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CONGRESSO HISTÓRICO

DE GUIMARÃES E SUA COLEGIADA

850.° ANIVERSÁRIO DA BATALHA DE S. MAMEDE (1128-1978)

VOLUME II

COMUNICAÇÕES

GUIMARÃES . 1981
A COLEGIADA DE GUIMARÃES
NA ACEITAÇÃO DO CONCÍLIO DE TRENTO

por
RAUL DE ALMEIDA ROLO

A Igreja, pela sua própria natureza divino-humana, tem, na fase terrena,


uma posição intrinsecamente incómoda e muito delicada.
O II Concílio Ecuménico do Vaticano declara-nos que, por natureza, ela
é «humana ao mesmo tempo que divina, visível e dotada de elementos invi­
síveis, ardente em acção e ocupada na contemplação, presente no mundo
e, todavia, peregrina»
Por conseguinte, segundo o mesmo Concílio, a Igreja não é nem pura
comunidade de graça, nem pura comunidade jerárquica, nem pura mística,
nem pura estrutura orgânica, mas antes uma e outra coisa, por analogia
com o mistério do Verbo Encarnado, Jesus Cristo, Deus e homem2. Assim

SIGLAS — AHUM. Arquivo Histórico da Universidade do Minho


ANTT. Arquivo Nacional da Torre do Tombo
ASV. Archivio Segreto Vaticano
B ibl. Ambros. Biblioteca Ambrosiana (M ilão)
B ibl. Vat. Biblioteca Vaticana
BTH. Boletim de Trabalhos Históricos (G uim arães)
CDP. Corpo Diplomático Português
CartDP. Cartório Dominicano Português
CT. Concilium Tridentinum (ed. G brres-G esellschaft)
PL. Patrologia Latina (ed. M igne) . . .
TS. Theologica Scripta (de Bartolom eu).

1 II Cone. Ecum. do Vat., SC, n. 2.


2 Ibid., LG, n. 8.

31
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como em Cristo não se pode afirmar o puro Deus com prejuízo da realidade
do homem verdadeiro, nem afirmar o puro homem com exclusão do Deus
verdadeiro, assim também na Igreja terrestre se não pode afirmar a
dimensão estrutural e social em detrimento do seu mistério de graça, nem
acentuar a realidade mística de forma que apaguemos a sua estrutura
visível e operante no mundo.
Sendo assim, a Igreja tem de abrir caminho na história terrena por
entre Cila e Caríbedes, entre a tentação da mundanidade e a heresia dos
que pretendem reduzi-la a entidade puramente espiritual. A dificuldade da
Igreja em avançar por essa rota estreita, em perfeito equilíbrio com o
divino e o humano, está bem patente nas sucessivas crises que padeceu,
abundantemente documentadas na sua história.
A iniciativa dessas crises tem pertencido quase sempre ao encalhe no
escolho do mundo. Depois, surgem formas extremas de evangelismo místico
e, finalmente, .perante o contraste das oposições, vem uma época de reflexão
e síntese, por um movimento de reforma em busca do justo equilíbrio.
Quando a Igreja se mundanizou, contaminada pelo feudalismo, surgiu
o movimento espiritual ortodoxo de Cluny e culminou na Reforma Grego-
riana, passando pela luta das investiduras.
Mas o triunfalismo de Cluny, por sua vez, ocasionou o novo movimento
espiritual de Cister. O confronto de ideais veio para a rua em polémica
aberta com a censura de Pedro o Venerável aos dissidentes3 e a contra-
-ofensiva de Bernardo de Ciar aval4, paladino da simplicidade e pobreza
evangélicas.
Porém, os próprios Cistercienses, elogiados por Inocêncio III, assim
como Gregório VII louvara Cluny, se deixaram seduzir pela grandeza,
reflexo de uma Igreja potente na fase áurea da Cristandade, vivida de
Alexandre m a Inocêncio III, o Papa do IV Concílio de Latrão, o «Concílio
Geral», como por antonomásia ficou designado, cuja influência tanto se
havia de fazer sentir na Igreja, pelas medidas tomadas em favor do incre­
mento das ciências sagradas e da pregação evangélica5.
Com tanta grandeza, esplendor e poder, a Igreja já estava carecida
de nova onda de espírito de pobreza e humildade. O movimento mendicante,

3 Epistolarum, lib. I, ep. 28 (PL 189, 112-159).


4 Apologia ad Guillelmum (PL 182, 895-918).
5 Concilium Lateranense IV, 'Constitutiones', 10, 11.
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iniciado em Francisco de Assis e Domingos de Gusmão, surgiu, como que


inevitavelmente, dentro da dinâmica normal da Igreja.
Mas ao lado da «contestação» ortodoxa de Francisco de Assis, contra
as sementes de mundanidade e de poderio, já haviam surgido o sonhador
Abade Joaquim e o rebelde Arnaldo de Bréscia, as contestações heterodoxas
dos Cátaros e de uma proliferação de movimentos de «pobres» apelando
para uma Igreja mística sem estruturas terrenas nem sacerdócio. A Domingos
de Gusmão, com os seus Frades Pregadores, haviam-se antecipado os prega­
dores evangélicos em rebelião, os Valdenses e outros.
A Cristandade, por não se haver libertado das formas do novo mundo
erguido sobre os escombros do feudalismo, ficou gravemente ferida do
choque violento de Filipe o Belo com Bonifácio VIII. O subsequente cati­
veiro de Avinhão obscureceu o carácter universal do Pontificado. As dou­
trinas conciliaristas, a que o Grande Cisma deu livre curso, teologizaram
o descrédito semeado em Avinhão e agravado pela escandalosa rotura da
unidade.
Por outro lado, o centralismo das novas estruturas sociais teve
uma repercussão nefasta na Igreja a qual enveredou também por um
centralismo e fiscalismo exagerados. Mais uma vez os valores mundanos
ensombraram na Igreja a sua face de comunidade de graça e de sacra­
mento de salvação. As heresias dos séculos XIV e XV são eclesiais. Wiclef,
Hus e Jerónimo de Praga conduziram directamente a Martinho Lutero
que sustentava qualquer sapateiro possuir tantos poderes como S. Pedro 6.
O grito de Gurando, no Concílio de Viena, reclamando para a Igreja
«uma reforma na cabeça e nos membros», ecoou por todo o século XIV e XV
e chegou vibrante ao Concílio de Trento. Mais do que nunca era preciso
reencontrar o equilíbrio da natureza divino-humana da Igreja e harmonizar
devidamente a comunidade jerárquica, visível, orgânica, com a Igreja comu­
nidade de graça e mística; era preciso afirmar o papado e o sacerdócio
contra Lutero, mas não se podiam tapar os ouvidos às reclamações formu­
ladas nos centwm gravamina Germaniae. Fazer isto, foi a grande obra do
Concílio de Trento.

