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NÉVOA AZUL

CONTOS – 2017
16201 PALAVRAS

Resumo
Essas narrativas são as de vidas que se exumem em um lado em que a forma dá à beleza do
conteúdo. Todo o traço de um estilo esmerado com êxito. É o meu segundo livro de contos.

RICARDO RASSI JÚNIOR


ricardorassi.jr@hotmail.com
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 1

Entre metrópoles e relvas

As árvores ascendiam ao céu de forma imponente. O ruibarbo, em sua vida


rasteira erguia-se por sobre a grama. As aves cantavam uma profusão de sons os quais se
intensificavam em melodias doces, que os ouvidos, entendem como canções da
natureza. Lá em sua mansão estava o rico milionário Scott Andersen. Seu condomínio é
coisa luxuosa, adentrando em uma longa avenida de oito pistas e ornamentada com um
jardim cheio de formas, que foram esculpidas por um hábil jardineiro, víamos cisnes,
girafas e coelhos feitos de arbustos.

Adentrando na casa, um Lamborghini descia pelo segundo andar por um elevador


compacto. Em sua casa, uma sala enorme com bares e balcões atestava que era um
homem que gostava de viver em ambiente noturno. Em sua sala havia uma mesa feita
toda de cristal, com seus enormes pilares piramidais. Da janela todos os dias acordava-o
um beija flor, que ao encostar no bebedouro de pássaros fazia soar um sininho.

Em seu século, tudo era acessível para aqueles que possuem dinheiro. Tudo o
que o dinheiro pode comprar tinha Scott. Este sujeito era atraído por tudo o que a
civilização poderia o oferecer e tinha um amigo de longas datas. Este o vinha visitar em
sua luxuosa mansão.

Matias, seu amigo, chegara na hora do almoço, pois como não havia nenhuma
cerimônia entre eles, isso era permitido. Matias chega ao seu grande amigo e seu
protetor Scott com um belo presente. Tinha-lhe trazido um vinho do porto para saudá-lo.

_ Como é Scott, sempre na boa vida?

_ Oh Matias, viver como os reis não é difícil, desde que tenhamos uma provisão
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para isso.

Eles entraram na Lamborghini e saíram para um passeio. Passar pelo grande


parque Ibirapuera o dava um ar de tranquilidade, mas de repente Scott sugere para
Matias:

_Como seria sem civilização? Não sei, não aguentaria muito a vida de bom
selvagem, vamos para o teatro, o museu, a biblioteca e depois curtamos um bom filme
no cinema. Até lá eu posto e vejo as redes sociais, pode haver algum desfile hoje.

_Claro meu amigo, é sempre bom estarmos culturalmente inseridos na


metrópole da América Latina, em pleno século XXI, imagina como era a vida sem nossas
facilidades. – Disse Matias.

No teatro entraram no momento em que se ia fechar a apresentação e o porteiro


apenas o avisou, que estavam em cima da hora. A apresentação era a Odisseia de
Homero e isso para o parâmetro da cultura de Scott era superiormente civilizado:

_Veja, os deuses gregos brigavam por sexo. – Diz Scott

Era realmente um teatro deslumbrante para receber os comentários de Scott e


Matias. Os dois empolgados iam de um ato a outro cobiçando as mulheres que lá se
encontravam. Chamavam-nas de Afrodite e esperavam descer as cortinas, para que
assim pudessem lograr uma boa conquista. Vejam como homens assim, não atribuídos a
desorganizar a ordem das coisas, com algumas garrafas de absinto, ficam totalmente
vulneráveis aos defeitos de caráter.

_ Mas como assim, a Odisseia é a história de um Ulisses, eu apenas me viro nas


minhas lutas. – Diz Scott.

_ Como não! – meu magnânimo. E quantos livros não vejo em sua biblioteca
pessoal? – Matias sussurra pasmo.

_ Toda a cultura, de todos os milênios, hoje cabe em um leitor digital pouco


maior que um palmo. Isso não é uma revolução? Tudo que eu quiser pode ser acessado
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instantaneamente. - Scott alega o que é seu por direito - Toda a cultura de todos os
milênios, aqui na palma de minha mão, basta eu acessar.

A peça havia se findado e Scott e o Matias saíam de lá a toda pressa, para


passarem em uma festa beneficente. Um salão interessantíssimo em meio a uma mata
fechada era o cenário. Eles chegaram e puderam apreciar o som da harpa e da cítara.
Longos tecidos de seda dançavam por cima do teto, as mesas cada um com um castiçal
de prata ornamentavam o local. Desciam por uma grande escada três dançarinas que
dançavam em meio aos comensais.

