mos de efetuar uma leitura sistemá-
ca para si uma responsabilidade pa- da unidade política, rompe-se com tica de seus trabalhos à época, me-
ternalista de promover as condições a ideia liberal do Estado-máquina, nos conhecidos do público brasilei-
éticas de convivência da comunida- neutro perante as diversas concep- ro em geral, como o conjunto de ar-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tigos contidos na coletânea Verfas- gãos estatais, e até mesmo a esfera


sungsgerichtbarkeit zwischen Politik pública não estatal – esta bastante
und Rechtswissenschaft [Controle de enaltecida pelo autor –, também par-
Constitucionalidade entre a Política ticipantes do círculo hermenêutico
e o Direito], onde Häberle procura, cujo objeto é a própria realização
de forma mais detida, analisar o pa- dos preceitos constitucionais. A fim
pel da doutrina perante o centralis- de ressaltar a sua posição, ele chega
mo da Corte Constitucional Alemã. até mesmo a afirmar em outro texto,
De pronto, pode-se afirmar, a chamado Recht aus Rezensionen [O
partir das reflexões da penalista direito advindo das resenhas], que
alemã Ingeborg Puppe, que a rela- os julgados do Tribunal Constitucio-
ção entre jurisprudência e doutri- nal alemão não substituem a Cons-
na nunca foi das melhores: a fim de tituição, do mesmo modo que os co-
exercer melhor seu arbítrio e evitar mentários às decisões da corte não
dialogar com esta, a jurisprudência Não há de se falar substituem os comentários à cha-
– segundo a autora – se valeria de propriamente mada Lei Fundamental.36
conceitos indeterminados,34 dado que em controle do Considerando o fato de que o STF
a caneta que assina não é a mesma controlador, mas não pode ser o único detentor da pa-
que doutrina. Isso nos leva a um pro- sim em contrapeso, lavra final sobre o sentido e a exten-
blema maior quando pensamos na como princípio são do texto constitucional, somos,
atividade judicante no âmbito do tri- fundamental portanto, como cidadãos, além de le-
bunal constitucional, pois o que está presente na própria gitimados, impelidos como estudio-
ali em questão é o próprio conteúdo tradição do sos a apresentar uma crítica à suas
das disposições previstas na cons- constitucionalismo decisões, pois, assim como o Tribu-
tituição acerca da relação, seja en-
tre os poderes, seja entre o Estado
e o indivíduo.
moderno nal, participamos também de forma
indispensável à concretização des-
te projeto sempre inacabado que é
Comumente se acredita que a a Constituição. Especificamente em
constituição é aquilo que o tribunal relação à presunção de inocência,
constitucional diz que ela é. Contra estamos convencidos da existência
essa afirmação é que Häberle cunha do possível estabelecer-se um elen- de um grave retrocesso que recai
sua mais conhecida teoria, qual seja, co cerrado ou fixado com numerus sobre as garantias penais constitu-
a da sociedade aberta dos intérpre- clausus de intérpretes da Constitui- cionalmente tuteladas.
tes da constituição. De forma resumi- ção”.35 O que Häberle busca chamar O inciso LVII do art. 5º da Cons-
da, a tese do autor se desenvolve no a atenção é que o tribunal constitu- tituição da República estabelece que
seguinte sentido: “Propõe-se, pois, a cional, apesar da sua importância no “ninguém será considerado culpado
seguinte tese: no processo de inter- sentido da consolidação da ideia de até o trânsito em julgado de senten-
pretação constitucional estão poten- democracia constitucional, não se ça penal condenatória”. A mera aná-
cialmente vinculados todos os órgãos encontra sozinho no processo de in- lise da literalidade de tal disposição
estatais, todas as potências públicas, terpretação e concretização do texto já indica a clara violação da decisão
todos os cidadãos e grupos, não sen- constitucional, sendo os outros ór- tomada em plenário naquele Tribu-

22 Concílio
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nal, uma vez que se refere ao trânsito cificado. A liminar foi cassada, por- ferante; contudo, corre-se o risco de
em julgado de decisão condenatória. tanto, porque, para o Min. Fachin, a uma centralização excessiva de seu
Mesmo assim, o relator Min. Zavas- Corte “deve conferir estabilidade à papel de atuação no seio da socieda-
cki, por meio de um suposto racio- sua própria jurisprudência”.38 Ora, de política, relegando à insignificân-
cínio de ponderação, chegou à con- como pode haver estabilidade nas cia aqueles outros participantes do
clusão de que os interesses sociais decisões da Corte, se o acórdão, processo interpretativo de realiza-
albergados pelo poder punitivo esta- decidido por maioria no âmbito do ção do projeto sempre aberto esbo-
riam acima da pretensão individual HC 126.292/SP contrariou entendi- çado pelos constituintes.
de defesa. Nota-se com isso a con- mento dominante até então, assenta- A democracia constitucional, ao
solidação de um sistema marcada- do pelo HC 84.078/MG, de relatoria contrário, convive permanentemen-
mente inquisitorial, em que cada vez do Ministro Eros Grau? Percebe-se te com a tensão constitutiva entre os
mais se prega a eficiência de resposta claramente que não há no âmbito do poderes do Estado, institucionalmente
aos anseios sociais de punição, mes- STF qualquer preocupação em rela- estabelecidos, e entre estes e a esfera
mo que em detrimento da paridade ção à construção de uma linha argu- pública de forma ampla e geral,39 sem
de armas entre acusação e defesa. mentativa constante acerca de seus que possam ser desconsiderados os
No início do mês de agosto, outra julgados. O que se vê é a utilização sistemas internacionais e comuni-
decisão foi tomada por parte do Min. de conceitos vazios, que fundamen- tários de proteção a direitos huma-
Edson Fachin à ocasião de um julga- tam a sua prática judicante arbitrá- nos;40 e, para além destes, o próprio
mento de outro HC, de nº 135.752, ria, para lembrar os dizeres da pe- transconstitucionalismo, cujas ques-
impetrado pela defesa do Prefeito de nalista Puppe. tões jurídicas, segundo Marcelo Ne-
Marizópolis (PB), condenado e com ves, “perpassam os diversos tipos de
mandado de execução provisória da ordens jurídicas”.41
pena expedido. Tendo sido deferida oltemos então à Não há de se falar, portanto, pro-
a liminar pelo Min. Ricardo Lewan- pergunta inau- priamente em controle do controla-
dowski, durante o recesso judiciá- gural: Quem con- dor, mas sim em contrapeso, como
rio, o Min. Fachin, analisando o mé- trola os contro- princípio fundamental presente na
rito, o fez com base nas conclusões ladores? Quan- própria tradição do constituciona-
extraídas quando do julgamento do do formulamos lismo moderno, desde o seu surgi-
HC 126.292/SP. Em que pese não se a pergunta dessa forma, caímos no mento, com a Revolução Americana
tratar de decisão que confira cará- risco do regresso ad infinitum, já que de 1776.42 É nesse sentido que Hä-
ter de efetividade erga omnes, o re- haveríamos de nos questionar logo berle nos dá outra contribuição im-
lator entendeu que a decisão toma- em seguida quem controla o contro- portante: o elemento fundamental no
da pelo Plenário “não teve, a rigor, lador daquele que fiscaliza o cum- balanceamento da atividade judicante
como base apenas peculiaridades primento adequado das normas. De- do tribunal constitucional é a crítica
do referido caso concreto, tanto que vemos reconhecer que um tribunal aos seus julgados. “As críticas aos
culminou na edição de tese que, den- constitucional exerce um importan- julgados”, dirá Häberle, “compõem,
tre outras funções, exerce a tarefa te papel nos dias atuais, salvaguar- em uma comunidade onde o contro-
de indicar, em sentido geral, a com- dando, por exemplo, os direitos e ga- le de constitucionalidade está insti-
preensão da Corte Suprema sobre rantias constitucionalmente estabe- tucionalizado, o contrapeso impres-
dada matéria”,37 podendo, sim, cons- lecidos contra eventuais retroces- cindível no âmbito da divisão dos po-
tituir um germe de entendimento pa- sos propulsionados pelo órgão legi- deres face ao direito constitucional

julho • agosto • setembro 2016 23


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pretoriano do controle de constitu- dos pelo próprio STF, não há, portan- ocidental. Com base nos argumen-
cionalidade.43. Nisso, inclusive, resi- to, outra saída que não seja a crítica tos apresentados, na seara das ga-
de a exigência constitucional-demo- permanente, reiterada e pública da rantias fundamentais, o STF não está
crática de criticar tanto a leitura li- prática judicante do Tribunal, quan- autorizado a realizar uma interpre-
beral, que reduz a jurisdição cons- do essa se distancia da realização tação restritiva no tocante àquelas
titucional a uma função meramente das garantias fundamentais próprias garantias, como corolário do princí-
contramajoritária, quanto também a ao projeto constitucional-democrá- pio do não retrocesso social. Perce-
leitura comunitarista, que atribui à tico de 1988. be-se que, ao se portar de tal modo,
jurisdição constitucional o lugar de o Tribunal não apenas inverte o ônus
guardião dos valores supostamen- Conclusão argumento no processo penal, res-
te prevalentes na sociedade. Toda- A partir das reflexões anterior- tringindo o direito de defesa e violan-
via, tal crítica se faz no sentido de mente esboçadas, algumas conside- do o princípio do contraditório, mas
reconstruir o papel da jurisdição rações surgem em face da ideia de também, com isso, ignora a legitimi-
constitucional na garantia dos di- que seria necessária à própria de- dade constitucional-democrática dos
reitos fundamentais como consti- mocracia constitucional uma instân- outros participantes do círculo her-
tutivos da democracia, a ser exer- cia plural que, de certo modo, se co- menêutico relacionado ao proces-
cido como forma de retroalimenta- locasse como vigilante dos atos pra- so de concretização dos preceitos
ção do próprio processo democrá- ticados pelo STF. A tese que se bus- constitucionais, inclusive a esfera
tico e não em substituição, portan- cou defender no presente ensaio foi pública em geral, simplesmente ex-
to, a ele.44 Como não possui freios e no sentido de que as democracias cluindo-os, sob o argumento de que
garantias oriundos de si mesmo, o constitucionais convivem, desde o tal restrição se justificaria em defe-
tribunal, segundo Häberle, necessita surgimento do constitucionalismo sa da própria sociedade.
da crítica como motor da transfor- à época das grandes revoluções do O papel do direito penal, pensa-
mação de sua própria orientação, séc. XVIII, com uma tensão constitu- do em moldes minimamente racio-
em constante aprendizado no sen- tiva entre os poderes constituídos e nais, é, ao contrário, a proteção do
tido da realização máxima dos pre- entre eles e a esfera pública em ge- indivíduo face à possibilidade de in-
ceitos constitucionais.45 ral. A ideia seria menos de controle, gerência indevida no âmbito daquilo
O argumento do Min. Fachin, de mas sim de contrapeso, que, especi- lhe é mais caro, qual seja, a liberda-
que o Tribunal deve decidir no senti- ficamente em relação à atividade ju- de. Sob a ameaça de sua vulneração,
do de conferir estabilidade à sua li- risdicional do tribunal constitucional, para lembrar com Neumann, os indi-
nha decisória, ignora o fato de que é representado, sobretudo, pela crí- víduos estão à deriva de sua própria
o Tribunal não é o único endereça- tica acadêmica de suas decisões, no fortuna, em um estado patologizante
do de suas decisões e, nesse sentido, entendimento de Häberle. que impossibilita a livre formação do
ele não tem competência de realizar O que se viu, a partir do conjun- processo de deliberação democrá-
uma autointerpretação autêntica de to de decisões proferidas pelo STF no tica, enquanto ponto nevrálgico do
si mesmo. Ao contrário disso, a inte- tocante à relativização da presunção Estado Democrático de Direito con-
gridade na jurisprudência exige uma de inocência, foi uma clara violação temporâneo.
consistência de princípio, algo nun- a uma lógica de proteção do indiví- Tendo em vista tal estado de
ca contrário aos direitos e garantias duo face ao poder punitivo arbitrá- coisas, qual seria, pois, o papel dos
fundamentais. Face aos desacertos rio que vem se desenvolvendo des- acadêmicos e juristas, tão inconfor-
e equívocos interpretativos cometi- de o séc. XIX na tradição do direito mados com a demolição da proteção

24 Concílio
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

da liberdade e do sistema de garan- e mesmo que alguns de seus juízes


Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é profes-
tias penais constitucionalmente as- pretendam desqualificá-la, aos aca- sor associado e subcoordenador do Progra-
ma de pós-Graduação em Direito da Faculda-
segurados? Voltando, mais uma vez, dêmicos não é dada a faculdade de de de Direito da UFMG
a Neumann, este nos dá uma pista: se furtar à crítica de seus julgados. mcattoni@gmail.com
Douglas Carvalho Ribeiro é mestrando no
“a tomada de posição nos assuntos Ousemos, pois, a criticar. Caso não Programa de Pós-Graduação da Faculdade
políticos”.46 Mesmo que a crítica ins- critiquemos, não nos resta outra coi- de Direito da UFMG

titucionalmente venha a ser excluída sa a perder, senão nossas garantias Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa é mes-
trando no Programa de Pós-Graduação da Fa-
por parte do tribunal constitucional e liberdades. culdade de Direito da UFMG

bibliografia

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julho • agosto • setembro 2016 25


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

notas de rodapé

1. KAFKA, Franz. Vor dem Gesetz. In: Sämtliche Werke, 15. MONTESQUIEU. O Espírito das Leis, 2000, p. 198. ricanos sobre o tema. Desde, pelo menos, o texto de
2008, p. 853. Dworkin, recolhido em 1978, em Taking Rights Se-
16. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, 2014, p. 506. riously, sobre a desobediência civil, às críticas de
2. Optamos pela tradução do termo Torhüter como Waldron, Sunstein ou Tushnet ao Judicial Review,
guardião da porta, e não como “porteiro”, como op- 17. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas, bem como as controvérsias em torno do chamado
tou a versão brasileira de Modesto Carone, cf. KA- 1997, p. 61: “Um homem não pode ser chamado popular constitutionalism, que envolvem também
FKA, Franz. “Diante da lei”. In: Franz Kafka essencial, culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só os textos de Kramer, Post, Siegel, Balkin e Friedman,
2011. Acreditamos que tal seria a melhor opção, dado lhe pode retirar a proteção pública após ter decidi- entre outros (Cf. Balkin, Jack e Siegel, Riva (ed.) The
que, como vamos adiante mencionar, o termo Hüter do que ele violou os pactos por meio dos quais ela Constitution in 2020, 2009).
se encontra presente no âmbito da teoria constitu- lhe foi outorgada”.
cional quanto à questão de quem deve ser o guar- 33. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A
dião da constituição. 18. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, op. cit., p. 507. sociedade aberta dos intérpretes da Constituição:
contribuição para uma interpretação pluralista e
3. KAFKA, Franz. Vor dem Gesetz, op. cit., p. 853. 19. Sobre a questão do liberalismo em Carl Schmitt, procedimental da Constituição, 1997.
ver FERREIRA, Bernardo. O risco do político, 2004.
4. Tal semelhança é facilmente vislumbrável quan- 34. PUPPE, Ingeborg. Ciência do Direito Penal e Ju-
do se observa os principais textos daquele debate, 20. Sobre a relação entre a Escola de Kiel e o regi- risprudência, Revista dos Tribunais, v.14, n.58, (jan./
travado entre Hans Kelsen, autor do texto “Wer soll me nacional-socialista, ver KIRCHHEIMER, Otto. Das fev. 2006), p. 105-113.
der Hüter der Vefassung sein?” [Quem deve ser o Strafrecht im nationalsozialistischen Deutschland. In:
guardião da Constituição?], e Carl Schmitt, que no Von der Weimarer Republik zum Faschismus: Die Auf- 35. HÄBERLE. Hermenêutica Constitucional,op. cit. p. 13.
ano de 1931 publica a obra Der Hüter der Verfas- lösung der demokratischen Rechtsordnung, 1976.
sung [O guardião da Constituição]. 36. HÄBERLE, Peter. Recht aus Resenzionen. In Ver-
21. STF. AP nº 470. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Dispo- fassungsgerichtbarkeit zwischen Politk und Rechts-
5. Para uma explicação concisa acerca dos paradig- nível em <http://www.conjur.com.br/2013-abr-22/ wissenschaft, 1980, p. 5.
mas jurídicos, ver HABERMAS, Jürgen. La inclusión supremo-publica-integra-acordao-mensalao-8405-
del otro: estudios de teoría política, 1999, p. 247-258. -paginas>. Acesso em 16/09/2016. 37. STF. HC 13.5752, Rel. Min. Edson Fachin, julga-
do em 02/08/2016, publicado em PROCESSO ELE-
6. SCHMITT, Carl. Der Hüter der Verfassung, 1996. 22. Cf. ROXIN, Claus. Autoria y Dominio del Hecho em TRÔNICO DJe-164 DIVULG 04/08/2016 PUBLIC
Derecho Penal. Também entrevista de Roxin ao Con- 05/08/2016. Disponível em < http://www.stf.jus.
7. KELSEN, Hans. Quem deve ser o guardião da jur: http://www.conjur.com.br/2014-set-01/claus- br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.as
Constituição?. In: Jurisdição Constitucional, 2007, -roxin-critica-aplicacao-atual-teoria-dominio-fato. p?s1=%28HC%24%2ESCLA%2E+E+135752%2ENU
p. 237-298. ME%2E%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMon
23. FERRAJOLI. Direito e Razão, op. cit., p. 506. ocraticas&url=http://tinyurl.com/hzv7f7k>. Aces-
8. Decisão disponível em < http://www.servat.unibe. so em 16 de Setembro de 2016.
ch/dfr/bv021052.html>. Acesso em 15/09/2016. 24. Idem.
38. Para uma crítica certeira ao entendimento do
9. LEPSIUS, Oliver. Die maßstabsetzende Gewalt. 25. NEUMANN, Franz. Ansiedade e Política. In: Esta- Min. Fachin, ver STRECK, Lenio Luiz. Presunção de
In: MÖLLERS, Cristoph et al. Das entgrenzte Geri- do Democrático e Estado Autoritário, 1969, p. 302. inocência: Fachin interpreta a Constituição confor-
cht, 2011, p. 168. me o CPC? Disponível em <http://www.conjur.com.
26. Idem, NEUMANN, p. 301. br/2016-jun-30/senso-incomum-presuncao-inocen-
10. Conrado Hübner Mendes: “O STF é refém do ca- cia-fachin-interpreta-constituicao-conforme-cpc>.
pricho dos seus ministros”. Disponível em <http:// 27. Ver PLATÃO. A República. Tradução direta do gre- Acesso em 16 de Setembro de 2016.
www.osconstitucionalistas.com.br/conrado-hub- go Carlos Alberto Nunes. Belém, editora UFPA, 2000.
ner-mendes-o-stf-e-refem-do-capricho-dos-seus- 39. Cf. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade.
-ministros>. Acesso em 15/09/2016. 28. BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia, Breves notas às decisões do Supremo Tribunal Fe-
2015, p. 54-55: “A velha pergunta que percorre toda deral na longa sessão da noite do dia 14 para 15
11. Barroso afirma que antes do STF relativizar pre- a história do pensamento político - ‘Quem custodia de abril de 2016: para um exercício de patriotismo
sunção de inocência, o direito penal não era sério. os custódios?’ - hoje pode ser repetida com esta ou- constitucional. Disponível em <http://emporiododi-
Disponível em <http://justificando.com/2016/08/11/ tra fórmula: ‘Quem controla os controladores?’ Se reito.com.br/breves-notas/>. Acesso em 16 de Se-
barroso-afirma-que-antes-do-stf-relativizar-pre- não conseguir encontrar uma resposta adequada tembro de 2016.
suncao-de-inocencia-direito-penal-nao-era-serio/>. para esta pergunta, a democracia, como advento do
Acesso em 15/09/2016. governo visível, está perdida. Mais que de uma pro- 40. Nesse sentido, cf. MEYER, Emilio Peluso Neder.
messa não cumprida, estaríamos aqui diretamente Ditadura e responsabilização: elementos para uma
12. Cf. BACHA E SILVA, Diogo; BAHIA, Alexandre Gus- diante de uma tendência contrária às premissas: a justiça de transição no Brasil, 2012.
tavo Melo Franco de Moraes; e CATTONI DE OLIVE- tendência não ao máximo controle do poder por par-
RA, Marcelo Andrade. Presunção de Inocência: uma te dos cidadãos, mas ao máximo controle dos súdi- 41. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo, 2009.
contribuição crítica à controvérsia em torno do julga- tos por parte do poder”.
mento do Habeas Corpus n.º 126.292 pelo Supremo 42. Sobre a relação entre o pensamento de Mon-
Tribunal Federal. Disponível em <http://emporiodo- 29. SILVA, Virgílio Afonso; MENDES, Conrado Hübner. tesquieu - preconizava a própria ideia de controles
direito.com.br/presuncao-de-inocencia-uma-contri- Habermas e a Jurisdição Constitucional. In. NOBRE, mútuos como fundamento do sistema político – e os
buicao-critica>. Acesso em 15/09/2016. Marcos (org.). Direito e Democracia: Um guia de lei- revolucionários americanos, ver ARENDT, Hannah.
tura de Habermas, 2008, p. 209. CATTONI DE OLI- Da revolução, 1988.
13. Cf. STRECK, Lenio Luiz. O estranho caso que fez o VEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legisla-
STF sacrificar a presunção de inocência. Disponível tivo, 2016, p. 132. 43. HÄBERLE, Peter. Recht aus Resenzionen, op.
em <http://www.conjur.com.br/2016-ago-11/sen- cit., p. 12.
so-incomum-estranho-fez-stf-sacrificar-presuncao- 30. Idem. Ibidem.
-inocencia>. Acesso em 16/09/2016. 44. Cf. CATTONI DE OLIVEIRA. Devido Processo Le-
31. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucio- gislativo, 2016.
14. STF. HC nº 126.292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki. nal da República Federal da Alemanha, 1998, p. 37.
Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ 45. HÄBERLE, Peter. Recht aus Resenzionen, op. cit. p. 53.
paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246>. Aces- 32. Cabe, contudo, também registrar a importância
so em 16/09/2016. da discussão contemporânea entre os norte-ame- 46. NEUMANN, 1969, p. 322.

26 Concílio
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28 V
cai
io da
terterra
golpe
M
BRUNO PEREIRA
DA CUNHA

or
Oficial de Marinha

r
o
o desastre
dentro
do
B
da tragédia

E u
m abril de 2010, Niterói foi o palco de uma das
tragédias mais chocantes já ocorridas no Bra-
sil: o desastre do Morro do Bumba. Após dias
de fortes chuvas na cidade, houve um grande

m
deslizamento de terra que se estendeu por cerca de 600
metros, levando casas e toda a infraestrutura urbana
que havia sido instalada no Morro. Porém, essa tragédia

B
não foi amplamente divulgada pela mídia em função do
número de mortos, menos de 50, mas pelo bizarro fato

a
dessa comunidade ter sido construída sobre um lixão de-
sativado. A conjunção de um terreno instável devido ao
depósito de lixo, sem qualquer tratamento, por anos, e o
acúmulo de água nos espaços criados pela heterogenei-
dade do material deflagrou o deslizamento que, literal-
mente, arrastou seus moradores para debaixo do lixo.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O prefeito da cidade, na ocasião, definiu como um na disputa pelo poder. O sistema político de uma deter-
desastre de causas “naturais” e, junto com a mídia, fo- minada sociedade adquire padrões de comportamento
cou nas ações de resposta para reparar os danos às fa- próprios, que são moldados ao longo do tempo, depen-
mílias dos mortos e prometer novas moradias aos so- dendo de uma extensa gama de variáveis externas e in-
breviventes. É comum e até compreensível a ênfase nas ternas: é a estrutura do sistema. Quando se analisa, por
ações de resposta a desastres, tanto pelo poder públi- exemplo, o sistema político brasileiro e suas diversas pe-
co quanto pela sociedade, mas é fundamental entender- culiaridades, é comum a expressão “o sistema funciona
mos as causas de uma tragédia sui generis como essa. assim, quem não segue suas regras, não sobrevive na
E não podemos cair na armadilha de atribuir a causas política”. Ou seja, o sistema é quem determina as regras
“naturais”. Meu propósito inicial neste artigo é mostrar e não o homem, apesar deste, de forma coletiva, tê-lo
que o histórico de ações e decisões da gestão municipal moldado ao longo de séculos. Veremos, agora, a atua-
de Niterói, desde o surgimento da comunidade do Bum- ção da gestão municipal de Niterói, desde o surgimento
ba, a credencia como principal fator de risco que levou da comunidade do Morro do Bumba.
ao desastre. As chuvas foram apenas uma variável, de O Morro do Bumba se situa no bairro do Viçoso
menor importância, entre muitas outras. Para tal, em- Jardim, região Norte de Niterói. Antes de ser uma fave-
pregarei uma corrente sociológica que utiliza a aborda- la, o morro foi utilizado como um depósito de lixo da ci-
gem sistêmica como referencial principal de análise, ou dade entre 1970 e 1986, por decisão da Prefeitura. Po-
seja, emprega a teoria de sistemas.1 rém, após a sua desativação, foi sendo ocupado pouco
Um dos sociólogos mais importantes que utiliza a a pouco por algumas famílias de baixa renda que deci-
abordagem sistêmica é o alemão Niklas Luhmann, que diram construir suas casas no local (LOGUERCIO, 2013).
desenvolveu a teoria de sistemas sociais, sob forte in-

N
fluência da cibernética de 2ª ordem.2 Nesta teoria, um o primeiro mandato do prefeito Jorge Ro-
sistema só pode ser entendido em relação ao ambiente berto Silveira (1989-1992), o modelo de
(tudo que é externo ao sistema) e se define como a dife- gestão municipal voltou-se para o aten-
rença entre o sistema e o ambiente. A sociedade atual dimento das necessidades básicas da po-
é constituída de diversos sistemas sociais, como o poli- pulação de baixa renda, com a implementação de pro-
tico, econômico, jurídico, científico, religioso, artes, fa- jetos sociais como “Médicos de família” e “Vida nova no
mília e outros que possuem funções próprias, se dife- morro”, que contemplavam diversas comunidades. Nes-
renciando entre si, e uns sendo ambiente dos outros. O se contexto, foi realizada a urbanização do Morro do
interior do sistema é constituído por um continuum de Bumba, com os serviços de iluminação pública e água.
operações, que no caso de sistemas sociais, são as co- A melhora das condições de infraestrutura da comuni-
municações, ou seja a sociedade é constituída exclusiva- dade atraiu mais famílias, que, assim, ocuparam o mor-
mente por comunicação (LUHMANN, 2009). As pessoas ro desordenadamente. Note-se que a decisão política
estão, segundo essa teoria, no ambiente do sistema so- de urbanizar o morro foi adotada poucos anos depois
cial, pois são um outro tipo denominado de sistema psí- da desativação do lixão. Apesar da aparente “boa inten-
quico. Um sistema social não existiria sem as pessoas, ção”, essa decisão é, provavelmente, a que mais contri-
mas adquire características próprias e evolui em dire- buiu para aumentar o número de mortos no desastre.
ções não planejadas pelo homem. No segundo mandato de Leonel Brizola do governo
Por exemplo, a função do sistema político é tomar do estado (1991-1994), político do mesmo partido que
decisões coletivamente vinculantes, sendo suas comuni- o então prefeito de Niterói, o Morro do Bumba recebeu
cações orientadas segundo um código próprio baseado novas melhorias de infraestrutura e apoio de progra-

30 cio da terra
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mas sociais. A Cedae3 levou para o local, de helicóptero, trução do Caminho Niemeyer, que, na versão original e
uma grande caixa d’água para atender aos moradores. completa, deveria conter dois templos religiosos, um
O morro também foi beneficiado pelo programa social teatro popular, o Centro de Memória Oscar Niemayer e
“Uma luz na escuridão”, além de ter sido construída uma um Museu do Cinema. Em 1997, Jorge Roberto Silveira
quadra poliesportiva, uma creche e outros equipamen- reassume a Prefeitura por dois mandatos (1997-2000
tos públicos (SOUZA, 2012). Mais uma vez, decisões po- e 2001- 2002) e mantém o modelo da política urbana de
líticas, de cunho eleitoreiro, urbanizaram uma comuni- seu antecessor.
dade construída sobre um lixão desativado. As políticas sociais e urbanas implementadas na dé-
Com a melhora dos indicadores sociais no municí- cada de 1990 resultaram na elevação do IDH4 da cidade
pio, o então prefeito consegue eleger seu sucessor, João de 0,681 (1990) para 0,771 (2000), o terceiro maior do
Sampaio (1993-1996). Há uma mudança no modelo da Brasil. Destaca-se que a elevação dos índices de esco-
política urbana municipal, ao priorizar a construção de laridade e renda (que muito contribuíram para a eleva-
uma nova identidade para Niterói, enquanto uma cidade ção do IDH) ocorreram também pela intensa migração,
vocacionada para a cultura e incluída no circuito nacio- proveniente do Rio de Janeiro, de indivíduos da classe
nal e internacional do turismo cultural, sem a necessá- média alta, que optaram por viver na cidade. Entretan-
ria ampliação dos projetos sociais para as populações to, o decorrente encarecimento dos custos de moradia
de baixa renda. Em 1993, dá-se início o projeto da cons- na cidade “empurrou” as classes sociais mais baixas

A melhora da infraestrutura da comunidade atraiu


mais famílias, que, assim, ocuparam o morro
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para outros municípios (Maricá, São Gonçalo e Itaboraí, tras épocas, e que jamais poderão ser preparadas para
principalmente) e para a periferia da cidade, habitando conviver com este Plano Urbanístico indecente aprova-
em loteamentos irregulares, nas encostas dos morros do e defendido pelas autoridades de nossa cidade... (ME-
(FERREIRA, RIBEIRO, 2014). O crescimento das popula- NEZES, 2009, p.19, grifo nosso)
ções em favelas da cidade, na década de 1990, inclusi-
ve no Morro do Bumba, relaciona-se diretamente com Ao longo de duas décadas, as seguidas aprovações,
as políticas implementadas no período. pela Câmara de Vereadores, de diversos projetos nas
Além do crescimento das moradias de baixa renda, áreas nobres que beneficiaram empresas de constru-
as decisões políticas municipais começam a chamar a ção, com o aval do poder executivo, levaram a descon-
atenção da sociedade, que se organiza para fiscalizar a fianças quanto à questão do patrocínio das campanhas
atuação do poder público na cidade. O Conselho Comu- eleitorais, conforme o testemunho do analista político
nitário da Orla da Baía (CCOB)5 denuncia a atuação con- independente René Amaral, em 2010:
junta dos poderes legislativo e executivo em prol de uma
política voltada aos interesses do capital imobiliário, na As empresas de construção, aliadas à especulação imobi-
década de 2000. As seguintes passagens são fragmen- liária, patrocinam fortemente as campanhas a vereador e
tos dos testemunhos de lideranças do CCOB sobre as prefeito em Niterói, sempre escolhendo candidatos inex-
sessões de votação do Plano Urbanístico Regional da pressivos que estejam dispostos a atender aos interes-
cidade, em 2005: ses da especulação. Com a grana da especulação são fei-
tas campanhas milionárias, não só pelo gasto com pro-
Nós do CCOB participamos da discussão, não encami- paganda, mas também com os gastos com COMPRA DE
nhando propostas, mas tão somente no intuito de cha- VOTOS. Eleitos, os canalhas propõem leis e diretrizes que
mar a atenção da comunidade […] de que a Prefeitura na só visam favorecer a especulação, afrouxam até aspec-
realidade representava os interesses do capital especu- tos relativos a: Patrimônio Histórico e Artístico, meio am-
lativo e fizemos várias denúncias do que havia ocorrido biente, preservação e segurança.6
(MENEZES, 2009, p.15, grifo nosso).
Assim, pode-se inferir que os interesses da especu-
Não é novidade para ninguém a agressão implacável de lação imobiliária influenciaram significativamente o mo-
que estamos sendo vítimas nesta cidade, com a invasão delo de política urbana da Gestão Municipal de Niterói
FRIA E CALCULISTA dos gigantescos prédios, verdadei- nas décadas de 1990 e 2000, em detrimento de outros
ras aberrações, construídos pelo ganancioso mercado temas, como a política de mitigação de riscos em áreas
imobiliário da cidade, ante a complacência e o apoio total de baixa renda. As comunicações entre sistema econô-
e irrestrito das nossas autoridades municipais, tanto o le- mico e o sistema político são reciprocamente prioriza-
gislativo quanto o executivo. Não tiveram (...) a decência, das,7 pois trazem benefícios mútuos: aumenta os lucros
quando na calada da noite e com a Câmara fechada ao em um e o poder no outro.
povo, aprovaram uma lei (Plano Urbanístico Regional – No que diz respeito ao sistema jurídico, a gestão mu-
PUR) (...) que ante uma propaganda enganosa de MELHOR nicipal de Niterói ignorou sistematicamente a legislação
QUALIDADE DE VIDA, acabaram por atrair empresários existente. Apesar de não haver lei específica que tratas-
que somente objetivam o lucro, facilitado pelo poder se da proibição de construção de casas sobre aterros
público. Surgem então prédios monstruosos, com mais sanitários até o ano do desastre do Bumba (até por sua
de 18 pavimentos, (...) em ruas sem qualquer infraestru- obviedade), uma série de políticas municipais e federais,
tura, (...) o caos instalado nas vias construídas para ou- implementadas por lei nas décadas de 1990 e 2000, tor-

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políticas municipais e federais tornavaM ilícita a edificação


de uma comunidade nas condições geológicas do m
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nava ilícita a edificação de uma comunidade nas condi- to das Cidades (Lei 10.257/01) regulamentava a Consti-
ções geológicas do Morro do Bumba, com a decorrente tuição Federal no que tange à política urbana e estabe-
possibilidade de responsabilização civil da gestão mu- lecia novas bases para uso e parcelamento do solo em
nicipal de Niterói no caso de inação. É certo que exis- áreas ocupadas por populações de baixa renda. Por fim,
tem dezenas de favelas em Niterói, mas construída so- em 2005, a Lei Municipal 2233/05 implementou o Pla-
bre um lixão desativado só havia uma, o que torna sin- no de Urbanização da Região Norte de Niterói, estabe-
gular esse caso. lecendo claramente a necessidade de remanejamento
de famílias em áreas impróprias para ocupação, como

A
começar pelo Plano Diretor da cidade, im- na Área de Especial Interesse socioambiental do Morro
plementado em 1992, que previa a urbani- do Bumba. Vemos, neste caso, que o sistema político ig-
zação do Morro do Bumba sem considerar norou, sistematicamente, as comunicações do sistema
suas condições impróprias de edificação. jurídico, o que denota a ascendência de um sistema so-
Três anos depois, a lei municipal 1468/95, sobre o par- bre o outro, com a certeza da impunidade perante leis
celamento do solo, proibia e edificação em áreas sem que não saem do papel quando se trata de controlar as
condições geológicas apropriadas. Em 2001, o Estatu- ações da política.