6 «Impius Lutherus om nia haec irridet dicens quod ita bene habet claves E cclesiae
unus sutor sicut beatus Petrus» (Bartholom aeus, Scrip. súper 4um Sent.-Suppl., q. 17, q.* 1.*
[TS 6, 886]).
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HERANÇAS DO PASSADO

Os séculos de crise deixam mazelas traduzidas em estruturas defor­


madas que só com muita dor — como dizia o nosso Primaz em Trento —
se podem rectificar 7.
Para imaginarmos a que ponto as estruturas visíveis da Igreja se haviam
ancilosado, basta lembrar que, no IV Concílio Provincial Bracarense de
1566, o Cabido da Sé opunha aos decretos tridentinos os acórdãos da Igreja
Bracarense firmados com a «ínclita Rainha D. Tareja, mãe do Bem-aventu­
rado Rei D. Afonso Henriques»! 8 A passada larga de Trento galgara um
fosso de quase meio milénio.
É certo que o Concílio de Trento se inaugurara em 1545, dezanove anos
antes do aeto de aceitação dos seus decretos em Braga, em 1564, mas as
sucessivas interrupções, sem os Papas terem aprovado os decretos promul­
gados, nunca deu a estes foros de lei.
Quando D. João Hl, no fim da segunda fase do Concílio, quis fazer
cumprir os decretos já promulgados, procurando colmatar as lacunas com
os decretos do V Concílio de Latrão, o Papa Júlio III ficou irritado e
ciumento, estando a ponto de naufragarem as negociações para a legacia
do Infante D. Henrique9.
A reforma tridentina, portanto, só se pôde tomar a sério depois de
confirmado o Concílio em Janeiro de 1564.
Não há agora tempo, nem é aqui o lugar de fazer a história da evolução
da ideia de reforma dentro do próprio Concílio, ainda que restringíssemos
as nossas considerações à última fase, na qual interveio o nosso Primaz.
Bastará referir dois episódios para advertirmos a transformação radical
dos espíritos frente a esse problema.

7 «E cclesia deform ata valde est, quae rigorosa et dolorosa reform atione indiget. Nam
sicut unum membrum suo loco distractum in corpore non potest ad rectitudinem absque
dolore reduci, ita res deform atae in E cclesia» (CT IX, 502).
8 Protesto que fez o Cabido no Cone. Prov. Brac. (AHUM, Gav. conc. sin., 15, f. 2v).
9 O Núncio Zam beccari inform ou o P apa das diligências da Corte portuguesa, e o
P apa chamou o Card. M ontepoliciano e disse-lhe: «Vedes isto? O Em baixador m ata-m e
por esta legacia do Cardeal e vós tam bém m e fazeis por isso instância, e se o Cardeal
faz isto não podendo, que fará se tiver m ais poder?» (Carta de D . Afonso de A lencastre
a D . Joãon, de 20 de M aio de 1553 — CDP VII, 228).
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Pio IV, dois meses antes da reabertura do Concílio, enviou uma instrução
ao Cardeal Simonetta, o Legado da sua maior confiança em Trento, na qual
lhe recomendava que o Concílio se empenhasse em concluir as questões
dogmáticas, porque — dizia — «a reforma dos abusos já está feita em grande
parte, ou tão desbastada que facilmente se pode concluir» 10. E nò Consis­
tório de 6 de Dezembro de 1561 o Papa reservou para si a reforma da
Cúria, «porque — afirmou — não parece razoável que o Concílio nem outros
se intrometam nela» n .
Bartolomeu dos Mártires chegou a Trento com um conceito diametral­
mente oposto acerca deste assunto. Nos seus votos de 25 e 26 de Fevereiro
de 1562, consente na prorrogação da próxima sessão do Concílio «se entre­
tanto — insiste repetidamente — se tratar da reforma, ainda que os dogmas
fiquem para trás, pois a Igreja* e o mundo estão muito mais precisados desta
do que daqueles»12. E, quanto à reforma da Cúria pelo Concílio, ficou
célebre o seu requerimento de um «ilustríssimo capítulo para os Ilustríssimos
cardeais, pois — acrescentou — nós, bispos, aprendemos deles e os inferio­
res de nós» 13.
O Bracarense não esperou pela abertura do Concílio para manifestar
as suas ideias' reformistas e procurar atrair os colegas ao seú' ideal. Por
isso, não nos surpreende que Múcio Calino, Arcebispo de Zara, embora
da linha dos «reformadores humanistas», tenha denunciado, para Roma, o
Bracarense «por falar muito livremente» nos problemas da reform a14.
Nos debates conciliares o tema da reforma assumiu o devido relevo,
e, para remate, quase no fim do Concílio, Bartolomeu foi passar dezassete
dias a Roma.
O seu nome, evocado frequentemente na correspondência conciliar, já
era bem conhecido nos círculos vizinhos ao Papa e sobretudo de Carlos
Borromeu. O Bracarense estendeu a Roma a sua campanha reformista:

10 J. Susta, Die Rõmische Kurie und das Konzil von Trient unter P.ius IV (V iena,
1904-1914), n , 117.
11 A visi di Roma, 6 de Dezem bro de 1561 (Bibl. Vat., 'Urb. la t .\ m s. 1039, f. 137).
12 CT V n i, 353, 359; Carta dos Legados, 3.2.562 (ASV Cone., 53, f. 462).
13 CT H l ,117; IX, 812.
14 « [...] ho digià udito dire questo A rcivescovo B racarense parla m olto alia libera
in questa m atéria, et che ha com posto un certo suo libro pieno di querele per li gravam i
che pretende d’haver nel governo delia sua c h iesa » . (Carta ao Card. Cornaro, de 10 de
Novem bro de 1561 — ASV Cone., 70, f. 40).
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visitou vários cardeais da Cúria e falou sobretudo com o Papa e com


S. Carlos 15.
Na magnífica intervenção de 3 de Novembro de 1563 — dois dias após
o seu regresso a Trento e um mês apenas antes da conclusão do Concílio —
o nosso Primaz deu conta à assembleia da sua acção romana, e podia
afiançar, vitoriosamente, que o Papa e o seu sobrinho Carlos Borromeu
eram sinceros adeptos de uma boa reforma e de que mesmo a da Cúria
se fizesse ali no Concílio, senão — lhe havia assegurado o Papa — «ele mesmo
a faria, porventura, mais rigorosa ainda»16. Pio IV dissera que estava
disposto a sacrificar duzentos mil ducados por ano, ou mais, se fosse pre­
ciso, para se fazer uma reforma a sério 17.
Aquele mesmo Arcebispo de Zara, que dois anos antes havia denunciado
o Bracarense ao Cardeal Cornaro, escreveu agora ao mesmo purpurado
da Cúria comunicando-lhe o impacto do discurso do nosso Primaz e confes­
sando-lhe que ele havia comovido todo o Concílio e entusiasmado a todos
para esta «santa obra» da reforma 18. Em Roma, assim como em Trento,
a caminhada no sentido de uma reforma profunda da Igreja fora enorme.
Bartolomeu, por sua vez, superadas as angústias de morte sofridas na
luta pela reforma 19, exultou de alegria, no fim do Concílio, pela renovação
operada na última fase de Trento. Numa carta a despedir-se de S. Carlos
dizia: «A conclusão do Concílio excedeu toda a nossa expectativa. Abriu-se
e derramou-se sobre nós o tesouro da divina misericórdia mais do que

15 «M onsignor B racarense è tom ato tanto ben sodisfatto delle cose d i Rom a che
non si potrebbe dir piu: non cessa di predicare la pietà ed ottim a intenzione di Nostro
Signore, e fa certo ognuno che niuna cosa può essere piu cara a Sua Beatitudine che
1’attendere a fa re una buona ed utile riform a; e questo m edesim o afferm a delia m ente
di Mons. IUm.° Borrom eo, e di alquanti altri signori del Sagro Collegio, con i quali ha
parlato di questo bisogno» (Carta de 1 de N ov. de 1563 — ASV Cone., 69, f. 236).
w CT m , 744.
17 CT IX, 916-917.
16 «D isse ancho Mons. B racarense, il quale a fatto cosi grande rilazione d el desiderio
ardente che ha Sua Santità d elia riform a et parim ente Mons. Hlm.° Borrom eo, che ha
com m ossi et a ccesi gli anim i di tutti a questa santa opera» (Carta de 4 de N ov. de 1563
— ASV Cone., 69, f. 236).
19 «Esso [1’A rcivescovo di B raga] m ostra di continuar nel proposito de voler far bene,
m a si duol tanto che sia interpretato m ale questo suo buon animo [ ...], che, si dalla
m ano di N. S. non viene presto qualche tem peram ento, dubito che a lungo andare non
ce lo perdiamo» (Carta do Bispo de Viterbo a P io IV, de 9 de Dez. de 1562 — in H. Jedin,
Krisis un Wendepunkt des Trienter Konzilst pp. 129-130).
A COLEGIADA NA ACEITAÇÃO DO CONCÍLIO DE TRENTO 487

desejávamos e mereciam as nossas preces [...]. Agora só nos resta empe-


nharmo-nos a fundo em pôr em prática o que ficou decretado, e para isso
esperamos o seu eficaz apoio»20.
Foi com estas disposições que Bartolomeu regressou a Braga.
Mas a Igreja universal estava dispersa pelo mundo e era impossível
ter-se operado nela a transformação ao ritmo do Concílio. Em Braga, e por
toda a parte, o estado de coisas e os sentimentos dos homens permaneciam
pré-tridentinos, informados por estruturas contaminadas de uma tradição
secular de decadência.
É neste quadro institucional e humano que temos de compreender as
reticências e resistências oferecidas, por toda a parte, e não só em Braga
ou Guimarães, à aceitação da reforma tridentina: não era fácil envasilhar
vinho novo em odres velhos sem se romper algum.

GUIMARÃES

É difícil retratar, à distância de mais de quatro séculos, uma insti­


tuição antiga como a Colegiada de Nossa Senhora de Oliveira de Guimarães
através da documentação restrita que se pode referir ao impacto que nela
teve a renovação tridentina. Essa documentação está limitada, quase exclu­
sivamente, ao Sínodo Diocesano Braearense de 1564, ao IV Concílio Provin­
cial de 1566 e às Actas das visitas pastorais a Santa Maria de Oliveira
e às outras igrejas vimaranenses. Para mais, estas Actas da visitação,
como é compreensível, realçam as deficiências a corrigir: do que está bem,
naturalmente, não se fala.
Uma primeira abordagem ao estado da Colegiada podemos fazê-la pela
leitura das Actas da visitação pré-tridentina de 1560. Foi uma visitação a
sério — certamente a primeira que o Arcebispo fazia à Colegiada — detendo-
-se em Guimarães nada menos de dez dias. Tomou tempo e aplicou diligência
para fazer uma prospecção minuciosa e profunda do estado da Colegiada
e da vila. Por isso as Actas desta visitação representam um documento
importante. Mas nelas não existe absolutamente nada de alarmante em
desdouro da Colegiada 21.

20 Carta de Trento, de 7 de Dez. de 1563 (Bibl. Ambros., F ..9 4 , f. 20).


21 Actas in ANTT, Colegiada de Guimarães.
488 RAUL DE ALMEIDA ROLO

Ao leitor desprevenido dos nossos dias poderá chamar a atenção que


alguns cónegos não tivessem ordens sacras e até fossem tão moços que não
atingiam a idade para se ordenarem 22. Mas, no tempo, ò facto era absolu-
mente normal. Para ilustração, lembremos que o instituidor da capela da
Conceição da Sé de Braga, o cónego Francisco Costa, filho do Tesoureirò-mor
da Sé, Jorge da Costa, e neto do Arcebispo Primaz D. Jorge da Costa,
tivera uma cadeira de cónego na Sé desde a idade de catorze anos23.
Em 1542, D. Daurte, bastardo de D. João III, fora nomeado Arcebispo Primaz
com apenas dezanove anos e só ordenado de Epístola. Isso não era singu­
laridade, porque, em 1523, o Infante D. Afonso, aos catorze anos já era
Cardeal, Arcebispo de Lisboa e Bispo de Évora. Mas lá mais nas vizinhanças
de Roma, as coisas não iam melhor. Leão X, filho de Lourenço o Magnífico,
recebeu ordens menores aos sete anòs, chegou a cardeal aos treze e foi
eleito Papa aos trinta e sete. Trágica e significativamente, no seu pontifi­
cado, eclodiu a rebelião luterana. As próprias Constituições Sinodais braca-
renses de 1537 prescreviam: «Ordenamos e mandamos que todo aquele que
se ouuer de ordenar aa primeira tonsura e aas quatro ordês menores [...],
de idade de sete anos até quinze receberam as ditas ordês» 23a.
Mas voltemos a Guimarães. A visitação também detectou que os cónegos
e dignidades não eram diligentes no celebrar das missas nem muito devotos
na reza das Horas, falando e passeando na igreja antes de subir ao coro
e que nem todos iam acompanhados dos seus Breviários. Alguns não eram
fortes em latim e outros tinham o ouvido pouco afeito áo cantochão. Para
os tempos que corriam na Igreja, isto era verdadeiramente insignificante.
É certo que os cásos particulares que pudessem infamar as pessoas tratava-os
o Arcebispo discretamente e em particular com os interessados, constando
nas Actas apenas o mandato aos curas que as avisassem secretamente
para comparecerem na sua presença «pera certas diligências que com eles
se há-de fazer por bem da visitação»24, embora nesta primeira visita este
método ainda não apareça expresso.

22 «Porque acham os por inform ação que alguns cónegos da dita igreja não são
ordenados de ordens sacras e de m issa [ ...], no que querendo prover m andam os aos ditos
cónegos que, em term o de um ano, os que forem de idade para isso, se ordenem»
(V isitação de 1560 — ANTT, Colegiada de Guimarães).
23 J. A. Ferreira, Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga,, c. VIII, 'Dr. F r.
Agostinho de Jesus', t. m , 112.
23“ Tit. VII, const. 1. • ’
24 Cf. V isitação de 1577, in BTH, vol. X (1945-46), p. 3.
A COLEGIADA NA ACEITAÇÃO DO CONCÍLIO DE TRENTO 489

O SÍNODO

O acto solene para a aceitação oficial do Concílio de Trento foi o


Sínodo Bracarense, celebrado de 11 a 14 de Novembro de 1564 25, um Sínodo
agitado e magro em conclusões, se bem que preparado pelo Arcebispo com
extraordinária diligência. Aí estão a confirmá-lo o volume dos Decretos
do Sagrado Concílio Tridentino, ainda a cheirar a tinta fresca, saído dos
prelos de António de Maris não havia ainda um mês 26, e o Catecismo ou
Doutrina Cristã, escrito por ele para os curas menos doutos ensinarem
os seus fregueses, e que saíra dos mesmos prelos apenas uma semana antes 27.
A cleresia acorreu ao Sínodo e a Colegiada de Guimarães esteve bem
representada pelo Chantre, Mestre-Escola, Tesoureiro, Arcediago e outros
mais, embora não estivesse em pleno.
' A primeira questão que afectou a Colegiada consistiu numa polémica
de precedência com os Comendatários. Nesta matéria, o Arcebispo havia
feito um óptimo tirocínio, em Trento, disputando com Toledo a primazia
das Espanhas. Os critérios de Trento aplicaram-se em Braga: o Colegiada
precedeu os Comendatários nos assentos e na procissão de acção de graças
a Nossa Senhora a Branca, «sem prejuízo nem de uma nem de outra parte,
por não haver tempo pera se poder determinar tal dúvida, dizendo que
ficasse seu direito reservado pera depois do Sínodo»28. Desta sorte, a Cole­
giada ocupou o segundo lugar, só precedida do Cabido da Sé primacial.
O Arcebispo, na abertura do Sínodo, fez um sermão «de muita conso­
lação e per ao tal auto conveniente»29. O Primaz, porém, não fora o único
a preparar o Sínodo. Enquanto o Arcebispo dispunha tudo para a publicação
e aceitação dos decretos tridentinos, o Capítulo metropolitano preparara a
contestação e havia decidido não aceitar, às boas, os decretos de reforma,
fazendo mesmo correr o boato «que estavam determinados que o que o