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No que toca a relação entre a gestão municipal e um sistema que se reproduzem em diversas escalas9
o sistema científico, também notou-se a mesma sober- no país, desde o governo federal até pequenos municí-
ba. Estudos realizados por um órgão técnico da própria pios interioranos.
Prefeitura de Niterói, em 1994 e 1999, identificaram os Atingido o primeiro propósito deste artigo, podemos
riscos de deslizamento no Morro do Bumba e a proble- nos aventurar a chegar nas causas mais profundas do
mática ambiental do lixo. Outro estudo realizado pela problema. Para tal, identificaremos, também sob a óti-
Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2004, e vis- ca sistêmica, alguns aspectos da formação da estrutu-
torias realizadas por especialistas dessa universidade ra do sistema político nacional, a fim de entendermos o
geraram recomendações sobre o risco de deslizamen- porquê da forma de atuação da gestão municipal de Ni-
to no Morro do Bumba à Prefeitura de Niterói, na ges- terói, no caso do Bumba.
tão de Godofredo Pinto (2002-2008). Os referidos estu- A primeira pá de lixo colocada no Morro do Bum-
dos recomendavam uma série de medidas, entre elas o ba tem origem bem antes do ano de 1500, ponto de par-
remanejamento das famílias que ocupavam o local onde tida para análise do processo de formação do sistema
era o lixão para uma área adjacente, que não corria ris- político brasileiro. É preciso compreender como funcio-
co de deslizamentos, dentro do próprio assentamento. nava o sistema português, que, a partir do início da co-
lonização, se transferiu para o Brasil e foi o núcleo ori-

P
orém, esses estudos técnicos não sensibiliza- ginal, moldado posteriormente em virtude do diferente
ram a gestão municipal a ponto de serem to- processo sócio-histórico aqui vivido.
madas as decisões que preveniriam o desas- A formação étnica e cultural do português é uma
tre. Mesmo com o testemunho dos professo- resultante de influências europeias e africanas. Uma
res que produziram os estudos e os explicitaram em di- mescla entre a católica e a maometana, a dinâmica e a
versas entrevistas concedidas, o então reitor da UFF de- fatalista encontrando-se no português. Conforme, bri-
clarou ao jornal O Globo,8 após o desastre, que nenhum lhantemente, sintetiza Gilberto Freyre:
dos estudos da UFF tratava “especificamente” do Morro
do Bumba. Esta declaração minimizou a responsabilida- O sangue mouro ou negro correndo. O ar da África, quen-
de do prefeito Jorge Roberto Silveira (2009-2012), que já te, oleoso, amolecendo as instituições e nas formas de cul-
havia administrado a cidade por quatro mandatos, pelo tura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez mo-
menos para a opinião pública no momento em que o de- ral e doutrinária da igreja medieval (FREYRE, 2006, p.66).
sastre possuía grande repercussão na mídia. Tornou-
-se patente a ascensão do sistema politico sobre o sis- Essas influências resultaram em uma constituição
tema científico, tanto pelo “bloqueio” da verdade cientí- social vulcânica que se reflete no quente e plástico do
fica realizada pelo reitor da UFF por questões políticas, caráter nacional lusitano, das suas classes e institui-
quanto pela reincidente indiferença às conclusões dos ções, nunca endurecidas nem definitivamente estrati-
estudos técnicos realizados que já apontavam um grau ficadas, fazendo de sua vida, de sua moral, de sua eco-
de risco elevado para a comunidade. nomia, de sua política, um regime de influências anta-
Assim, além do fator natural que contribuiu para o gônico que se alternam, se equilibram ou se hostilizam.
desastre, ao vermos o “filme” desde o início da ocupa- O português é, sem dúvida, um povo cosmopolita e he-
ção, podemos destacar como fator contribuinte princi- terogêneo (FREYRE, 2006).
pal a atuação do sistema político local, dotado de cer- O domínio dos mouros (de origem africana) sobre
tos padrões de comportamento que se repetiram por os visigodos (de origem germânica) por mais de sete sé-
diversos mandatos. São características estruturais de culos em Portugal contribuiu, significativamente, na for-

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mação da estrutura social portuguesa. Uma vez vencido Tal estrutura social-política aporta no Brasil em
o povo africano, sua influência persistiu através de uma 1500. A partir desse momento, inicia-se um processo
série de efeitos. O modelo de colonização agrária escra- histórico distinto, que irá moldar o sistema político bra-
vocrata, polígamo e patriarcal utilizado no Brasil é uma sileiro com outras variáveis, ainda que fortemente in-
continuidade do adotado pelos mouros nos cristãos em fluenciado pela metrópole nos três séculos seguintes.
Portugal e vice-versa após a vitória militar dos cristãos Com as características sociopolíticas e econômi-
no século XIII. Nessas guerras de reconquista, a igreja cas já descritas do nosso colonizador, a organização
se aproveitou largamente e, através de suas ordens mi- inicial do Brasil Colônia, baseada na agricultura, se for-
litares (templários), se tornou proprietária de latifúndios mou a partir de três elementos: a grande propriedade,
enormes, que deram origem à colonização latifundiária a monocultura e o trabalho escravo. Mutatis mutandis,
e semifeudal no Brasil (FREYRE, 2006). a mineração, outra grande atividade da colônia a par-
Raymundo Faoro (2012) nos explica que, fruto deste tir do século XVIII, adotará uma organização idêntica à
peculiar processo sócio-histórico, forma-se, em Portu- da agricultura, preservadas as distinções de natureza
gal do século XV, um grupo social dominante constituí- técnica. O último grande setor da economia colonial era
do de peritos nas leis e nas técnicas de mando, que se o extrativismo, que apesar de não configurar o elemen-
revela indispensável ao rei: o estamento. Portugal, pre- to da grande propriedade, a forma de exploração com
coce em sua unificação em relação aos demais países grande quantidade de mão de obra escrava permane-
da Europa, inicia sua expansão comercial corporifica- ce (PRADO JR, 2011). Esse modelo econômico se espa-
da nas grandes navegações. A estrutura política, nesse lhou pelo Brasil, com destaque para o nordeste e o Rio
momento, é formada pelo rei e seu estamento, que exer- de Janeiro. É com base nessa economia que se desen-
cem o poder com um caráter patrimonial, no qual a fa- volve uma sociedade semifeudal, em que se origina a
zenda pública se confunde com a propriedade do man- grande concentração de riquezas em uma aristocracia,
datário maior. Isso significou a constituição de um ca- que contribuiu para termos, no Brasil, uma camada so-
pitalismo pautado pela gestão estatal, em vez de orien- cial similar ao estamento português, já presente como
tado pela lógica de mercado. ethos a ser seguido.
De caráter burocrático, o estamento atua no inte-

O
resse de sua perpetuação no poder, adaptando-se às utro fator fundamental que moldou o pecu-
mudanças e gerando mecanismos para reservá-lo para liar sistema político brasileiro foi a decisão
si. Uma burocracia de caráter aristocrático, com uma portuguesa de delegar à iniciativa privada
ética e um estilo de vida particularizado, em que a troca todos os ônus e bônus da colonização, asso-
de benefícios é a base da atividade pública, direcionada ciada a grande distância da metrópole (do governo cen-
ao poder e ao tesouro do rei. tral). O sistema das capitanias hereditárias (1534-1759),
Já para Sergio Buarque de Holanda (1995), o com- aqui implantado, concedia a particulares o direito de ex-
plexo cultural a definir o português é um só: a cultura ploração dos recursos, mas com os deveres de prote-
da personalidade ou personalismo, que implica o impé- ção contra invasões estrangeiras e de administração.10
rio dos vínculos afetivos, o domínio da esfera das rela- Enormes porções de terra entregues à fidalgos que de-
ções pessoais animada pela lógica da reciprocidade e tinham total liberdade de ação, ainda mais com o débil
da dependência – por isso a ética do fidalgo – filho de controle exercido pela metrópole em face das distâncias
algo. Assim, prevalecem as relações de caráter orgâni- envolvidas. A despeito do êxito ou não desse sistema, o
co (familiar principalmente) na esfera pública, que de- fato é que o seu modelo persistiu por todo o período co-
veria basear-se em formas de ordenação impessoal. lonial, seja com os senhores de engenho ou, mais tarde,

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com os coronéis. Assim, os donos de terras e seus clãs gio Buarque, a família patriarcal forneceu o único e obri-
cedo contestaram a autoridade dos representantes do gatório modelo de organização das relações sociais, in-
rei (do governo) contra qualquer abuso da metrópole e clusive de cunho político, emperrando o funcionamen-
da própria igreja. Bem diferente da América espanhola, to abstrato e universalista do Estado e de suas institui-
onde, por longo tempo, os colonos ficaram sob à sombra ções (não por acaso, na votação do processo de admis-
dominadora das catedrais e dos palácios dos vice-reis, sibilidade do impeachment da presidente Dilma Rouseff,
reinóis todo-poderosos (FREYRE, 2006). um grande número de parlamentares utilizou a família
Caio Prado Junior (2011) nos auxilia ao afirmar que como base de sua argumentação, revelando a mescla
o clã patriarcal, no Brasil, domina o cenário da vida da entre família e política, até hoje, em nossa sociedade).
colônia, numa área vasta, onde a autoridade pública é Um sistema político de cunho autoritário e de com-
fraca, quem “manda” é o senhor das terras. A célula or- padrismo, em que a família patriarcal adquiriu, sobre a
gânica da sociedade colonial é a grande família patriar- base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escra-
cal, onde todos dependem do senhor, e este protege seus vo, a função do mando político, cujas consequências fo-
familiares e agregados, com o predomínio de interesses ram o oligarquismo e o nepotismo que aqui madrugaram.
privados sobre o coletivo. Já para Gilberto Freyre e Ser- Essas características estruturais do sistema podem ser

os donos de terras e seus clãs cedo contestaram a autoridade dos


representantes do rei contra qualquer abuso da m
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vistas ao longo da história, com o predomínio constante das instituições políticas. É o estamento se adaptando
de vontades particulares que encontram seu ambiente às mudanças, preservando para si o poder. É o lixão do
próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma Bumba começando a ganhar forma e volume.
burocracia impessoal. Entre estes círculos, sem dúvi- Caio Prado analisa da mesma forma ao afirmar que,
da, o da família é aquele que se exprimiu com mais força após a independência, o sistema econômico e social se
e desenvoltura em nossa sociedade (HOLANDA, 1995). perpetuou com a existência dos senhores da terra e toda
A estrutura colonial brasileira, com predominância a riqueza de um lado e do outro a grande massa da po-
do meio rural sobre o urbano, não se modificou até a abo- pulação, uma máquina de trabalho apenas, sem outro
lição da escravatura, em 1888. Segundo Sergio Buar- papel no sistema. Já Sergio Buarque pontua que, nesse
que, a abolição representa um marco na evolução na- período, o país necessitou criar uma estrutura burocrá-
cional com significado singular e incomparável. A partir tica própria. Assim, na ausência de uma burguesia in-
das novas formas de produção de capital, sem o traba- dependente, os candidatos às funções públicas criadas
lho servil, o meio urbano começa a preponderar sobre foram recrutados, por força, entre indivíduos da mes-
o meio rural. Já para Caio Prado, a abolição da escrava- ma massa dos antigos senhores rurais, portadores de
tura não representou uma ruptura tão impactante nas uma mentalidade e tendência característica dessa clas-
relações sociais e políticas, pois os homens livres, em- se. Toda ordem administrativa do país, durante o impé-
bora desvencilhados tanto do jogo do trabalho forçado rio e, mesmo depois, já no regime republicano, se com-
quanto da apropriação direta dos benefícios da escra- porta a partir de elementos vinculados ao velho siste-
vidão, nunca se evadiram por completo da órbita do do- ma senhorial rural.
mínio senhorial, estando a ela submetidos pelo vínculo

N
pessoal do favor, que lhes permitia conseguir benefícios esse ponto, é importante mencionar como
em troca da lealdade, ou seja, uma relação clientelista Luhmann (2006) categoriza as diferentes
em substituição ao domínio servil. formas de evolução das sociedades, utili-
O fim do período colonial é um marco do ponto de zando o conceito de diferenciação. A forma
vista histórico, porém o mesmo não se pode dizer do que predominou durante o feudalismo na Europa e no
ponto de vista sociológico, em que o que houve foi uma período colonial brasileiro foi a “estratificada”, em que
continuidade dos modelos conformados e consolidados os sistemas sociais são desiguais e divididos por clas-
em mais de 300 anos. No âmbito do sistema político na- se. Todo o comportamento social orienta-se a partir da
cional, se poderiam identificar certos padrões de com- desigualdade entre as diferentes classes e igualdade
portamento já estabilizados em sua estrutura: oligar- dentro da mesma classe. Há uma distribuição desigual
quismo, patriarcalismo, patrimonialismo, autoritaris- de recursos e oportunidades de comunicação, em que
mo, personalismo, nepotismo e clientelismo, para men- poucos têm muito e muitos têm pouco. O patrimônio con-
cionar os principais. ceitual se concentra nos estratos superiores enquanto
Segundo Roberto DaMatta (1997), a proclamação os estratos inferiores estão comprometidos com pro-
da independência está longe de ser divisor de águas que blemas cotidianos de subsistência.
de súbito improvisou tanto a nação quanto seu orde- O aumento da complexidade na sociedade estratifi-
namento político. A consolidação da ordem política pôs cada leva a outra mudança estrutural. O contínuo pro-
em primeiro plano os interesses de grupos regionais e cesso de diferenciação dos sistemas sociais os tornam
sua disputa por definir um arcabouço institucional que cada vez mais autônomos, e não há mais como o estra-
preservasse sua autonomia, sem alcançar uma repre- to superior lidar com todas as demandas. O crescimen-
sentação simbólica do nacional e o caráter integrador to do sistema econômico, por exemplo, leva a novas for-

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mas de inclusão nos estratos superiores com o acúmu- da sociedade estratificada. Ao retornarmos ao Morro
lo de capital pela burguesia. O surgimento das escolas do Bumba, podemos compreender, sob a ótica sistêmi-
públicas retira da nobreza a exclusividade do sistema ca, os padrões de comportamento da gestão municipal
educacional e permite, assim, a inclusão nos demais de Niterói, um subsistema que reproduz as mesmas ca-
sistemas sociais. racterísticas estruturais do sistema político brasileiro,
No atual estágio de evolução, as sociedades se au- em sua escala.
todiferenciam nos sistemas sociais já descritos (político,

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religioso, jurídico, econômico, educativo etc.) conforme rimeiramente, na forma patrimonialista e de
a função que desempenham. É a sociedade funcional- troca de benefícios na relação com os repre-
mente diferenciada. Os sistemas sociais não, necessa- sentantes do sistema econômico, ao tomar
riamente, evoluem para “melhor”,11 mas simplesmente decisões em prol do capital imobiliário, des-
tornam-se mais complexos, com mais possibilidades de virtuando a função pública para atender a interesses
comunicação. Quanto mais complexos se tornam, mais privados. Tal padrão de comportamento pode ser com-
subsistemas aparecem, e estes também se subdividem parado ao da elite social do Brasil Colônia, originado a
conforme o aumento da complexidade interna. Por exem- partir do estamento burocrático português. Na relação
plo, o sistema científico se autodiferenciou em diversos com os sistemas jurídico e científico, observa-se uma re-
subsistemas ao longo do tempo (química, física, biologia jeição sistemática às suas comunicações, tanto no des-
etc.). Luhmann entende que não há um sistema que seja cumprimento de leis que proibiam a edificação de ca-
superior aos demais. Todos podem se interrelacionar. sas nas circunstâncias do Morro do Bumba quanto na
Logo, a sociedade moderna é acêntrica. inação ao tomar conhecimento de estudos técnicos que
Na Europa, a transição para a sociedade funcio- comprovavam os riscos existentes para os moradores.
nalmente diferenciada ocorre no final do século XVIII Pelo contrário, a Prefeitura e o governo do estado ainda
e início do século XIX. Entretanto, diferentemente da edificaram e ampliaram a infraestrutura do morro, e foi
transição europeia, que ocorre “naturalmente”, o pro- realizada uma ação política no sentido de se mascarar
cesso brasileiro é imposto de cima para baixo, com a os resultados dos estudos técnicos da UFF, quando seu
implementação da república e todo um ordenamen- reitor declarou não haver estudos “específicos” sobre
to jurídico e burocrático impessoal que não emergiu os riscos no Bumba.
da sociedade brasileira, mas foi importado dos países Esses fatos mostram uma autopercepção de impu-
de referência europeus. Em outros termos, as condi- nidade e superioridade hierárquica dos representantes
ções sociais para uma transição efetiva da sociedade do sistema político em relação aos demais. Tais carac-
estratificada para a funcionalmente diferenciada não terísticas nos remetem, diretamente, à forma de dife-
ocorreram no Brasil, como, por exemplo, a ascensão renciação estratificada da sociedade, em que o estrato
de uma burguesia para contestar a estrutura de poder superior está acima das leis e utiliza-se de sua posição
vigente. Não que esse seja o único caminho, mas foi o hierárquica nas relações com os demais estratos, que,
que escolhemos ao copiar as estruturas institucionais sobretudo, reconhecem e aceitam essa subordinação.
das sociedades europeias. Vemos que, apesar da distância temporal entre o de-
O resultado foi a permanência de uma sociedade sastre do Bumba (2010) e a abolição da escravatura/
estratificada existindo de fato, sob a aparência de uma início do período republicano (1888/1889), muitos pa-
sociedade funcionalmente diferenciada, principalmen- drões de comportamento continuam ativos na estrutura
te no âmbito do sistema político, que herdou todos os do sistema político. Se incluirmos, na análise, os aconte-
privilégios e a posição hierárquica do estrato superior cimentos decorrentes da atual operação Lava-Jato na

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política nacional, que está permitindo uma “dissecação” estudos técnicos que mostravam os riscos de acidente
dessa estrutura, veremos a manutenção dessas práti- no Morro do Bumba.
cas e procedimentos. Porém, a estrutura de um sistema social não é imu-
A Lava-Jato investiga um esquema de corrupção, tável.14 Tanto no caso do Bumba quanto na Lava-Jato, po-
em que grandes empreiteiras, organizadas em cartel, demos estar testemunhando uma mudança no ambiente,
pagavam propina para altos executivos da Petrobrás e mais precisamente do sistema jurídico, que, se for contí-
outros agentes públicos que integravam ou estavam re- nua, poderá implicar uma evolução na estrutura do sis-
lacionados a partidos políticos responsáveis por indicar tema político brasileiro. No caso do Bumba, após o de-
e manter os diretores da empresa estatal. As empreitei- sastre, o Ministério Público Estadual (MPE) realizou uma
ras ganhavam, assim, licitações fraudulentas e super- investigação preliminar e concluiu que houve indícios de
faturadas, e a propina era utilizada pelos partidos po- omissão do governo municipal, o qual, mesmo tendo sido
líticos como caixa dois de campanha, o que contribuía alertado, não tomou medidas preventivas para evitar a
para a manutenção de seus representantes no poder, permanência de moradores nas áreas de risco. O MPE
além do enriquecimento pessoal ilícito.12 É o Bumba po- citou, também, estudos da UFF e reportagens que indi-
tencializado, metáfora da desvirtuação da função públi- cavam o risco de desabamento naquele e em outros lo-
ca para atender a interesses privados e a troca de be- cais da cidade.15 A 6ª Vara Cível da Comarca de Niterói
nefícios entre representantes de um “estamento” bra- aceitou a denúncia do MPE e, em 2013, indiciou o pre-
sileiro em pleno século XXI, que atuavam com a mesma feito, o secretário municipal de obras e o presidente da
finalidade dos políticos e empreiteiros de Niterói, só que Empresa Municipal de Moradia e Saneamento (EMUSA)
em uma escala diferente. na ocasião do desastre, bem como o prefeito da gestão
anterior, por dano ao erário e improbidade administra-

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ambém referente à operação Lava-Jato, fo- tiva.16 Em outra ação, o MPE, com base em relatórios da
ram gravadas conversas informais entre Defesa Civil, acionou a 6ª Vara Cível da Comarca de Ni-
políticos, ao telefone, que vieram a público terói, cuja sentença obrigou a Prefeitura a agir preven-
e revelaram várias tentativas de obstrução tivamente em áreas de risco da cidade.17
da Justiça. Entre elas, a conversa da ex-presidente Dil- Já a operação Lava-Jato é considerada um marco
ma Rousseff com o ex-presidente Lula, quando combi- na história do Brasil, ao investigar mais de cem políticos
nam o envio para a casa de Lula do seu ato de nomea- com foro privilegiado, contabilizar 59 inquéritos e 11 de-
ção para a Casa Civil, com a finalidade de ser usado “em núncias por corrupção, tendo promovido 46 acusações
caso de necessidade”. Em outra ligação, Lula solicita ao criminais contra 225 pessoas, que resultaram em 106
então ministro da Casa Civil, Jaques Wagner, que inter- condenações, totalizando mais de 1.100 anos de pena.18
ceda por ele junto a um ministro do Supremo Tribunal Apesar de ainda não terem resultado em sentenças con-
Federal para obter uma decisão favorável em uma ação denatórias para os representantes do sistema político, o
cível.13 (Entenda-se os nomes citados como representa- Bumba e a Lava-Jato são exemplos de que está em curso
ção de uma classe e não como crítica direta do autor a uma alteração no “ambiente”, cuja influência, se contí-
esse ou aquele.) A despeito do êxito ou não dessas liga- nua, poderá amolecer uma das estruturas sociais mais
ções, o importante é destacar a autopercepção de su- cristalizadas de nosso país.
perioridade e impunidade dos representantes do siste-
ma político em sua interação com o “ambiente”, da mes-
O autor é mestre em Segurança e Defesa Civil e especialista em
ma forma com que a Gestão municipal de Niterói igno- Relações Internacionais
rou, sistematicamente, a legislação e os resultados dos bpcmax@icloud.com

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bibliografia

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transformação de uma paisagem sob múltiplos olhares: da invisibili- nar em Sociais e humanidades. Niterói: aninter-sh/ ppgsd-uff, 3 a 6
dade à tragédia, uma página que não deve ser virada. Dissertação do de setembro de 2012 em Niterói.

notas de rodapé

1. A teoria dos sistemas desenvolve princípios unificadores que atra- 10. As funções de defesa militar e de administração (parcialmente)
vessam verticalmente os universos particulares das diversas ciências foram repassadas à metrópole, após a implementação do Governo
envolvidas, visando ao objetivo da unidade da ciência. Geral, em 1548.

2. A cibernética, como ciência que estuda os mecanismos de comu- 11. Até porque a distinção melhor/pior depende do referencial de aná-
nicação e de controle, é dividida em duas: a cibernética de 1ª ordem, lise. O que é melhor para um grupo social pode ser pior para outros.
com o esquema input/output e controle por feedback, perfeitamente
aplicável em sistemas mecânicos e de computação, porém com uma 12. http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o-caso. Acesso em 4 set 2016.
série de limitações para a análise de sistemas vivos e sociais. A par-
tir da contribuição de diversas disciplinas, o campo da cibernética 13. http://oglobo.globo.com/brasil/grampo-telefonico-sugere-que-
evoluiu, incorporando diversos conceitos úteis para a análise de sis- -dilma-agiu-para-tentar-evitar-prisao-de-lula-18891990. Acesso
temas vivos e sociais como: autonomia, auto-organização, cognição, em 4 set 2016.
autorreprodução e o papel do observador na modelagem do sistema,
que deram origem à cibernética de 2ª ordem. 14. A estrutura de um sistema social pode evoluir, basicamente, por
dois motivos: novas possibilidades comunicativas em seu interior e,
3. Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro. principalmente, uma alteração no ambiente que o pressiona a evoluir,
pois os sistemas devem estar sempre adaptados ao ambiente. É justa-
4. Índice de Desenvolvimento Humano. mente a descontinuidade entre ambiente e sistema que provoca esta
evolução, desde que a estrutura do sistema tenha excessos de possi-
5. Entidade associativa criada em 2002 visando discutir de uma ma- bilidades comunicativas para poder variar.
neira abrangente os problemas e propostas para Niterói.
15. http://coad.jusbrasil.com.br/noticias/2213503/morro-do-bum-
6. http://amoralnato.blogspot.com.br/2010/04/tragedia-em-niteroi- ba-mp-rj-ve-indicios-de-omissao-e-notifica-prefeitura. Acesso em
-vamos-botar-na.html. Acesso em 14 mai 2016. 12 set 2015.

7. Desde que não controladas eficazmente pelo sistema jurídico, como 16.http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaProc.
no caso. do?v=2&FLAGNOME=&back=1&tipoConsulta=publica&numProces
so=2013.002.005641-0. Acesso em 12 set 2015.
8. http://oglobo.globo.com/rio/reitor-da-uff-afirma-que-nao-tinha-
-estudos-especificos-sobre-morro-do-bumba-3023544. Acesso em 17. http://agencia-brasil.jusbrasil.com.br/noticias/112284182/
12 set 2015. justica-determina-que-prefeitura-de-niteroi-faca-obras-de-con-
tencao-de-encosta-em-areas-de-risco. Acesso em 13 de setembro
9. Outro conceito da teoria de sistemas sociais é a repetição dos pa- de 2015.
drões de comportamento em diferentes escalas. É como se observás-
semos determinadas características estruturais de um sistema social 18. http://lavajato.mpf.mp.br/atuacao-na-1a-instancia/resultados/a-
se repetindo da escala micro a macro e vice-versa. -lava-jato-em-numeros-1. Acesso em 05 set 2016.

40 cio da terra
glÁucio soares
Cientista social e político

seg
ur
anç
pública
a
muitA
POLÍTICA
E POUCAS
PolíticaS
42 mãos ao alto
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

julho • agosto • setembro 2016 43


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

H
á, no Brasil, quisa e de Estatística para seu ple- ao estado como um todo e aos pro-
poucos exem- no entendimento. blemas da economia naquele nível.
plos de planos Infelizmente, no Brasil, o conhe- Recebi várias críticas, todas de pes-
estaduais de cimento científico na área da Segu- soas com militância de esquerda, que
Segurança Pú- rança Pública está ameaçado pelo enfatizavam outras questões, como
blica que de- achismo,2 de um lado, e pelo domí- a violência policial e, sublinho, sem
ram certo. Em vários casos, deram nio da ideologia e do partidarismo, apresentar um só dado.
certo somente durante um tempo; em do outro. Quando, há muitos anos, Essas experiências e o que eu
outros, não funcionaram e, na maio- publiquei artigos e fiz conferências tenho lido desde então, mostram que
ria dos casos, não houve nada que que ressaltavam o bom trabalho fei- o campo da Segurança Pública está
merecesse o nome de Plano de Se- to em Diadema por administrações sendo subtraído à análise fria e obje-
gurança Pública. Fora do Brasil, en- petistas, recebi muitas críticas polí- tiva e absorvido pelas ideologias em
contramos semelhanças e diferenças tica e partidariamente motivadas.3 moda e pelo partidarismo.
com o que observamos aqui dentro. Um dos argumentos que, sim, pediam Retomando a substância deste
É importante conhecer as análises para ser avaliados com exatidão, era artigo: um dos pontos ressaltados na
desses programas levados a cabo o de que havia colinearidade entre o literatura especializada afirma que
em circunstâncias muito variadas. que acontecia em Diadema e o que a política de segurança deve ser de
No Brasil, a jurisdição da Segu- acontecia no estado como um todo. estado e não somente de governo.5 É
rança Pública é estadual, embora Até que ponto a redução da violên- uma expressão que captura a impor-
certamente o governo federal pos- cia em Diadema simplesmente refle- tância da continuidade. O exemplo de
sa contribuir para melhorá-la em tal tia a tendência observada no estado Bogotá é emblemático: políticas pú-
ou qual estado e pensar em fazê-lo e até que ponto refletia as políticas blicas iniciadas pelo prefeito Antanas
no âmbito nacional, mas governos públicas competentes adotadas no Mockus (1995-96) e seu substituto,
municipais podem ser atores rele- município? Um alerta inteligente que, Paul Bromberg, foram continuadas
vantes nessa área.1 A análise dos aliás, havia sido levantado nos Esta- por Enrique Peñalosa (1998-2000),
casos exitosos, dos fracassados, e as dos Unidos a respeito do Tolerância que havia sido derrotado por Mockus,
análises comparativas entre eles são Zero. Até que ponto o decréscimo dos e novamente por Mockus, eleito para
indispensáveis para que possamos homicídios observado em Nova Ior- um segundo mandato trienal (2001-
aprender, aumentar o conhecimen- que refletia, simplesmente, o que se 2003).6 A taxa de mortalidade por ho-
to e a qualidade de planos futuros. observava no país?4 micídios por 100 mil habitantes, que
Para tal, é necessária uma forma- Há poucos meses, publiquei uma era de perto de 80 em 1993, foi redu-
ção adequada no trato de dados, se- nota no Facebook sublinhando a con- zida a 23 em 2003. É um decréscimo
jam quantitativos, sejam qualitativos. tinuação da redução da taxa global difícil de obter em apenas dez anos.
Para absorver o que puder ser ab- dos homicídios no estado de São Pau- Após 2003, muitas políticas continua-
sorvido de milhares de pesquisas pu- lo, a despeito de problemas econômi- ram, mas a queda, como seria de es-
blicadas (mais de 48 mil, somente no cos que pareciam ser de menor im- perar, diminuiu de ritmo: em 2013, a
Google Scholar) há requisitos, além portância do que os avaliamos hoje. taxa estava em 17. Política de esta-
da leitura nos idiomas em que foram Meu objetivo era teórico, dentro de do que atravessou vários governos
publicadas: a complexidade do tra- uma perspectiva institucionalista, de partidos e prefeitos diferentes.7
balho científico, requer um conheci- que sublinhava a autonomia relativa A redução de homicídios no es-
mento razoável de técnicas de pes- de uma área do estado em relação tado de São Paulo é outro exemplo

44 mãos ao alto
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

exitoso e conhecido, com mais de Janeiro, o resultante da guerra entre verno de Aécio Neves. A taxa de ho-
10 mil trabalhos listados no Google facções;9 o aumento do encarcera- micídios, segundo o Anuário do FBSP,
Scholar (usando as palavras-chave mento;10 o tamanho dos municípios;11 baixou a 21 em 2008. “No entanto, na
“São Paulo” e “homicídios”).8 A taxa o tamanho da “coorte perigosa”, de gestão de seu sucessor, também tu-
por 100 mil habitantes no estado adolescentes e homens jovens, prin- cano, a taxa de assassinatos (homi-
passou de 43,9, em 1999, a 12,2 em cipais autores e vítimas dos homicí- cídios dolosos, latrocínios e lesões
2007. Em 2015, a taxa ficou abaixo dios,12 entre outros. Não obstante, seguidas de morte) em 2012 já es-
de 10, atingindo 8,7. não há pesquisa que elimine a conti- tava em 21.”
Vários fatores contribuintes fo- nuidade das políticas públicas como O estado do Rio de Janeiro preen-
ram sugeridos, alguns baseados em explicação. Muitos a atribuem à su- cheu um dos requisitos recomenda-
pesquisas adequadas, como o Estatu- cessão de governos do mesmo par- dos pela teoria: há quase uma déca-
to do Desarmamento; um debate, que tido; não obstante, essa não é condi- da existe uma política de estado. Não
considero importante, é a influência ção suficiente. As políticas públicas obstante, a continuidade não é do go-
do fato de que, no estado, há um qua- específicas e os recursos são mais vernador, nem do seu partido, mas
se monopólio do tráfico nas mãos do importantes do que o partido a que do secretário de Segurança. Houve
PCC, o que contribuiria para reduzir pertence o governador. Em Minas uma resposta inicial ao Estatuto do
um dos tipos de homicídio frequen- Gerais houve uma queda na taxa de Desarmamento em 2004 e, a partir
tes, por exemplo, no estado do Rio de homicídios que corresponde ao go- de 2007, como resultado das políti-

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cas implementadas pelo secretário terado graças a um conflito entre a outras instituições públicas, dentro
de Segurança Pública, José Maria- Secretaria e a PMDF, que resultou e fora do governo estadual, variam
no Beltrame, houve uma consisten- na saída do secretário. Aliás, o ex- muito de estado para estado.14
te redução dos homicídios.13 -secretário, excelente pesquisador, Informações fidedignas que
A afirmação de que o êxito dos em artigo instigante analisa dados orientavam as ações da Secretaria
programas de Segurança Pública de pesquisa sobre as secretarias de mostram uma forte concentração
depende, em parte, de que eles se- Segurança Pública e mostra como dos homicídios em poucas Regiões
jam de estado e não, apenas, de um suas funções, sua estrutura inter- Administrativas (RAs), o que é rele-
governo, está demonstrada, assim na, assim como suas relações com vante tanto do ponto de vista aca-
como a afirmação de que essa carac-
terística não é suficiente para asse-
gurar o êxito de um programa. Não
obstante, não podemos parar aqui.
Ser “de estado” pode significar mui-
tas coisas, particularmente numa
visão complexa e realista do esta-
do, que inclui subdivisões, contradi-
ções e conflitos internos. Lembro-me
de que há várias décadas um cien- Tabela 1

tista político americano, perguntado Concentração Espacial dos Homicídios no Distrito Federal: número de mortos
a respeito da política externa ameri- por Região Administrativa, 2015
cana, respondeu com outra pergun-
Região Administrativa Número de Homicídios
ta: “Qual delas?” O Departamento de
RA 09 - Ceilândia 111
Estado tinha uma, o do Comércio ou-
RA 06 - Planaltina 55
tra, e assim por adiante. A concepção
RA 07 - Paranoá 53
do estado como monolítico e coeren-
RA 13 - Santa Maria 53
te já foi enterrada há muitos anos.
RA 03 - Taguatinga 49
O êxito de alguns programas
RA 05 - Sobradinho 43
não é suficiente para garantir sua RA 10 - Guará 41
sobrevivência. Essa é uma área em RA 12 - Samambaia 40
que os conflitos podem ser intensos RA 15 - Recanto das Emas 39
com repercussões negativas para a RA 02 - Gama 38
saúde do programa. As relações en- RA 14 - São Sebastião 25
tre Beltrame e diferentes comandan- RA 01 - Brasília 23
tes oscilou, mesmo em se tratando de RA 04 - Brazlândia 21
um programa que reduziu as mortes RA 17 - Riacho Fundo 10
violentas intencionais. RA 19 - Candangolândia 5
No Distrito Federal, um progra- RA 18 - Lago Norte 4

ma inovador implementado pelo se- RA 08 - Núcleo Bandeirante 2

cretário de Segurança Pública e já RA 11 - Cruzeiro 2

mostrava resultados foi muito al- Ra 16 - Lago Sul 0

46 mãos ao alto
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dêmico quanto do ponto de vista da des nas metas, deixando claras as federais. Afetam a participação das
prevenção e da repressão. Esse é atribuições e jurisdições, evitando polícias, dos secretários e, em níveis
um dos muitos conhecimentos que superposições e conflitos. Os objeti- hierárquicos superiores, de prefei-
podem orientar o planejamento es- vos específicos são muitos, como em tos, governadores e presidentes, as-
pacial da ação policial. Do ponto de todos os programas exitosos, mas sim como seus legislativos e judiciá-
vista acadêmico, torna clara a neces- hierarquizados com competências rio. As decisões tomadas em todos
sidade de produzir pesquisas usan- claramente estabelecidas. esses níveis influenciam os resulta-
do dados espaciais mais reduzidos e As características das institui- dos, sem esquecer a influência pos-
específicos. Infelizmente, raramen- ções contam e influenciam as rela- sível da opinião pública. Como as di-
te os dados oficiais estão disponíveis ções e as alianças entre subdivisões visões orçamentárias somam zero,
nesse nível de especificidade. do mesmo estado. Por exemplo: a alta outros departamentos e programas
Levando adiante a tarefa de bus- rotatividade do comando das PMs competem por recursos finitos e a
car informações fidedignas trocamos conspira contra a estabilidade dos correlação de forças entre eles en-
informações com o ex-secretário de acordos entre as secretarias de Se- tra na equação. Cresce a competi-
Segurança Pública, cuja experiência gurança Pública e as PMs. ção entre os postulantes a receber