25 Form a do Sínodo diocesano bracarense, ano de 1564 (AHUM, Gav. conc. sin., 13).
26 Lê-se no colofão: «Acabouse esta obra / Aos 14 dias do m es Doutubro / de 1564».
27 L ê-se no colofão: «Acabouse de imprimir / o presente Catechism o na cidade de
B raga / em casa de Antonio de M aris Em pressor / do Senhor Arcebispo, aos IH I de /
Novem bro, 1564».
28 Form a do Sínodo ... (AHUM, Gav. conc. sin., 13, p. 23). ....
29 Ibid., p. 5. ’
490 RAUL DE ALMEIDA ROLO

contrário fizesse do que eles tinham determinado de ser dali lançado igno­
miniosamente» 30. Nas conversas privadas, dizia-se mais ou menos a meia
voz que, quanto à reforma, Trento era um «Concílio de Satanás» 31, onde
«não havia de estar o Espírito Santo, mas que estaria o demónio»32.
O zelo e firmeza do Arcebispo tinham de chocar violentamente com tais
disposições e determinação. Talvez os membros da Colegiada de Guima­
rães, embora não gostassem de perder regalias, ficassem surpreendidos
com o alvoroço que, na manhã do dia 12, se levantou na Sé, atraindo a ela
a vizinhança, de forma que Bartolomeu teve de mandar fechar as portas33.
Com a Sé a regurgitar de clero, o Arcebispo proclamou que «em minha
pessoa e de todos neste Sínodo juntos que comigo concordem [...], porque
o Sagrado Concílio Tridentino foi legitimamente congregado per autoridade
do Santo Padre e por ele pubricado, portanto eu creio e confesso todos os
decretos de fé [...] e recebo todas as suas leis e decretos positivos, enquanto
a Sé Apostólica não dispuser outra cousa acerca deles»34.
À proclamação do Primaz replicou imediatamente o cónego doutor
João Afonso com uma arenga a demonstrar «que o Sagrado Concílio não
fora feito nem era necessário para esta província»35.
Escusamos de reproduzir o acutilante diálogo entre o Arcebispo e o
doutor João Afonso, sem se concluir coisa alguma, sobre se este aceitava
ou não o Concílio.
Esta atitude de João Afonso, porta-voz dos procuradores do Cabido,
em obediência a decisões tomadas já antes do Sínodo, lembra-se aqui porque
deu origem a uma clarificação requerida pelo Arcebispo a qual nos permite
conhecer individualmente a posição de alguns membros da Colegiada de
Santa Maria de Oliveira.
Provocado pela obstinada recusa do doutor João Afonso em declarar
se recebia ou não o Concílio, o Arcebispo mandou «a todos os que presentes
estavam que se não saíssem e que cada um por si claramente fosse declarar,
dentro da capela-mor, se aceitava o dito Concílio, porque ele estava nela

30 Livro da Inquisição da cidade do Porto (ANTT, Inquisição de Coimbra, 155.5.756,


f. 46v — CartDP., séc. XVI, fa se. 4 — Barth. Mon. IV, n. 32).
Ibid.
32 Ibid., n. 41.
33 Form a do S ín o d o ... (AHUM, Gav. conc. sin., 13, p. 10).
34 Ibid., pp. 11-12.
35 Ibid., p. 12.
A COLEGIADA NA ACEITAÇÃO DO CONCÍLIO D E TRENTO 491

com seus desembargadores e notairos em quatro mesas que aí estavam


pera com mais brevidade tomar os votos e por ser já um pedaço pela noite»3S.
A maior parte da clerezia declarou-se ainda aquela noite, e no dia
seguinte compareceram todos os demais a fazer a sua aceitação do Concílio,
excepto o doutor João Afonso que se manteve obstinado37.
O alvoroço da sessão da manhã do dia 12 fora provocado pelo gesto
ostensivo do doutor Pedro Jorge da Silva, arcediago do Barroso que, che-
gando-se «à grade da capela-mor [...], disse que em seu nome e da clerezia
que a ele se quisesse aderir e ajuntar, ele aceitava o Sagrado Concílio,
salva a autoridade e moderação da Sé Apostólica, da qual se esperava
ajudar em algumas cousas que eram de iure positivo»38.
A fórmula era feliz, satisfizera o Arcebispo e vai servir de tónica, com
variantes mínimas, à maior parte dos que passaram pela capela-mor a
declarar a sua aceitação.
O primeiro membro da Colegiada que aparece na lista é o cónego Simão
Afonso de Carvalho o qual declara apenas: «como o arcediago do Barroso»39.
O Mestre-escola de Guimarães não aparece nestas listas de aceitação
do Concílio, mas deve ser omissão da cópia existente, pois Gonçalo Fer-
nandes, abade de S. João de Penselo, declara aceitar «como o Mestre-escola
de Guimarães»40.
O' Arcipreste da Colegiada, Baltazar Gonçalves, em seu nome e do
D. Prior Gomes Afonso, cuja procuração exibiu, aceitou com a consueta
reserva do cónego vimaranense André Gonçalves, em seu nome e do cónego
Francisco Álvarez, abade de Gondarela. Os cónegos André Dias e Baltazar
Henriques, assim como o arcediago Filipe Ribeiro não divergiram da mesma
sentença.
Como dissemos, nem toda a Colegiada de Guimarães estava no Sínodo,
mas os seus membros que apareceram no acto de aceitação do Concílio

se ibid., p. 15.
37 « [...] habuique praecipuos contradictores ac perturbatores Synodi eos quos, in
prim is, habere debueram coadiutores, nem pe capitulares m eos qui detractant recipere
Sacrum Concilium quoad decreta pisitiva ad reform ationem pertinentia, et nonnisi
tim ore perculsi tandem acceptaverunt, excepto uno m agno eorum duce, Ioanne Alphonso,
Doctore canonico ex hebraeis originem ducente, qui usque hodie recipere detrectat» (Carta
de Bartolom eu a S. Carlos, d e 18 de N ov. de 1564 — Bibl. Ambros., F . 36, f. 676).
38 Form a do S ín od o... (AHUM, Gav. conc. sin., 13, p. 9).
33 Ibid., p. 60.
40 Ibid.
492 RÁUL DE ALMEIDA ROLO

são unânimes em fazê-lo com expressões muito próximas da do próprio


Arcebispo, o qual também condicionou a própria aceitação das «leis e
decretos positivos, enquanto a Sé Apostólica não dispuser outra cousa acerca
deles» 41.