A
resumimos: recursos públicos.
Arthur Trindade Maranhão Cos- grave recessão por Há uma dialética interativa en-
ta que, durante um período relativa- que passa o Brasil tre o “todo” analítico – até agora con-
mente curto, foi o secretário de Se- reduz os recursos sideramos o estado cum economia,
gurança do Distrito Federal, mostra disponíveis em to- suas partes e divisões, e as suas
alguns resultados, começando por dos os níveis. Afeta subdivisões e assim por diante, que
uma redução de 14% no número de as políticas públicas. Na recessão influenciam o resultado, a existên-
homicídios em 2015. Na opinião de desaparece o incrementalismo or- cia e o êxito das políticas de Segu-
Maranhão Costa, foram duas as çamentário e se acirra a disputa por rança Pública.
ações específicas mais importantes recursos. As prioridades dos gover- A recessão profunda que o país
para atingir vários resultados: clare- nos contam mais. Essa disputa pode enfrenta encolheu o bolo, e que hou-
za nos objetivos primários: redução afetar os recursos destinados à Se- ve mais pressões sobre os orçamen-
da taxa de CVLI’s e aumento da sen- gurança Pública. Afinal, policiamen- tos das secretarias de Segurança Pú-
sação de segurança. Foram estabe- to ostensivo requer policiais; infor- blica, das PMs e das PCs. Quão pro-
lecidos objetivos intermediários: au- matização requer programadores, funda foram as restrições e os cor-
mento do número de armas de fogo operadores e digitadores. Progra- tes depende da mencionada corre-
apreendidas (função na qual a PM mas, como o Disque-Denúncia, têm lação de forças.
era a maior responsável) e da taxa de requisitos óbvios de pessoal e trei- Suas consequências já se fize-
elucidação de homicídios (função na namento, equipamento, e outros não ram notar: recrudesceu a violência,
qual a PC era a maior responsável). tão óbvios. E assim por diante. A con- voltaram a crescer os homicídios em
As cinco RA’s que mais reduzi- tinuidade na política de Segurança várias poleis – mas não em todas.
ram os homicídios foram as que fo- Pública requer recursos. A recessão não afetou igualmente
caram nas gangues e instruíram me- Nesse ponto da análise se en- as políticas de Segurança Pública e
lhor os inquéritos (Tabela 1). contram vetores empíricos de ori- seus resultados em todos os estados.
Maranhão Costa enfatiza a ne- gem diferente. Os orçamentos con- Vejamos poucos casos emble-
cessidade de estabelecer priorida- tam, sejam municipais, estaduais ou máticos, começando por Pernambu-

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co. Há vários “períodos”. Entre 1990 no estado de Pernambuco foi de 41,6 houve um aumento de onze mortes,
e 1994, há estabilidade num pata- – correspondente a 3.891 assassi- de 738 para 749.
mar alto (taxas entre 35 e 40, apro- natos.15 Raphael Guerra usa dados O Rio de Janeiro resistiu bem à
ximadamente); uma explosão entre recentes para demonstrar a perda crise de 2015 no que concerne a taxa
1995 e 1998, quando a taxa atinge de energia do Pacto pela Vida.16 que de homicídios, que foi de 18,6 homi-
59; uma estabilidade nesse novo e “continua perdendo a batalha para a cídios dolosos por 100 mil habitan-
alto patamar entre 1999 e 2007; uma violência” De Janeiro a Abril, inclusi- tes. Foi a menor taxa dos últimos 25
clara tendência ao declínio de 2008 ve, houve 1.412 mortes, 105 a mais anos; uma queda forte, de 15%, em
a 2013 (taxas de 53, em 2007, e 34, do que no mesmo período de 2015, relação a 2014. Houve 745 homicí-
em 2013), período que corresponde quando houve 1.307 mortes.17 dios dolosos a menos.18 Porém, os
à duração efetiva do Pacto pela Vida; O panorama em Minas Gerais é dados do ISP seguem uma catego-
em seguida, novo crescimento em diferente: houve uma pequena que- rização diferente da do SUS.19
2014 e 2015. Nóbrega Júnior calcu- da nos homicídios em 2015; porém, Não obstante, a continuação da
la que a taxa de homicídios de 2015 nos dois primeiros meses de 2016, crise econômica, o fato de que o Rio

48
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de Janeiro tem um gigantesco rom- to baixa, para os padrões brasileiros. de ignorada que, cuja correção, em
bo nas suas contas e as mudanças Durante o primeiro semestre do difí- algumas análises, seria suficiente
no governo (o novo governador está cil ano de 2016, continuou a redução para desacreditar a afirmação de
licenciado por doença), colocavam no número de vítimas de homicídios e que houve um declínio considerável
em dúvida a continuidade dessa re- latrocínios, de 1.934 para 1.729 ho- da taxa de homicídios durante a ad-
dução. De janeiro a abril o estado micídios, e de 177 para 162 latrocí- ministração Beltrame na SSP.22
teve um aumento de 15% no núme- nios. No total, de 2.111 para 1.891, Tenho três possíveis contribui-
ro de homicídios dolosos. duzentas e vinte vidas salvas. Porém, ções a fazer nessa área:

N
persiste o número elevado de mor- I – É um problema antigo, que
o Espírito Santo, a tes pela polícia, que é incompatível precede em muitos anos a administração
despeito dos confli- com esses resultados. de Beltrame, e já foi muito mais gra-
tos entre o governa- Analisamos as reações do nú- ve. Não foi, portanto, uma fabricação
dor e seu anteces- mero e taxas de homicídio em cin- criada para maquilar os números pu-
sor, houve impor- co estados. São, pelo menos, qua- blicados que mostram queda de ho-
tante progresso em 2015. Vemos que tro padrões diferentes: piora visí- micídios durante sua administração.
houve um crescimento do número de vel em Pernambuco; em Minas Ge- Apresento um gráfico que publi-
mortos entre 2000 e 2009, quando rais, houve redução pequena em quei em Não Matarás,23 que permite
houve 2.007 mortos. Em 2009 se ini- 2015, seguida de aumento no início várias conclusões relevantes para
ciou um rápido declínio desse núme- de 2016 – em 2015 houve redução o melhor entendimento da questão
ro, que atingiu 893 em 2013. Sem dú- significativa no Rio de Janeiro, no (Gráfico 1).
vida, um êxito. O declínio continuou Espírito Santo e em São Paulo; mas, Enfatizando: é um fenômeno an-
durante a recessão. Em 2015, o nú- no primeiro quadrimestre de 2016, tigo, presente desde 1979, quando
mero de homicídios teve uma queda o Rio de Janeiro sucumbiu aos seus os dados foram sistematizados pela
de 9% em relação a 2014, e a taxa problemas, ao passo que o Espíri- primeira vez;
foi a menor dos últimos 23 anos.20 A to Santo e São Paulo continuaram Tendeu a crescer, com altos e
crise não impediu a continuação da a fazer progressos importantes na baixos, até 1988-1990, com um for-
redução dos homicídios no Espírito redução dos homicídios dolosos e te declínio, isolado, em 1990. Em
Santo, que teve, no primeiro semes- dos latrocínios. dois anos desta série, chegou a re-
tre de 2016, o menor número de ho- Essa variação coloca em cheque presentar mais de 45% do total dos
micídios desde 2000: 604. Em 2009, a afirmação simplista de que, quando homicídios;
o pior ano, foram 1.025 mortes no a economia vai bem, tudo vai bem; e Foi, no período de 1979 a 1995,
primeiro semestre, mais do dobro de quando ela vai mal, tudo vai mal. muito maior no estado do Rio de Ja-
dos registrados em igual período Há, sem dúvida, uma relação, mas neiro do que nos demais estados;
de 2016. O governador, Paulo Cé- há muitos outros fatores influentes A alta taxa do Rio de Janeiro al-
sar Hartung Gomes, fora eleito pelo e intervenientes que provocam res- terou, significativamente, nesse pe-
PSB em seu primeiro mandato, pas- postas diferenciadas.21 ríodo, a média nacional;
sou para o PMDB, partido pelo qual Houve redução acelerada no fi-
se elegeu em 2004. As boas políticas Apêndice Metodológico nal do período (de 1992 em diante),
continuaram. Recentemente, em trabalho sé- observando-se uma queda da fai-
O estado de São Paulo atingiu rio, Daniel Cerqueira levantou a ques- xa de mais de 45% para a faixa de
uma taxa de homicídios dolosos mui- tão das mortes com intencionalida- mais de 15%.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Uma interpretação das estimati-


vas de Cerqueira levaria a crer que
boa parte do declínio observado no
Rio de Janeiro seria devido a essas
mortes mal contabilizadas. Para que
essa interpretação fosse verdadei-
ra, a percentagem das mortes “com
intencionalidade indeterminada”,
sobre o total dos homicídios, teria
que ter crescido substancialmente,
Gráfico 1
de maneira a compensar o declínio
As Mortes com Causas Ignoradas como % do Total de Mortes Violentas
Rio de Janeiro e Brasil com e sem Rio de Janeiro, 1979 a 1995
observado nas taxas de homicídio.
II – Há propostas sobre como
50 50 “distribuir” os dados com intenção
45 45 indeterminada. Quando, há vários
40 40 anos, essa dificuldade foi coloca-
35 35
da, propus que considerássemos
os casos sem intenção determina-
30 30
da como se fossem amostra aleató-
25 25
ria dos demais, somando os subto-
20 20
tais assim recalculados aos já regis-
15 15 trados como homicídios, suicídios
R 2 = 0,77

10 10 e acidentes. A base seria nacional.


5 5 Ignácio Cano e Doriam Borges me-
1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 lhoraram essa correção propon-
BR sem RJ RJ BR com RJ Linear (BR com RJ)
do usar o mesmo procedimento em
cada estado.
A resposta do ISP à crítica de
Gráfico 2
Cerqueira e suas repercussões não
Percentual de mortes por causas indeterminadas sobre o total de causas externas
no estado do Rio de Janeiro - 1991 A 1993 foi hostil – ao contrário, foi muito
positiva: o governo do estado criou
50
46,4 o Núcleo de Qualificação Estatísti-
45
39,9 ca de mortes por causas externas
40 35,5
35,9
35 (Nuquali).24 O Núcleo já produziu re-
30 25,5 sultados, inclusive um texto no qual
22,5
25 20,9
18,2 Renato Dirk compara os dados das
15,5
20 13,5 12,3 13,5
15,9 11,9 13,0 11,2 12,2 12,0 12,4 vítimas que foram classificadas com
10,3 10,3 9,6
15
10
10,2 causa da morte indeterminada nas
5 Declarações de Óbito (DO) com os
0 dados do IML e com os Registros
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013

de Ocorrência (RO).25 Fizeram isso

50 mãos ao alto
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

objetivando “encontrar (nos dados Gráfico 3

de polícia) e recodificar (nos dados Percentual de mortes por causas indeterminadas sobre o total de causas externas
da SVS/SES-RJ) as mortes classifi- no estado do Rio de Janeiro - 2000 a 2014
cadas como indeterminadas”. O es-
30
forço produziu os Gráficos 2, 3 e 4. 25,5
25 22,5
Comparando “as mortes pro- 20,9
20
venientes de intervenção legal de
15 13,5 13,0 13,5
ambos os sistemas, percebe-se que 12,3 11,9 11,2 12,2 12,0 12,4
9,6 10,2
houve importantes diferenças nu- 10
6,7
méricas ao longo do tempo. Os da- 5

dos da Segurança Pública apresen- 0


2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
tam números muito maiores que os
dados do SIM, o que leva a crer que
as diferenças entre um e outro esta-
Gráfico 4
riam classificadas, pela saúde, como
Agressões e intervenção legal e letalidade violenta no estado do Rio de JANEIRO
agressões. Assim, seria recomendá-
taxas por 100 mil habitantes - 1991 A 2013
vel somar as intervenções legais às
agressões, do lado do SIM, e somar 70

os homicídios provenientes de inter- 60

venções legais aos homicídios dolo- 50

sos, pelo lado da polícia.” 40


III – Minha terceira contribui-
30
ção propõe que há muitas vantagens
20
em trabalhar com os dois sistemas.
10
O SIM ignora o local da ocorrência.
0
Com isso, as mortes são registra-
1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013
das no município e estado em que AGRESSÕES E INTERVENÇÃO LEGAL (SIM) LETALIDADE VIOLENTA (PCERJ) INDETERMINADOS (SIM)

a vítima morre. No caso do Distrito AGRESSÕES E INTERVENÇÃO LEGAL (SIM) LETALIDADE VIOLENTA (PCERJ) INDETERMINADOS (SIM)

Federal, o “morar em um estado e


morrer em outro”, onera o DF e ali-
via, também artificialmente, as es-
tatísticas de violência letal de Goiás
e de Minas Gerais. Quando a análi- O comportamento ideal está im- que requer treinamento e reeduca-
se é municipal, aumenta, artificial- plícito no trabalho de Dirk: usar os ção de todas as forças – para a me-
mente a violência dos municípios dois registros (Polícia e Saúde) para lhoria dos BOs – e das equipes mé-
onde há hospitais para os quais as formar uma base integrada com in- dicas – para a melhoria dos laudos
vítimas são levadas. Esse procedi- formações mais exatas e completas baseados nas necropsias.
mento pode aumentar, artificialmen- do que as duas que a comporiam se
te, em muito as taxas de mortes vio- usadas isoladamente. Infelizmente,
lentas de todas as origens, inclusi- a melhoria mais importante nos da-
O autor é pesquisador do IESP/UERJ
ve homicídios. dos só é atingível em longo prazo por- soares.glaucio@gmail.com

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

1. Novo Hamburgo é um exemplo recente. Ver llo e Lima concluíram, provisoriamente, que 17. http://jc.ne10.uol.com.br/blogs/ronda-
a matéria em http://www.fadisma.com.br/no- 7% da redução dos homicídios nas favelas jc/2016/05/04/epidemia-da-violencia-per-
ticias/nusec-divulga-balanco-dos-principais- paulistas dominadas pelo PCC poderiam ser nambuco-registra-em-media-12-assassina-
-resultados-da-politica-municipal-de-segu- atribuídas a essa hegemonia, ao passo que tos-por-dia/
ranca-cidada-de-novo-hamburgo/. Justus, Kahn e Cerqueira não encontraram
efeitos significativos. Kahn, em Túlio Kahn – 18. Não podemos ignorar que as facções
2. João Manoel Pinho de Mello é um dos muitos “Queda da criminalidade em São Paulo: cul- declararam sua intenção de recuperar território
analistas competentes que enfatizam o prejuízo pa do PCC?”, em Espaço Democrático, 21-06- e iniciaram uma campanha letal contra a
que o achismo trouxe e traz para a análise cri- 2016 resume o debate. polícia e as UPPs.
minológica. Ver “Menos achismo e mais evidên-
cia científica no debate”, publicação online, Ins- 10. P. Nadanovsky, O aumento no encarcera- 19. Sublinho que os dados do ISP são organi-
tituto Millenium, 27/05/2014. Ver http://www. mento e a redução nos homicídios em São Pau- zados por uma equipe honesta, transparente
institutomillenium.org.br/artigos/menos-achis- lo, Brasil, entre 1996 e 2005, em Cad. Saúde e competente. A diferença em relação ao SIM
mo-mais-evidncia-cientfica-debate/ Pública, Rio de Janeiro, 25(8):1859-1864, ago, reside em que a categorização usada está ba-
2009. O melhor ajuste, segundo esse traba- seada na definição legal de homicídio.
3. Sobre alguns exemplos municipais de cres- lho, é com um “lag” de três anos.
cimento e de redução das taxas de homicí- 20. Dados da Secretaria de Estado de Segu-
dios, ver http://conjunturacriminal.blogspot. 11. José Dínio Vaz Mendes, Redução dos ho- rança Pública (Sesp).
com.br/2009/02/as-politicas-estaduais-e- micídios no Estado de São Paulo, em BEPA,
-as-tendencias.html Bol. epidemiol. paul. (Online) vol.7 no.78 São 21. Justus dos Santos e Kassouf fizeram uma
Paulo jun. 2010. revisão séria dos estudos da criminalidade a
4. Recomendo a leitura de duas publicações do partir de fatores econômicos. Ver Marcelo Jus-
NBER: David R. Francis, What Reduced Crime 12. Ver, nessa linha, João Manuel Pinho de tus dos Santos e Ana Lúcia Kassouf, Estudos
in New York City, em http://www.nber.org/ Mello e Alexandre Schneider, Mudança de- Econômicos das Causas da Criminalidade no
digest/jan03/w9061.html e Hope Corman e mográfica e dinâmica dos homicídios no Es- Brasil: Evidências e Controvérsias. Pode ser
Naci Mocan, Carrots, Sticks and Broken Win- tado de São Paulo, São Paulo em Perspectiva, baixado de www.anpec.org.br/revista/vol9/
dows. NBER Working Paper No. 9061, Issued v. 21, n. 1, p. 19-30, jan./jun. 2007. vol9n2p343_372.pdf
in July 2002. Disponível em http://www.nber.
org/papers/w9061 13. SOARES, G.A.D. Baixam os homicídios no 22. Daniel Cerqueira, Mapa dos Homicídios
Rio de Janeiro. Academia.edu, 2015. http:// Ocultos no BRASIL. IPEA, TD 1848, Brasília,
5. Um dos meus leitores sugere que ser “de www.academia.edu/13068216/Baixam_ julho de 2013. Essa é a versão publicada, mas
estado” significa coisas diferentes para pes- os_homic%C3%ADdios_no_Rio_de_Janeiro há, pelo menos, um documento anterior, Cer-
soas diferentes, sublinhando que há muitos e Soares, G.A.D., Terron, S. y Andrade, S., Ma- queira, Daniel. Mortes violentas não esclare-
que têm uma visão jurídico-burocrática na tar y morir en Río de Janeiro, Trabalho apre- cidas e impunidade no Rio de Janeiro. 1ª ver-
qual nada é “de estado” se não tiver uma lei sentado ao 8º Congreso Consejo Europeo de são – outubro de 2011. Disponível em: http://
que assim a defina, de preferência orgânica, Investigaciones Sociales en América Latina, www2.forumseguranca.org.br/content/mor-
inclua carreiras burocráticas, e mais. organizado pelo Instituto de Iberoamérica, tesviolentas-n%C3%A3o-esclarecidas-norio-
Universidad de Salamanca, 28 de junho a 1º -de-janeiro.
6. Os prefeitos de Bogotá podem ser eleitos de julho de 2016.
para mais de um mandato, mas não conse- 23. Não matarás: desenvolvimento, desigualdade
cutivamente. 14. Arthur Trindade Maranhão Costa, “Esta- e homicídios, FGV, 2008, ISBN: 85-225-0666-3.
do, Governança e Segurança Pública no Brasil.
7. Na Colômbia, a jurisdição mais importan- Uma Análise das Secretarias Estaduais de Se- 24. Participam um servidor da Secretaria
te na área da Segurança Pública é municipal. gurança Pública”. A ser publicado em Dilemas. de Estado de Saúde lotado no ISP, um ser-
vidor da PCERJ lotado no ISP e o coorde-
8. Para comparação, substituindo “São Pau- 15. A história dos homicídios em Pernambu- nador do ISP. Núcleo de Qualificação de
lo” por Bogotá, obtemos sete mil. Usando da- co, em Opinião, Blog do Jamildo, 22/01/2016. Estatísticas de Mortes por Causas Exter-
dos obtidos através do Advanced Search do nas, Decreto nº 44.976 de 1º de outubro de
Google Scholar e o número de páginas como 16. Uma análise importante dos anos positi- 2014. Diário Oficial. ANO XL - Nº 184. 2 de
indicador. Sublinho que não é uma contagem vos do Pacto pela Vida é a de José Luiz Ratton, outubro de 2014.
exata; é, apenas, uma estimativa. Clarissa Galvão, Michelle Fernandez, O pacto
pela vida e a redução de homicídios em Per- 25. Comparação entre os Registros de Ocor-
9. Dois trabalhos de 2016, ainda não publica- nambuco, Artigo Estratégico, Instituto Igara- rência (PCERJ) e as Declarações de Óbitos
dos, reduzem a margem para incerteza De Me- pé, Agosto de 2014. (SVS-SES/RJ).

52 mãos ao alto
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54 stuart Angel
bestial
FOTOS MUSEU DA TORTURA MEDIEVAL DE PRAGA
POEMAS ALEX POLARI

Não era mole aqueles dias


de percorrer de capuz
a distância da cela
à câmara de tortura
e nela ser capaz de dar urros
tão feios como nunca ouvi.

Havia dias que as piruetas no pau-de-arara


pareciam ridículas e humilhantes
e nus, ainda éramos capazes de corar
ante as piadas sádicas dos carrascos.

Havia dias em que todas as perspectivas


eram prá lá de negras
e todas as expectativas
se resumiam à esperança algo cética
de não tomar porradas nem choques elétricos.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Eu me lembro
usava calças curtas e ia ver as paradas
radiante de alegria.
Depois o tempo passou
eu caí em maio
mas em setembro tava pelaí
por esses quartéis
onde sempre havia solenidades cívicas
e o cara que me tinha torturado
horas antes,
o cara que me tinha dependurado
no pau-de-arara
injetado éter no meu saco
me enchido de porrada
e rodado prazeirosamente
a manivela do choque
tava lá – o filho da puta
segurando uma bandeira
e um monte de crianças,
emocionado feito o diabo
com o hino nacional.

56 stuart Angel
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

58
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Nos instrumentos da tortura ainda subsistem, é verdade,


alguns resquícios medievais
como cavaletes, palmatórias, chicotes
que o moderno design
não conseguiu ainda amenizar
assim como a prepotência, chacotas
cacoetes e sorrisos
que também não mudaram muito.

Portanto,
para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,
não é necessário mais rodas, trações,
fogo lento, azeite fervendo
e outras coisas
mais nojentas e chocantes.

julho • agosto • setembro 2016 59


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Eles costuraram tua boca


com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gases,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.

60 stuart Angel
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Eles queimaram nossa carne com os fios


e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

62
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

EDU CAÇÃO
À PROVA

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TI VOS
Banco Scholar:
O ensino com fins
(muito)

LUCRA
Edson Nunes
Cientista social

Ivanildo Fernandes
Advogado

Em agosto de 1997 o Brasil deverá ser, em 2017, responsável finalidade lucrativa também
criou um novo setor econômico por 50% de todas as matrículas combinam a natureza comunitária,
por meio de Medida Provisória1, no ensino superior no Brasil. e 14 delas acumulam a
incentivando as pessoas jurídicas O ponto de virada foi em 2014, característica confessional.
de direito privado, mantenedoras quando as lucrativas passaram, Em pouco mais de 15 anos o
de instituições de ensino superior em matrículas, as não lucrativas, setor lucrativo saiu da inexistência
(IES) a assumir qualquer atingindo 3.171.300 matrículas para cerca de 50% da oferta e mais
forma jurídica, de natureza civil (40,5%), contra 2.706.899 das da metade do número total de IES.
ou comercial. não lucrativas (34,5%). O Sistema Estamos registrando o momento
Nascia um novo setor e-MEC2 aponta a existência de exato da virada, do sucesso da
econômico: o ensino superior com 1.196 IES com finalidade lucrativa, política iniciada naquele agosto,
finalidade lucrativa, que desde frente a 1.184 sem finalidades há 19 anos.
então cresceu à taxa média de 6%, lucrativas. Além de 308 públicas. Então, combinemos, para
ano. Este setor infante e fogoso, Cerca de 70 das IES sem aborrecimento de muitos: o ensino

64 Trigonometria
superior brasileiro constitui um taxa de expansão das lucrativas melhor, contribuições, para soar
novo setor econômico, inventado ainda estaríamos mais atrasados. melhor com o regime local.
por FHC e com poderoso fermento Existem IES com finalidade Eis aí algo brasileiro, além
adicionado nos governos do lucrativa em outros países, mas da jabuticaba. Esta âncora
PT. “Companheiros” sociais- são marginais no número de lucrativa é invenção nossa. É
democratas, o PSDB e o PT, estudantes e no conjunto de IES, política de Estado, escorada em
inventaram algo que só existe além de apenas toleradas na maior lei do Congresso Nacional, de
no Brasil: a âncora lucrativa parte dos países. E enfrentam iniciativa do Poder Executivo.
para o ensino superior, que vem escrutínios severos, como nos Não obstante, o setor privado,
prestando relevante papel no EUA onde a maioria do ensino especialmente o lucrativo, é alvo
crescimento e massificação do superior é de oferta pública, mas de chacota e, acredite, costumava
ensino superior, vergonhosamente lá se cobram mensalidades dos ser tratado aos tapas pelo próprio
atrasado, em termos comparativos, estudantes. E, acredite, também na governo-mãe, que o germinou.
em sua pífia cobertura. Sem a forte China se cobram mensalidades, ou Dirigentes e servidores do MEC

julho • agosto • setembro 2016 65


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

destinam ao setor um olímpico intermediários de chefia. Precisam banco, a ordem confessional, a


desprezo. Contudo, do sucesso ser sistemas abertos já que família de rentistas e o governo.
da atividade mercantil decorre vivem de informação e trocas com Exceto pelo governo, mantido
outro, de governo: o Fies e o o meio ambiente. por nós, mantenedor é mantido
Prouni. A invenção é um sucesso. Daí que, naturalmente, pelo negócio que o mantém. É a
Mas a burocracia do MEC ainda, organizações de inteligência IES que gera recursos para os
frequentemente, manifesta precisam ser comandadas por investidores, famílias de rentistas.
desgosto pela sua criatura. lideranças técnicas competentes O mantenedor, na maioria dos
sem apego a hierarquias, casos é o manteúdo.
Organizações de Inteligência sendo ilógico seu comando
e o ensino superior por corporações, grêmios o MEC não manda nada?
Organizações de inteligência estudantis, partidos políticos, Ele dá licenças burocráticas e
são entidades únicas, se religiosos, famílias de rentistas submete as entidades ao calvário
comparadas com todas as outras. predadores ou banqueiros. da avaliação regulatória, onde
Na indústria, no comércio, na Em tais organizações, ao se contam, números de docentes
filantropia, nas organizações contrário do que ensina a teoria obrigatórios por vaga-equivalente,
assistenciais não governamental, administrativa, a função determina oferta de cursos sobre a herança
nos sindicatos, valem princípios a estrutura, e não o contrário. afrodescendente e outras
organizatórios rotineiros e Organizações de inteligência não várias medidas e informações
conhecidos pela teoria da se dão bem se administradas compulsórias. São tidos como
administração, baseados na ideia por organização hierárquica do critério de qualidade, mas são
de linha de comando, organização, trabalho, compartimentalizada3. de regulação, em que qualidade
rotina e poder. Nelas, a estrutura Tal organização serve bem significa obedecer, por coerção,
comanda a função, o organograma para processos repetitivos que comandos que concedem voz e
aponta fluxo, comando, hierarquia independem de inovação. Não vez a diferentes atores. Na arena
e obediência. servem para universidades, da educação superior, há disputa
Organizações de inteligência grupos de teatro, ou mesmo pela concepção de qualidade, e
não funcionam assim. Primeiro, bandas de rock ou criativas os vencedores terão o direito de
havendo muitos degraus empresas do Vale do Silício, a impor, por decreto, sua concepção
hierárquicos entre o jovem partir das quais desenhou-se de qualidade aos vencidos.
e indômito criador e o poder muito do conhecimento sobre O MEC também submete os
decisório, perde-se energia organizações de inteligência e seu alunos a um “Provão”, apelidado
criativa e potencial de inovação, funcionamento. de ENADE, indagando coisas que
porque os escalões intermediários A governança do ensino não servem para seu futuro. O
acabam bloqueando as inovações superior é dividida, desde a Lei Provão atribui 75% de sua nota
por amor a seus cargos e poder. nº 173 de 10/09/1893, entre aos componentes específicos
Nestas, a distância entre o topo e “mantidas” e “mantenedores”. Coisa do curso superior, atendido
a base técnica precisa ser mínima, esquisita, pois o termo parece pelo aluno, e 25% da nota aos
sem hierarquia burocrática, de subvertido do seu signo original. componentes gerais, de sua vida
modo a viver do mérito explícito e “Mantenedor” é proprietário ou pretérita, familiar, ensino médio.
não do mérito hierárquico e postos benemérito de uma IES, seja o Estranhamente, apesar da atenção

66 Trigonometria
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

aos conteúdos “profissionais”, extraindo do Congresso lei que as homologa. E está definido o
uma baixa percentagem de lhes dá fundamento “profissional” que se vai ensinar. A LDB diz que
alunos, exceto em alguns cursos, e lugar privilegiado na arena existirão Diretrizes Curriculares
notadamente os da área médica, política. Estão organizadas em Nacionais para os cursos
trabalha nas “profissões” que conselhos corporativos, sindicatos, superiores, em todo o território
estudaram. Entre, por exemplo, na verdade, que lhes garantem um nacional. Cursos com DCN são,
os formados em Direito, menos poder de voz e pressão política, preferencialmente, aqueles
da metade dos egressos trabalha a partir da qual extraem do examinados no Enade.
na profissão e de um modo geral Conselho Nacional de Educação A inexistência de DCN para
cerca de 1/3 de egresso de cursos (CNE), as Diretrizes Curriculares cursos experimentais e criativos
que levam às profissões atua em Nacionais (DCN) para aquele curso tem servido de argumento
sua área, como revelam os dados específico. O ministro da Educação para limitar tais iniciativas,
do censo do IBGE/2010. Gasta- sob a ameaça de não serem
se fortuna examinando alunos em reconhecidas pelo MEC.
conhecimentos desnecessários Aí fecha-se o círculo no
à sua vida futura e, com base qual o MEC só entrou como
nestes resultados, inventam-se espectador, veículo da voz
índices, baseados em pedaladas das corporações. O conteúdo
aritméticas, não testadas em do que se ensina é ditado por
qualquer outra parte do mundo, interesses de corporações
por meio dos quais dão notas, “profissionais” protegidas por
de 1 a 5, às entidades de ensino lei. Aprovado pelo CNE e pelo
superior. Quanto aos índices do ministro da Educação, resulta em
MEC, o presidente do Inep admitiu provas oficiais combinadas com
que sua “metodologia” buscava algumas invenções aritméticas
legitimar o desejo do ministro da e determinações legais, a partir
educação, que queria ver, no das quais se cria um ranking de
top 10 dos rankings, as IES que ele IES, elaborado de forma tosca e
entendia como de qualidade4. primitiva e que não poderia ser
Há 43 profissões de ensino comparado aos demais rankings
superior regulamentadas por da educação superior adotados
lei no Brasil. O que chamamos O conteúdo mundo afora.5
de profissão, aqui, na maioria,
do que se ensina
são ocupações triviais de uma E não há conclusões?
economia moderna escorada é ditado Inconcluso o capítulo a ser
em grandes setores terciários, por interesses escrito sobre o futuro do
tais como administradores, ensino superior no Brasil. São
bibliotecários, economistas, de corporações muitas as dificuldades, as
jornalistas. Cada um com seus “profissionais” barreiras, as opiniões em conflito
direitos, monopólios e uma e, acima delas, o conglomerado
autarquia para chamar de sua, de escolhas feitas ao longo

julho • agosto • setembro 2016 67


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

dos anos, ademais de um cipoal uma federação de escolas


ideológico primitivo. profissionalizantes dedicadas a
Por volta de 75% dos ensinar conteúdos ditados por
estudantes precisam pagar para corporações profissionais por meio
estudar, sem desconto, salvo da chancela do CNE/MEC. E são
diminuta fração, do imposto de federações porque, reza a lenda, o
renda pago por suas famílias. governo federal, após manifestar
Pagam duplamente, o imposto sua preferência pela universidade,
e o estudo. em 1931, queria limitar a existência
Cerca de 25% dos estudantes de estabelecimentos isolados,
não pagam para estudar. E suas insistindo, até a década de 1970,
famílias não pagam mais imposto em reuni-los em universidades6.
de renda. Nestes casos, não há A pesquisa universitária
outra conclusão, usufruem de um brasileira ocorre somente na O MEC não tem
imposto de renda negativo. pós-graduação. E faz sentido. Se função robusta
Tudo é fruto de provisões a graduação é uma federação
constitucionais, pelas quais de escolas profissionalizantes, o no que se refere
as IES mantidas pelo governo, melhor que teria a fazer seria bem à política de
erroneamente chamadas de ensinar as profissões. Mas até
entidades públicas, devem oferecer isso seria de baixa serventia, já
ensino superior
ensino gratuito. Outra provisão que os estudantes não trabalham
constitucional: as universidades naquilo que estudam, o que, por
oferecem, indissociadamente o sua vez, permite concluir que e os microdados do Inep (2014)
ensino, a pesquisa e a extensão. tudo isso equivale a um enorme e apontam duas com finalidade
E ainda que o diga a Constituição, desnecessário gasto de dinheiro e lucrativa. O sacerdote-banqueiro,
não é verdade que assim o façam de pessoal. será mesmo um fato novo?
as 233 universidades brasileiras, Finalmente, se as Não se imagine que estamos
incluindo os institutos federais. universidades fossem de fato aqui a falar mal do setor mercantil.
Querem os defensores de organizações de inteligência, Não estamos. Presta relevante
tal provisão argumentar que como se espera, como poderiam serviço. E geralmente é bem
o ensino tem mesmo que ser ser governadas por sacerdotes, administrado, ao contrário das “não
constitucionalmente indissociável banqueiros, predadores e lucrativas” e “filantrópicas”. O Brasil
da pesquisa, uma invenção nossa. burocratas, seus “mantenedores”? inventou um compósito institucional
É lei, mas não é fato. O ensino não Há ainda estranho fato, as IES interessante, no qual tem cabido ao
só é perfeitamente dissociável confessionais, que já foram a setor lucrativo a massificação do
da pesquisa, como a literatura maioria, estão minguando, são ensino superior. Mas ao inventar
mundial especializada enfatiza agora 36 (as PUCs, metodistas, o compósito, o país se recusa a
que, em muitos casos, um não presbiterianas e luteranas), tirar proveito desta divisão social
ajuda o outro. com 3,6% das matrículas do trabalho institucional que
Em adição, as universidades (280.636). Mas, a maioria das IES criou. Tem insistido, por exemplo,
brasileiras não passam de católicas já não é confessional, que as universidades do governo