EXAMINADORES SINODAIS

Além do acto de aceitação do Concílio fazia também parte da agenda


do Sínodo, em obediência às disposições tridentinas, a aprovação de ao menos
seis examinadores dos ordinandos e para a atribuição dos benefícios aos
opositores às paróquias.
A prova de competência e idoneidade para o episcopado e para todos
os curas de almas havia sido proposta e defendida acerrimamente em ♦

Trento pelo nosso Arcebispo, como processo eficaz para a renovação da


Igreja 42. Por isso, não nos surpreende que, ao dirigir-se ao Sínodo Braca-
rense, diga que «considerando a grandeza deste arcebispado [...], tinha
eleito dezasseis pessoas», apresentando uma lista onde, ao lado do Chantre
da Sé e de outros cónegos bracarenses, do Provisor, do Vigário Geral, do
Desembargador e Visitadores, apareciam também o Reitor do Colégio de
S. Paulo, o Guardião de S. Francisco e o dominicano Diogo do Rosário 43.
Esta alínea do Sínodo também não obteve um consenso fácil. O elevado
número de examinadores, a falta de graduação em teologia ou .cânones
em alguns, a profissão religiosa de outros, a condição de só ordenado de
ordens menores do desembargador Bartolomeu do Vale, a falta de procura­
dores eleitos pela clerezia para decidirem sobre a aceitação, e outras
objecções deram matéria para muitas dúvidas e longo diálogo.
O Arcebispo esclareceu a assembleia ponto por ponto, e passou-se à
votação individual, na forma como se fizera para a aceitação do Concílio44.

Ibxd:, p. 12.
42 «Inchoandum esse ab exam ine episcoporum , quod nisi fia t n ascit [B racarensis]
unde incipiendum , .cum hic canon et sem inarium sint praecipuae colum nae huius refor-
m ationis» (CT II, 864).
43 Form a do S ín od o... (AHUM, Gav. conc. sin., 13, pp. 16-17).
44 «Logo per Sua R evm .a e per alguns desem bargadores que pera isso deputou com
sêus notairos foram tom ados os pareceres de todos os que presentes estavam ao dito
sínodo» (Ibid., p. 21).
A COLEGIADA NA ACEITAÇÃO DO CONCÍLIO DE TRENTO 493

Aqui divergiram mais as fórmulas possíveis. Os humores de cada úm


tiveram a sua parte nessa riqueza de expressões, desde o voto de confiança
de João Gomes de Abreu que «aprovou todos conforme o rol, por saber certo
que Sua Senhoria Reverendíssima não há-de fazer nisso senão como deve» 45,
até aos que reprovaram todos «por não serem pera isso»46, ou excluíram
os religiosos «por não serem da ordem de S. Pedro»47.
De Guimarães nenhum reprovou a todos a não ser Cristóvão da Costa,
comendatário de Santa Maria de Oliveira, mas pelo seu procurador o
Chantre de B raga48. Em contrapartida, o Arcipreste de Guimarães, assim
como os cónegos da Colegiada, Diego Mendes Guimarães e Cristóvão de
Guimarães, aprovaram todos 49. Mas a maior parte, com sentido de isenção
e responsabilidade, alegando desconhecer alguns do rol, usou fórmulas
próximas da do cónego da Colegiada, André Gonçalves da Maia, que aprovou
os conhecidos e não aprovou nem reprovou os outros. Com tal destrinça nos
seus votos se pronunciaram os cónegos Baltazar Anriques, o Tesoureiro e
o Mestre-escola.
Contados os votos, saiu eleito todo o rol dos examinadores por duzentos
e sessenta e quatro votos, verificando-se apenas cinco votos que reprovaram
todos, três que se abstiveram e sessenta e seis que apresentaram reservas
acerca de alguns «por os não conhecerem» 50.
Considerando a intervenção da Colegiada de Guimarães, quer na votação
da aceitação do Concílio, quer nesta eleição dos examinadores sinodais,
o qualificativo justo para o seu comportamento global será talvez o da
moderação e bom senso.

« ibid., p. 98.
46 «Os que reprovam todos: ... item o cónego F rancisco Lião, por não serem pera
isso» (lbid., p. 85).
47 lbid., p. 90.
48 «Item, o dito Chantre votou por Dom M anuel de Azevedo, com endatário d e São João
Dalpendorada e abade das igrejas de S. Cristóvão de Mondim e Santa O vaia, e em nom e
de Libério da Costa, tercenairo nesta Sé e de Cristóvão da Costa, com endatário de
Santa M aria de Oliveira» (lbid., pp. 85-86).
49 lbid., pp. 85 e 88.
so lbid., p. 104.
494 RAUL DE ALMEIDA ROLO

JUÍZES DELEGADOS

O Primaz abordou ainda o problema da eleição dos juízes delegados


a qual, declarou à assembleia, tanto se podia fazer ali no Sínodo como
no Concílio Provincial «que se faria, com a graça do Espírito Santo, passada
Páscoa»51. Porém, quando se dispunha a propor os nomes à assembleia,
logo interveio o Chantre da Sé, Martim Lopes Lobo, «pedindo que não qui­
sesse nomear as ditas pessoas [...] antes de o Sínodo declarar se queria,
por ora, fazer a dita eleição» 52. O Arcebispo achou pertinente a intervenção
e, consultando o Sínodo, talvez para fugir a novos contrastes e desagradá­
veis conflitos, dado o pesado clima emocional criado, «foi assentado e
concluído que, por ora, se não fizesse a dita eleição e que ficasse reservada
para o Concílio Provincial»53, o qual, bem contra as perspectivas do
Arcebispo e em consequência da contestação violenta à aplicação da reforma
tridentina, só se viria a celebrar, em clima ainda mais tenso, dois anos
mais tarde.
Encerrou-se o Sínodo com uma solene procissão à Senhora a Branca,
• «

mas o Arcebispo levava atravessada na alma a armagura pela contestação


ao Concílio e pela pobreza dos resultados obtidos 54.
Nem todos se incorporaram na procissão. Enquanto esta andava na rua
escapuliram-se alguns cónegos para a Sé a fim de lavrar autos caluniosos
e injuriosos contra o Arcebispo e acumular capítulos de nulidade do Sínodo
para mandar a Roma 55.
Num desafogo doloroso, em carta a S. Carlos, escrita quatro dias depois,
o Arcebispo faz o elogio do clero que acorreu ao Sínodo e se mostrou dócil,
em contraste com o Capítulo Bracarense o qual «perturbou tudo». Fazendo
o balanço dos magros resultados do Sínodo, escreve: «Até agora não toquei
em paróquia alguma de nenhum dos capitulares, embora tenham várias, não
constrangi nenhum deles a ir residir à sua paróquia, não estatuí nada acerca
do Seminário, o que não posso sofrer. Enfim, não executei nenhum decreto

« Ibid., p. 22.
52 ibid.
53 Ibid., p. 23.
54 «E logo Sua Senhoria se foi ao tesouro e se vestiu em pontifical e ordenou pro­
cissão solene [ ...], e form a pela rua do Souto acim a até à herm ida de N ossa Senhora a
Branca onde, feita a oração acostum ada, se tornaram» (Ibid., pp. 26-27).
55 Ibid., p. 27.
A COLEGIADA NA ACEITAÇÃO DO CONCÍLIO DE TRENTO 495

dos que eles temem, mas condescendo, temporariamente, perante a sua


rebelião. Isto não obstante, ainda foram para Roma com acusações calu­
niosas contra mim» 56.
As imediatas visitas da Inquisição ao Porto, onde se haviam reunido
para formalizar os protestos e acusações, e logo a seguir a Braga 57, deixam
transparecer o clima de oposição frontal ao Concílio de .Trento. Em todo
este processo, porém, nunca é evocada a Colegiada de Guimarães nem as
outras Colegiadas do Arcebispado.
Mas é tempo de voltarmos a Guimarães, para procurarmos perscrutar
como por aqui evoluiu a aplicação da reforma tridentina.

VISITAÇÕES *

A Colegiada de Santa Maria de Oliveira, como se verificou nas prece­


dências do Sínodo, é a segunda instituição da Igreja Bracarense. Por isso,
não admira a especial solicitude que lhe consagrou D. Frei Bartolomeu
dos Mártires.
No Sínodo de 1564 ficou admitido o Concílio, com as reservas postas de
apelação dos decretos de reforma, mas havia ainda uma longa caminhada
a fazer até à execução plena da renovação eclesial decretada em Trento.
Isso terá de ser terreno a conquistar palmo a palmo e a ir cultivando nas
sucessivas visitas pastorais.
D. Frei Bartolomeu fazia a ronda da visitação às mais de mil duzentas
e sessenta paróquias da arquidiocese 58 de quatro em quatro anos 59, o que

56 Carta de 18 de N ov. de 1564 ( Bibl. Ambros., F . 36, f. 676).


57 A inquisição no Porto decorreu de 3 de Dez. de 1564 a 10 de Jan. de 1565, em
B raga d e 14 de Janeiro a 13 de Março, em Viana do Castelo d e 25 de M arço a 18 de Abril
e em V ila do Conde de 27 de Abril a 4 de M aio de 1565 (C artD P., séc. XVI, fa se. 4 e 8).
58 «Nullus apparuit in Concilio Tridentino qui tot parochias curandas haberet, sunt
enim plus quam m ille et ducenta et sexaginta» (Carta de Bartolom eu a S. Carlos, de 17
de N ov. d e 1583 — Bibl. Ambros., T. 47, f. 124).
58 «Ultra infinita negotia, habeo parochias visitandas fere m ille trecentas, quarum
visitationem quatuor annis perficio, cum tam en m aiorem partem anni in earum visitatione
expendam » (Carta d e Bartolom eu ao Papa Gregório XIII, de 4 de N ov. de 1576 —
ASV, Vesc. 10, f. 252).
* A gradecem os ao R. P . Dr. António Franquelim S. N eiva Soares a gentileza de nos
haver facultada as Actas inéditas da visitações de D. F rei Bartolom eu dos M ártires às
igrejas d e G uim arães.
496 RAUL DE ALMEIDA ROLO

significava mais de trezentas e quinze visitas cada ano, andando num rodopio
constante de igreja em igreja 60.
No meio desta azáfama, porém, aparece-nos privilegiada a Colegiada
e vila de Guimarães. Não se conservaram todas as Actas de visitação à
Colegiada, nem as das igrejas suas anexas, S. Paio e Santa Eulália, e nem
sequer notícia nos chegou de todas elas. Mas sabemos, ao certo, que visitou,
a Colegiada com muita assiduidade. Possuímos as Actas das visitações de
1560, 65, 67, 68 e 77. Mas nas Actas de 77 há referência concreta à visitação
de 76, e aparece a significativa censura aos não residentes em suas paró­
quias, apesar de já ter sido mandado «em muitas visitações».
Se, além das Actas das visitações à Colegiada, tivermos em conta as
Actas conservadas ou referidas nas visitações às outras igrejas de Guima­
rães, especialmente às anexas, S. Paio e Santa Eulália, verificamos que,
a partir de 156461, ano do regresso do Concílio, o Arcebispo esteve todos os
anos em acto de visitação até 1581, mesmo já depois de haver pedido a
resignação à mitra bracarense 62. Como era seu timbre, actuou até ao fim
com zelo e solicitude exemplares, a ponto de, ainda em 1581, privar da
paroquialidade de Santa Eulália o seu cura Domingos Antunes63.

60 « [...] ele anda todo o ano visitando a s terras do arcebispado» (Carta ânua dos
Jesuítas, de 1563 — ANTT, m s. liv . 690, f. 9v).
61 D a visita a S. P aio, em 1564, ficou-nos este documento: «Encomendamos ao Senhor
Dom Prior e m andam os ao Cabido que até São João cumpram o m andar fazer a igreja
de novo, no lugar da erm ida de S. Sebastião, pela m uita necessidade que dela há e
causas que nos a isso m overam quando a m andám os fazer na visitação que fizem os nesta
igreja no ano de sessen ta e quatro» (V isitação a S. P aio em 1567).
Tam bém se não conservam as Actas da visita a Santa E ulália em 1572, m as na visita
de 73 lem os: «Porquanto não acham os nesta igreja a visitação que fizem os nela o ano
passado de setenta e dous [...]» (V isitação a S. O vaia de 7 de N ov. de 1573).
D a v isita à Colegiada em 1576, escreve assim nas Actas da d e 77: «Na visitação
passada do ano setenta e seis m andám os a B altazar Anriques [...]» (in BTH, vol. X
[1945-46], p. 2).
62 a suplica de resignação à m itra bracarense está datada em Tomar a 5 de Maio
de 1581, e das visitas em terras de G uim arães ainda se conservam a s Actas de S. Sebas­
tião, a 23 d e A gosto de 1581, de M ascotelos e Creixom il em 31 e a Santa E ulália e
Azurém em 1 de Setem bro (AHUM, Est. das Visitast m aço do M ontelongo e G uim arães).
63 «Mandamos a vós Dom ingos Antunes, cura desta igreja, que em term o de oito
dias pareçais perante nós sob pena de suspensão de vossas ordens ipso facto». Segue um
aditam ento :«e sob a dita pena não curareis m ais esta igreja porque da cura e regim ento
dela vos tem os privado» (V isita a S. O vaia, 1 de Set., 1581 — AKUB, ibtd.).-
A COLEGIADA NA ACEITAÇÃO DO CONCILIO DE TRENTO 497

Nas Actas da Colegiada não aparecem grandes sobressaltos. Constam


dessas Actas uma série de pequenas providências, como a compra de um
missal, a organização do arquivo, a aquisição de um livro de receita e
despesa, a implantação na igreja de quatro confessionários, a ampliação
da capela-mor, etc., e tc .64. Quanto às pessoas, registam-se leves problemas
disciplinares referentes ao jogo, à indumentária, à idade das serventes, à
preparação da liturgia, à assiduidade à pregação, temas estes previstos
com minuciosidade no Concílio Provincial de 1566 65.
O ponto crucial para a pastoral da Igreja no século XVI, porém, con­
sistia na residência dos pastores de almas no seus benefícios. Em Guima­
rães existia o problema, como por toda a parte. A situação bracarense
neste capítulo é pintada por D. Frei Bartolomeu, em carta de 14 de Outubro
de 1560, onde escreve: «Eu visitando tenho achado que o principal desbarato
desta prelazia é absencia dos reitores das igrejas. Servem-se todos das
igrejas de Braga como de quintas e casais e as ovelhas perecem» 66. Sempre
era mais fácil viver dos rendimentos do benefício na cidade ou na vila,
do que estar isolado na paróquia, lá na encosta da serra. Também era mais
rendoso ter as igrejas anexas sem vigário, do que apresentá-lo e largar-lhe
o pé-de-altar mais dez mil réis de salário. Por isso, se esboça um conflito
do Arcebispo com o D. Prior a propósito do vigário para Santa Eulália 67.
Este capítulo da residência e pluralismo de benefícios suscitou em
Trento a mais viva controvérsia e tomou-se também o mais difícil de aceitar
e de cumprir da reforma tridentina. Largar fazenda representava uma
amputação dolorosa. O próprio Pio IV, como lembrámos, para demonstrar
a sua vontade sincera de reforma, argumentou com a disposição de sacri­
ficar duzentos mil ducados, ou mais, cada ano, para a conseguir 68.
A par da residência, impunha-se também uma eficaz renovação do
clero, dinamizador da comunidade eclesial. Para tanto, exigia-se a criação
de novas estruturas formativas dos jovens aspirantes ao sacerdócio, concre­
tizadas na fundação dos seminários 69.