68 Trigonometria
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

também se massifiquem. E ainda igualmente administrada por conteúdos profissionalizantes,


as organiza como burocracias predadores. As lucrativas são mais não se emitem licenças para
típicas nas quais todos os transparentes. monopólios profissionais sob o
professores auferem o mesmo Não perguntem ao MEC. É um tacão de leis extraídas de nossos
salário em todo o território ministério sem função robusta, no congressistas, tão corteses
nacional, independentemente do que se refere à política de ensino com corporações, sindicatos e
seu trabalho científico, ou ausência superior. Funciona razoavelmente equivalentes.
dele. A pasteurização de todas as nas políticas sociais, como no A segunda, se refere à
universidades não tem nos ajudado financiamento estudantil, quotas, graduação. Por ser repetitiva,
a ter universidades de ponta. Prouni. Mas nenhuma delas profissionalizante, parametrada,
Já o segmento “não lucrativo”, tem conteúdo educacional. São mimetizante, engessada por
composto, inclusive por várias operações de crédito ou de DCNs e ENADE, não dialoga com
entidades filantrópicas, esconde renúncia fiscal. a criatividade e inovação. Assim
muitas IES claramente mercantis, Há duas respostas para a como o MEC, refuta o novo. Pode,
lucrativas e, portanto, predadoras questão. perfeitamente, ser governada pelo
de vantagens tributárias. Mais A primeira se refere à pós- passado, pela lógica burocrática.
cristalinas são as lucrativas, já graduação, financiada e avaliada O ensino superior é organização
que muitas delas, além do olhar pela CAPES, mas governada por de inteligência no seu nível pós-
dos investidores, prestam contas seus comitês técnicos, que buscam graduado e organização rotineira e
à CVM e à NYSE, enquanto as não garantir a qualidade do segmento. burocrática na graduação.
lucrativas não prestam contas Em resumo, a pós-graduação
a ninguém. Há pouco tempo, por é governada pelos comitês
exemplo, contrariamente ao bom científicos, não pelo MEC. E neste Edson Nunes é professor e Pró-Reitor
de Planejamento e Desenvolvimento da
senso, já que universidades não nível, sacerdotes, banqueiros, Universidade Candido Mendes e diretor da
Associação Brasileira de Educação (ABE)
estão aí para serem fechadas, predadores rentistas e burocratas edsondnunes@gmail.com
mas sim corrigidas, o MEC houve não têm voz. A praga corporativo-
Ivanildo Fernandes é pesquisador da
por bem fechar, no Rio, duas profissionalizante que comanda Universidade Candido Mendes/RJ e
especialista em Políticas Públicas e
universidades “não lucrativas”, os conteúdos da graduação não Avaliação da Educação Superior da
administradas por predadores. tem voz, simplesmente porque na Universidade Federal da Integração
Latino-Americana, UNILA/PR
Há uma terceira a caminho, pós-graduação não se ensinam ramos.ives@gmail.com

notas de rodapé

1. A Medida Provisória (MPV) nº 1.477-39/1997 Documento de Trabalho nº 59. Rio de Janeiro: 5. NUNES, Edson; FERNANDES, Ivanildo; ALBRECHT,
foi convertida na Lei nº 9.870/1999. Observatório Universitário, 2006. Disponível Julia Vogel de. Regulação e Ensino Superior no
em < http://www.observatoriouniversitario.org. Brasil. In: Paulo Tafner; Hamilton Tolosa; Léo
2. A consulta foi realizada em 03 set, 2016, br/documentos_de_trabalho/documentos_ da Rocha Ferreira; Carolina Botelho. (Org.).
em http://emec.mec.gov.br/ de_trabalho_59.pdf>. Acesso em 03 set. Caminhos Trilhados e Desafios da Educação
2016. Superior no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro: Eduerj,
3. Para avançar no tema, recomendamos: NUNES, 2016, v. 01, p. 59-121.
Edson; RONCA, Antônio Carlos Caruso. Avaliação, 4. Entrevista concedida em 2014 a Ivanildo
regulação, acompanhamento: Há competência Fernandes (UCAM), José Carlos Rothen (UFSCAR) 6. Neste sentido, ver Parecer CFE nº 47/93,
técnica e equidade na atuação do Governo?. e Fabiane Robl (USP). do conselheiro Edson Machado.

julho • agosto • setembro 2016 69


ANET?
CABE A EDUCAÇÃO NA

LEI
ROU
Antonio Freitas
Engenheiro

Ana Tereza Spinola


Economista

70 paulo Freire
O
ano é olímpico, o Ensino Superior, entre outras
mas a educação duras constatações.
brasileira está longe Na contramão dos países
de conquistar um desenvolvidos, bem posicionados
lugar no pódio. Levantamento nos rankings mundiais de
realizado pelo movimento Todos educação, o Brasil carrega as
pela Educação (TPE), com base no marcas do atraso e corre o risco
Censo Escolar de 2015, revelou de retroceder nas suas parcas
que as escolas públicas de todo o conquistas, caso não sejam
País ainda têm muito a evoluir. Os realizadas mudanças profundas e
dados indicam que apenas 4,5% efetivas. Os países mais avançados
dessas escolas possuem todos os são justamente aqueles que
itens de infraestrutura previstos investem – e bem – na educação.
no Plano Nacional de Educação Um comparativo bem simples atualmente,
(PNE). Itens básicos, como água, demonstra que o Brasil destina
três milhões de
energia elétrica, rede de esgoto, por estudante o valor de três
além de espaços para práticas mil dólares por ano enquanto os crianças, entre
desportivas e acesso a bens Estados Unidos dedicam 15 mil quatro e 17 anos,
culturais, com baixo percentual dólares e a Suíça, 16 mil dólares.
de oferta, são pontos que causam Os dois exemplos de sucesso são não têm acesso
muita preocupação. superlativos, é bem verdade. Mas à escola
Os atuais problemas e o que dizer do ranking mundial
desafios do sistema educacional de educação, divulgado pela
brasileiro não param por aí. Organização para a Cooperação
O Ministério da Educação e Desenvolvimento Econômico
apresentou os dados do Censo (OCDE) no ano passado, no qual o Público-Privadas (PPPs). As
da Educação 2015, e os números Brasil figura na 60ª posição em iniciativas entre o poder público e
mostraram que, não obstante os educação? os entes privados, nas suas mais
avanços obtidos em direção à Com um ensino de baixa diversas formas, podem e devem
universalização, ainda há muito qualidade e infraestrutura ser utilizadas, aproveitando-se
a ser feito nesse campo. Foi falha desde os primeiros anos das experiências mundiais bem-
apontado que, atualmente, três de formação, a perspectiva de sucedidas. Ou seja, podem-se
milhões de crianças, entre quatro e evolução intelectual e cultural suprir, por meio de outras fontes
17 anos, não têm acesso à escola. dos alunos brasileiros segue uma regulamentadas, a escassez de
O número contraria o PNE, que perigosa curva descendente. dinheiro público aplicado na área
prevê que todas as crianças até Alguns problemas são de ordem educacional e as respectivas
17 anos estejam matriculadas. estrutural e cortam verticalmente ineficiências da máquina pública.
Além disso, a cada minuto, três o setor de educação, a exemplo Entre as ações que ajudariam
alunos abandonam os estudos, e do tratamento de água e esgoto. a educação brasileira a trilhar
apenas 32,3% dos brasileiros, de Nesse contexto, é recomendável a um novo caminho está o projeto
18 a 24 anos, cursam ou cursaram aceleração de projetos e Parcerias de possibilitar que empresas

julho • agosto • setembro 2016 71


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

privadas possam deduzir parte o desenvolvimento de um país. entre as 200 melhores do mundo.
do imposto de renda para investir A educação e a cultura são No Brasil, todavia, essa iniciativa
em escolas públicas. Nos moldes complementares, devem andar ainda está começando a ganhar
da Lei Rouanet para a cultura, juntas e merecem uma atenção corpo no Senado Federal. Já
seria uma forma de captar e igualitária dos governantes, se encontra com os senadores
direcionar recursos privados dos líderes empresariais e da Blairo Maggi (PR-MT), José
para as políticas de ampliação sociedade como um todo. As Medeiros (PPS-MT) e Wellington
dos investimentos e melhoria da áreas de esporte, cultura e social Fagundes (PR-MT) anteprojeto
qualidade das escolas públicas já dispõem de uma legislação de lei que propõe a criação de
do País. Todo o processo seria federal que fixa incentivos incentivos fiscais a pessoas físicas
acompanhado não só pelos fiscais, mas o setor de educação e jurídicas que façam doações
órgãos do setor, mas também pelo ainda sofre com a falta de leis à área da educação. Apelidado
Ministério Público Federal (MPF) e específicas. de “Lei Rouanet do Ensino”, visa
pela Polícia Federal (PF). Nos Estados Unidos, as captar e direcionar recursos
Uma pergunta que merece empresas podem abater do privados a políticas de ampliação
reflexão sem desmerecer a causa imposto de renda para investir dos investimentos e melhorias
é: por que aqui no Brasil, a Lei em universidades, por exemplo. nas redes de escolas públicas
Rouanet, voltada para a cultura, Essa prática gera grandes (e privadas) além de promover
prevaleceu? A educação também avanços e bons resultados, tanto e estimular a construção
é parte fundamental para a para a qualidade do ensino como e a ampliação de unidades
formação de um indivíduo, tanto no para a área de pesquisa. Não é escolares, financiar programas
aspecto profissional como pessoal. à toa que os Estados Unidos têm de atualização e aperfeiçoamento
É um dos pilares que sustentam 60 instituições universitárias dos profissionais, propiciar a

Nos Estados
Unidos, as
empresas podem
abater do
imposto de renda
para investir em
universidades

72 paulo Freire
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

concessão de bolsas de estudo, laboratórios, bibliotecas e itens incentivos fiscais. Com isso, há
entre outros objetivos. de higiene ou até complementar o uma maior empatia pela marca,
De acordo com o salário de professores. A empresa alavancagem na comercialização
anteprojeto, no caso das pessoas ofereceria uma colaboração dos produtos, bem como na
físicas, a dedução chega até sem nenhuma contrapartida, cotação das ações das empresas
100%, observado o limite de apenas por saber o valor dessas listadas em bolsas de valores.
dedutibilidade de 6% do imposto benfeitorias – desde as mais Outra forma de parceria,
total devido, sendo que não simples até as mais grandiosas – já amplamente difundida em
exclui o percentual máximo de para a melhoria do nível de ensino alguns países, é o modelo Charter
aproveitamento dos incentivos e da educação como um todo no School, em que parceiros privados
fiscais, em cada ano, destinados País. fornecem serviços educacionais
aos demais incentivos federais O retorno se daria de forma mediante o pagamento do ente
– Fundo dos Direitos da Criança natural e automática para essas público, por meio de um contrato
e do Adolescente, Lei Rouanet companhias, visto que estarão próprio. O projeto conta com metas
e Audiovisual. Já a dedução do inseridas em um mercado com e avaliação de desempenho que, de
imposto de renda para as pessoas melhor nível de alunos e futuros uma forma geral, desenvolvem a
jurídicas, tributadas com base profissionais, mais competitivos, qualidade do ensino. Atualmente, há
no lucro real, também chega a produtivos, dinâmicos e bem mais de seis mil escolas com esse
100% dos valores despendidos remunerados. Em paralelo, perfil nos Estados Unidos. No Brasil,
com doações ou patrocínio de aumentam-se o consumo e as o governo do Pará está construindo
projetos educacionais, dentro vendas e estabelece-se um 50 escolas de Ensino Médio para
do limite de dedutibilidade de 4% mercado mais aquecido e com testar o modelo. O projeto conta
do imposto devido. As pessoas maior poder aquisitivo. É desse com o apoio do Instituto do Banco
jurídicas tributadas com base ciclo virtuoso que o Brasil tanto Mundial, que tem atuado no País
no lucro presumido poderão precisa. Sem contar na diminuição em projetos de PPP.
deduzir do imposto sobre a renda da criminalidade, uma vez que a As escolas Charters, apesar de
até 50% das doações a projetos educação impacta diretamente na públicas, têm uma administração
educacionais. Esse anteprojeto é redução dos casos de violência. mais autônoma. Em vez de
revolucionário na medida em que Essa forma de parceria currículos rígidos, os gestores
poderá alavancar, em muito, a também é um ótimo instrumento têm a liberdade para desenhar
educação básica e superior, sem a de marketing e de relacionamento, grades individuais que atendam
participação financeira direta da uma vez que as empresas melhor às demandas específicas
União. poderiam utilizar as instalações de cada escola. Ao mesmo tempo,
Uma segunda iniciativa seria dos centros de ensino para têm independência administrativa
as empresas auxiliarem escolas divulgar os seus produtos e para adotar uma determinada
e universidades públicas nos negócios. Sem contar que as organização interna e contratação
processos de gestão e melhoria companhias, em especial, as e demissão de pessoal. Além
de sua infraestrutura e de seus maiores, teriam a oportunidade de disso, como o financiamento
ativos fixos. Como, por exemplo, apresentar no balanço social, junto é condicional à performance,
financiar a construção de salas de com os resultados financeiros, isso garante aos gestores
convivência, quadras esportivas, as ações sociais realizadas via públicos maior capacidade

julho • agosto • setembro 2016 73


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de fiscalização e espaço para milionários e ex-alunos são e instituições de pesquisa estão


troca de boas práticas. Diversos parte fundamental do orçamento criando fundos desse tipo,
estudos apontam que esse modelo das universidades e estão até voltados para complementar as
tem um efeito positivo sobre o mesmo na origem de muitas fontes tradicionais de recursos
desempenho acadêmico dos dessas instituições. Para que se destinados para o ensino e
alunos. As Charter Schools têm se tenha uma ideia, o valor dos dez pesquisa. O principal exemplo
provado exemplarmente eficientes maiores fundos de universidades é o da Escola Politécnica da
em virtude dos cuidados que americanas, os endowments funds, Universidade de São Paulo (Poli-
normalmente as grandes empresas ultrapassava US$ 140 bilhões em USP), que lançou dois fundos
têm com o aprimoramento de 2011, segundo dados do Instituto endowment nos últimos três anos,
seus colaboradores e com a de Ciências da Educação dos EUA. o Amigos da Poli, com patrimônio
manutenção das suas instalações Esses recursos patrocinam desde de R$ 5 milhões; e o Endowment da
físicas. projetos de pesquisa, construção Poli, com R$ 800 mil.
No mundo inteiro, há de salas ou prédios até bolsas
experiências similares, como para os alunos. As universidades
na Inglaterra França Japão e americanas estão totalmente
Austrália. No caso da Inglaterra, organizadas para receber essas
a partir do início desta década, o verbas. Já aqui no Brasil, essa
sistema foi batizado de “Academia”, prática ainda esbarra no receio
em que o governo localiza escolas de os recursos doados não serem
com problemas de gestão e de bem utilizados, na burocracia e na
desempenho e convoca a iniciativa falta de estrutura para as doações.
privada para melhorar esses Doações feitas por filantropos,
aspectos. Nos países citados, ex-alunos e empresários são
entretanto, a regra é que o sistema essenciais para a manutenção
charter não seja o predominante. de diversas universidades do
Na Inglaterra, apenas 200 mundo. Nos Estados Unidos, até
unidades operam nessa linha. Já 40% do orçamento de instituições
os Estados Unidos ingressaram – como a universidade Harvard
nesse modelo uma década antes, ou o Massachusetts Institute of
concentrando as primeiras ações Technology (MIT) – é proveniente a possibilidade
em escolas localizadas em regiões dos endowment funds, compostos das instituições
violentas e que apresentavam por dotações de grandes
baixo desempenho nas avaliações doadores cujos rendimentos de ensino
nacionais. O presidente dos são investidos em bolsas de receberem
Estados Unidos, Barack Obama, estudo, pesquisas e melhorias
trata as escolas charters como na infraestrutura. No Brasil,
dinheiro externo
fundamentais para a ampliação da esse modelo de financiamento, ainda esbarra
qualidade da rede pública no país. embora ainda pouco utilizado,
Também nos Estados começa a dar alguns sinais.
em oposição
Unidos, as doações de empresas, Pelo menos oito universidades ideológica
74 paulo Freire
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Por aqui, a possibilidade para o trabalho”. Ou seja, para dos modelos de gestão pública
das instituições de ensino o Brasil evoluir nesse sentido, adotados no Brasil.
receberem dinheiro externo será preciso, antes de tudo, Enfim, para que a educação
ainda esbarra em oposição rever a questão cultural e mudar no Brasil seja realmente um
ideológica, na falta de preparo, a percepção vigente de que a direito assegurado e tenha
de tradição e de áreas dedicadas educação é uma responsabilidade, qualidade competitiva, há a
ao fundraising, que é o conjunto unicamente, do Estado. necessidade de uma completa
de estratégias e procedimentos A questão é que o Brasil pode mudança de paradigma. Não
que levam as pessoas a doarem, mudar, e há exemplos de líderes se pode mais utilizar e pensar
voluntariamente, recursos empresariais que já caminham somente em soluções estanques
financeiros. Nas universidades para esse objetivo. A Fundação e imutáveis. Faz-se necessário
americanas, longe de ser apenas Lemann, criada pelo empresário buscar inspiração em todos
uma “ajuda”, as doações de Jorge Paulo Lemann, uma das 20 os modelos bem-sucedidos
empresas, ex-alunos e fundações pessoas mais ricas do mundo, no mundo, analisar as mais
constituem uma parcela financia programas de gestão diversas formas de viabilizar um
extremamente relevante da escolar e de bolsas de estudo sistema de ensino de qualidade
receita. Por aqui, infelizmente, o em várias universidades do e disponibilizar à população
fundraising ainda é visto como mundo e, aqui no Brasil, apoiou o essas parcerias e projetos tão
uma espécie de “esmola” para programa Ciência sem Fronteiras, valiosos. É preciso, urgentemente,
resolver problemas pontuais do Governo Federal. A Fundação promover amplos debates sobre
de determinada instituição e Bradesco, por meio do portal da esses temas, inclusive, a respeito
não como um instrumento de Escola Virtual, oferece cursos a das adaptações na legislação. Ao
colaboração da sociedade em prol distância para até 150 mil alunos incentivar a troca entre o público
da educação do País. simultaneamente. Outro exemplo e o privado, potencializamos o
Todas estas ações ajudariam é o banqueiro Walter Moreira emprego de recursos que vão
a suprir parte da lacuna deixada Salles, fundador do Instituto trazer consequências diretas
pelos poderes públicos. No entanto, Unibanco, voltado à educação, para o desenvolvimento do capital
para isso, os brasileiros precisam e do Instituto Moreira Salles, humano. E isso é determinante
se conscientizar do importante voltado à cultura. Há, ainda, a para o sucesso econômico de longo
papel que desempenham nesse Fundação Maria Cecília Souto prazo de uma nação. Esse é o início
processo. Vale ressaltar que a Vidigal, o Museu Iberê Camargo, de um processo transformador
Constituição Federal menciona criado por Jorge Gerdau, e a para a educação do nosso País, que
esse tema no seu artigo 205, Fundação Roberto Marinho, tanto clama por um novo caminho.
citando que “a educação é direito atualmente, à frente do Museu
de todos e dever do Estado e do Amanhã, na nova Região
Antonio Freitas é PhD pela North Carolina
da família. Será promovida e Portuária do Rio, entre outras State University, professor titular
incentivada com a colaboração ações espalhadas pelo território (aposentado) da UFF e membro da Academia
Brasileira de Educação (ABE)
da sociedade, visando ao pleno nacional. Ou seja, há excelentes Antonio.Freitas@fgv.br
desenvolvimento da pessoa, iniciativas já em prática; todavia, Ana Tereza Spinola é doutoranda da
seu preparo para o exercício tantas outras ainda estão Universidade de Rennes (França) e
professora universitária
da cidadania e sua qualificação bloqueadas pelo retrocesso ana.spinola@fgv.br

julho • agosto • setembro 2016 75


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A mais-valia

76 conar
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

da lorota
José Vicente Santos
de Mendonça
Jurista

n
a Primeira Guerra, os bri- go no major William Martin, fazendo
tânicos desenvolveram em com que carregasse planos secretos
segredo um veículo. Eram fajutos, e, com isso, levando os nazis-
chamados de “terronaves” (landships). tas a crer que os Aliados invadiriam
Os líderes britânicos, para manter a a Grécia, em 1943, em vez da Sicília,
desinformação, afirmaram que se mentiu de modo estratégico. Quan-
tratavam de tanques de água des- do Bernie Madoff armou o maior Es-
tinados a levar o líquido ao front de quema de Ponzi da história, gerando
guerra. E é por isso que tanques se um prejuízo de 23 bilhões de dólares,
chamam tanques.1 mentiu de modo egoísta.
Líderes políticos e cidadãos men- Há gradação na mentira. Há men-
tem, por diversas razões e sobre vá- tirinhas: você chegou atrasado não
rios assuntos, o tempo todo. Na teoria, por causa de Game of Thrones, mas
não há consenso sobre o que seria por causa do trânsito. Há as inver-
uma mentira, embora, na prática, a dades. Bill Clinton “não teve relações
maioria das pessoas entenda-a como sexuais com aquela mulher”, desde
uma falsa representação voluntá- que você concorde com o marido de
ria da realidade. Mentiras são todas Hillary quanto a que sexo oral não é
iguais? Não; há, por exemplo, menti- sexo. Há mentiras, estratégicas (o
ras estratégicas e mentiras egoís- Cavalo de Tróia) ou não (Eduardo
tas. Quando a inteligência britânica Cunha). E há, é claro, mentiraças (a
transformou o cadáver de um mendi- propaganda nazista).

julho • agosto • setembro 2016 77


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Quando se classifica a mentira, uma teoria – filosófica, sociológica, Mas a mentira contemporânea
toca-se no tema de sua justificação. jurídica – da mentira;4 não nos faltam, não é só o que nos é autosselecio-
Há mentiras aceitáveis? Uma visão como a todo mundo, mentiras. A elas. nado. Há outros modos, igualmen-
utilitarista afirmaria que, em alguns te sofisticados, de mentir. É possível
casos, os benefícios produzidos em Como se mente no Brasil de hoje mentir, por exemplo, com a verdade.
razão de certas mentiras sobrepõem- A contemporaneidade conectada É a função expressiva do desdito. A
-se aos prejuízos. Uma visão deônti- é vítima e algoz de mentiras. Como, coisa toda funciona da seguinte for-
ca, de sabor kantiano, ou buscando no ambiente virtual, mentiras são re- ma: afirma-se algo que se sabe men-
preservar a possibilidade da comu- plicadas de lado a lado, e algoritmos tiroso; ou verdadeiro, mas calunio-
nicação (Shiffrin),2 diria que nenhuma tendem a selecionar amigos próxi- so. Depois, desdiz-se o dito. A mágica
mentira é aceitável em caso algum. mos – i.e., pessoas que pensam pa- é feita: a verdade ou mentira inicial
É certo que, ao se pensar em casos recido –, pode ocorrer um efeito de passam a ser, mercê de sua repeti-
– exemplo kantiano: o assassino que câmara de eco, e as partes acaba- ção, verdades inquestionáveis, agora
bate à porta perguntando onde está rem sempre mais convictas em re- ainda mais verdadeiras porque, afi-
o filho de quem abre –, perspectivas lação às suas crenças. Faça o tes- nal, tiveram que ser negadas.
deônticas podem soar desgraçada- te: a timeline de duas pessoas com Vamos figurar exemplo hipotéti-
mente suprarrogatórias. ideologias diferentes é radicalmen- co. Digamos que o editor de concei-
Mentir não é nenhuma virtude, te distinta. Se o mundo real é, hoje, tuada revista estivesse me cobran-
mas pode ser instrumento do esta- derivação do que as pessoas veem do o texto que havia lhe prometido,
do ou do cidadão num mundo com- em seus celulares, nossos likes po- sobre as funções do desdito, a ponto
plexo. Dizia Maquiavel, numa citação dem estar corroendo nossa diversi- de eu ter que desligar o celular para
que acabei de inventar: éticas adul- dade. Precisamos de um republica- poder escrever em paz. Digamos que
tas usam cores pálidas. John Mear- nismo do algoritmo. faça essa afirmação no próprio tex-
sheimer, professor de ciência política
na Universidade de Chicago, faz, com
dados, observação contraintuitiva: lí-
deres democráticos provavelmente
mentem mais do que líderes não de-
mocráticos. Sim, pois (i) se preocu-
pam mais com a opinião pública em
É possível
razão das eleições; (ii) são fiscaliza- mentir, por
dos, e, por isso, estão mais propensos
a inventar desculpas; (iii) como têm exemplo, com
que prover informações sobre ações
de governo, acabam tendo mais oca-
a verdade.
siões para esconder os pontos nega- É a função
tivos de uma política.3 Não é que uma
ditadura não seja, em si mesma, uma expressiva do
mentira. Mas, numa democracia, há
mais verdade na mentira.
desdito
Falta-nos, como a todo mundo,

78 conar
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

to que lhe havia prometido. Digamos rio. Embora a repulsa moral do cri- vez afirmou que, “contra o barulho do
que, no mesmo texto, afirme que, após me seja intensa, o contraditório só mundo, dou-lhe meu silêncio”; con-
consulta a meus advogados (é incrí- pode ser real quando, sendo empá- vém ouvi-lo.
vel como são sempre “os advogados”, tico, possa ser efetivo; quando o que Contra o contraditório insince-
nunca um só, já reparou?), não, o edi- acusado afirma possua algum poder ro, a crítica e a propositura de alter-
tor jamais fez coisa parecida. de influência sobre a decisão. Do con- nativas. No ponto, estamos teorica-
Há uma persistência retiniana trário, é uma cruel perda de tempo. mente avançados. Não conheço au-
no desdito; resta algo na memória Em tempos de Lava Jato, impren- tor de processo que não denuncie o
da água. Um conceituado professor sa e Judiciário se defrontam com cantochão “ao autor ao réu ao autor”.
de direito civil, Caio Mário, comenta- uma enxurrada de desditos. A histó- Na prática, a teoria é outra. Muitos
va, ao analisar a ofensa moral, que ria, essa procissão dos vencedores, juízes ainda insistem em que as par-
repará-la é como reagrupar um tra- ocorre, sobretudo, no plano simbóli- tes deitem falação, para, afinal, igno-
vesseiro de plumas. Deleuze chegou co, em que narrativas contraditórias rá-las. Há que se avançar por aqui.
a observar que todas as palavras são se negam até o infinito; ou até que a Enfim: faltando-nos uma teoria
para sempre. Se é assim, desdizer a institucionalidade transite a causa da mentira, temos uma prática bem
mentira é mentir de novo. em julgado (no que pode ser o fim sofisticada. A mentira, com suas
Mas não é só com a verdade que de apenas mais uma narrativa). Ao pernas curtas, mas suas coxas de-
se mente. Mente-se, também, com o capturar o contraditório e o desdito, liciosas, é recurso da vida pública e
mentido; o sujeito da mentira. É o con- a contemporaneidade criou a pós- privada; é o timeline nosso de cada
traditório insincero. O contraditório -mentira; a mentira criptohegeliana; dia; é objeto de luta política e midiá-
processual, o “ouvir a outra parte”, a verdade performaticamente falsa. tica; é recurso da processualística.
torna-se uma celebração ritualísti- Não precisamos nos enganar mais: a
ca da mentira, como se só bastasse A pós-verdade mentira é uma das verdades da vida
dar um telefonema ao acusado – não Contra a pós-mentira, a pós-ver- cívica brasileira.
importando quão burocrática a liga- dade, em três estratégias.
ção – para que se firme a verdade, Contra a autocaptura dos algo- O autor é Procurador do Estado do Rio de Ja-
neiro e professor do programa de pós-gra-
agora, aliás, dialeticamente consti- ritmos, a diversidade. Pode-se pen- duação em direito da Universidade Veiga de
tuída. O contraditório, dizem os ma- sar, por exemplo, na constituição de Almeida (UVA)
jose.vicente@terra.com.br
nuais de processo, é a ciência bilate- espaços de neutralidade, regiões
ral dos atos e a possibilidade de sua virtuais algorithm-free. No mínimo,
notas de rodapé
impugnação; para ser verdadeiro, cumpre saber, ao menos em linhas
há que ser mais: há que ser um le- gerais, quais os critérios com base 1. Obtive essa informação no início da resenha
var a sério a versão oposta. Contra em que estamos nos autosselecio- de Gerald Dworkin sobre o livro “Why Leaders
Lie”, de John Mearsheimer.
o contraditório insincero, proponho nando as bolhas epistêmicas que
o contraditório empático. chamamos de mundo. 2. Seana Valentim Shiffrin, Speech Matters,
Princeton University Press.
Certa vez, um secretário de se- Contra a função expressiva do
gurança, ao comentar sobre solda- desdito, o silêncio. A solução tradi- 3. Why Leaders Lie”, John Mearsheimer, Ox-
ford University Press, 2013.
do PM que havia sido pego rouban- cional – a responsabilidade civil –
do para comer, afirmou que o mili- mantém a mentira no ar; o desdes- 4. O melhor livro sobre o assunto, entre os
que conheço, é “Lying: moral choice in pu-
tar seria expulso da corporação logo dito igualmente reitera o que negou blic and private life”, de Sissela Bok, Vintage
após lhe ser concedido o contraditó- por duas vezes. Raduan Nassar uma Books, 1989.

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FRANCISCO LINHARES
Cientista-biólogo

TRANS GÊ NICOS
t o d a a s e m e nt e s e r á p e r d o a d a

Paleoantropólogos estimam que mente na região do crescente fértil,


o Homo sapiens anatomicamente mo- uma região do Oriente Médio, onde
derno teria surgido cerca de 150.000 se originaram as primeiras civiliza-
anos atrás.2 Durante a grande maio- ções de que temos conhecimento. Já
ria de sua história, os seres huma- por volta do ano 5000 a.C., a agricul-
nos adquiriam seus alimentos por tura era praticada em todos os gran-
meio da caça de animais selvagens des continentes, exceto Austrália.4
e/ou coletando alimentos a partir de O motivo dessa transição não
plantas silvestres; esse estilo de vida é bem conhecido, mas o fato mais
sendo definido como de caçador-co- importante da revolução neolítica é
letor.3 Já a agricultura tem sido pra- que com o advento da agricultura e
ticada esporadicamente por cerca de o consequente aumento de recursos
10 mil anos e de forma mais estabe- alimentícios disponíveis, se começa-
lecida por cerca de 5/6 mil anos, ou ram a criar sociedades complexas
seja apenas 3 por cento da história e hierarquizadas. Até poucos anos
humana. Embora seja um fenômeno atrás a teoria mais aceita do porquê
relativamente recente, a agricultura da formação de sociedades comple-
teve profundos efeitos na saúde hu- xas e hierarquizadas era que, com o
mana e no crescimento das socieda- excedente alimentar, o ser humano
des. Já a partir de 10.000 a.C., no que teria a possibilidade de se libertar da
é também definida como revolução escravidão da busca contínua por
neolítica, houve uma gradual tran- alimentos, permitindo a ele ter mais
sição do estilo de vida de caçador- tempo livre para poder se especia-
-coletor a agricultor-criador, e se lizar. Mas uma teoria recente sobre
acredita que essa transição tenha esse tema tem apontado para outras
ocorrido em várias partes do mun- possíveis causas. Segundo Mayshar,5
do contemporaneamente, especial- o que desencadeou a hierarquiza-

80 Frankenstein
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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ção societária foi o cultivo de espé- como milho e outros grãos, além de com sistemas produtivos não acu-
cies acumuláveis e desapropriáveis, serem capazes de armazenar e acu- muláveis, com a diminuição do ris-
em especial os grãos, e não alimen- mular até a batata, por meio de pro- co para a população.
tos em geral. A constatação desse cessos de exposição a baixas tempe- Dessa forma se explica que o
fato deriva das culturas indígenas raturas. Segundo essa teoria, o cul- sistema hierárquico e especializa-
da América Central, que não chega- tivo de alimentos acumuláveis acar- do foi o mais bem-sucedido na for-
ram a criar estruturas sociais hie- retaria riscos de roubo da colheita, mação de sociedades mais avança-
rarquizadas, pois cultivavam tubér- por parte de grupos vizinhos, obri- das, porque produz mais com menos,
culos, como a mandioca, os quais, gando as sociedades agrícolas a se por meio da especialização e hierar-
apesar de fornecerem um enorme especializarem em classes de defen- quização, que também favoreceria o
aporte energético, eram perecíveis sores da colheita e classes de produ- avanço tecnológico. Simplisticamen-
e portanto não acumuláveis. tores de alimentos e seguidamente te, pode-se interpretar que a produ-
Note-se que essa teoria con- em organizadores de atividades, até ção de alimentos acumuláveis leva
templa também as culturas Mayas chegarmos aos sistemas hierárqui- indiretamente a formação de socie-
e Aztecas na categoria dos acumu- cos teocráticos. O interessante des- dades complexas e hierarquizadas,
ladores, pois possuíam uma alta es- sa teoria é a demonstração matemá- enquanto a produção de alimentos
pecialização agrícola e eram capazes tica de que a especialização cria um não acumuláveis e perecíveis leva
de cultivar alimentos acumuláveis, excedente calórico, se comparado a um sistema alimentar anárquico

o crescimento das
sociedades e o avanço
tecnológico estão
intimamente ligados ao
êxito da agricultura

ES PE CIALIZADA

82 Frankenstein
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mais distribuído e equitativo, que lações. Só que isso acontecia muitas evitar a erosão dos solos como a ro-
porém não favorece o avanço do co- vezes agravando as perspectivas de tação de culturas, a utilização de es-
nhecimento, posto que toda a socie- fertilidade do solo a longo prazo, por trume animal e outras práticas que
dade está sempre diretamente ocu- causa da erosão e outros meios. Em melhoravam a fertilidade do solo.
pada com a produção de alimentos.5 resumo, a máxima camponesa “aque- Mas exatamente como já tinha ocor-
Portanto fica claro desde a revolu- le agricultor que se enriquece muito rido anteriormente, o crescimento
ção neolítica que o crescimento das hoje vai deixar a pobreza nas mãos populacional ultrapassava ciclica-
sociedades e o avanço tecnológico dos filhos”, valia tanto nos albores mente o aumento da oferta de ali-
estão intimamente ligados ao êxito das civilizações humanas como nos mentos, deixando grandes segmen-
da agricultura especializada. dias de hoje. tos da população em estado de des-
Um exemplo clássico de vulne- nutrição. Mesmo assim a população
Ciclos alternados de abundância rabilidade alimentar pode ser dado mundial aumentou drasticamente,
e escassez alimentar pelo Império Romano, que, devido à passando de 550 milhões em 1650
Embora a agricultura seja clara- depleção dos solos limítrofes a Roma, e a 1,2 bilhão em 1850, chegando a
mente uma força motriz para o cres- ficou dependente de fontes alimen- atingir 1,65 bilhão por volta de 1900.
cimento de civilizações, ela nunca foi tícias cada vez mais distantes, che- Esse aumento populacional é muito
uma salvaguarda contra o colapso. gando a virem por via marítima até provavelmente devido à introdução
Ao longo da história, os sistemas ali- do norte da África. De fato o impera- de espécies importadas das Améri-
mentares das sociedades têm alter- dor romano Tibério escreveu: “A pró- cas, como milho, batata-doce, toma-
nado tempos de prosperidade e de pria existência do povo de Roma está te e batata, que se espalharam rapi-
dificuldades. Ciclos de aumento na diariamente à mercê de ondas incer- damente ao redor do mundo.
produção global de alimentos com- tas e tempestades.” Exatamente como De especial importância pare-
petiram seguidamente com exces- aconteceu na Suméria e na Grécia, o ce ser a história da batata, que fas-
sivos crescimentos populacionais, declínio do Império Romano foi auxi- cinou Charles Darwin em sua expe-
degradação dos recursos naturais, liado pelo esgotamento dos solos fér- dição à Patagônia, por sua grande
mudanças climáticas, secas, inun- teis e pela escassez de alimentos.6 adaptabilidade. Charles Darwin es-
dações, doenças, guerras e muitas Ao longo dos séculos seguintes creve em seu livreto de anotações:
outras forças que, periodicamente, o mau tempo, mudanças climáticas “é notável que a mesma planta pos-
levavam as civilizações novamen- e solos degradados diminuíram ci- sa ser encontrada tanto nas monta-
te à fome. clicamente a produção agrícola que nhas estéreis do Chile central, onde
Como muitos de seus equivalen- não conseguiria manter o passo do não cai uma única gota de água por
tes modernos, os primeiros agriculto- crescimento populacional, o que foi mais de seis meses, como nas flo-
res muitas vezes trabalhavam a ter- um dos fatores que levaram às guer- restas úmidas das ilhas do Sul”.7 A
ra até esgotar o solo fértil. As inova- ras, fome e miséria, característicos batata é acreditada como a princi-
ções tecnológicas que surgiram em da idade média. pal causa do aumento populacional
seguida, tais como a irrigação (cer- que ocorreu na Europa a partir de
ca de 6000 a.C.), a utilização da tra- Introdução de novas espécies 1750, devido ao seu alto conteúdo
ção animal na preparação do solo e distribuição calórico, adaptabilidade, facilidade
em conjunção com o arado (cerca de No século XVII os agricultores de cultivo e estocagem. Apesar dela
3000 a.C.) trouxeram ganhos de pro- europeus tinham já introduzido es- não ser aceita inicialmente pela po-
dutividade e crescimento das popu- tratégias agrícolas avançadas para pulação geral, a batata teve, desde

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

sua introdução na Europa em 1600, pa começou a vir dos Estados Uni- conjuntamente de Revolução Verde
grande importância na alimentação dos, onde um clima favorável, gran- e que são a base da agricultura mo-
animal, aumentando a produção de des áreas planas com solos férteis derna, foram exportadas inicialmen-
porcos da Inglaterra. Somente de- permitiram que os agricultores nor- te para Índia e Paquistão, rendendo
pois de muita insistência por parte te-americanos passassem a pro- similares resultados, e depois para
das classes dominantes, que conse- duzir grande excedente de grãos e, o mundo inteiro. Entre os vários pro-
guiam enxergar na batata um enor- eventualmente, de carne, para su- jetos que visavam aumentar o rendi-
me potencial calórico, ela gradual- prir grande parte Europa. mento agronômico mundial, o que foi
mente virou o alimento favorito das reconhecido como o idealizador da
classes pobres da Europa, após re- Revolução Verde e industrialização Revolução Verde foi o projeto capi-
ceber o selo de aprovação real por da agricultura taneado pelo agrônomo americano
parte de Louis XVI. Muitos pesqui- Os trabalhos desenvolvidos pelo Norman Borlaug, que recebeu em
sadores indicam a batata até como melhorista italiano Nazzareno Stram- 1983 o prêmio Nobel por diminuir
um fator determinante para o acon- pelli entre 1920 e 1930, que desenvol- a fome e desigualdade no mundo.10
tecimento da Revolução Industrial, veu espécies de trigo anãs capazes Cabe ressaltar a importância do
já que a utilização dessa planta au- de aumentar o rendimento agronô- petróleo como fonte energética bara-
mentou o aporte calórico gerado pe- mico e resistir melhor a pragas, co- ta, para realizar trabalhos mecâni-
las cidades, quase sem aumento de locaram as bases para a Revolução cos, tanto de lavoura como de trans-
trabalho, e criando assim as condi- Verde. A situação mundial pós-guer- formação química, importantes na
ções para uma parcial liberação de ra era de escassez alimentar, e mui- produção de fertilizantes químicos
recursos humanos que gerou novas tos camponeses encontravam gran- baratos. O excedente da produção
tecnologias e a concentração popu- des dificuldades em reestabelecer os de alimentos acumuláveis produziu,
lacional nas cidades, ambos elemen- rendimentos agronômicos pré-béli- por um lado, uma melhora na qua-
tos cruciais para o advento da Revo- cos, devido ao empobrecimento dos lidade de vida ao redor do mundo e,
lução Industrial.8 solos. A partir das espécies criadas por outro, uma grande industrializa-
Outros fatores que influencia- por Strampelli, um grupo multidis- ção do sistema alimentar. A proble-
ram a concentração populacional ciplinar de cientistas começou um mática pós-guerra de alimentar uma
em cidades, foram o melhoramento programa de pesquisa cooperativo população mundial crescente tinha
de técnicas de processamento para para aumentar a produção de trigo sido vencida pela Revolução Verde.
a conservação de alimentos perecí- no México.9 Por meio da integração Exatamente como descrito acima so-
veis e o surgimento de uma rede de do trabalho mecanizado, a utilização bre as sociedades arcaicas, a abun-
ferrovias e rotas de navegação para em larga escala de tratores movidos dância de alimentos acumuláveis que
a distribuição de alimentos. Essas a combustíveis fósseis, associado à a Revolução Verde gerou foi um dos
inovações permitiram que os agri- utilização de inseticidas, herbicidas fatores fundamentais para a espe-
cultores enviassem seus bens exce- e fertilizantes químicos e a escolha cialização, aumento da complexida-
dentes a distâncias cada vez maiores, de espécies mais produtivas, se con- de social e hierarquização, caracte-
modificando assim a relação entre seguiu produzir um aumento enor- rísticos das sociedades modernas,
a quantidade de alimentos produzi- me no rendimento agrícola do trigo, ricas e opulentas que vivenciamos
dos localmente e o tamanho das ci- o que converteu rapidamente o Mé- hoje. A saúde pública começou a me-
dades. A partir de 1850, uma parte xico em nação exportadora. Essas lhorar notavelmente a partir da dimi-
dos alimentos consumidos na Euro- metodologias integradas, chamadas nuição de deficiências alimentares,

84 Frankenstein
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O excedente da produção
de alimentos acumuláveis
produziu uma
melhora na qualidade de
vida ao redor DO

M U N DO

as cidades começaram a crescer, o de alimentos num sistema similar às animal, que conjuntamente a trata-
bem-estar socioeconômico come- cadeias de produção. Essas práticas mentos com hormônios e antibióticos
çou a se espalhar pelo globo, todos, agronômicas favoreceram também e atuação das mesmas práticas in-
parâmetros que contribuíram enor- a especialização e o estabelecimento dustrializantes aplicadas à agricul-
memente para a formação da socie- de monoculturas em áreas impres- tura, conseguiram acelerar o cres-
dade moderna atual. sionantemente grandes como, por cimento animal para criar a atual in-
exemplo, o cinturão do milho, conglo- dústria alimentícia de carnes.
Industrialização e concentração merado de regiões agrícolas do inte- A industrialização do sistema ali-
de capitais rior dos EUA que chegaram a produzir mentar foi tremendamente bem-su-
Como a produção e processa- quase 40% da produção mundial de cedida em fornecer enormes quanti-
mento de alimentos tornou-se mais grãos. A produção agrícola tornou- dades de alimentos, com uma quan-
especializada, o trabalho tornou-se -se gradualmente mais dependente tidade mínima de trabalho, a preços
mais simples e mais rotineiro, per- dos recursos fabricados fora da fa- cada vez mais baixos, o que ajudou
mitindo um maior grau de mecaniza- zenda, tais como produtos químicos a controlar a inflação e manter um
ção. A industrialização caracteriza- agrícolas, combustíveis fósseis, fer- desenvolvimento econômico sus-
da pela especialização, simplificação, tilizantes sintéticos e grãos elite. Os tentado. Com o sistema alimentar
mecanização, padronização e conso- excedentes de grãos começaram a tornando-se cada vez mais indus-
lidação, transformou o fornecimento ser aproveitados para alimentação trializado, a capacidade de armaze-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o trabalho de
manipulação genética
levou à melhoria tanto
no sabor como no
rendimento e tamanho dos

A L I MENTOS

namento e o volume das operações concorrência desleal, campanhas de do mundo, pelo menos em termos
cresceram ainda mais, e os produtos marketing agressivas e condições fa- de custos em dólares e centavos de
alimentícios passaram de ser bens voráveis de financiamento favorece- produção. Todos esses benefícios
primários locais a commodities co- ram o estabelecimento de um sistema aconteceram longe dos olhos da so-
tadas na bolsa. Porém, uma das ten- agroindustrial emergente, fortemen- ciedade e do imaginário coletivo, en-
dências mais recentes na história do te especializado e concentrado, que quanto o foco dos acontecimentos já
sistema alimentar tem sido a mudan- controla diferentes etapas da cadeia tinha sido transferido há muito tem-
ça na direção de uma maior concen- de produção. Por exemplo, uma úni- po do campo para a cidade. Porém
tração da indústria para um número, ca multinacional controla hoje uma esses benefícios têm trazido custos
a cada dia, menor de empresas, que grande fatia dos mercados de pro- para a saúde pública, a equidade so-
controlam a maioria do mercado. As dução de sementes, pesticidas, fer- cial, o bem-estar animal e o ambiente
condições econômicas estabelecidas tilizantes, produtos de alimentação natural. Posto que esses custos não
pela industrialização do sistema ali- animal, estocagem e distribuição de são refletidos no preço dos alimen-
mentar e a globalização têm tido um grãos, produção e processamento de tos, eles são chamados de externa-
papel relevante em amplificar esse carnes avícolas e até indiretamen- lidades ou custos ocultos, que hoje
efeito, através de processos de inte- te cadeias de alimentação fast-food. estão recaindo sobre a população
gração horizontal, vertical e de glo- Tem sido dito que a agricultura geral. Outra consequência da es-
balização.11 Aquisições contínuas, dos EUA tornou-se a mais eficiente pecialização e mecanização foi que

86 Frankenstein
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o campo se esvaziou sociocultural- cas, fortemente associados ao bem- tepassado do milho, um capim cha-
mente, enquanto os pequenos pro- -estar familiar e à saúde. Essa estra- mado Teosinte, existente aproxima-
dutores perderam totalmente o con- tégia de marketing, associando uma damente há 7.000 anos, podemos
trole sobre qualquer componente da retórica de valores opostos aos que entender que a planta original tinha
cadeia de produção de alimentos, fi- se praticavam na realidade, obteve muitas ramificações e espigas, com
cando à mercê dos conglomerados muito sucesso. A retórica narrati- cascas de difícil remoção, grãos pe-
alimentícios.12 va de valores tradicionais, puros e quenos e pobres em fontes calóricas;
naturais para produtos agroindus- mas, graças ao processo de domes-
Marketing agroindustrial triais impediram que a realidade da ticação humana, transformou-se no
e imaginário coletivo agricultura moderna industrializada milho atual, muito menos ramificado,
A competição entre as diferen- chegasse ao imaginário coletivo por com uma única espiga, grande, com
tes empresas de agrobusiness que muito tempo. Anos de estratégias de muitos grãos, ricos em nutrientes e
começaram a surgir a partir da Re- marketing ilusórias levaram, porém, extremamente mais fáceis de se de-
volução Verde foi se acirrando nos a uma quebra de confiança na socie- bulhar.13 O exemplo da banana é ainda
anos 70 devido à crise petrolífera, dade que analisaremos mais à frente. mais impressionante, posto que até
induzindo a integração horizontal e poucos séculos atrás o fruto originá-
vertical entre empresas. A compe- Manipulação genética dos alimentos rio era pequeno, cheio de sementes e
tição entre empresas que atuavam ao longo da história com um sabor ranço. As cenouras da
basicamente no mesmo nível da ca- Um dos principais elementos no antiguidade eram raízes peludas fi-
deia de valores (nível horizontal), êxito mundial de produção de alimen- brosas, que apresentavam diferentes
num mercado de produtos homo- tos ao longo da história está ligado colorações, variando do violeta até o
gêneos como o das commodities, se à manipulação genética das plantas branco, e possuíam um sabor muito
concentrou em dois pontos; a cria- de interesse alimentar, também cha- forte, chegando a ser desagradável
ção de produtos alimentícios de mais mada de domesticação dos alimen- para alguns. A berinjela era um fru-
rápida e fácil preparação, que tinha tos. A manipulação genética é a mo- to pequeno, esbranquiçado e muito
a função de atender um mercado de dificação dos genes e portanto das amargo. As melancias, ainda no sé-
donas de casa que estavam gradual- características físicas das plantas e culo XVIII, eram cheias de sementes e
mente saindo para o mercado de tra- pode ser realizada por metodologias possuíam pouca polpa vermelha. Por
balho e que, portanto, tinham menos de cruzamento clássicas ou mais re- último, vale a pena relatar o exemplo
tempo para acudir às necessidades centemente por meio de metodolo- da mandioca, cuja planta originária
domésticas familiares e batalhas de gias transgênicas. Essa estratégia foi tem variantes de sabor acre e que é
marketing e estratégias comerciais. utilizada pelo homem desde os albo- extremamente tóxica, devido a pre-
As empresas do setor, para se torna- res da agricultura. Estudos sobre a sença de cianetos. A mandioca sil-
rem os grandes players do mercado, evolução e seleção focada, realizada vestre, portanto, é um caso de uma
investiram fortemente em campanhas pelo homem, das espécies naturais planta natural tóxica, que através da
de marketing de produtos e de ima- que hoje utilizamos como alimentos manipulação genética se tornou me-
gem corporativa, focando a imagem demonstram o quanto o trabalho de nos tóxica e hoje representa a ter-
da empresa ou produto não no atual manipulação genética levou à me- ceira maior fonte de calorias para
sistema de produção alimentar, mas lhoria tanto no sabor como no ren- as populações da América Central.14
sim em valores de agricultura tradi- dimento e tamanho dos alimentos. A manipulação genética efetuada
cional, com relativas imagens bucóli- Por exemplo, se analisarmos o an- por meios clássicos, tais como cru-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

zamento, mutagênese e seleção dos se das opinas, uma especial classe Flavr, da Calgene. Ao ser o primeiro
caracteres de interesse, está à base de açúcares que quase somente a OGM a chegar ao mercado e ser di-
de nosso atual sistema alimentar. O Agrobacterium consegue aprovei- retamente comprado pelo consumi-
advento dos transgênicos simples- tar. De uma forma elegante e com- dor final, o produto teve pouco êxito
mente modificou a metodologia por pletamente natural, a bactéria não comercial e foi logo retirado do mer-
meio da qual a manipulação pode- só obtém uma fonte de alimento ex- cado, devido ao fervor da opinião pú-
ria ser realizada, diminuindo o tem- clusiva, mas esta acaba sendo pro- blica sobre o assunto. Nos anos se-
po de realização da manipulação e duzida em grande escala por todas guintes muitos novos produtos OGMs
o risco de introdução de caracteres as células tumorais. foram introduzidos no mercado das
não desejados. Os cientistas, uma vez desco- commodities, mas os que se fixaram
berto o mecanismo de base, iden- e prosperaram enormemente foram
Transgênicos e agroindústria tificaram a região que era transfe- principalmente de dois tipos: os que
A agroindústria foi sempre for- rida estavelmente para o genoma conferiam resistência a um herbicida
temente ligada direta e indiretamen- da planta e a esvaziaram dos genes específico e os que expressavam um
te ao âmbito acadêmico, mesmo por- que induziam a formação tumoral e gene tóxico para os insetos.
que este era a fonte onde se buscar a produção do açúcar, transferindo
o melhor capital humano e tecnoló- para essa região genes de resistên- Herbicidas e transgênicos
gico para crescer e competir em um cia a um meio antibiótico e criando resistentes ao glifosato
mercado fortemente especializado e o espaço para inserir qualquer ou- A metodologia transgênica de
globalizado. Na década de 80, o âm- tro gene. Os genes de resistência ao resistência ao herbicida foi criada
bito de pesquisa acadêmico come- antibiótico servem somente para se- como estratégia para diminuir a uti-
çaria a desvendar alguns segredos lecionar as células transformadas lização de herbicidas na agricultura
da natureza que permitiriam efetuar das não transformadas e não pro- moderna. Herbicidas são utilizados
o melhoramento genético de forma duzem resistências em humanos. A massivamente em monoculturas, in-
muito mais focada e rápida. Por meio metodologia de transformação de dependentemente que se trate de cul-
do estudo de uma bactéria causado- plantas com genes oriundos de ou- turas naturais ou não, porque o cres-
ra de tumores em plantas (mecanis- tras partes é chamada de transge- cimento de outras espécies, chama-
mo totalmente diferente à formação nia. A indústria se interessou pron- das daninhas, roubam luz e energia
de tumores em animais), chamada tamente por essa metodologia, pois dos cultivos, diminuindo assim o ren-
Agrobacterium tumefaciens, des- além de ser facilmente patenteável, dimento agronômico. Os herbicidas
cobriu-se que essa bactéria era ca- permitia modificar de maneira foca- são compostos químicos que atuam
paz de infectar plantas, transmitindo da o genoma da planta para introdu- sobre vias fundamentais do cresci-
parte de seu DNA para elas. As plan- zir modificações específicas, sem ter mento vegetal (e não, animal) impe-
tas infectadas por Agrobacterium que trabalhar através do melhora- dindo assim seu crescimento e levan-
reconhecem a informação genética mento clássico tradicional, que en- do à morte essas plantas. Porém, os
da bactéria como própria, decodifi- volvia mutagênese, cruzamentos e herbicidas podem ser de tipo seletivo
cam os genes da bactéria e produ- integração de porções muito gran- ou de amplo espectro, ou seja, podem
zem, como se fossem próprios, os des de genoma de plantas diferentes. matar somente algumas ou diferen-
hormônios vegetais que induzem a O mercado das plantas transgênicas tes espécies. Na agricultura moderna
formação do tumor, além das enzi- chega às prateleiras do mundo oci- os herbicidas de amplo espectro são
mas necessárias para a biossínte- dental em 1994 com o tomate Savr utilizados amplamente antes da se-

88 Frankenstein
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

meadura, enquanto os seletivos são a um herbicida específico. O sistema mais avançado, resultando assim
utilizados em etapas posteriores e em que obteve maior êxito foi o de plan- numa economia de trabalho e despe-
concentrações específicas para ma- tas resistentes ao herbicida glifosato, sas com herbicidas para o agricul-
tar seletivamente outras plantas que denominado comercialmente Roun- tor. Em 1996, a Monsanto introduziu
atrapalhem o crescimento do cultivo dUp, e presente no mercado agrícola no mercado uma variedade de soja
de interesse. Mesmo antes da intro- desde 1974, com capacidade de ma- transgênica resistente ao glifosato,
dução dos transgênicos, a utilização tar 76 das 78 pestes que afetavam a e a partir daquele momento muitas
massiva de herbicidas tinha selecio- lavoura. Além do mais, esse era um outras espécies resistentes ao gli-
nado plantas daninhas que resistiam dos herbicidas com menor sobrevida fosato foram comercializadas. Hoje,
a certos herbicidas. Os agricultores, e toxicidade para o solo e, portanto, 89% do milho, 94% da soja e 89% do
portanto, se viram obrigados a utili- era tido como o herbicida que menos algodão produzidos nos EUA são re-
zar diferentes herbicidas e em quan- danos ambientais criaria. Por meio sistentes a esse herbicida.15
tidades crescentes para manter al- da utilização dessas plantas trans-
tos os rendimentos agronômicos, o gênicas, se poderia diminuir o uso de O gene inseticida de Bacillus
que incidiu também sobre o custo fi- pesticidas, evitando a aplicação pré- thuringiensis
nal do produto. -semeadura e aplicando uma única Antes de falar dessa estraté-
A metodologia transgênica per- vez o herbicida quando as plantas já gia transgênica, vale a pena ressal-
mitiu criar plantas capazes de resistir tinham alcançado um estágio de vida tar o potencial nocivo dos insetos na

A metodologia
transgênica permitiu
criar plantas
capazes de resistir
a um herbicida

ES PE CêFICO

julho • agosto • setembro 2016 89


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

agricultura, posto que a maioria das gênica para o gene Bt. Essa foi a pri- e sua introdução fez recuperar a
pessoas que vivem na cidade podem meira planta modificada genetica- agricultura de mamão naquela ilha.
não perceber o problema. Alguns in- mente pelo homem que produz um Esse é um claro exemplo de como a
setos adultos se alimentam de plan- pesticida, sendo que muitas plantas metodologia transgênica, não difundida
tas, como por exemplo os gafanho- produzem pesticidas naturais natu- por multinacionais, mais sim por ins-
tos, e criam verdadeiras pragas até ralmente. A batata transgênica não titutos de pesquisa financiados pu-
descritas na Bíblia, mas são espe- teve muita aceitação pelos merca- blicamente, pode ter valor agregado
cialmente as larvas dos insetos as dos e, com o tempo, foi retirada; mas em questões socioambientais. Outro
que causam maiores estragos na hoje temos que o milho Bt e grande caso interessante sobre o tema é o do
lavoura, atacando especificamen- parte do algodão produzido no mun- arroz transgênico chamado “Golden
te os grãos e estruturas reproduto- do provêm de plantas transgênicas Rice”; dessa vez, desenvolvido em con-
ras, que são o objeto de interesse do contendo o gene Bt. junção com multinacionais do setor.
agricultor. Especialmente na agricul- O arroz natural, que carece de vita-
tura moderna, em que a especializa- Casos de transgênicos de mina A, é o principal alimento de uma
ção e regionalização levou ao cultivo valor social adjunto enorme fatia da população mundial,
de monoculturas em áreas de tama- Nem todos sabem que existem principalmente no continente asiático,
nhos equivalentes a países, o manejo transgênicos que foram criados para e seu uso como única fonte calórica
dos insetos é de extrema importân- resolver questões socioambientais primária pelas fatias mais pobres
cia para que o rendimento não seja específicas. Um desses exemplos é o da sociedade está associado à ce-
decimado e para que verdadeiras caso do mamão do Hawaii. O Hawaii gueira noturna infantil, uma doen-
pragas não se formem. sempre foi um dos maiores produto- ça responsável pela morte de apro-
Bacillus thuringiensis (Bt) é uma res de mamão para o mercado dos ximadamente 670.000 crianças/ano
bactéria descoberta em 1901, que EUA, e a introdução de agricultura de com idade abaixo dos 5 anos. Com o
produz uma endotoxina capaz de escala na plantação de mamoeiros intuito de diminuir essa carência vi-
matar seletivamente alguns tipos de levou ao alastramento do vírus da tamínica, um grupo de pesquisado-
insetos. Estudos feitos seguidamen- mancha anelar que decimou a pro- res introduziu, por via transgênica,
te levaram a utilização dessa bacté- dução de mamão da ilha nos anos 90. genes para a biossíntese do ß-caro-
ria como inseticida biológico, sen- Afortunadamente o problema tinha teno (precursor de vitamina A) no ar-
do uma prática ainda muito utiliza- sido individuado, ao tempo em que roz. O arroz transgênico, que possui
da na agricultura orgânica. Traba- um grupo de pesquisadores ameri- uma coloração amarelada devido à
lhos de biologia molecular de 1985 canos já estava testando a expres- presença dos carotenoides e, por-
individuaram inicialmente os genes são, por transgenia, de uma proteí- tanto, é chamado de arroz dourado,
responsáveis pela toxicidade, deno- na da capa viral em algumas espé- foi desenvolvido e distribuído sem
minados genes cry, e seguidamente cies comerciais do mamão. A planta fins lucrativos como ferramenta hu-
as diferentes variantes da endotoxi- transgênica, denominada mamão manitária na prevenção da doença.
na letal para os insetos, para por úl- “Rainbow”, ao produzir a proteína vi- Mesmo tendo sido cientificamente
timo transformar, com esses genes ral, criou seu próprio sistema de de- comprovado que não produz riscos
plantas de tabaco como organismo fesa, num mecanismo parecido com para a saúde e o ambiente, continua
teste. Dados os bons resultados, em a defesa imunitária de animais. Esse sendo hostilizado por pelos movi-
1995 foi aprovada como segura para mecanismo levou a planta transgê- mentos antiglobalização, por moti-
o consumo humano a batata trans- nica a se tornar resistente ao vírus, vos que têm mais a ver com a hosti-

90 Frankenstein
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

lização da concentração de capitais tam que, nas regiões onde se utilizou realizados sobre saúde animal (pos-
na indústria agroalimentar que por essa metodologia, a biodiversidade to que é eticamente impossível efe-
razões de saúde ou ambiental. de insetos era até maior se compa- tuar estudos em humanos) estavam
rada com regiões onde se utilizavam mal feitos, mas que mesmo assim o
Estudos científicos sobre os plantas não transgênicas associadas grosso dos dados apontam com uma
efeitos dos transgênicos baseados com a adoção de inseticidas quími- razoável confiabilidade o fato de que
em 20 anos de cultivo cos. Por outro lado, os dados sobre os transgênicos não têm afetado a
Em um estudo recente, feito pela a influência de plantas transgênicas saúde humana, pelo menos não mais
Academia Nacional de Ciências dos sobre a diminuição da população da que plantas provenientes de mono-
EUA, foram revisados inúmeros es- borboleta monarca são controver- culturas não transgênicas.
tudos realizados sobre transgêni- sos e insuficientes para se afirmar Já no que se refere aos impactos
cos ao redor do mundo ao longo de de maneira unívoca algo em prol ou socioeconômicos ligados aos trans-
seus mais de 20 anos de introdução contra essa metodologia, indicando gênicos, esse estudo aponta que dife-
no mercado, trazendo conclusões in- que serão necessárias pesquisas rentes parâmetros, tais como o custo
teressantes.15 Esses dados, que fo- mais aprofundadas a respeito. das sementes, o tipo de variedade uti-
ram analisados por cientistas des- Já no que se referem às meto- lizada para diferentes tipos de solos
vinculados do setor agroindustrial, dologias transgênicas que levam à e diferentes latitudes e climas, geram
colocaram as bases sobre as quais resistência ao herbicida glifosato, as dificuldades intrínsecas na realiza-
efetua-se uma análise profunda so- conclusões são menos confortantes, ção de uma análise adequada. Como
bre aspectos de saúde pública, eco- já que inicialmente a utilização des- é sabido por grande parte da popu-
lógicos, ambientais, econômicos, so- sas espécies prometia trazer bene- lação, diferentes climas e regiões fa-
ciais e científicos. fícios, principalmente no que se refe- vorecem alguns tipos de cultivos, e
Primeiramente, o que ficou evi- re a uma menor utilização de herbi- outros, não; portanto, uma generali-
dente a partir desses estudos é que a cidas. Essa afirmação foi verdadeira zação sobre o tema resulta mais di-
metodologia das endotoxinas de Ba- nos primeiros anos de cultivo; mas, fícil no âmbito mundial, que deveria
cillus thuringiensis (Bt), trouxe claras já após 4 anos de plantação, esses ser analisado por microrregiões. O
vantagens econômicas e de saúde benefícios foram esvaecendo, devido que fica claro analisando individual-
para os agricultores, tanto grandes à insurgência de resistências ao gli- mente algumas microrregiões é que
quanto pequenos, enquanto as plan- fosato em plantas daninhas, levando a introdução dos transgênicos trouxe
tas transgênicas permitiram diminuir os agricultores a terem que aumen- inegáveis vantagens socioeconômi-
as aplicações de inseticidas, quando tar e integrar diferentes herbicidas cas para algumas determinadas re-
comparadas com plantas não trans- no cultivo. No que se refere a ques- giões, mas não trouxe vantagens cla-
gênicas. As estratégias para evitar tões ecológicas, os dados apresen- ras para outras.
a insurgência de resistências con- tados apontam para níveis similares
tra o Bt, quando aplicadas correta- de biodiversidade em monoculturas Ativismo e criação de mitos e medos
mente, funcionaram em evitar o apa- transgênicas e não transgênicas, in- sobre os transgênicos
recimento de insetos resistentes às dicando que não há diferenças entre A partir dos anos 70, com o cres-
proteínas Cry. No que se refere ao cultivos dessas monoculturas. cimento da agroindústria e o come-
impacto ambiental criado por essa No que se refere a questões de ço da globalização, houve também a
metodologia transgênica, os resul- saúde pública, os pesquisadores criação das primeiras organizações
tados de diferentes estudos apon- apontaram que muitos dos estudos não governamentais ambientalistas.

julho • agosto • setembro 2016 91


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Com o intuito de combater os proble- têm sempre que comprar novas se- empresarial de venda de sementes
mas da época (energias e bombas mentes das multinacionais. Primei- transgênicas passa pela assinatura
atômicas, caças às baleias e aqueci- ramente, no sistema agroindustrial de contratos vinculantes entre agri-
mento global, entre outros) os ativis- moderno, a maioria dos agricultores cultor e empresa. Em vista da dificul-
tas começaram a fazer campanhas já tinha feito a transição para as se- dade de se vender, no mundo moder-
de marketing e ações demonstrati- mentes elite, antes mesmo do adven- no, a ideia de que estratégias de livre
vas impactantes para se financiar e to dos transgênicos, por óbvias ra- mercado sejam prejudiciais ao agri-
chamar a atenção sobre problemas zões do maior rendimento agronômi- cultor, utilizaram-se estratégias de
relacionados a globalização e des- co delas. É o caso, por exemplo, dos marketing nas que se contava parte
truição do ambiente. Mesmo tendo, híbridos vegetais, plantas derivantes da realidade para cativar o doador.
sem dúvida, as melhores intenções, do cruzamento entre espécies ligei- Entre as várias mistificações que
mas devido ao pouco ou nulo emba- ramente diferentes, e que ao mante- ainda se ouvem sobre os transgêni-
samento científico, essas organiza- rem os dois genomas parentais, in- cos, outra muito difundida é que os
ções nunca surtiram efeitos tangí- tegraram as características de am- genes de resistência ao antibiótico,
veis no âmbito legislativo. Por outro bos, produzindo plantas mais resis- introduzidos para selecionar as plantas
lado, por meio de campanhas publici- tentes a pragas e maior rendimento transgênicas das não transgênicas,
tárias muito bem desenhadas, algu- de massa e de grãos. poderiam causar a transferência
mas ONGs conquistaram o coração O problema dos híbridos é que a dessa resistência aos humanos ou
de uma parte da sociedade mundial utilização dos grãos produzidos pelo às suas bactérias intestinais. Estu-
preocupada com o destino do plane- agricultor, a partir das espécies híbri- dos científicos desmontaram esse
ta, o que permitiu que essas ONGs das, leva à segregação dos caracte- mito completamente; e, para expli-
se transformassem em verdadeiras res de interesse agronômico, e, por- car a falácia, utilizarei uma analo-
multinacionais e máquinas de arre- tanto, a progênie criada no campo gia simplística.
cadação de doações. pelo agricultor que as plantou aca- É sabido que nós humanos nos
Com o advento dos transgêni- ba não tendo, na geração seguinte, o alimentamos de matéria orgânica,
cos, também chamados de orga- mesmo rendimento que comprando animal e/ou vegetal, que contem mi-
nismos modificados geneticamen- às sementes híbridas da agroindús- lhões de genes. Se o mecanismo de
te, o foco das campanhas foi modi- tria. É portanto uma questão de ren- transferência gênica acontecesse
ficado para criar o imaginário cole- dimento que levou o agricultor a pre- da forma hipotisada pelos antago-
tivo de que verdadeiros monstros ferir comprar as sementes da indús- nistas dos transgênicos, não seria
(Frankenstein Food) estavam sendo tria, em vez de continuar produzindo de pensar que outros genes de plan-
engendrados pelas multinacionais suas próprias. Além do mais, apesar tas ou animais seriam transferidos
agroindustriais. E para corroborar de que a tecnologia para a formação para nosso organismo também? De-
a imagem de alimentos não natu- de plantas estéreis já existisse (se veríamos, portanto, estar cheios de
rais, foram utilizadas muitas meias chamava “Terminator”), esta nunca genes de plantas e outros animais?
verdades ou suposições lógicas sem foi introduzida no mercado. Por ou- E por analogia, cultivos biológicos
base científica. Por exemplo, em de- tro lado é verdade que o agricultor orgânicos que fazem controle dos
bates sobre os transgênicos, ainda acaba sendo obrigado a comprar as insetos por meio da bactéria Bt, não
hoje vêm à tona argumentos vazios sementes transgênicas de empresas, deveriam apresentar o mesmo ris-
como os que os transgênicos são não podendo produzi-las por si mes- co de transferência de genes de bac-
estéreis, e, por isso, os agricultores mo, mas isso é porque a estratégia térias para nós? Existem muitas ou-

92 Frankenstein
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

a estratégia de venda de
sementes transgênicas
passa pela assinatura de
contratos vinculantes
entre agricultor e

EM PRESA

tras mistificações sobre os transgê- do transgene. Dado que os diversos ção de transgênicos, mas sim aca-
nicos que foram veiculadas por lei- transgênicos (Bt, resistência ao gli- ba tirando o foco da atenção sobre
gos, e que se revelaram completa- fosato, proteína da capa viral, entre questões agroambientais, enquan-
mente falsas, sem bases científicas outros) derivam da inserção de dife- to não se colocam na pauta do de-
e que depois de mais de 20 anos de rentes transgenes e, portanto, produ- bate temas reais e importantes. Por
cultivo massivo de transgênicos ao zem diferentes produtos, classificá- exemplo, um estudo recente veicula-
redor do mundo, não podem mais -los todos como tóxicos não tem ne- do pela Abrasco e Fiocruz evidenciou
ser sustentadas. Uma das mistifi- nhum sentido científico. Na prática, que boa das frutas e verduras (não
cações mais grosseiras, que deixa cada transgênico deve ser conside- transgênicas) que chegam a nossa
clara a pouca seriedade dos argu- rado como um caso separado, e co- mesa estão excessivamente contami-
mentos espalhados pelos antago- locar todos os transgênicos dentro nados por agrotóxicos. Essa prática,
nistas dos transgênicos, é o fato de- da mesma categoria de frankensteins possivelmente provocada por exces-
les tratarem os transgênicos sem- da natureza é outro erro crasso que, sivo e/ou mau manejo dos agrotóxi-
pre como um todo. O que está claro ao ser uma falácia propagandística, cos na lavoura, tem efeitos diretos e
para cada cientista do ramo é que o nunca foi nem será levada em con- comprovados na saúde humana e é
risco potencial de cada transgênico sideração em qualquer debate re- pouco discutida.
reside na produção de um eventual gulatório. A propagação de mitos e Muitos antagonistas dos trans-
produto tóxico, devido a inserção falsidades não vai diminuir a produ- gênicos acreditam firmemente que

julho • agosto • setembro 2016 93


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

os cientistas trabalhem a favor das dos pelos antagonistas dos transgê- da agricultura e do ambiente, mes-
indústrias do agrobusiness, pois ima- nicos para a população leiga, pois a mo existindo um forte corpo de evi-
ginam que exista um certo conflito de única estratégia é o combate cego e dências científicas que demonstram
interesses em falar mal dos transgê- absoluto dos transgênicos. Aliás, todo o contrário. Em minha opinião, par-
nicos, mas pelo contrário, é por meio o argumento da eliminação comple- te da sociedade se sente traída pela
do trabalho científico que tem se en- ta dos transgênicos do mercado, de- industrialização em um de seus va-
tendido a necessidade de regulamen- pois de mais de 20 anos de sua intro- lores mais profundos e sagrados, a
tações mais rígidas e extensivas, an- dução, deveria ser repensado, pois alimentação. Como escreveu Luneau
tes de permitir a introdução de outros claramente não tem surtido efeitos. “a agricultura de atividade, que pro-
produtos transgênicos no mercado. duz alimentação, se transformou em
Os eventuais riscos para o ambiente Discrepância entre dados científicos uma máquina de dinheiro que per-
e saúde poderiam ser minimizados e campanhas ambientalistas deu completamente de vista tanto o
ainda mais com regulamentações que Um dos quesitos que atualmen- produto como o consumidor. Porém,
exijam análises com metodologias de te mais preocupa os cientistas é por o ato de comer não pode ser redu-
última geração, tais como genômi- que continua existindo uma parte da zido a uma dimensão comercial”.16
cas, proteômicas e metabolômicas, sociedade que se obstina em apontar A capacidade de observação
mas esses conceitos não são passa- os transgênicos como o grande vilão não é uma prerrogativa científica e