64 Cf. Actas in BTH, vol. IX, 194344, pp. 97-150; vol. X, 194546, pp. 1-10.
65 Cone. Prov. Brac. IV, Act. IV, P . II, 'D e vita et honestate clericorum*.
66 ANTT, Gav. 19, m . 8, n. 24.
67 V isitas de 1567 e 1570 (AHUM, Est. das Visitas, m aço de M ontelongo e G uim arães).
68 CT IX, 916-917.
69 «De sem inário quod om nino fia t. E t si aliter non potest, fia t sum ptibus parentum
sem inarium istud» (CT III, 618).
498 RAUL DE ALMEIDA ROLO

A nível da Igreja Bracarense, estes dois capítulos — residência e semi­


nário — delimitam o campo onde o Primaz encontrou maior e mais porfiada
resistência à aceitação da reforma tridentina. Guimarães e a sua Colegiada,
neste ponto, não fizeram excepção.
Na disciplina da residência, as Actas da visitação de 1577, as últimas
que se conhecem de Barfolomeu à Colegiada, ainda nos informam que,
apesar de haverem incorrido em censuras, «por lhes ser por nós mandado
em muitas visitações», alguns cónegos e abades ainda não tinham deman­
dado as suas paróquias 70. Entre estes a história demarca o Mestre-escola,
cónego Torcato Peres de Andrade.
Este Torcato devia ser pessoa de importância e por isso talvez se
tornasse mais audaz. Desde cedo que se notam desacordos com o Arcebispo,
mesmo noutras matérias da reforma tridentina. O primeiro conflito documen­
tado é de 1566, por o Mestre-escola, como juiz subdelegado do Ordinário
do Porto, para questões do Arcebispo com o Cabido Bracarense, ter levan­
tado alguns sequestros postos pelo Arcebispo em igrejas anexas à mesa
capitular, tendo depois ele próprio de renovar os mesmos sequestros71.
Além destes conflitos, aparece-nos outro por falta de acatamento pelo
Mestre-escola da ordem de demolição da igreja de Santiago72..
A explosão destes azedumes acumulados parece ter-se verificado na
«matraca» de apupos e calúnias e insultos ao Arcebispo, numa noite de
Outubro de 1576, por ocasião da visita do Prelado à Colegiada de Guima-

’<> Actas in BTH, vol. X (1945-46), p. 5.


71 «Sendo o M estre-escola de G uim arães juiz subdelegado do dito Ordinário do Porto,
por com issão apostólica, e tendo levantado alguns sequestros que estavam postos este
presente ano, nas igrejas anexas à m esa capitular e em algum as que ele tem em título,
e tendo tom ado conhecim ento de causa, Sua Senhoria, segundo se crê, o persuadiu e fez
com e le que tornasse a repor os ditos sequestros [...] o que o dito M estre-escola fez e
parece que com m edo como seu súbdito, e tornou a repor os ditos sequestros [...]»
(Protesto que fez o Cabido no Concílio P rovincial B racarense, ano de 1566 — AHUM,
Gav. conc. sin ., 15, f. lOr).
72 « [...] notifiquem ao M estre-escola desta igreja que, em term o de dez d ias, mande
m ostrar recurso, se o tem , da nossa visitação passada em que lhe foi m andado que
derribasse a igreja de Santiago, conform e as visitações passadas, aliás, passados os ditos
dez dias e não o cumprindo, notificareis aos apontadores o não apontem em sua prebenda
sob pena dexcom unhão, ipso facto, até verem nossa provisão em contrário» (V isitação
de 1567 à Colegiada, in BTH, vol. X [1945-46], p. 2).
A COLEGIADA NA ACEITAÇÃO DO CONCÍLIO DE TRENTO 499

rães 73, sendo apurados como principais responsáveis pelo desacato Miguel
de Almeida e Bartolomeu Dias, criados do Mestre-escola 74.
Por lamentáveis que sejam tais episódios, enquadrados no tempo perdem
o significado que hoje poderiam ter. Razões idênticas provocaram a tenta­
tiva de envenenamento do Papa S. Pio V e a agressão, à arcabuzada, a
S. Carlos Borromeu.
A fundação e manutenção dos seminários representou sempre um pesado
encargo para as dioceses e, quando as receitas haviam de ser auferidas
dos benefícios eclesiásticos, esse encargo recaía exclusivamente sobre o
clero. Não nos surpreende, portanto, que, em fins de 1577, o colector
Roberto Fontana denuncie para Roma os bispos portugueses, excepto o
Arcebispo de Braga, de não terem ainda dado ordem ao seminário 75. E que
na França fosse preciso esperar quase um século para Bourdoise alcançar
do Rei, em 1631, autorização para ensaiar um seminário paroquial76.
No IV Concílio Provincial Bracarense, os opositores do seminário dis­
seram muito claramente aos bispos da Província eclesiástica que «quando a
alguém parecesse necessário [o seminário] devia sustentá-lo à sua custa» 77.
Esta voz não foi de Guimarães, mas a Colegiada parece ter pautado
por ela a sua política em relação ao seminário. Efectivamente, a Sagrada
Congregação do Concílio, em documento de 1580, dá ordem ao Arcebispo
para intimar as Colegiadas de Guimarães e de Barcelos a se justificarem
perante ela, no prazo de quatro meses78, pois recusavam a contribuição

73 D evassa sobre desacatos em G uim arães (AHUM, Col. cron.} cx. 47, d. 4, 30.X.1576).
74 Cf. J. A. F erreira, Fastos Episcopais da Igreja Primacial Bracarense, c. VIII,
‘D. F r. Bartolom eu dos M ártires', t. III, p. 58, nota 1.
75 «Sciat Sanctitas V estra quod in R egno Portugaliae, excepto Archiepiscopo Bracha-
rensi, nullus praelatus erexit collegium sem inarii ad pueros pauperes alendos e x reditibus
ecclesia sticis [...]» (ASV, Num. Fort., 1, f. 51).
76 P . Broutin, La réforme pastorale en France au XVII siècle (P aris, 1956), II,
c. 12, p. 191.
77 Protesto que fez o C ab id o... (AHUM, Gav. conc. sin., 15, f. 6v).
78 «Revm e. Dne. Quoniam capitula illa collegiatarum ecclesiarum oppidorum de Gui­
m arães et B arcelos adhuc sem inário contribuere recusant, nec tam en quidquam m om enti
adduxerunt adversus probata abste (sicu t in lib ellis his litteris coniuncto exponitur) idcirco
Sacra Congregatio Cardinalium Tridentini Concilii interpretum Amplitudini Tuae scribendum
censuit, ut eisdem capitulis intim ari iubeas, ut intra quatuor m enses (quem terminum eis
peremptorium assignabis) coram eadem Concilii Congregatione deduci et allegari faciant
quicquid praetendunt, quominus ad contributionem teneantur. Quare Amplitudo Tua ita aget,
et bene in Domino valebit. R om ae, die XX D ecem bris 1580. Am plitudinis Tuae uti frater,
Philippus Boncom pagnus, Card. Sti. X isto (AHUM, Col. cron., cx. 47, d. 15).
500 RAUL DE ALMEIDA ROLO