A tão aclamada
sustentabilidade
passa por uma
agricultura moderna,
especializada, mas

RENOVçVEL

94 Frankenstein
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

acadêmica, e é normal que existam da história. Porém, a falta de infor- globalização, mas deveriam integrar
muitas pessoas que, mesmo sem mação e, pior ainda, a desinforma- conhecimento profundo dos fatos,
conseguir definir exatamente os ter- ção praticadas como estratégia de multidisciplinariedade e imparciali-
mos da equação, sejam capazes de marketing, tanto pelas empresas do dade. Nesse sentido, o mundo aca-
compreender que algo de errado agrobusiness, para esconder a ideo- dêmico e o científico representam,
existe na atual equação alimentar- logia mercadológica que permeia o através da análise científica, a me-
-ambiental. E nisso muitos cientistas business agroindustrial, como pelas lhor maneira de entender os para-
concordam, existe um claro proble- ONGs ambientalistas, que necessita- digmas da atualidade.
ma de como sustentar uma popula- vam de imagens fortes para cativar a É importante frisar que mais que
ção crescente, com meios de produ- atenção da sociedade sobre um tema as discussões entre cientistas, é o
ção renováveis e sustentáveis, e que que eles mesmos não comprendiam conhecimento que a sociedade possui
essa problemática choca com a lógi- a fundo, criaram simplesmente uma sobre um tema que pode exercer
ca puramente mercadológica e libe- cisão entre a sociedade e a ciência. pressão sobre os legisladores para
rista de nossa época. O advento da A estes fatos, some-se uma comu- criar novas legislações, assim que
internet, que globalizou imagens ex- nidade científica que sempre teve fica evidente que ações propagandís-
pondo o atual estado da agricultura grandes dificuldades de comunica- ticas como, por exemplo, a destruição
moderna, e que se demonstrou ser ção, especialmente com a população de campos de transgênicos experi-
o exato contrário do imaginário co- geral, exatamente por se negar em mentais de algumas empresas, não
letivo criado, acabou gerando des- eliminar variáveis de difícil interpre- produzem nenhum efeito concreto
crença e desconfiança na ciência e tação e simplificar o discurso, o que no aspecto regulatório, mas acabam
no sistema industrial. nos levou à atual situação paradoxal desviando o foco das atenções sobre
É nesse cenário que algumas em que a população acredita em mi- os problemas reais. A tão aclamada
ONGs ambientalistas se enraizaram tos mais que na ciência. sustentabilidade passa por uma agri-
e cresceram até virarem verdadei- Dentro do panorama atual e com- cultura moderna, especializada, mas
ras agências propagandísticas, ca- plexo de conhecimento, as posições renovável, que devolva protagonis-
pazes de influenciar a opinião de mi- polarizadas expressas pelos dois la- mo aos agricultores, por meio de um
lhões de pessoas ao redor do mun- dos da disputa nos distanciam da rea- sistema capitalista de valores reais e
do. Porém esses movimentos, que lidade dos fatos. Além do mais, tudo que preze a saúde humana levando
se autoproclamaram defensores indica que ambas as partes confli- em consideração o fator ambiental.
do planeta, combateram uma bata- tantes na disputa pró-contra trans-
lha inútil contra os transgênicos, ba- gênicos se avaleram da mesma es- Olhando para o futuro
seando seu discurso em grosseiras tratégia ilusória para garantir a pró- Os últimos 30 anos se caracte-
falsidades, tanto que vários anos de pria sobrevivência em um mercado rizaram por um enorme avanço de
ativismo fervoroso e campanhas de de opiniões volúveis. Como muitos conhecimento biológico básico e de
grande impacto não geraram nem experts do setor clamam, o que fal- tecnologia aplicada. Dados científi-
resultados ecológicos, nem legisla- ta é um pouco de fact checking. Pro- cos apontam que existe ainda ulte-
tivos. Em um sistema globalizado não blemas complexos e extremamente rior potencial para a manipulação
sustentável, com uma população em interligados como o da equação ali- gênica, especialmente se realizada
contínuo crescimento, em um planeta mentar-ecologica não podem ser li- com instrumentos mais precisos. As
de recursos finitos, foi fácil apontar dos em chaves simplísticas, de ma- pesquisas realizadas nas últimas três
os transgênicos como frankensteins triz somente mercadológica ou anti- décadas sobre temas de fisiologia e

julho • agosto • setembro 2016 95


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

genética vegetal nos permitem olhar das, tanto sobre os sistemas produ- que a forma atual não está neces-
para o futuro com um pouco de es- tivos da agricultura moderna como sariamente aqui para ficar, nem nós
perança. Exemplos como a ativação sobre os transgênicos, para apren- necessariamente desejamos que ele
de mecanismos de resposta natural der com os erros cometidos. O pró- permaneça inalterado. A compreen-
à seca, resistência à alta salinidade prio conceito do que é definível como são de como o sistema atual veio a
e indução de interação entre fungos natural é extremamente complexo e ser estabelecido deve ser levado em
micorrízicos e espécies vegetais que representa uma negação do passado consideração para analisarmos os
normalmente não atuam esse tipo de de domesticação dos alimentos que pontos fortes e externalidades por
simbiose podem realmente mudar o consumimos. Ao longo dos últimos ele criadas. Somente assim sere-
panorama mundial de produção de 10.000 anos, os sistemas alimenta- mos capazes de transformar o de-
alimentos. res do mundo têm sofrido enormes clíno do sistema alimentar que as
Nos próximos anos assistire- mudanças. O sistema industrializado externalidades de nossa agricultu-
mos inevitavelmente à introdução verticístico atual representa apenas ra moderna criaram em uma revo-
de várias novas tecnologias que di- um breve momento no longo perío- lução verde 2.0 e evitar uma nova
ficultarão ainda mais a diferencia- do da história humana, até mesmo idade média.
ção entre plantas OGM e plantas na- a agricultura é um fenômeno rela-
turais; portanto, devemos analisar tivamente recente. As muitas trans- O autor é professor de Biologia do Desenvol-
vimento Vegetal no Centro de Energia Nuclear
com cuidado o corpo de evidências formações do sistema alimentar ao na Agricultura/USP
que acumulamos nas últimas déca- longo do tempo nos devem lembrar francisco.scaglia@gmail.com

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96 Frankenstein
Leonardo Braga
Martins
Oficial de Marinha Submarinista

98 sinapse
Ciber
nética,
neuro
ciência

e outros impulsos

julho • agosto • setembro 2016 99


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

N
privilegiados de interesse. Este artigo and Communication in the Animal and
explora algumas contribuições desse the Machine” de 1948. A palavra é
movimento para as ciências sociais uma derivação do termo grego “Ky-
e apresenta possibilidades de resig- bernetes”, que quer dizer timoneiro
nificação de conceitos como conhe- (WIENER, 1948). Faz menção à ideia
cimento, poder e cultura, a partir do de governo ou comando, apresen-
diálogo que se estabeleceu entre a tando de primeira mão o pilar central
cibernética e neurociência cognitiva da abordagem cibernética: a análise
no século XXI. de sistemas cujos comportamentos
estão orientados para o atingimento
A Cibernética e Suas Origens de metas. Essa forma de olhar logo
O notável matemático e filóso- mostrou-se poderosa, não só para
fo Norbert Wiener (1894 – 1964) análise e construção de máquinas
cunhou o termo cibernética em seu quanto também para a compressão
livro seminal “Cybernetics or Control das coisas vivas. Assim, muitos se
No século XXI, a ascensão do artifi- debruçaram sobre os problemas da
cial atingiu patamares jamais expe- vida a partir do olhar da cibernéti-
rimentados pelo homem urbano co- ca e entre os maiores contribuintes
os problemas da vida a partir

mum. A internet, os smartphones, as para o campo estão dois biólogos –


do olhar da cibernética

redes de telefonia móvel e a amplia- Walter Canon (1871-1945) e Ludwig


ção da oferta de serviços em nuvem, von Bertalanffy (1901-1972).
muitos se debruçaram sobre

passaram a permear, em muito pou- Cannon propôs a visão dos seres vi-
co tempo, a experiência cotidiana. vos como sistemas abertos, dinâmi-
Dispositivos, antes restritos às apli- cos, engajados numa busca inces-
cações industriais e militares, bene- sante pelo equilíbrio interno; bus-
ficiados pelo aprimoramento da efi- ca que orientaria suas respostas
ciência elétrica, a miniaturização de ao ambiente externo. Essa concep-
componentes e pela vasta oferta da ção colocou o cientista entre os pio-
capacidade de processamento e ar- neiros da cibernética, contribuindo
mazenagem de dados, tornaram-se para a legitimação das explicações
acessíveis ao grande público. Mas de cunho teleológico no interior da
nenhum desses recursos poderia produção de conhecimento cientí-
ser mobilizado sem a progressiva fico (GLASERSFELD, 2002). Leia-se,
sofisticação da capacidade humana o propósito passou a ser reconhe-
de conceber sistemas de controle – cido como um princípio válido para
um processo de reflexão-ação que a explicação científica, ideia primei-
deu origem à cibernética. ramente justificada por Immanuel
Mais conhecida pela sua forte in- Kant e mais tarde por Charles Da-
fluência na produção da cultura ma- rwin (PERIN, 2010).
terial contemporânea, a cibernética Já Bertalanffy foi responsável
teve, desde seu nascedouro, a vida, o pela Teoria Geral de Sistemas (TGS).
homem e a sociedade como objetos
100 sinapse
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

julho • agosto • setembro 2016 101


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Seu trabalho pode ser considerado gundo é o aparelho de controle, res- retroação ou realimentação – em in-
um compêndio de produções intelec- ponsável por processar as informa- glês, feedback. Essa relação pode ser
tuais convergentes que provinham ções recebidas, compará-las como as estabelecida diretamente ou se rea-
de diferentes áreas do conhecimento referências pré-estabelecidas e, em lizar por meio do ambiente que cer-
humano. Elas tinham em comum uma determinadas circunstâncias, acio- ca o sistema, arranjo mais comum.
oposição às abordagens de cunho nar a unidade atuadora; e o terceiro, Em ambos os casos, o sistema de
cartesiano, em que o conhecimento portanto, é a unidade atuadora, que controle será instado a comandar a
somente se produzia pela dissecação age sobre o ambiente, a partir dos ação do atuador, quando, ao compa-
física e teórica dos objetos da pes- comandos do aparelho de controle rar a informação recebida pelo sen-
quisa (DUPUY, 2000). Desse modo, a (BERTALANFFY, 2008, p.43). sor com o padrão de controle pro-
perspectiva de adotar os padrões de Entre esses componentes exis- gramado, encontrar uma diferença.
organização e as interações entre te uma relação de circularidade, por E continuará fazendo isso enquanto
componentes, como os objetos pri- meio de uma interligação entre o re- essa diferença persistir (Figura 1).
vilegiados da reflexão, provocaram ceptor e o atuador, conhecida como Para ilustrar a explicação, usa-
uma revolução no modus faciendi da remos como exemplo o controle de
pesquisa em campos como a biolo- temperatura de um forno elétrico. No
gia, a economia e a sociologia, pro- forno, uma vez ligado, o sistema de
porcionando uma base comum para controle irá comparar a temperatura
o diálogo interdisciplinar. de operação selecionada pelo usuá-
A TGS prevê a descrição formal rio com aquela que pode ser medida
de sistemas por meio de diagramas no interior do aparelho. Considerado
de bloco, explicitando três componen- um forno inicialmente frio, teremos
tes distintos: o primeiro consiste no um sensor a informar uma tempera-
receptor, unidade responsável por tura igual a do ambiente, que conven-
obter informações do ambiente; o se- cionaremos, neste exemplo como 25o
C. Suponhamos que o usuário tenha
selecionado como temperatura alvo
180o C. Comparando 25o C com 180o
C, o dispositivo de controle irá identi-
FIGURA 1
ficar uma diferença e, assim, permi-
ESQUEMA HIPOTÉTICO DE REALIMENTAÇÃO (feedback) CIBERNÉTICO
DE PRIMEIRA ORDEM DE NATUREZA genérica tirá a passagem de corrente elétrica
para as resistências de aquecimen-
to. Ao se aquecerem, as resistências
ESTÍMULO RECEPTOR MENSAGEM
irão aquecer o ar no interior do forno,
cuja temperatura é monitorada pelo
RETROAÇÃO APARELHO DE sensor do sistema. Quando a tempe-
CONTROLE
ratura do ar atingir 180o C, não ha-
verá diferença entre o valor medido
RESPOSTA ATUADOR MENSAGEM e o valor ajustado. Nesse momento, o
dispositivo de controle irá interrom-
Fonte: Autor, adaptado a partir de BERTALLANFY, 2008, p. 69 per a corrente elétrica que alimenta

102 sinapse
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

d
as resistências, evitando assim que a ção sistêmica foi batizado por Can-
temperatura continue a subir. Quan- non (1963) de homeostase, e as fai-
do a temperatura cair novamente, o xas de equilíbrio foram chamadas de
ciclo se repetirá, pelo menos enquan- faixas homeostáticas.
to o forno permanecer ligado.
É possível observar, todavia, que A Cibernética de Segunda Ordem
a adoção de um “ponto de equilíbrio” A perspectiva da TGS cristalizou-
(no exemplo, 180o C) é uma escolha -se no que reconhecemos hoje como
desgastante para o nosso sistema “cibernética de primeira ordem”, des-
modelo. Essa configuração fará com crita por Bertalanffy à época ape-
que o forno tenha que ligar ou des- nas como cibernética. Na ciberné-
ligar as resistências de aquecimen- tica que se segue, conhecida como
to com demasiada frequência. Uma “de segunda ordem”, a perspectiva
estratégia alternativa – adoção de muda da observação de sistemas
uma faixa de equilíbrio em vez de um para sistemas que observam. Essa
ponto – se apresenta a partir da ob- mudança de perspectiva dá origem
servação dos seres vivos (CANNON, a uma nova tradição de análise sistê- Dentro da cibernética de segun-
1963). No nosso caso, em vez de mica da cognição, que tem suas raí- da ordem, o constructo teórico de
180o C, poderíamos adotar uma faixa zes no aprofundamento do movimen- maior interesse para essa reflexão
aceitável de 175o C a 185o C. Vería- to cibernético pelo físico-químico Ilya é a Teoria da Cognição de Santiago.1
mos que, na partida, o dispositivo de Prigogyne (1917-2003), prêmio No- Ao distinguir os sistemas vivos dos
controle manteria em funcionamen- bel de Química em 1977, e pelo físico “não vivos”, Maturana e Varela (2001)
to as resistências até que atingissem Heinz Von Foster (1911-2002), consi- constroem um novo referencial para
185o C. Ao atingirem essa tempera- derado o pai da biocibernética. Mais a compreensão dos processos cog-
tura, as resistências seriam desliga- tarde o referencial teórico da ciber- nitivos, a partir de uma mudança de
das, e pouco a pouco a temperatu- nética de segunda ordem seria apro- perspectiva. Descarta-se, como pos-
ra iria cair, sem que nenhuma ação priadamente formulado por Gregory sibilidade metodológica, a interpre-
de controle fosse requerida. Quan- Bateson (1904-1980) e desenvolvido tação do comportamento de um ser
do a temperatura do ar alcançasse pelo biólogo e neurofisiologista Hum- vivo a partir de um observador exter-
o limite inferior (175o C), o aparelho berto Maturana com o concurso de no. Em vez disso, os autores discutem
de controle acionaria novamente as seu colaborador próximo, o neuro- as características da vida para en-
resistências, e assim a temperatura cientista Francisco Varela (1946- tão depreender o modo como se dá
seria mantida no intervalo almejado. 2001) (GLASERSFELD, 2002). a cognição, por eles compreendida
Como na ilustração do forno, os como um processo que reúne, num
sistemas artificiais e naturais exibem só fazer, a reflexão e a ação.
uma grande variedade de padrões O pilar central da teoria é o con-
de realimentação, sendo o feedba- ceito de organização autopoiética.
ck simples apenas um dos exemplos Ao se perguntarem como é possível
que a cibernética de primeira ordem
1. O nome da teoria é uma referência à origem
ajudou a compreender. Na biociber- comum de Maturana e Varela – o Chile.

nética, esse processo de equilibra-

julho • agosto • setembro 2016 103


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

distinguir os seres vivos do restan-


te do meio, os autores afirmam que
a vida conta com uma característi-
ca sem igual, a capacidade de cons-
tituir a si mesma, de se autoproduzir.
Essa autoprodução se dá por meio
de duas linhas de esforço distintas
e complementares. Uma é de natu-
reza filogenética, tal como Matura-
na e Varela (2001, p.117) definem:
“uma sucessão de formas orgânicas
geradas sequencialmente por rela-
ções reprodutivas”. A segunda se dá
ao longo da vida de um ser, em que a
autoprodução é o recurso que permi-
te ao organismo, dentro de seu nicho
ambiental, configurar-se de diferen-
tes modos (estruturas), respeitadas
certas relações invariáveis (padrão
de organização). Essa plasticidade
estrutural, ou metamorfose, permi-
te a emergência de diferentes com-
portamentos do organismo, resultan-
do, na visão de um observador exter-
no, numa capacidade de adaptação.
Mas ao contrário do que costu-
ma apontar o senso comum, as per-
turbações externas não determinam
um efeito sobre um organismo – elas
desencadeiam processos de res- genética, a partir da definição pro- na queda das folhas no inverno, no
posta que, em última instância, são posta por Maturana e Varela (2001, crescimento de músculos exercita-
decorrentes da lógica estabelecida p.88), ao afirmarem que “a ontogenia dos e no bronzeamento da pele após
pela estrutura corrente desse orga- é a história de mudanças estruturais um dia de praia.
nismo. Vemos assim que, por exem- de uma unidade, sem que esta perca É possível observar que a Teoria
plo, um nível de exposição solar ca- a sua organização”. Reparemos que de Santiago posiciona a cognição
paz de estimular o florescimento de essa plasticidade estrutural (a ca- como um fenômeno mais amplo e
um cacto pode matar uma orquídea. pacidade de modificar a sua própria anterior ao aparecimento do sistema
A luz não determina se uma criatu- estrutura) pode ser amplamente ob- nervoso na história evolutiva. O or-
ra irá viver ou morrer – quem o faz servada na natureza. Lá está ela na ganismo vivo deixa de ser visto como
é a sua estrutura. Essa segunda li- transformação de girinos em sapos, um sistema de processamento de in-
nha de esforço é chamada de onto- na mudança da pelagem de animais, formações, como se estas possuís-

104 sinapse
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

bilidade às produções (WEISBERG et

a vida conta com uma característica


al, 2008; WEISBERG, TAYLOR e HO-
PKINS, 2015), fazendo crescer as
iniciativas oportunistas de autores
pouco chegados ao rigor metodoló-

de constituir a si mesma
gico. A esse processo de populariza-
ção “desinformante”, somaram-se as
dificuldades inerentes de integração

sem igual, a capacidade


do novo campo à produção científica
corrente, tão fragmentada e discipli-
nar. Uttal (2016) ilustra as limitações
do atual paradigma de pesquisa das
neurociências cognitivas afirman-
do que a redução dos constructos
da psicologia a mecanismos neuro-
fisiológicos mostrou-se uma tarefa
muito difícil e mais complexa do que
se pensava – talvez impossível –, e
que conceitos advindos da psicologia,
como cognição, mente, pensamento
e consciência, são inadequados para
análise das complexas redes inter-
neuronais.
A possibilidade de resignificação
de conceitos utilizados na pesquisa
social, a partir do referencial ciber-
nético de Maturana e Varela, pro-
porciona um caminho metodológico
alternativo. Dentro desse contexto,
sem existência independente de um A Cognição de Natureza Biolétrica os processos bioelétricos, a cargo
observador, para se constituir como A ascensão experimentada pe- das células neuronais e gliais, cons-
um sistema produtor de sentidos, las neurociências nos últimos quinze tituem apenas um caso particular
por meio de suas configurações es- anos resultou na formação do quin- da cognição, requerendo que o seu
truturais. Podemos afirmar que, em to maior campo disciplinar da pro- entendimento seja recontextuali-
última instância, o organismo vivo dução científica global (ROSVALL e zado. Um sistema nervoso comple-
faz o que faz por que tal ação lhe faz BERGSTROM, 2010). Esse proces- xo passa a ser compreendido como
sentido, lhe é coerente. Bem-sucedido so resultou numa rápida populari- um recurso que expande brutalmen-
é, portanto, aquela linhagem de or- zação do tema – na percepção dos te a plasticidade estrutural do orga-
ganismos que consegue construir e leigos, a associação de argumentos nismo, proporcionando um repertó-
preservar sentidos capazes de via- a explicações ditas “neurocientífi- rio muito mais extenso de compor-
bilizar a sua existência. cas” passou a conferir maior credi- tamentos possíveis, que podem ser

julho • agosto • setembro 2016 105


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

p
construídos e/ou destruídos de um pécies que apresentam uma cabeça
modo muito mais veloz. E como isso concentrando a maior parte do SNC
teria se dado na história evolutiva? (RIBAS, 2006).
Se retornarmos ao esquema clássi-
co de controle por retroação simples, A Complexificação das Redes
originário da cibernética de primei- Interneuronais
ra ordem, e substituirmos a informa- O aumento da quantidade e con-
ção por uma perturbação, na entra- centração de neurônios interneuro-
da, teremos nosso ponto de partida nais propiciou o surgimento de es-
para conceber o vivo dotado de um truturas cada vez mais complexas
sistema nervoso (Figura 2). que, por conseguinte, foram capazes
Conectados aos sensores, tere- de gerar comportamentos cada vez
mos os neurônios aferentes, e, aos mais variados. A proporção de inter-
mecanismos efetores, os neurônios neurônios do cérebro humano ilus-
eferentes. Entre eles, na condição tra o quanto essa rede prosperou. Para dar os necessários saltos de
de componente de controle, encon- Estima-se que, para cada dez neu- escala entre fenômenos bioelétri-
traremos a rede de neurônios inter- rônios efetores, existam 100.000 in- cos, psíquicos e sociais, precisamos
neuronais (MATURANA, 2014). Tal terneurônios e apenas um neurônio oportunamente do apoio de outros
configuração – células sensíveis a sensor (MATURANA E VARELA, 2001). autores, como os filósofos Joseph
determinadas perturbações (sen- Considerando uma população esti- Woodger (1894-1981), Charlie Broad
sores), conectadas a células capa- mada de 86 bilhões de neurônios e (1887-1971). Wooger (1929) formu-
zes de produzir movimento, quando um número similar de glias (AZEVE- lou a ideia do fenômeno da vida como
excitadas eletricamente (efetores) DO, Frederico AC et al, 2009), tem-se uma grande teia de relações, organi-
– proporcionou à vida multicelular uma rede de grande escala, que se zada numa cadeia hierárquica de re-
uma notável extensão de suas pos- destaca claramente entre os demais des dentro de redes, cada vez maio-
sibilidades. Na condição de estrutu- sistemas nervosos centrais de pri- res e mais conectadas – portanto
ra, facultando a conexão entre sen- matas (HERCULANO-HOUZEL, 2009). mais complexas. Broad, em seu li-
sores e efetores, a rede interneuro- vro “The Mind and its Place in Natu-
nal proporcionou a emergência de re”, de 1925, nos oferece o concei-
certos comportamentos, a partir de to de “propriedade emergente” para
certas correlações ou, como havía- definir propriedades únicas de um
mos dito, certos sentidos. determinado nível de organização
Constata-se que, ao longo da da rede (GUSTAVSSON, 2014) que o
evolução, as espécies aquinhoadas distinguem entre os níveis superiores
com o aumento da densidade da rede ou inferiores de complexidade.
interneuronal e da concentração de O diálogo de Broad e Woodger
seus componentes em regiões es- com Maturana e Varela nos permi-
pecíficas, parecem ter sido particu- te propor a emergência, nessa esca-
larmente bem-sucedidas. A evidên- la de rede, de um domínio próprio de
cia está em toda parte, ao obser- interações, em que os sentidos se re-
varmos a grande variedade de es- lacionam com outros sentidos, crian-

106 sinapse
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

do algo que poderíamos chamar de constituem as relações do organis- ma de controle denominado de feed
grandes correlações. Vimos que a mo (em sua integralidade) com o am- forward. Segundo Damásio (2011)
rede interneuronal é massiçamente biente que o cerca. Como nos alerta esse esquema proporciona ao ho-
superior em conexões e quantidade Maturana (2014, p.200), “apesar do mem uma camada de controle adi-
de componentes se comparadas às sistema nervoso não interagir com cional, possível a partir da complexi-
redes sensoras e motoras. Portan- o meio, a estrutura do sistema ner- ficação das redes interneuronais, e
to, a maior parte dos neurônios do voso segue um trajeto de mudança capaz de estender de modo extraor-
SNC se relacionam mesmo a outros que é contingente com o fluir das in- dinário as possibilidades proporcio-
neurônios, constituindo um domínio terações do organismo na realização nadas pela homeostase baseada em
de interações distinto do domínio de e conservação de seu viver”. feedback: “Eles se entrepõem entre
existência do organismo. Tal como Desse modo, assim como sequên- as outras regiões com o bom e óbvio
explica Maturana (2014, p.199), “o cias de apenas quatro aminoácidos propósito de modular as respostas
resultado fundamental desta situa- foram capazes de constituir a enor- simples a estímulos diversos e torná-
ção é que o organismo interage com me variedade de seres vivos exis- -las menos simples, menos automáti-
o meio, mas o sistema nervoso não”. tentes na Terra, não é de se espan- cas.” (Damásio, 2011, p.380). Conhe-
Tomada como um determinado tar que numa rede com trilhões de cido por suas contribuições na for-
nível de complexidade, as grandes re- conexões possam emergir fenôme- mulação de conceitos como mente
des interneuronais dispõe, portanto, nos como a linguagem, as emoções e subjetividade, Damásio tem ainda
de propriedades específicas que não e a consciência. outros constructos úteis a essa re-
são encontradas nem nos seus níveis flexão, tais como a homeostase so-
superiores, nem nos seus componen- O Mecanismo de Feed Forward ciocultural, a compressão cognitiva
tes. Isso quer dizer que organismo e Na busca de novas respostas e a sua particular modelagem para
sistema nervoso estejam desconec- para antigas perguntas, seguir-se- fenômenos como a emoção e a men-
tados? Não. Ambos compartilham dos -á pelos referenciais da cibernética, te consciente. Fenômenos como es-
elementos sensores e efetores, que incluindo nas discussões um esque- ses devem ser compreendidos es-
sencialmente como produtos do do-
mínio de interações próprio da rede
FIGURA 2
interneuronal. Como tais, serão ana-
lisados e descritos no interior de uma
ESQUEMA HIPOTÉTICO DE REALIMENTAÇÃO (feedback) CIBERNÉTICO
DE segunda ORDEM DE NATUREZA biolétrica modelagem que guarda coerência
com os princípios gerais da cogni-
NEURÔNIOS AFERENTES INTERNEURÔNIOS
ção até agora descritos, respeitan-
PERTURBAÇÃO SENSOR PERTURBAÇÃO do características sui generis, pos-
síveis apenas em um nível tão alto de
REDE DE
complexidade.
RETROAÇÃO
CONTROLE Maturana e Varela (2001, p.232 e
POR
FEEDBACK 233) definem o domínio de interações
NEURÔNIOS EFERENTES
simbólicas como um domínio linguís-
PERTURBAÇÃO EFETOR PERTURBAÇÃO
tico. A linguagem aqui é compreen-
dida como um campo que permite “a
Fonte: Autor, adaptado a partir de BERTALLANFY, 2008, p. 69.; MATURANA E VARELA (2001) e LENT (2010)
quem funciona nela, descrever a si

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

consciência, aqui tomada como “um


FIGURA 3 processo que se manifesta com co-
ESQUEMA HIPOTÉTICO DE REALIMENTAÇÃO (feedback) COM ANTECIPAÇÃO (FEED FOWARD) nhecimento que um indivíduo tem da
CIBERNÉTICO DE segunda ORDEM DE NATUREZA biolétrica própria identidade, do próprio pas-
sado e da própria situação percepti-
NEURÔNIOS AFERENTES INTERNEURÔNIOS
va e emocional” (MALDONATO, 2014,
PERTURBAÇÃO SENSOR PERTURBAÇÃO p.110). Entretanto, ao que tudo indi-
ca, o mecanismo de feed forward é
REDE DE REDE DE um fenômeno subjacente à mente
RETROAÇÃO
CONTROLE POR CONTROLE consciente, residindo também no ní-
FEED FORWARD POR
FEEDBACK vel subconsciente (associado a fenô-
NEURÔNIOS EFERENTES
menos como a intuição e a decisão
PERTURBAÇÃO EFETOR PERTURBAÇÃO
intuitiva) ( KAHNEMAN,2012; GAZZA-
NIGA,2012). [Figura 3]
Fonte: Autor, adaptado a partir de BERTALLANFY, 2008, p. 69.; MATURANA E VARELA (2001), LENT (2010) e DIAMOND (2013)
A invenção do futuro requer o
conhecimento do passado, em duas
mesmo e à sua circunstância”. Leia-se dade de prever desequilíbrios futu- dimensões distintas: (1) na expres-
“o próprio domínio linguístico passa ros e agir antecipadamente antes que são das perturbações recorrentes,
a ser parte do meio de possíveis in- eles aconteçam (Figura 3). Para tal, ocasionadas pelos objetos mais co-
terações” coexistindo com o domínio estariam instaladas no cérebro faixas muns no domínio da existência e (2)
da existência (o campo da ação ma- homeostáticas simbólicas, aprendi- na expressão do próprio organismo,
terial sobre os sensores e efetores). das a partir da interação do indivíduo cuja recorrência de interação é obvia
Nas experiências cotidianas, o domí- com o seu grupo social e com os de- – o sistema nervoso nasceu e cres-
nio linguístico é mais conhecido por mais componentes do ambiente que ceu ali – e cujo papel é privilegiado
sua razão instrumental no fenôme- o cerca, num processo de equilibra- na prospeção de cenários, por que
no da comunicação. Aqui, recusan- ção simbólica chamada de homeos- nele estão instalados os sensores e
do definições que circunscrevam a tase sociocultural (DAMÁSIO, 2011, efetores que constituem o “sujeito”
linguagem a um sistema de trans- p.356). Damásio guarda coerência das ações. Em relação à primeira
missão e recepção de mensagens, com a visão já descrita de que, no ser dimensão, Damásio (1992, p.93) de-
tomaremos o fenômeno como um humano, a complexificação das re- fende que o emprego de estereóti-
sistema de lógicas próprias de re- des interneuronais proporcionou a pos, classes ou categorias de obje-
des interneuronais complexas, ca- emergência da linguagem, como um tos fixou-se como estratégia cogniti-
paz de proporcionar o afloramento sistema de descrição de objetos (e va bem-sucedida na história evoluti-
do que convencionou-se chamar de do próprio indivíduo) sobre os quais va do sistema nervoso central (SNC),
pensamento abstrato. o homem consegue, mentalmente, como um fenômeno conhecido como
Reconhecendo a importância da interagir ou simular interação a fim “compressão cognitiva”. Grosseira-
homeostase e dos mecanismos de de elaborar cenários de futuro (MA- mente, poderíamos dizer que a exis-
controle baseados na retroalimenta- TURANA e VARELA, 2001). A posição tência de circuitos especializados em
ção (feedback), Damásio (2011, p.69) de sujeito de uma ação planejada te- processar perturbações recorren-
propõe que o cérebro humano tenha ria gerado a faísca para um fenôme- tes – que correspondem a classes ou
proporcionado ao homem a capaci- no singular na história natural – a categorias de objetos com proprie-

108 sinapse
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

0
dades definidas – permite ao cére- adequadas ao atual contexto, entre
bro, ao detectar uma perturbação, todas as ações possíveis do seu in-
reconhecê-la e combiná-la com re- ventário. Esse fenômeno, Damásio
produções de outras perturbações. (2012) e Maturana (2014, p.45) cha-
Em relação à segunda dimen- mam de emoção. A emoção permite
são, é possível afirmar que o SNC que, para certos contextos, o orga-
tem, no corpo, um tema privilegiado. nismo privilegie o processamento de
Nas perturbações recíprocas que se certas perturbações e a escolha de
estabelecem com as demais redes certas respostas, em detrimento de
que compõem organismo, observa- outras. Numa primeira aproximação,
mos a emergência da comunicação isso não parece representar vanta-
– fenômeno compreendido como o gem. Todavia, um olhar atento aponta
“desencadeamento mútuo de com- que a existência de estados emocio-
portamentos coordenados que se dá nais no cérebro dos humanos moder-
entre os membros de uma unidade nos resulta num desempenho supe-
social” (MATURANA e VARELA, 2001, rior. Ao restringir a variedade de es-
p.214). As perturbações provocadas truturas selecionadas para produzir Os trabalhos científicos da neuro-
pelo corpo na rede interneuronal si- os comportamentos, o SNC processa ciência contemporânea apontam que
nalizam, entre outras coisas, as von- mais rapidamente as perturbações e emoção é um mecanismo ancestral,
tades homeostáticas dos orgãos e comanda mais rapidamente os efe- que precede a alta complexificação
tecidos que o constituem. As vonta- tores, porque existem menos cami- das redes neuronais e, portanto, a
des atendidas se manifestam como nhos neurais a serem percorridos; o emergência da mente consciente.
sensações prazerosas, e as vontades que se traduz, para um observador Por séculos, antes desses achados,
negligenciadas como dor. A punição, externo, num menor número de op- ela foi compreendida como um incô-
como um reforço negativo à manu- ções acessíveis à escolha. modo, um elemento “atrapalhador”
tenção do comportamento doloroso Podemos fazer analogias ao car- da decisão racional. Isto porque, na
e a recompensa como um estímulo dápio de um restaurante. Imagine que mente consciente, o que emerge é
à manutenção do comportamento você está jantando com um amigo e, a sensação de que um estado emo-
prazeroso (DAMÁSIO, 2011, p.74). antes de escolher, vocês decidiram cional foi selecionado involuntaria-
Mas não só de dor e prazer vi- compartilhar uma porção para duas mente. É o coração acelerado, o frio
vem as comunicações da rede inter- pessoas. Nesse caso estabeleceu-se, da barriga, o suor frio. É uma expe-
neuronal com o organismo. Nesse previamente à escolha, um determi- riência que desafia o desejo de estar
balé de comportamentos coordena- nado contexto, que limitará as op- sempre no controle. A essa tomada
dos, há passos em que o organismo ções àquelas suficientes para duas de consciência das mudanças dispa-
sinaliza quais predisposições esco- pessoas. Você não precisará, por- radas no corpo pela alteração invo-
lheu para lidar com o ambiente no tanto, ler a parte do cardápio relati- luntária do estado emocional, Damá-
presente momento. Como predispo- va aos pratos individuais (limitou as sio (2012) chama de sentimento. Por
sições, quero dizer a especificação perturbações). Ao apreciar uma lis- muito tempo, foi o sentimento tudo o
de quais perturbações devem gozar ta menor de pratos você dispendará que nós, seres humanos, soubemos
da atenção disponível e quais ações menos tempo para decidir (comando sobre a emoção. Mas hoje as evidên-
o organismo considera como opções mais rápido). cias clínicas demonstram claramen-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

te que estávamos errados. A falta de um fenômeno presente em todas as vulneráveis a interrupções de suas
emoções não gera o decisor perfei- unidades sociais. Há grupos, como o sequências comportamentais” (DA-
to; gera a incapacidade de decisão dos insetos sociais, cuja coordenação MASIO, 2011, p.348). Para que haja
(DAMÁSIO, 2012). está fortemente ancorada em instru- cultura é necessária a plasticidade
ções filogenéticas. Seus participan- estrutural, é preciso ser moldável
Poder, Sociedade e Cultura tes até possuem cérebros comple- pelas interações com o outro.
Quando organismos dependem xos, mas “de certo modo inflexíveis, Quando a reflexão, neste mo-
da comunicação entre si para asse- mento, passa a permear o campo
gurar o seu bem-estar, eles formam da sociologia, é oportuno citar que
uma unidade social. No caso do ho- a cibernética motivou a emergência

ser e agir socialmente aceitáveis


mem, a notável plasticidade estru- de abordagens sociológicas alter-
tural proporcionada pelo SNC pos- nativas pelas mão de nomes como
há um processo intencional que seleciona

sibilita que, no devir de gerações, Talcott Parsons (1902-1979), Geor-


os novatos tenham suas estruturas ge Homans (1910-1989), Walter Bu-
os padrões que produzem modos de

moldadas pelos adultos, de modo a ckley (1922-2006) e Niklas Luhmann


reproduzirem os comportamentos (1927-1998). A despeito de alguns
julgados adequados. Portanto, na críticos não serem capazes de dife-
condição de sistema, o grupo social renciar as contribuições científicas
força a manutenção das suas gran-
des correlações, desencadeando, por
meio de perturbações específicas e
intencionais, mudanças estruturais
no interior dos seus indivíduos.
Ao contrário da deriva natural,
há um processo intencional que se-
leciona, entre os padrões constan-
temente criados pela autopoeise in-
terneuronal, aqueles que produzem
modos de ser e agir socialmente acei-
táveis. Este processo acontece com
todos nós. Assim aprendemos a falar,
a ler e escrever. Assim somos mol-
dados para exibir o comportamen-
to de escovar os dentes depois das
refeições. A esses comportamentos
estáveis ao longo de gerações, ad-
quiridos de modo ontogenético pela
comunicação entre os entes de uma
unidade social, chamamos de “con-
dutas culturais” (MATURANA e VA-
RELA, 2001, p.223). A cultura não é

110 sinapse
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

da cibernética de primeira ordem em Clausura Operacional e dança no ambiente (levar o ar a 180o


relação às de segunda ordem, nesta Estratégias de Equilibração C) para satisfazer a sua lógica, a sua
última foi possível verificar a supera- Na Teoria da Reprodução Cul- coerência interna? Seguindo essa me-
ção de boa parte das maledicências tural de Pierre Bordieu (1930-2002) táfora, o SNC não faz a mesma coi-
contra o movimento cibernético. As e Jean-Claude Passeron, encontra- sa? Há evidências de que sim, com
críticas em geral se embasavam na mos o modelo teórico mais capaz de pelo menos uma diferença. A capa-
compreensão de que, embora a abor- explicar a ação do grupo sobre o in- cidade de simular a interação entre
dagem sistêmica de primeira ordem divíduo, na intenção de manter, por objetos simbólicos, a fim de produzir
se opusesse ao reducionismo carte- meio da cultura, as grandes correla- conclusões sobre eventos que não
siano, com ele compartilhava a mes- ções sociais. Tal pertinência, contu- foram concretamente observados,
ma visão mecanicista da vida (DUPUY, do, se dá em dura oposição à abor- permitiu ao homem experimentar
2000). Superada a visão mecanicis- dagem cibernética. Bordieu propor- soluções que igualmente não exis-
ta, a cibernética de segunda ordem ciona aos pesquisadores uma opor- tem, mas que podem se tornar rea-
continuou a exibir alguns aspectos tunidade preciosa de reflexão crítica, lidade a partir da sua ação sobre os
sujeitos a crítica sociológica. Dois ao rejeitar a autorregulação fechada elementos disponíveis no domínio da
deles são de interesse especial para proposta por N. Luhmann, (FERNAN- existência.
este trabalho: as questões da clau- DES, 2006, p.52). Diante dessa rejei- A atitude transformadora do am-
sura operacional e do poder. ção, ao mesmo tempo que se faz ne- biente se configura como uma estra-
cessário defender o caráter fechado tégia de equilibração por conformi-
dos sistemas nervosos, a partir das dade externa. As ideias, ao surgirem
evidências que a pesquisa neurobio- naturalmente, são selecionadas em
lógica de Maturana e Varela (2001) proveito da realização de uma visão
acumulou, se mostra igualmente de mundo em que o ambiente é modi-
oportuno distinguir duas caracte- ficado para atender as correlações
rísticas operacionais primárias, que internas do sujeito criador. Aos ele-
emergem das discussões realizadas mentos materiais que concretizam
por eles e por Damásio (2011), (1) os essa mudança no domínio da exis-
desequilíbrios internos do SNC ge- tência, chamamos de artefactos ou
ram ações palpáveis, que se tradu- próteses (BARTRA, 2014).
zem em comandos para os seus efe- Para alguns, por outro lado, a
tores, capazes de mudar o ambien- plasticidade neural estaria a servi-
te no entorno de modo concreto; (2) ço mais fortemente da imitação de
os SNC são sistemas autopoiéticos, comportamentos já estabelecidos
cuja autopoiese se dá pelo contínuo pela cultura vigente, numa estraté-
rearranjo dos circuitos neurais que gia de modificação das correlações
ocorre diuturnamente por meio de internas a fim de assegurar a coe-
fenômenos como a neurogênese e rência do interno com o ambiente
sinaptogênese. cultural. Desse modo, podem anga-
Rememorando o exemplo inicial, riar as recompensas que o grupo so-
podemos perguntar: o que o forno cial lhes oferece, pela manutenção
elétrico faz, não é realizar uma mu- de sua conformidade, assim como

julho • agosto • setembro 2016 111


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

evitar as punições advindas da não bém. Assim, dentro desse arcabou- mas de construção do conhecimen-
conformidade. Trata-se de uma es- ço, emerge como um conceito viável to. (4) Poder: inventário de opções de
tratégia de equilibração por confor- e operacional, o poder como um in- ação. Definição que guarda coerên-
midade interna. ventário de opções de ação. Em de- cia com o proposto pelos sociólogos
Nesse ponto retornamos a Bour- corrência, a liberdade seria, em es- Zygmunt Bauman e Tim May, ao afir-
dieu, para oferecer um contraponto, sência, o mesmo que poder. Mas não marem que:
constatando que a reprodução cul- um poder qualquer; mas um poder
tural não se dá sem resistência (DE suficiente para satisfazer a necessi- Compreende-se melhor o poder
VARES, 2011). Espera-se que, numa dade de equilibração de um sujeito. como a busca de objetivos livre-
unidade social, ocorram embates per- E quando o exercício de uma opção mente escolhidos para os quais
manentes entre perfis que buscam o de ação, por um, impõe a indisponi- nossas ações são orientadas e do
equilíbrio pela conformidade exter- bilidade de uma determinada ação, controle dos meios necessários
na e perfis que o fazem por meio da por outro, temos uma relação de po- para alcançar esses fins. O poder
conformidade interna. (CASTELLANI der de natureza weberiana. é, consequentemente, a capacidade
e HAFFERTY, 2009, p.183). de ter possibilidades. Quanto mais
Reconstruindo Definições poder alguém tem, mais vasto é o
Poder Fundamentais leque de escolhas e mais ampla a
O emprego do poder como con- A partir de Damásio (2011, 2012) gama de resultados realisticamente
ceito operacional foi rejeitado ou li- e Maturana e Varela (2001), será buscáveis. Ser menos poderoso ou
mitado por importantes cibernéticos possível dispor de algumas defini- não ter poder algum significa que
como Bateson e Luhmann. Para o pri- ções fundamentais, que podem ser talvez seja necessário moderar e
meiro o uso do conceito era censurá- colocadas a serviço das discussões até reduzir as esperanças realistas
vel e tóxico (BATESON, 1972, p.492), interdisciplinares em ciências so- em relação aos resultados das
para o segundo, de acordo com Si- ciais: (1) Conhecimento: a configura- ações. Assim, ter poder é ser ca-
mioni (2008, p.5) o poder “é um meio ção estrutural de um organismo ca- paz de atuar mais livremente, en-
de comunicação simbolicamente paz de produzir um comportamento quanto ser relativamente menos
generalizado, que disponibiliza à adequado para um contexto defini- poderoso, ou impotente, corres-
sociedade uma forma específica de do. (2) Competência: comportamen- ponde a ter a liberdade de esco-
comunicação para resolver o problema to adequado, para um contexto defi- lha limitada por decisões alheias
social de coordenação de ações”. É nido, concepção aderente ao modelo — de quem tenha capacidade de
o meio preferencial de comunicação do sociólogo e antropólogo Philippe determinar nossas ações. O exer-
dos sistemas políticos. Perrenoud (2013, p.45). (3) Aprendi- cício da autonomia de um indivíduo
Na perspectiva do mecanismo zagem: processo de construção de pode levar os demais à experiência
antecipatório, ou feed forward, a conhecimento, a partir da história de heteronomia. (BAUMAN e MAY,
realização da visão de futuro dese- de interações do organismo com o 2010, p.102)
jada se dá pela apropriada formula- ambiente, seja ele natural ou cultu-
ção e escolha das ações, dentro do ral. Assim a aprendizagem é tomada
inventário disponível. Um inventário como um fenômeno de natureza onto-
muito limitado de opções redunda- genética, em que os processos bioe- O autor é capitão de corveta da Marinha de
Guerra do Brasil e mestre em Defesa Civil
rá em menores chances de suces- létricos têm papel de destaque sem
pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
so. A incapacidade de decidir tam- constituírem, contudo, as únicas for- bragamartins@gmail.com

112 sinapse
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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julho • agosto • setembro 2016 113


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

114 Éffogo!
avela
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

o mais
queRido
DO BRASIL

a construção
de uma
nação
renato
soares
coutinho
historiador

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A temporada do futebol brasileiro em 2016 trouxe Mesmo diante desse cenário nada favorável, os atuais
novamente à tona uma antiga questão para a direção do gestores do clube não abdicaram da ideia de atuar em
Clube de Regatas do Flamengo: em qual estádio jogar as locais distantes do Rio de Janeiro. Mesmo reconhecen-
partidas como mandante? do o desgaste causado nos jogadores por conta das via-
De fato, o futebol rubro-negro enfrenta essa situa- gens, o presidente Eduardo Bandeira de Mello faz ques-
ção há tempos, desde a fundação do departamento de tão de ressaltar que “quem tem torcida em todos os es-
terra do clube. Nas primeiras décadas do futebol do Fla- tados não precisa se preocupar com esse tipo de coisa”.
mengo, o campo da Rua Paysandu, cedido pela Família É provável que essa afirmação tenha como objeti-
Guinle, foi a casa oficial da equipe. Quando o terreno foi vo evitar uma possível crise em função da falta do Ma-
requisitado pelos proprietários em 1932, o time de fu- racanã. No entanto, se observarmos o ranking das mé-
tebol voltou a perambular pelos campos da cidade até dias dos públicos do campeonato, podemos confirmar
a inauguração do seu primeiro estádio próprio, o Está- que no caso do Flamengo o problema da falta de campo
dio da Gávea, em 1938. A partir dos anos 1950, com a no Rio de Janeiro pode, sim, ser enfrentado sem gran-
construção do Maracanã, a equipe de futebol passou a des prejuízos. Mesmo sem jogar com o apoio da torci-
atuar com maior frequência no campo construído para da carioca, o clube ocupa a sexta colocação no ranking
a Copa do Mundo, especialmente em função da enorme com média de 20.021 torcedores,1 à frente de agremia-
capacidade de público das arquibancadas do estádio. ções populares como o Atlético Mineiro e o São Paulo,
Porém, com o passar dos anos, o estreito vínculo que contam atualmente com seus estádios. Fluminense
simbólico criado entre o clube e o Estádio Mario Filho e Botafogo, que enfrentam o mesmo problema com os
enfrentou sucessivos períodos de crise. Inúmeras re- principais estádios entregues para os Jogos Olímpicos,
formas, obras estruturais ou eventos de grande por- aparecem na décima sexta e décima oitava posições res-
te foram responsáveis pelo fechamento do estádio por pectivamente. De fato, o presidente do Flamengo tem os
longos períodos. O Estádio da Gávea, antigo, acanhado números ao seu lado. Mesmo jogando em Brasília, Natal
e sem iluminação para partidas noturnas, deixou de ser ou Vitória, o clube permanece apresentando uma média
uma opção viável para os jogos mais importantes. Por de público que indica a existência de torcedores espa-
conta disso, desde os anos 1990 o Flamengo vem enfren- lhados por todo território nacional.
tando sistematicamente o problema de ficar sem lugar Chegamos, então, ao problema que motivou a ela-
para jogar na cidade do Rio de Janeiro. A solução duran- boração deste texto.2 Como uma agremiação despor-
te essas fases sem campo para atuar em terras cario- tiva de um bairro da Zona Sul carioca se tornou capaz
cas foi e está sendo a mesma: colocar o pé na estrada. de arregimentar adeptos em todo o território nacional?
Em termos desportivos, a escolha de jogar fora da É consenso entre os institutos de pesquisa que no
sua cidade poderia representar a derrocada absoluta século XX o clube de futebol que conquistou o maior
de uma equipe. Especialmente no futebol, o mando de número de adeptos no Brasil foi o Clube de Regatas do
campo é decisivo. A porcentagem de vitórias dos clu- Flamengo. Com pequenas variações, as pesquisas de
bes visitantes que jogam sem os seus torcedores é his- popularidade mostram até hoje que o rubro-negro tem
toricamente mais baixa. Na maioria das vezes, o time uma grande penetração nacional, tendo um grande
que joga em seus domínios consegue triunfar. Além do contingente de torcedores espalhados principalmente
fator desportivo, não contar com apoio dos torcedores pelos estados nordestinos, nortistas e do Centro-Oeste,
representa também um grande problema financeiro. Em além da grande popularidade em Minas Gerais, Espírito
suma, jogar longe dos seus domínios pode significar um Santo e, é claro, Rio de Janeiro. A partir desses dados, a
enorme fracasso em campo e nas finanças. questão principal passa a ser entender porque especifi-

116 favela
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

camente o Flamengo conseguiu tamanha adesão popular. e entre os sócios e dirigentes do clube. Muitos atribuem
Algumas respostas apressadas tentam explicar o crescimento da torcida aos tempos do amadorismo,
esse fenômeno de popularidade nacional. A primeira quando o clube não tinha estádio e treinava na rua, fato
delas é a tese que destaca o perfil vencedor do clube, que despertava a atenção dos garotos que ajudavam a
que contou com craques como Zico e Junior na geração buscar as bolas que saíam do campo. Nessa perspecti-
que encantou o país na época que as transmissões te- va há presente a ideia de que o clube carrega o DNA da
levisivas cresceram. popularidade. Como se desde a fundação da instituição,
Há mais de um problema nessa perspectiva. O pri- nos tempos das regatas elegantes, o Flamengo fosse ca-
meiro deles é que o Flamengo não é um clube tão ven- paz de representar os valores correntes entre as cama-
cedor quanto a torcida rubro-negra gosta de exaltar. É das populares brasileiras.
claro que as equipes rubro-negras venceram campeo-
natos importantes, mas as principais vitórias do Fla-
mengo ocorreram em um curto espaço de tempo, que
durou entre 1978 e 1983, período que coincidiu com a
melhor fase do jogador Zico. O Flamengo conviveu ao o Flamengo
longo da sua história com esquadrões de maior longevi- não é um clube
dade, como o Vasco da Gama dos anos 1950 e o Santos
dos anos 1960 e 1970. Se as vitórias em campo justifi-
tão vencedor
cassem a popularidade, o time de Pelé certamente de- quanto a torcida
veria ter mais abrangência do que o Flamengo de Zico.
Outro aspecto negligenciado por essa tese é o fato
rubro-negra
de que o Flamengo já era o detentor dos maiores públi- gosta de exaltar
cos do futebol brasileiro antes do apogeu da Era Zico. Até
hoje, os três maiores públicos da história do clube per-
manecem sendo anteriores à geração que conquistou
todos os títulos. A maior assistência ocorreu em 1963, O primeiro problema dessa interpretação é que ela
na final do campeonato carioca contra o Fluminense, não possibilita a explicação da nacionalidade da torcida.
com cento e noventa e quatro mil pessoas no Maraca- Se a relação forjada na rua entre os torcedores e o clu-
nã. A segunda maior é de 1976, em um clássico contra be explica a popularidade, como entender a preferência
o Vasco da Gama. O terceiro maior público também foi pelo Flamengo em lugares como Manaus e Natal, onde
em um Fla x Flu, disputado em 1969 com mais de cento não havia essa relação direta?
e setenta mil pessoas no estádio.3 Mais complicado ainda é estabelecer uma rela-
Além dos maiores públicos, as excursões do Fla- ção consistente entre o Flamengo e os valores popula-
mengo pelo território nacional já nos anos 1940 e 1950 res nos tempos do amadorismo. As matérias veiculadas
mobilizavam milhões de adeptos brasileiros. As visitas na imprensa da época mostram como o Flamengo, as-
do Flamengo a Minas Gerais, Paraíba e Pernambuco, ge- sim como boa parte das instituições esportivas da Belle
ravam o interesse dos torcedores e da imprensa, que di- Époque, não tinha a menor pretensão de angariar sim-
vulgava à exaustão a paixão que o clube despertava nos patizantes nas camadas populares, e como seus even-
lugares mais distantes do Brasil. tos sociais eram altamente restritivos. Em outras pala-
A segunda tese que visa explicar a popularidade do vras, o Flamengo dos tempos da fundação se parecia
Flamengo faz mais sucesso entre analistas da imprensa muito pouco com aquilo que é hoje o clube mais queri-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

do do Brasil. Portanto, assim como a tese do clube ven- 1930. Enquanto jogadores da década de 1910 pratica-
cedor, essa perspectiva pouco pode explicar sobre os mente não constam nas escalações dos maiores times
motivos da popularidade do Flamengo. Permanecemos, do Flamengo de todos os tempos, os atletas da década
então, com a mesma questão: quais fatores contribuí- de 1930 possuem lugares cativos nas listas e homena-
ram para a popularidade e para a abrangência nacio- gens. É preciso, então, investigar o que ocorreu a par-
nal do Flamengo? Podemos começar a buscar as res- tir de 1930.
postas nos símbolos exaltados pelo próprio clube. Um Não por coincidência, muita coisa aconteceu no clu-
detalhe relevante que pode ser notado nas festividades be nessa década. Sem dúvida, a grande mudança foi a
e nas homenagens feitas pelo Flamengo na atualidade é vitória política do modelo profissional. O profissionalis-
o destaque dado a alguns nomes que fizeram história na mo, implantado no clube durante a gestão José Bastos
instituição. Ídolos como Leônidas da Silva,
Domingos da Guia, Zizinho e Dida são lem-
brados até mesmo por aqueles que não os
viram. Entre os dirigentes homenageados,
dois nomes são os mais celebrados: José
Bastos Padilha, nome oficial do Estádio da
Gávea, e Gilberto Cardoso, único dirigente
que tem uma estátua no clube.
É interessante perceber que os nomes
dos fundadores do clube e dos primeiros
jogadores da equipe de futebol costumam
ser negligenciados nas maiores homenagens
e permanecem desconhecidos por grande
parte da torcida. Nas listas dos maiores
jogadores do clube de todos os tempos, há
sempre a lembrança de Leônidas e Domingos
da Guia. Bahiano, Amarante e Gustavo, jo-
gadores da primeira equipe de futebol do
Flamengo, não costumam figurar nessas
listas. Como em qualquer instituição cen-
tenária, há aqueles lembrados e aqueles
esquecidos.
Uma breve investigação sobre a traje-
tória dos ídolos eternizados na memória do
torcedor permite uma constatação evidente:
todos pertencem ao período em que o clube
já era profissional; os lembrados construí-
ram suas trajetórias após os anos 1930.
Temos então um momento privilegia-
do para a constituição da memória do Clu-
be de Regatas do Flamengo: a década de

118 favela
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Padilha, não representou apenas uma revolução nos ta ao passado imemorial dos tempos amadores. Em um
rumos administrativos do clube. O clube nesse período complexo processo de construção da memória, o pas-
organizou um projeto de construção de novos símbo- sado amador e elitista passou a constituir o Flamengo
los identitários que permitiram reorganizar a relação profissional sendo lembrado como a fase embrionária
da instituição com a torcida. Ou seja, o profissionalismo da vocação popular da instituição.
gestado nos anos 1930 ocorreu em convergência com o Ao verificar que a década de 1930 foi um divisor de
processo de popularização da instituição. E foi a trans- águas na história do clube, foi inevitável associar o Fla-
formação das bases simbólicas da instituição ocorrida mengo com os acontecimentos políticos e sociais que
nos anos 1930 que forjou a memória popular do clube, também alteravam profundamente a história da socie-
atribuindo ao Flamengo um caráter popular que remon- dade brasileira. O processo de modernização autori-
tária levado adiante pelo Estado brasilei-
ro avançava ao mesmo tempo em que be-
nefícios materiais e simbólicos eram con-
quistados pelo operariado. As manifesta-
ções populares historicamente relegadas
à condição de caso de polícia – como a ca-
poeira, desfile de blocos carnavalescos, a
desconfiança em relação ao samba, entre
outros – começavam a encontrar nas ce-
lebrações cívicas espaços para a afirma-
ção da sua legitimidade. O pertencimento
à nação passava a ser nos anos 1930 uma
estratégia de reconhecimento dos valores,
tradições e anseios dos trabalhadores, bem
como da própria cultura popular. Estado e
trabalhador haviam encontrado um voca-
bulário adequado para o reconhecimento
mútuo: o nacionalismo.
Atento a essas transformações sociais,
o Flamengo foi o primeiro clube de futebol
no Brasil que se apropriou do bem-sucedi-
do discurso nacionalista estatal. Através de
campanhas de marketing e ações sociais,
o antes clube refinado passou a dialogar
com os setores populares, reivindicando
o posto de clube representante da nação.

O Flamengo da fina flor carioca: o


rubro-negro nos tempos do amadorismo
Não é exagero afirmar que o Clube de
Regatas do Flamengo foi fundado em 1895

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

e reinventado nos anos 1930. O clube de regatas, que um dia, quando se mergulhar de verdade nos fatores que,
nasceu grupo de regatas na última década do século historicamente, ajudaram a consolidar a integração na-
XIX, pouco parecia com o clube que se tornou nos dias cional, o Flamengo terá de ser incluído. Durante todo o
atuais: o representante da brasilidade popular. Mes- século XX, ele uniu gerações, raças e sotaques em torno
mo o departamento de terra, criado em 1911 por joga- de sua bandeira. Ao inspirar um rubro-negro do Guapo-
dores de futebol oriundos do Fluminense Football Club, ré a reagir como um rubro-negro do Leblon (com os mes-
surgiu preso aos valores do “refinamento civilizado” eu- mos gestos e expletivos, e no mesmo instante), o Flamen-
ropeu. Por isso a ênfase deste texto está na década de go ajudou a fazer do Brasil uma Nação.5
1930, pois apenas nesse momento o Flamengo passou
pelo processo de reinvenção dos símbolos que permi-
tiram a superação dos valores racistas e elitistas que
norteavam as ações do clube nos seus primeiros anos.
Em paralelo às transformações simbólicas que apro- Segundo João do
ximavam o clube dos símbolos populares, ocorreu a pro-
fissionalização do departamento de futebol do Flamen-
Rio, a cidade do
go. Por isso a era amadora, anterior à década de 1930, Rio de Janeiro tem
pode ser associada ao período elitista do clube.
Entretanto, a memória exaltada pelo clube e por es-
uma dívida com
critores que se dedicaram a narrar a trajetória da ins-
tituição normalmente não faz a distinção dessas duas
o Flamengo
fases. Ao contrário, as narrativas sobre o Flamengo têm
por hábito reproduzir a ideia de que a popularidade do
clube foi gestada nos tempos do remo, e que de manei-
ra progressiva ganhou força com o crescimento do fu- Portanto, seria um despropósito acusar o autor de
tebol. Em outras palavras, essa perspectiva atribui ao falta de rigor metodológico ou algo parecido, quando o
clube a marca da popularidade desde a sua fundação. próprio admite faltar ainda um trabalho consistente so-
Talvez o escritor que tenha conseguido contribuir bre o tema. Preciso como costuma ser nos seus textos,
mais para a difusão de alguns mitos sobre a origem po- Castro fez o que lhe cabia nessa publicação: reproduzir
pular do clube seja Ruy Castro. No início dos anos 2000, a história que o clube inventou para si.
a Editora DBA lançou uma coleção chamada “Camisa 13”. Na perspectiva tradicional apresentada por Castro,
Com intuito de fortalecer o mercado de publicações de- o Flamengo nasceu popular, desde as regatas. As difí-
dicadas ao futebol, a editora selecionou autores concei- ceis condições dos remadores, o caráter gozador dos
tuados para escrever de maneira acessível a história seus primeiros sócios, a falta de um campo de futebol
dos principais clubes de futebol do Brasil. Um dos pri- para treinar quando o futebol foi implantado e a rivali-
meiros livros lançados foi O Vermelho e o Negro: a pe- dade com o Clube de Regatas Vasco da Gama estão na
quena grande história do Flamengo.4 Ruy Castro narra raiz da popularidade do clube. Em suma, o clube, que hoje
de maneira fascinante o desenrolar da trajetória do clu- movimenta milhões de torcedores no país, construiu as
be rumo ao topo da adesão popular. Mas o próprio autor bases da sua popularidade na Zona Sul carioca duran-
deixa claro que a obra não pretendia fazer um mergu- te a Belle Époque. Para o autor, “o remo era popular e,
lho analítico profundo. Numa das passagens mais em- ao mesmo tempo, chique”.6 E as rivalidades e disputas
blemáticas, ele afirma que simbólicas ocorridas nesse esporte foram transmitidas

120 favela
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

para o futebol quando este se disseminou. A passagem ranger os dentes com essa ideia, mas, ao ter acendido
do público do remo para o futebol ocorreu de maneira os brios nacionalistas do carioca, o Vasco foi um dos
linear, sem representar uma grande alteração social no responsáveis pela súbita e avassaladora popularida-
perfil daqueles que assistiam às regatas e daqueles que de do Flamengo”.9
assistiriam ao futebol algumas décadas depois. De fato, os vascaínos devem questionar a ideia. Isso
No mesmo parágrafo que Castro caracteriza o remo porque, além do clube cruzmaltino não estar associado
como “popular”, ele descreve as regatas como grandes ao lusitanismo nos tempos das regatas, também não é
festas e banquetes promovidos por ricos que abriam as possível pensar na brasilidade popular do Flamengo na
suas portas. “As provas eram prestigiadas por políticos, época, na medida em que o clube fazia questão de re-
industriais, banqueiros, escritores e até pelo presidente presentar os valores de uma “civilização superior” eu-
da República.”7 Ou seja, o público era composto majorita- ropeia. O exercício físico, exaltado por João do Rio como
riamente pela elite carioca. Nesses termos, parece que núcleo irradiador da paixão pelo esporte, tinha como es-
o autor utiliza a palavra “popular” como é regularmente copo preparar o corpo e a mente para os regramentos
usada na linguagem cotidiana, no sentido de “querido”. de uma sociedade ilustrada. Aliás, o caráter pedagógi-
É verdade que Castro não se propõe a discutir o signifi- co do esporte, a racionalidade do preparo do corpo e os
cado de “popular”. Mas essa ressalva é necessária, pois cuidados com a higiene eram práticas de uma elite que
é no mínimo discutível a associação entre o público das visava se diferenciar daquilo que era entendido como
regatas na Primeira República com as torcidas de fute- Brasil. É sabido que Brasil e mestiçagem eram sinônimos
bol, que se consolidaram nos anos 1930. de atraso para a intelectualidade do final do século XIX.
Visando afirmar a associação entre a paixão pelo O historiador Leonardo Pereira no livro Football-
remo e as apaixonadas torcidas de futebol, Castro cita mania nos mostra como também o futebol nasceu con-
João do Rio para ressaltar a proeminência do Flamen- dicionado por essa visão evolucionista que relacionava
go nos tempos das regatas. Segundo o cronista, a cida- esporte com civilização.
de do Rio de Janeiro tem uma dívida com o Flamengo,
pois “dali partiu a formação das novas gerações, a glo- Se os primeiros sócios do Fluminense já tinham definido
rificação do exercício físico, para a saúde do corpo e a para ele a marca do refinamento, os entusiastas do jogo
saúde da alma... Foi o núcleo de onde irradiou a paixão iam, com o tempo, sofisticando sua imagem: criando uma
avassaladora pelo esporte”.8 terminologia própria, definindo códigos de conduta com-
Ou seja, segundo os autores mencionados, do remo partilhados e concretizando através dos seus uniformes
surgiu o sentimento responsável por arrebatar milhões importados a aparência refinada que pretendiam assu-
de pessoas que se envolveram com o futebol pelo país mir, reforçavam a imagem restritiva e excludente do jogo
afora. Nas festas endinheiradas das regatas foram ges- – que garantiria aos seus poucos praticantes o papel de
tados os símbolos que comporiam o imaginário espor- vanguarda da civilização.10
tivo brasileiro no século XX. Exemplo mais emblemáti-
co – e discutível – escrito por Castro: o nacionalismo. Não era possível pensar em clubes populares ba-
Segundo Castro, nas disputas entre Flamengo e seados em sentimentos nacionalistas num momento em
Vasco nas regatas, surgiu a rivalidade que relaciona- que as práticas esportivas estavam circunscritas a gru-
ria o Flamengo à brasilidade e o Vasco ao lusitanismo, pos sociais vinculados a um imaginário elitista e evolu-
despertando nos torcedores o sentimento nacionalis- cionista. Esse Flamengo apresentado por Castro é um
ta que daria ao Flamengo a condição de preferido dos mito que negligencia um aspecto fundamental da histó-
brasileiros. O autor afirma que “os vascaínos podem ria do desporto no Brasil: a popularização dos esportes

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

e das torcidas não ocorreu dentro dos clubes. Ao con-


trário, os quadros sociais e atléticos dos clubes da cida-
de permanecem sendo espaços bastante restritos até
os dias atuais. Apenas o futebol, esporte que se profis-
sionalizou em meio à ferrenha disputa entre dirigentes
esportivos amadoristas e profissionalistas, se espraiou
pelas camadas populares. E esse processo, único entre
os esportes brasileiros na forma como foi conduzido, não
ocorreu nos tempos das regatas ensolaradas da Belle
Époque. Em outras palavras, o futebol a partir do profis-
sionalismo representou uma severa ruptura com tudo
que o remo representava. E por essa razão, remo e fute-
bol, apesar de praticados nos mesmo clubes, não com-
partilham torcidas, nem mídia, e muito menos uma his-
tória que apresente similaridades em suas trajetórias.
Todavia, vale repetir que este Flamengo mitológico
não foi inventado por Castro, e sim reproduzido. A inven-
ção da memória popular do Flamengo ocorreu no mes-
mo momento em que o clube se associou aos símbolos Festeja hoje o 17º anniversario de sua fundação o vete-
populares. Reinventar o passado era parte fundamen- rano e fidalgo Club de Regatas do Flamengo. Fundado a
tal no processo de transformação da instituição, e a im- 15 de novembro de 1895 por uma plêiade de enthusias-
prensa esportiva contribuiu para a difusão de um “pas- tas sportsmen, entre os quaes Augusto Lopes, Mario Spi-
sado novo”. Mas antes do Flamengo popular, represen- nola, Jose Felix de Menezes, Napoleão Coelho de Oliveira,
tante das camadas menos favorecidas da nação, outro José Agostinho Pereira da Cunha e Mauricio Pereira, o
clube existia. Um clube de ídolos hoje desconhecidos, de Flamengo tem prestado os mais relevantes serviços ao
feitos esquecidos. Um clube com idiossincrasias que fo- desenvolvimento e progresso do sport náutico entre nos.
ram renegadas após a década de 1930. Um clube que Constituído pela fina flor (grifo meu) dos nossos sports-
foi apagado pela memória que se forjou em seu proje- men, com um passado cheio de glorias, com uma historia
to de popularização. Um clube elitista, representante da que se confunde com a própria historia do rowing flumi-
fidalguia carioca. nense, o sympathico centro de regatas da praia do Fla-
É interessante notar como a imprensa veiculava as mengo é justamente considerado como um dos mais for-
imagens referentes ao clube antes da sua profissionalização tes sustentáculos da nossa canoagem.11
e popularização. O Flamengo clube do povo, da paixão
ensandecida, o mais querido do Brasil, era, até meados O refinamento dos associados era a marca do clu-
dos anos 1930, o clube da “fina flor” carioca, o clube da be. Gustavo de Carvalho, primeiro artilheiro da história
força de vontade. Não apenas no remo, mas também do Flamengo, foi titular do time apenas entre maio e ju-
no futebol, o clube era respeitado pela elegância e pela lho de 1912. Motivo: ele se mudou para a Inglaterra para
disciplina dos seus atletas associados. No primeiro ani- cursar engenharia.12 Seguindo caminho inverso, Mode-
versário do clube após a criação do departamento de ter- rato, ídolo do clube nos anos 1920, veio de Porto Alegre
ra, que deu origem ao time de futebol, o Jornal do Com- para o Rio de Janeiro para cursar a Escola Politécnica
mercio assim anunciou os festejos: e por conta disso ingressou no clube. Em 1932, às vés-