para o seminário, alegando que gastavam todos os seus proventos em


distribuições aos intervenientes no coro79.
Não sabemos como a Colegiada de Guimarães se justificaria, pois, em
1583, o Arcebispo D. João Afonso de Meneses, lembrando que «a Igreja
de Nossa Senhora de Oliveira é toda fundada pelos Reis passados [...], é a
principal de todas as Colegiadas deste Reino e de muita fazenda», lhe
manda construir a casa do Cabido, pois tem «renda honesta» 80.
Além destes pontos destacados da reforma tridentina —residência e
seminário — uma constante das Actas das visitas pastorais — e não só das
visitas a Guimarães — é a comprovação de que várias ordenações continuam
por cumprir, de visita em visita. Mas nem tudo em Guimarães era letra
morta. O Arcebispo quase sempre acompanhava seus preceitos de alguma
sanção. Cotejando, nas Actas das visitas, a alínea do «já mandado» com os
itens da visita precedente, verificamos que, em geral, boa parte das medidas
de renovação ordenados pelo Arcebispo foram acatadas e estão cumpridas.
Por exemplo, pela última vez se manda, na visita de 1568, que tomem
ordens sacras Aurélio António Baldio e Pedro Ferraz. Talvez estes sejam
os últimos daqueles cónegos moços que encontrámos na Colegiada em 156081.
Desta sorte, através das Actas, poderemos verificar mais ou menos, o
progresso da reforma disciplinar de uma instituição, isto é, se se comprou
o missal, ordenou o arquivo, fez o confessionário, ampliou a igreja, mudou
o cálice, substituiu a criadagem, ordenou a liturgia, etc. Mas para o Arce­
bispo não bastava corrigir os abusos; o essencial e importante era modi­
ficar o estado de coisas, o que dificilmente se pode exprimir nas Actas.

79 «Dlustrissim i et R everendissim i Domini. Quoniam capitula collegiatarum ecclesiarum


oppidorum de G uim arães e t B arcelos, B racarensis diocesis, pro substentatione sem inarii
bracharensis pro rata, iuxta form am Constitutionis Piae me P ii V, contribuere recusabant
prout recusant [ ...], quia om nia in distributionibus quotidianis consistunt [...]» (Ibid.).
80 «Porque esta igreja d e N ossa Senhora de O liveira é toda fundada pelos R ei passados
de gloriosa m em ória e é a principal de todas as colegiadas d este Reino e de m uita renda,
é grande fa lta não ter ca sa de Cabido nem cartoreo e assim não é m enor a falta das
secretas porque estas é causa de os capitulares falarem nos ofícios divinos quando vão
a suas ca sa s, e pois a fábrica tem renda honesta, m andam os [...]» (V isitação de 1583,
in BTH, vol X [194546], p. 15, n. 30).
81 Cf. supra nota 22.
A COLEGIADA NA ACEITAÇÃO DO CONCILIO DE TRENTO 501

PARA ALÉM DA VISITA

Bartolomeu não era um espírito juridista à fariseu da sinagoga; ele


é antes um profeta que se dirige à conversão dos corações. Considerando a
visita «a alma da sua missão pastoral»82, Bartolomeu não ia às igrejas
como capataz de obras ou fiscal de comportamentos aparentes. Por isso,
a sua visita pastoral não acabava com a entrega das Actas à Colegiada ou
ao cura da igreja, para na próxima vez ir verificar se se haviam cumprido.
O mais importante da visita ia começar precisamente quando o Arcebispo
voltava costas à vila. Ali não havia tempo nem discrição suficientes para
proceder à revisão de vida dos mais necessitados. Estes precisavam de
um encontro confidencial cóm o pastor que os arguia e com o pai que se
flagelava na sua presença a rogar-lhes, de joelhos no chão e lágrimas nos
olhos, que se convertessem83.
A aplicação do Concílio, vista em profundidade pelo Arcebispo, exigia
que a correcção dos abusos representasse o fruto espontâneo de uma
autêntica renovação de vida. Desta sorte, a instrução religiosa ministrada
a pequenos e adultos, a unidade e harmonia da família, a morigeração dos
costumes, a fidelidade aos testamentos, a luta contra os usureiros, a guarda
da justiça no comércio e nas relações sociais, o combate ao perjúrio e à
blasfémia, etc., eram, nas visitações, alíneas muito mais importantes na sua
óptica de pastor do que remendar os telhados ou murar o adro da igreja.
Mas a sua intervenção naqueles casos tinha de ser discreta e de actuar
sem infâmia. Consequentemente, o penúltimo item de quase todas as visitas
à Colegiada e às igrejas consiste numa lista, mais ou menos extensa de
pessoas — chega a ultrapassar a centena — de todas as categorias sociais,
que se haviam de apresentar em Braga em prazo determinado.
O sentido desta norma é hoje bem conhecido por outros documentos.
Numa representação do Cabido Bracarense ao IV Concílio Provincial,
aponta-se entre as causas da carestia de vida em Braga o facto de o «Senhor

82 «Est enim visitatio quasi anim a episcopalis regim inis, quoniam per eam pastor
se diffundit et expandit omnium suarum ovium commodis et utilitatibus» (Bartholom aeus,
Stimulus Pastorum, P . n , c. 1, p. 139).
83 Cf. L. de Sousa, Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, liv. 1, c. 15 (I, 98);
liv. 3, c. 12 (II, 114-115); ib., c. 21 (II, 157-158).
502 RAUL DE ALMEIDA ROLO

Arcebispo por si e seus visitadores mandarem vir a ela clérigos ou pera


estudar ou pera os reprender» 64.
Mas, em muitos casos, esta chamada a Braga não se limitava a um
encontro apenas para receber uma repreensão ou um conselho e voltar de
contínuo para suas terras. Só essa passagem fugaz não faria escacear
os víveres.
Relatando os ministérios dos padres do Colégio de S. Paulo, o autor
da carta ânua de 1573 informa olaramente: «Com o uso do sacramento da
penitência estão os nossos daquele colégio constantemente muito ocupados,
especialmente com os penitentes que o Arcebispo manda para lá para os
remediarem, porque, como ele anda todo o ano visitando as terras do arce­
bispado, os que nas visitações acha implicados não procura castigá-los com
penas pecuniárias quanto obrigá-los a vir à cidade, ao colégio, e a residir
ali, quem mais quem menos, de maneira que é como uma penitenciaria
estiva. Se bem que é trabalhosa é muito frutuosa, e por este meio estão
muito mudadas aquelas terras, que antes eram tão incultas»85.
Esta acção interior não cabe nas estatísticas.
A Colegiada de Guimarães, com as suas igrejas e fregueses da vila,
deve ter sido o centro de toda a diocese mais visitado pelo Arcebispo e
onde ele podia vir sem pressas, alojando-se, com agrado, entre os seus
irmãos do convento de S. Domingos.
Bem documentados sobre este facto pelas Actas que assinalam a pre­
sença do Primaz na vila todos os anos, em visitas demoradas de até dez
dias, no fim das quais, pela proximidade de Braga, facilmente podia chamar
muitos corações feridos à sua presença de pai, é-nos lícito concluir que
aquela assinalada renovação, verificada pelos Jesuítas em relação a toda a
arquidiocese, se deve ter acentuado mais que em nenhuma outra parte na
comunidade eclesial vimaranense acolhida à sombra amiga dá veneranda
Colegiada de Santa Maria de Oliveira.

84 Protesto que fez o C ab id o... (AHUM, Gav. conc. sin., 15, f. 6r).
85 Carta ânua d e 1573 (ANTT, m s. liv . 690, f. 9v).

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