122 favela
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

senhoritas”.14 Sobre o mesmo jogo, o Correio da Manhã


comentou que “o field da Guanabara encheu-se de uma
sociedade fina e elegante, ciosa de observar o mais im-
portante matches até agora realizados nesta capital”.15
Mesmo com a crescente rivalidade dos clubes, o
comportamento visto como adequado nos tempos do
amadorismo era o do assistente de um espetáculo. Vale
ressaltar, como mostra o historiador Leonardo Pereira,
que nem sempre esse comportamento adequado era
peras do profissionalismo, o Jornal dos Sports ainda seguido pelos espectadores. Há relatos de brigas e in-
exaltava o Flamengo da fina flor. Na aquisição do defen- vasões de campo já nos primeiros anos do campeonato
sor Almir, o periódico destacou que “Almir, que é estu- da Liga Metropolitana. Mas os casos de transgressão
dante de medicina e tem apenas 19 anos de idade, vae da ordem acabavam por reforçar o discurso de exalta-
formar a seguinte linha de forwards, constituída exclu- ção daquilo que era entendido como o ethos do verda-
sivamente de futuros médicos: Adelino, Almir, Eloy, Vi- deiro sportsmen: a civilidade. Em 1916, após uma briga
centino e Cássio”.13 no bairro da Saúde, o Correio da Manhã noticiou que a
Enquanto os jogadores permaneceram amadores e desordem nos campos de futebol estava desmoralizan-
associados ao clube, a carreira era motivo de orgulho. do o sport de maior predileção do povo civilizado.16 A
Ser médico, advogado, engenheiro, conferia status su- exceção acabava por confirmar – e divulgar – a regra.
perior ao fato de ser bom de bola. Não à toa os jogado- A imagem do torcedor ativo, capaz de interferir no
res não abriam mão das suas formações. andamento da partida em disputa, era ainda incipien-
Não apenas os jogadores eram exaltados por conta te no imaginário esportivo nos tempos do amadoris-
dos hábitos refinados. Também o público dos jogos mo. Os casos de polícia nos indicam a tensão existente
merecia destaque pela elegância. Num match disputa- nesses eventos, mas a regra do assistente era ser par-
do entre Flamengo e América, o jornal A Gazeta de Notí- te passiva do jogo. E essa visão era compartilhada por
cias fez questão de mencionar que “na assistência, que imprensa, clubes e jogadores, que invariavelmente re-
era seleta (grifo meu), notavam-se muitas senhoras e clamavam da participação dos espectadores através de

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vaias e aplausos. O torcedor ativo, valorizado por apoiar as garagens na concentração da torcida, mesmo sen-
a equipe, é uma construção posterior, que somente se do sócio do clube. Diante disso, como supor que um ho-
consolida na medida em que o torcedor comum, que não mem comum do Rio de Janeiro, que assistia aos treinos
mantém nenhuma relação institucional com o clube, co- do clube na praia, podia fazer parte da torcida nos tem-
meça a ser reconhecido como parte integrante majori- pos do amadorismo?
tária das torcidas. Mais complicado ainda é enxergar algum processo
Nas primeiras décadas do século XX, o bom espec- de ampliação territorial da torcida nesses tempos, já que
tador era acima de tudo regrado pelas convenções da o conceito de sócio-espectador exigia a participação do
boa etiqueta. E por conta desses requisitos que eram indivíduo na vida social do clube. Aliás, os maiores indi-
necessários ao bom espectador, não é difícil relacionar cadores de que a popularização do clube não se iniciou
esse ideal civilizado ao perfil do sócio do clube. Na época nas décadas de 1910 e 1920 são os jogos nos bairros
do amadorismo, o público era composto quase em sua da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. O Flamengo
totalidade pelo quadro de associados. No Flamengo, era sofria represálias em estádios que hoje são ocupados
hábito reunir-se na garagem de remo do clube para se- sem grandes dificuldades pela torcida nos dias de jogos.
guir em grupo para os jogos do time de futebol. Por este Em 1932, no bairro de Olaria, o Flamengo disputou uma
motivo, enquanto o quadro social permaneceu sendo o partida como visitante e não dispensou críticas aos as-
agente organizador do público assistente, não é possí- sistentes locais. Flamengo perde em Olaria e volta re-
vel considerar a existência de um Clube de Regatas do clamando, estampava a manchete:
Flamengo popular, como propõem Ruy Castro e outros
escritores que se dedicaram a narrar a história do Fla- Próximo ao gol de Fernandinho parecia um verdadeiro
mengo. Isto porque para ser sócio do clube era preciso front. Fui obrigado a pedir ao nosso director sportivo que
pagar uma mensalidade que não estava de acordo com mandasse guarnecer o nosso arqueiro, pois os assisten-
a renda das camadas populares. E mesmo para aque- tes lhe arremessavam tudo que tinham as mãos: pedras,
les que podiam pagar, as exigências não eram poucas. A cascos de laranja, garrafas, o diabo!18
história de Zé Augusto, um professor da Escola Politéc-
nica que cresceu dentro do clube praticando atletismo, As reclamações de Rubens, capitão do time, deixam
retrata o que eram essas dificuldades de pertencimento. claro que ainda no início década de 1930, até mesmo o
bairro de Olaria, próximo ao Centro da cidade, repre-
Zé Augusto tinha ido para o Flamengo ainda garoto. Era sentava um domínio distante da sua casa.
garoto, garoto não fazia mal que fosse preto. Mas o ga- O clube amador, ainda restrito à Zona Sul da ci-
roto cresceu, aí o Flamengo reparou na cor dele. Não ti- dade, precisava levar os seus adeptos aos bairros do
nha nada contra ele, pena que ele não fosse branco. Zé subúrbio, que seguiam em caravana junto com a equi-
Augusto nunca apareceu no rinque de patinação em noi- pe. O crescimento das caravanas representou inclusi-
te de festa. Sabia que se aparecesse muita gente ia falar. ve um marco na diferenciação dos significados atribuí-
O rinque de patinação era mais do futebol... Como não se dos ao público dos jogos. As experiências de cruzar a
metia a jogar futebol, Zé Augusto não se metia a dançar. cidade em comboio para apoiar os jogadores em cam-
Ele só ficara no Flamengo porque não jogava futebol, não pos adversários renderam as primeiras manifestações
dançava, isto é, não chamava muita atenção.17 de exaltação da torcida como fator determinante para
o rendimento do time. Mesmo sendo ainda uma típi-
Certamente um sujeito que não dançava nas fes- ca prática de associados, a caravana contribuiu para
tas, que não jogava futebol, também não frequentava o início da mudança da representação do verdadeiro

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torcedor na imprensa esportiva. Entusiasmados com da que se elevaria com o profissionalismo, a fim de mo-
a dedicação dos associados, os jornais começaram a tivar os jogadores do clube, teria um perfil social com-
destacar o valor da “torcida”, mesmo quando esta apa- pletamente distinto.
recia ainda entre aspas. Mas antes de falar dos novos significados da torcida
nos tempos do profissionalismo, insisto no ano de 1932.
Mais uma vez ficou provado o valor da “torcida” nos jogos Isto para que fique claro que o clube, representado por
de football do nosso campeonato. Deu o exemplo a pug- dirigentes e associados, fez questão de prolongar ao
na Andarahy X Flamengo. É que os andarahyenses eram máximo o amadorismo elitista que era a marca do Fla-
tidos como favoritos por jogarem em seu próprio cam- mengo desde a sua fundação. As teses que pressupõem
po, com sua torcida a animá-los. Mas o Flamengo soube a progressiva popularização do clube desde a sua fun-
evitar o desagrado aos seus players de terem que jogar dação são colocadas em xeque quando as ações do clu-
sem que sua “torcida” os incitassem: levou-a consigo, be às vésperas do profissionalismo são trazidas à tona.
numa caravana alegre, enthusiastica e animadora para Por exemplo, em janeiro de 1932, o remo realizou
os seus jogadores...19 uma façanha sem precedentes no clube. Três remado-
res conseguiram navegar do Rio de Janeiro à cidade de
Santos. Após sofrerem com uma tempestade na região
de Paraty, Angelú, Engole-Garfo e Boca Larga lograram
A popularização chegar sãos e salvos no litoral paulista. Esse feito foi ce-

do flamengo
lebrado até mesmo pelo Presidente Getúlio Vargas, que
enviou saudações ao “glorioso” Clube de Regatas do Fla-

ocorreu somente mengo. No retorno da tripulação rubro-negra ao Rio de


Janeiro, a direção do clube programou uma grande fes-
a partir da ta de recepção. Em nota oficial publicada na imprensa,

profissionalização a direção do clube solicitou “para o desembarque dos


vitoriosos remadores... o comparecimento dos seus só-
do clube cios e de suas excelentíssimas famílias”.20
Se para a imprensa esportiva a palavra “torcida”
aparecia entre aspas ainda nos primeiros anos 1930,
O termo “torcida” só começou a perder as aspas para a direção do clube a entidade “torcida” nem con-
anos depois, após a consagração dos concursos de tor- vidada estava para uma das mais importantes celebra-
cedores promovidos pelo Jornal dos Sports em 1936. ções do clube. A multidão instada a receber os heróis
Em 1932, ano que merece destaque por ter sido a última nos braços, segundo a direção, era composta pelos as-
temporada amadora do C. R. F., as tensões oriundas das sociados e suas famílias. Em nota oficial, a direção sin-
transformações promovidas pelo debate profissionalis- tetizava aquilo que os amadoristas pensavam: os re-
tas X amadoristas ainda combinavam elementos simbó- presentantes do clube eram os “associados civilizados”.
licos do football amador com o futebol profissional que
se fortalecia. Por isso a torcida civilizada, formada pela O Flamengo mais querido do Brasil: o clube
fina flor da elite carioca, começava a ser exaltada não e o processo de profissionalização do futebol
pelos hábitos polidos, mas pela capacidade de motivar Até agora, o objetivo principal foi mostrar que a po-
os atletas. Porém, a fina flor estava curtindo seus últi- pularização do Clube de Regatas do Flamengo não ocor-
mos dias como representante da agremiação. A torci- reu antes de 1933. A popularização ocorreu somente

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a partir da profissionalização do clube. Sendo assim, o Roberto Marinho, do jornal O Globo e José Bastos Padi-
clube esquecido dos tempos do amadorismo em nada se lha, presidente do Flamengo, apoiaram Mario Filho na
diferenciava dos outros clubes elitistas da cidade. Diri- compra do JS.
gentes e associados eram tratados pela imprensa es- A relação entre Padilha e Filho não tinha um caráter
portiva como símbolos de um sport promotor do espí- somente empresarial. Os dois eram amigos, cunhados e
rito civilizado europeu. O Flamengo não carrega o gene compartilhavam do mesmo posicionamento em relação
da popularidade, como costumeiramente afirmam os ao fim do amadorismo e a consolidação do profissiona-
estudiosos do clube. lismo no futebol brasileiro. Para eles, a ação do Estado
Mas qualquer pesquisador que tiver a curiosidade era imprescindível no processo de transição do modelo
de observar os jornais esportivos dos anos 1930, es- de gestão do futebol.
pecialmente o Jornal dos Sports, poderá perceber que
a imprensa mudou completamente a maneira como en-
tendia e divulgava o clube ao longo dessa década. Está
claro que uma das hipóteses deste texto é que essa mu- As principais
dança está intimamente associada ao profissionalismo
e à gestão do presidente José Bastos Padilha, que im-
ações de marketing
plantou o regime profissional.
O antigo clube, refinado e civilizado, representado
do Flamengo
pela fina flor da elite carioca, passou em menos de cin- contaram com
co anos por uma transformação que o conduziu a sím-
bolo da brasilidade mestiça e popular. Essa transforma-
a parceria e a
ção pode ser verificada pela maneira como a imprensa divulgação do
esportiva fazia referências ao clube antes e depois de
1936. É claro que já em 1934 e 1935 havia manchetes
Jornal dos Sports
de um novo Flamengo que se fortalecia e se reinventava
com o profissionalismo. Mas a combinação de ações de
marketing com cobertura jornalística pode ser encon- A chegada de Filho ao Jornal dos Sports modificou
trada apenas a partir de 1936. inteiramente o perfil e o conteúdo das coberturas jor-
As principais ações de marketing do Flamengo conta- nalísticas. A primeira mudança foi a elevação do fute-
ram com a parceria e a divulgação do Jornal dos Sports. bol à condição de principal esporte. A segunda e mais
E isso não foi por acaso. A história do periódico se con- importante mudança ocorreu em relação a “qual” fute-
fundiu com a do clube a partir do dia 17 de outubro de bol se tornaria o protagonista do jornal. Quando digo
1936, quando o jornalista Mario Filho adquiriu o jornal. “qual”, faço referência ao seguinte problema: o futebol
Até 1936, Mario Filho, que anos depois se tornou a seria abordado no jornal a fim de exaltar o caráter ci-
maior referência do jornalismo esportivo, estava no jornal vilizador do desporto ou o futebol divulgado pelo jornal
O Globo, da família Marinho. Em O Globo ele comandava seria o símbolo da brasilidade popular, marca da ascen-
a seção de esportes. Mas em 1936, em meio ao debate são de uma nação moderna?
sobre a profissionalização do desporto brasileiro, Filho Quero ressaltar que a pergunta acima está in-
contou com o apoio de dois empresários para poder ad- timamente ligada ao processo de profissionalização
quirir o seu próprio jornal, o Jornal dos Sports. Vendo do desporto. Ou seja, o debate entre os defensores do
que o JS não passava por um bom momento financeiro, amadorismo e os defensores do profissionalismo ex-

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plicitava o mesmo problema descrito acima: o que é, e Um episódio cívico no próximo Fla-Flu. A directoria do
para que serve o futebol brasileiro? Para civilizar ou CR Flamengo, em sua reunião da noite de hontem, as-
para integrar? sentou providências no sentido de ser executado no
Não é difícil pensar que ao defender o profissiona- próximo domingo em pleno estádio do Fluminense o
lismo, o Jornal dos Sports de Mario Filho estivesse ne- hymno Nacional. Como se sabe, de accordo com recen-
cessariamente mudando o olhar sobre a função social te decreto do Governo, em todas as reuniões e festivi-
do futebol. Isso porque o profissionalismo encerrava ne- dades cívicas, ou sportivas que reúnam público, se tor-
cessariamente com um aspecto do futebol amador: as ne obrigatório, ao início ou ao encerramento, a execu-
proibições formais e informais de participação dos jo- ção do Hymno símbolo. Cabe assim, ao glorioso rubro-
gadores negros e de origem pobre nos principais clubes negro, a iniciativa da execução dessa demonstração
da cidade. Nos tempos do amadorismo, a grande polêmi- cívica. Desejando emprestar ao facto cunho do maior
ca que envolveu criações e dissoluções de ligas e clubes brilhantismo o grêmio do Sr. Bastos Padilha convidara
foi a questão da participação de jogadores não associa- a se fazerem presente não só o chefe da Nação, como as
dos aos clubes, que precisavam ser remunerados para altas autoridades civis e militares do país.22
jogar. O argumento que defendia o vínculo apenas afeti-
vo dos jogadores ao clube na verdade fazia com que jo- É importante destacar que o jogo era no campo
gadores oriundos das camadas menos abastadas, que do Fluminense. Mesmo havendo um decreto que exigia
necessitavam trabalhar para prover suas vidas, ficas- a execução do hino, coube à direção do Flamengo a
sem alheios às disputas dos campeonatos. organização do evento, que contou com a presença
Dessa forma, o JS foi o primeiro periódico que ao do presidente do país. Além disso, o acontecimento foi
defender abertamente a sua adesão ao projeto de fute- utilizado como símbolo da aproximação do clube com o
bol profissional, passou também a defender a integração sentimento de nacionalidade, movimento que não podia
de jogadores de origem popular nos clubes da cidade. E ser verificado nos tempos do amadorismo.
essa defesa é vista não somente através da campanha Em novembro de 1936, uma nova campanha foi lan-
pelo fim do amadorismo, mas principalmente pela exal- çada pelo clube com apoio do JS. Em menos de um mês
tação da participação desses novos agentes sociais no como diretor do jornal, Filho organizava a segunda cam-
universo simbólico do desporto nacional. panha em associação com o Flamengo. Nessa ocasião o
Foi nesse contexto de transformação do significado clube premiaria a melhor fotografia tirada por qualquer
social do futebol que ocorreu a primeira grande ação de membro da imprensa.
marketing realizada pela direção do Flamengo visando
associar o clube à Nação. Em outubro de 1936, às vés- O Flamengo resolveu prestar uma homenagem aos pho-
peras da partida contra o Fluminense, o JS divulgou que tographos do Rio – a esses auxiliares indispensáveis da
os rubro-negros cantariam o hino nacional antes da par- imprensa moderna – instituindo um concurso interes-
tida. Se hoje essa prática parece corriqueira, até 1936 santíssimo sob o patrocínio do JS. Trata-se de premiar a
não havia registro de nenhuma mobilização orquestrada melhor photografia sobre qualquer actividade do Flamen-
para que a torcida cantasse uníssona alguma canção, go, social ou sportiva, sobre qualquer acontecimento.23
ainda mais o hino nacional. Para essa demonstração de
civismo, foram impressos dez mil exemplares da letra do Na cerimônia de abertura do evento, um cartaz in-
hino para que fossem distribuídos para a assistência.21 dicava qual era a temática central da campanha. “Uma
Nos dias que antecederam ao jogo, enquanto a direção vez Flamengo, sempre... Tudo pelo Brasil!”24 era a cha-
do clube organizava o evento, o JS divulgava: mada da campanha das fotografias. Mais importante do

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que fotografar conquistas desportivas era registrar o sport brasileiro. Quando um club attinge a um certo de-
perfil, a imagem do clube. E por isso as fotos enviadas senvolvimento, quando seu nome fica ligado estreitamen-
para o jornal foram quase todas ligadas aos torcedores te ao sport nacional, não se deve nem se póde separar
e não aos jogadores. uma coisa da outra. Ambas se completam na conquista
Uma das fotos que foi publicada no JS era do então de um único ideal. Convém salientar sobretudo, que o Fla-
promissor jornalista Roberto Marinho. O alvo da câmera mengo vale como um symbolo. As energias da raça ali se
de Marinho também foi a torcida, pois “como uma coisa desbordam sem conhecer barreiras. E o enthusiasmo, a
e outra perdia-se na multidão imensa que superlotava abenegação, o esforço continuo, sem tréguas, é a chama
o estádio do Fluminense, ele focalizou em um dado mo- não se extingue.27
mento três torcedoras do Flamengo...”.25
As outras fotos publicadas e premiadas preservavam A representação da nação precisava nesse momen-
as mesmas características. Mostrar o público, exaltar to ser feita não pela elegância, mas pelo clube símbolo
a multidão ou o comportamento entusiasmado das pes- das energias da raça brasileira. Raça que constituía uma
soas que torciam e lutavam pelo clube. Crianças fazen- nação jovem, que se reinventava, assim como o clube.
do uma pipa com o distintivo do Flamengo, uma senhora
cosendo o escudo do Flamengo no peito de uma blusa, Há clubs jovens e clubs velhos. O Flamengo é o clube moço,
mulheres escolhendo e joias e entre elas uma que prefe- de energias que renovam sem cessar. Quarenta e um an-
re o escudo do Flamengo às joias, adultos e crianças no nos – eis a vida do Flamengo. O mesmo
aniversário do Flamengo embebedando um macaco – a enthusiasmo perdura, a mesma fé. Ape-
legenda da foto dizia: “bebendo a saúde do Flamengo”.26 nas esse enthusiasmo dispersivo antes,
Ao final do concurso, a foto vencedora simbolizou apparece agora controlado, organizado,
exatamente aquilo que jornal e clube queriam exaltar como as águas de uma repreza.28
como o retrato do Flamengo. Hans Peter Lange tirou uma
fotografia de dois operários, com equipamentos de se- O entusiasmo se organizava na for-
gurança, trabalhando na construção do Estádio da Gá- ma de torcida, renovada e organizada. In-
vea, que se tornaria a casa do Flamengo dois anos de- ventava-se o jeito novo de torcer, de ser
pois. Os dois operários não posaram para a fotografia, adepto de um clube, na mesma medida
não vestiam a camisa do clube, mas representavam o em que se afirmava qual era o jeito ve-
novo perfil social do torcedor do clube: o trabalhador. lho. E esse jeito novo permitiu a inclusão
Mais uma vez nação e trabalho se misturavam às ações de grupos sociais que comporiam a nova
de marketing do Flamengo. Essa combinação foi a mar- torcida. O discurso nacionalista, adotado
ca do clube a partir da segunda metade dos anos 1930. como estratégia de inclusão, permitiu a
Após o evento do hino nacional e da campanha das fo- participação dos novos grupos sociais da
tografias, clube e JS não perderiam a chance de enfatizar nova nação. E esses novos grupos, ma-
o caráter nacional do Flamengo nas comemorações do joritariamente compostos por trabalha-
seu aniversário, no dia 15 de novembro. Na edição co- dores urbanos, passaram a lotar as ar-
memorativa, o periódico destacou sem medir palavras quibancadas não mais sendo o símbolo
o processo de nacionalização do clube. do desvio; mas como representantes do
novo brasileiro. Nesse sentido, a associa-
A data de hoje não pertence somente ao Flamengo – per- ção da nação com o projeto de populari-
tence também – e deveríamos dizer principalmente – ao zação do clube foi fundamental. O primei-

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ro elemento aglutinador do homem comum que passava Dentro de campo, a equipe repleta de grandes jo-
a frequentar o estádio foi o nacionalismo. O trabalhador gadores havia feito uma campanha valorosa em 1936.
urbano, repleto de sentimento nacionalista, motivado Ficou em segundo lugar, tendo perdido o campeonato
pela ascensão de um Estado Nacional que abria canais apenas no jogo desempate contra o Fluminense.
de diálogo e concedia benefícios simbólicos e materiais, Fora de campo, o clube organizava lançamento da
encontrou um motivo inicial para aderir às cores um clu- primeira campanha de caráter pedagógico promovida
be: o pertencimento à nação. O Jornal dos Sports inves- pelo clube. O programa de educação física e cívica anun-
tiu, com muito sucesso, nesse projeto. Mas não apenas ciava a preparação de milhares de crianças que forma-
ele. O presidente do Flamengo na época, José Bastos Pa- riam a futura geração flamenga. A notícia enaltecia o
dilha, agia em conjunto com Mário Filho. plano, que era o resultado final dos anos anteriores de
O último ano da gestão José Bastos Padilha foi mar- transformação do clube.
cado pelas campanhas publicitárias voltadas para a for-
mação de gerações de torcedores. No ano da pacificação A obra realizada pela administração Bastos Padilha está
dos esportes, com a oficialização do profissionalismo e enquadrada em um programa vasto, iniciado há qua-
com a reunificação do campeonato carioca, que estava tro annos e que prossegue sem desfalecimentos. O pro-
dividido entre clubes amadores e profissionais, o clube gramma não surgiu, claro, aos olhos do público, quando
viveu tempos de grande otimismo e agitação. em 1933, o sr. Bastos Padilha assumia a presidência do
Flamengo. Depois se chegou à evidência de que
tudo obedecia a um plano traçado. Por isso
mesmo, não houve um passo em falso. Mas a
grandeza desse programma não conhecido em
seus detalhes mínimos obriga a uma pergunta:
qual será o programma de 1937 ou, pelo me-
nos, qual será o ponto inédito do programma
do Flamengo para 1937? Fala-se na campa-
nha dos dez mil sócios, na contrucção do sta-
dium, mas esses pontos já foram atacados e
caminham para a realização integral. A inter-
rogação tem de buscar o inédito, se é que o
Flamengo em 1937 vae emprehender o que
não tentara em anos anteriores. Recebe-se
então um sim. O sr. Bastos Padilha declara
que o Flamengo vae preparar a futura gera-
ção flamenga.29

Em 1937, a meta final do processo de


profissionalização começava a ser reali-
zada: a popularização. A própria relação
amistosa com a imprensa, que enaltecia
os feitos do Flamengo destacando a con-
tinuidade das ações do clube, também era

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parte desse projeto. Não bastaria levar adiante um pro- tação de dois nobres sentimentos: o amor pela pátria e
grama de popularização do clube se não houvesse ca- o interesse pela educação physica”.32
nais de divulgação desses planos. Ainda durante o lançamento da campanha de edu-
A campanha em si consistia em um plano de edu- cação física, o clube anunciou a organização de um
cação física para os filhos dos sócios do clube. Sem programa complementar ao plano de educação dos jo-
pagar a mais para frequentar as escolinhas, as crian- vens torcedores. Contando com a parceria do Jornal
ças poderiam utilizar as quadras e campos do clube, dos Sports e de O Globo, o clube preparou um concur-
tendo aulas sobre os fundamentos dos esportes e so- so aberto para todas as crianças em que o objetivo era
bre moral e civismo do cidadão. A campanha ainda es- a associação das palavras Flamengo e Brasil. As crian-
tava restrita aos filhos dos sócios, mas nessa época o ças teriam que colecionar os selos publicados nos pe-
quadro social tinha mais de sete mil membros. Por isso riódicos e enviar uma carta contendo os selos e a fra-
o objetivo da campanha era alcançar mais de dez mil se criada. O concurso permitia a participação de crian-
crianças, um número significativo para o Rio de Janei- ças de até quinze anos e a frase que serviu como mode-
ro da década de 1930. Além disso, ainda era novidade lo para os concorrentes era a utilizada pelo clube nas
no país um plano de educação física para jovens. Vale medalhas dos atletas que participaram das Olimpíadas
lembrar que apenas em 1931, com a Reforma Francis- de 1936: “Como Flamengo, servi ao Brasil.”33
co Campos, a educação física passou a ser obrigatória Os prêmios iam desde bicicletas, carrinhos de brin-
no ensino secundário. quedo, até bonecas, já que meninos e meninas estavam
Nas declarações da direção do clube, a valorização divididos em categorias diferentes. Os selos foram publi-
da atividade física vinha sempre acompanhada da exal- cados entre os dias 2 de março e 30 de abril, e o resulta-
tação do sentimento nacionalista, pois essa era marca do do concurso foi divulgado no dia 4 de maio. Nesse tem-
principal das campanhas do clube. Em todos os eventos po, o concurso que ficou conhecido como “Pelo Brasil e
promovidos pelo clube em 1936 e 1937, o objetivo maior pelo Flamengo” mobilizou milhares de jovens torcedores.
era a exaltação da nação moderna e popular. Moderna, A exaltação dos valores nacionalistas pelo Flamengo
pois era a expressão da “raça” brasileira em constante atingiu seu ponto máximo nesse concurso. Nenhum ou-
progresso; popular porque era composta por diversos tro clube insistiu tanto na associação entre a sua marca
setores da sociedade, especialmente os trabalhadores. e a nação. Nem mesmo o Fluminense, clube muito bem
Essa perspectiva estava presente na declaração oficial relacionado com o Estado Nacional, promoveu esse mo-
do clube sobre a campanha educacional: “o Flamengo vimento de aproximação com o sentimento nacionalista.
proporcionará educação physica scientifica racional a Até porque, o Fluminense após a profissionalização orga-
milhares e milhares de crianças. Plasmará uma juven- nizou os seus símbolos identitários em torno da preser-
tude eugênica, pronta a servir a Pátria em todos os do- vação do caráter aristocrático que era marca do clube
mínios da actividade humana”.30 nos tempos da sua fundação. Por mais que o Fluminen-
Seguindo a perspectiva nacionalista corrente, Pa- se tivesse sido o grande líder da articulação do proces-
dilha destacou na solenidade de lançamento que a cam- so de profissionalização, isso não significou no caso tri-
panha de formação da geração flamenga era um “em- color uma associação com a popularização do clube. E
prehendimento gigantesco, que assume vital importância os valores nacionalistas correntes na década de 1930
para os destinos da nacionalidade. As crianças de hoje dialogavam necessariamente com a questão popular.
formarão o Brasil de amanhã. Preparando a futura ge- Com a foto constantemente estampada na capa
ração rubro-negra, o Flamengo trabalha pela pátria”.31 do Jornal dos Sports, Padilha divulgava os preceitos
Em última análise, a finalidade da campanha era “a exal- das campanhas do clube através de matérias de gran-

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de destaque, que muitas vezes ocupavam três páginas. As frases vencedoras foram enviadas por Marcio
Nessas matérias o patriotismo exacerbado chegava a Lyra, de treze anos e Maria de Lourdes Magalhães, de
ser caricato: 11 anos. O menino escreveu: “O Flamengo ensina: amar
o Brasil sobre todas as coisas” e ficou com uma bicicle-
Na grande família flamenga, cohesa, irmanada pelos mes- ta. A menina recebeu o primeiro prêmio pela frase “Um
mo anseios generosos, o jovem vê a sinthese de todas as Flamengo grande, um Brasil maior.” Outras frases pre-
nobres virtudes vivas, Flamengo e Brasil. Duas palavras miadas foram: “Brasil e Flamengo, palavras que se con-
que aparecem sempre juntas, porque ser Flamengo ver- fundem num mesmo sentimento”, “Flamengo, alerta pelo
dadeiro é uma forma de ser patriota.34 Brasil!”, “O Brasil é a Pátria dos meus sonhos, o Flamen-
go é o club do meu coração!”.38
Seguindo o mesmo tom de Padilha, o JS de Mario Fi-
lho divulgava o sucesso do concurso. No dia 9 do mes- Considerações finais
mo mês a manchete do jornal exaltava: No dia 26 de outubro de 1966, o Jornal dos Sports
publicou uma matéria especial sobre a gestão Padilha,
Brasilidade – é o traço marcante da alma rubro-negra: analisando seus feitos três décadas depois.39 Na entre-
toda a trajetória do Flamengo tem sido marcada por um vista concedida ao autor da matéria especial, Padilha
vivo sentimento de brasilidade. É o traço predominante resumiu a sua gestão como tendo sido o momento de
da alma rubro-negra. E isto é geralmente reconhecido “busca da mística” do clube. Nas palavras do ex-presi-
na comunhão sportiva nacional. Basta folhear a corres- dente, quando lembrava dos desafios que enfrentou nos
pondência referente ao grande concurso.35 primeiros anos de mandato, “sem que saibamos colocar
o Flamengo dentro de uma corajosa realidade, ele pere-
No dia da divulgação do resultado, dezenas de frases cerá ou, última análise, continuará sendo o que é: nem
foram publicadas no jornal. A comissão julgadora, com- mais nem menos que uma emoção doméstica, não um
posta por Padilha e Mario Filho, examinou 5.526 cartas.36 estado d’alma”.40
As frases que citavam o nome do presidente do Flamen- Colocar o clube dentro de uma (nova) realidade era
go, mesmo não estando entre as vencedoras, foram di- o projeto da sua gestão. Mais do que enriquecer ou me-
vulgadas. As três mais destacadas foram: “Criança! Pro- lhorar o time, o projeto consistia numa nova configura-
cura ser para o Brasil o que Padilha é para o Flamengo! ção de valores que transformasse o clube na institui-
Pedro Alvarez descobriu o Brasil e Padilha o Flamengo! ção mais popular do país, no espaço de representação
Deus fez o mundo, Padilha o Flamengo!”.37 da “alma do brasileiro”. E essa transformação do clube
Em cinco anos de mandato, Padilha se tornou o pri- não ocorreria sem a reinvenção articulada e conscien-
meiro presidente a dialogar com a torcida de um clube. te promovida pela direção do clube em associação com
Até então, os presidentes eram citados na imprensa es- a nova torcida que surgia.
portiva apenas nos eventos sociais ou nas querelas en- Durante a entrevista, Padilha cita que o clube mais
tre dirigentes. Utilizando um forte discurso nacionalis- popular do Rio de Janeiro na ocasião que assumiu a
ta e abrindo o clube para a participação da torcida, Pa- presidência do Flamengo era o América Football Club, e
dilha passou a ser associado à imagem de fundador do que o rubro-negro ocupava apenas a quarta posição no
clube, como se antes dele não existisse Flamengo para ranking dos clubes mais queridos. O clássico das multi-
ser vivenciado por esses sujeitos. Esse sentimento indi- dões, dizia ele em entrevista, era a rivalidade entre Amé-
ca como o ato de torcer era uma experiência nova para rica e Vasco.41 Poucos indícios apontam para a tal popu-
o torcedor comum naquele momento. laridade do América nos anos 1930. Porém, certo era

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que o Vasco da Gama na época era um clube com ba- da de 1930. Todas essas transformações foram promovi-
ses populares muito mais consistentes que o Flamengo. das a partir de uma convicção de Padilha, revolucionária
Em cinco anos como presidente do C. R. Flamengo, nos anos 1930: “os clubes são como Nações: cada qual
Padilha reverteu o quadro da distribuição das torcidas. tem sua característica, seu temperamento, suas motiva-
Para isso, organizou campanhas publicitárias, articulou ções, sua legenda, e nós precisamos muito disso”.42 A ges-
o clube com a imprensa esportiva, construiu o Estádio da tão Padilha inventou a nação flamenga em sintonia com a
Gávea, aumentou o número de sócios e da receita, con- nação brasileira que se inventava na época.
tratou os maiores jogadores negros da seleção brasileira
e, principalmente, preparou o clube para ser o represen-
O autor é professor de História do Brasil da Universidade Castelo Branco
tante da brasilidade popular que se consolidava na déca- rscoutinho@hotmail.com

notas de rodapé

1. Fonte: http://app.globoesporte.globo. 13. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 4 de fe- 27. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 15 de
com/futebol/publico-no-brasil/campeona- vereiro de 1932. novembro de 1936.
to-brasileiro/, atualizado em 25 de agos-
to de 2016. 14. A Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 28. Idem.
de maio de 1912.
2. Este artigo resulta de uma condensação 29. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 12 de
de parte do meu livro Um Flamengo grande, 15. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 fevereiro de 1937.
um Brasil maior: o Clube de Regatas do Fla- de maio de 1912 apud ABINADER, Marce-
mengo e a construção do imaginário espor- lo. Uma viagem a 1912: surge o futebol do 30. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 2 de
tivo nacionalista popular (1933-1955). Rio de Flamengo. Rio de Janeiro: Águia Dourada, março de 1937.
Janeiro: Editora 7 letras, 2014. 2010, p. 75
31. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 13 de
3. Os maiores públicos do clube estão dis- 16. Ibidem, p. 129. fevereiro de 1937.
poníveis em: <http://www.flamengo.com.br/
flapedia/Maiores_p%C3%BAblicos_do_fute- 17. FILHO, Mario. O negro no futebol brasilei- 32. Idem.
bol_brasileiro>. ro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003, p. 143
33. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 14 de
4. CASTRO, Ruy. O vermelho e o negro: peque- 18. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1937.
na grande história do Flamengo. São Paulo: julho de 1932.
DBA, 2001. 34. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 2 de
19. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 10 de março de 1937.
5. Ibidem, p. 17 agosto de 1932.
35. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 9 de
6. Ibidem, p. 39 20. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 28 de março de 1937.
janeiro de 1932.
7. Idem 36. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 4 de
21. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 9 de maio de 1937.
8. RIO, João do. Apud CASTRO, Ruy, ibidem p. 40 outubro de 1936.
37. Idem.
9. Ibidem, p. 34. 22. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 7 de
outubro de 1936. 38. Todas as frases foram publicadas no Jornal
10. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. dos Sports, Rio de Janeiro, 4 de maio de 1937.
Footballmania: uma história social do futebol 23. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro,7 de no-
no Rio de Janeiro 1902 – 1938. Rio de Janei- vembro de 1936. 39. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 23 de
ro: Nova Fronteira, 2000. p. 40. outubro de 1966. Matéria especial organiza-
24. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 17 de da pelo jornalista Geraldo Romualdo da Silva
11. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15 novembro de 1936. sobre o futebol carioca na década de 1930.
de novembro de 1912.
25. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 25 de 40. Idem.
12. ASSAF, Roberto & GARCIA, Roger. Os gran- novembro de 1936.
des jogos do Flamengo: da fundação ao hexa. 41. Idem.
Barueri: Panini Books, 2010, p.25. 26. Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, 2 de de-
zembro de 1936. 42. Idem.

132 favela
junto
é bem
melhor.
Acreditamos no poder da interação.
Sabemos que as trocas geram
mudanças positivas que nos
motivam, levam mais longe
e fazem bem. É por isso que
a gente se dedica tanto a ampliar
as possibilidades de conexão entre
as pessoas. Porque coisas incríveis
acontecem quando a gente interage.

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