_ Como é bom esse ar de sociedade sofisticada. – Admirado por pertencer à sua


sociedade de alta classe, Scott se comprazia.

_ Pois bem, meu senhor, tu está totalmente alinhado com essa alta classe, vejo
que ali na outra mesa solicitam sua presença.

Scott, ao chegar à outra mesa cumprimenta seu amigo dono de postos e da


mulher dele, uma fina socialite. Ele elogia os dois por formarem um casal tão bonito e
próspero e marcam de um dia se encontrarem numa viagem à Paris. Este é o centro do
mundo para essa gente, que vive no Brasil, como que tirando férias ou ao menos como
um eixo entre a América Latina e a Europa, a qual emanava toda a fragrância da
civilização. Enfim, o combustível é suficientemente a grande empreitada do capitalismo,
o motor de combustão. Scott sai de lá com uma ideia de que a ordem e o progresso só
poderiam ser representadas por esses sheiks brasileiros do petróleo, donos de centenas
de postos por todo o Brasil. Saindo da mesa dos amigos, nosso herói volta para a mesa
de Matias e numa profunda baforada no seu charuto serve mais champanhe para os dois
amigos. Lançaram-se aos doces manjares e se refestelaram na pista de dança dançando
valsa com as convidadas. Não havia nada melhor que ser um leão em meio às doces
gazelas. Voltaram para a mansão.

Na mansão, entraram em seu portão eletrônico ao lado da guarita. Ele era


realmente rico e não desses remediados que existem aos montes na sociedade de elite e
que estão sempre a se juntarem, ao povo mais fraco da classe, a fim de se fazerem
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pouco mais fortes. Scott era um leão, ele não precisava de ninguém como esses coiotes
que se juntam ao redor da mesa. Scott apenas entrava em sua fortaleza e de lá ia
comandar o mundo de fora. Era como uma central de controle que pelos seus painéis
mais tecnológicos ligava-o a todo o globo da terra pela rede de informação. Podia dali,
controlar suas empresas e finanças. Com um simples clique transferia valores e recebia
seus produtos. O último foi uma coleção de ternos corporais, aqueles feitos por peles
humanas de pessoas tatuadas. Ele usava seu terno na piscina, pois era impermeável e
ficava com alguns coletinhos, cujas tatuagens formavam uma profusão de cores e formas
que cada qual, tinha sua história. Imagine que seus ternos corporais tinham cada qual
uma história. Um era a pele de um adorador do diabo do qual pintava uma série de
caveiras e tridentes os quais faziam Scott pensar se não tomaria a personalidade do seu
antigo dono.

_ Como é Matias, se sente realmente animado nessa minha fortaleza ou gostaria


de estar lá, no reino das florestas, na Amazônia e no Pantanal onde por vezes sei que
você se retira da civilização, para lá tomar um ar bucólico.

_ Mais que isso Scott! Por lá eu tomo o arado e a enxada, cuido dos porcos. Não
se tem muito tempo para pensar. Pensar é por alguns minutos, no crepúsculo.

_ Que vida meu caro. Viver entre flores e folhas. Me assusta aqueles riachos que
não podemos adentrar devido as piranhas morderem. Os matagais sempre no silêncio e
deprimente coaxar dos sapos. Me parece a própria visão de algo não civilizado. Afinal,
como poderíamos viver sem a comodidade da cidade, esta sim, rainha de todos os
nossos regalos. - Diz convicto Scott.

A verdade era que Scott estava empanturrado de filosofia. Devorava tais livros e
outros mais. Suas informações eram crescentes e passava por todos os domínios do
conhecimento em uma tentativa de sobrevoo cósmico sobre a humanidade. Cada vez
mais ele se alinhava aos grandes exemplos. Santo Agostinho, Sócrates, Diógenes, Buda.
Todos esses eram para ele o atrelado total de sua sociedade. A engrenagem precisava de
óleo para rodar e esse óleo era o espírito dos séculos. “Por que tudo isso? ” Ia pensando
e se enfastiando Matias. Ele pensava, ora, Scott sempre está em relação com seus
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convivas, ele toma conta dos negócios como um lorde inglês cuidaria de seus amigos na
corte e mesmo assim esbaforia cultura a todo tempo. Primeiramente começou idealista.
Não imaginava como podia o mundo das ideias não conter tudo o que poderia ser
conhecido por ele. Bastava lembrar da vida antes de passar pelo rio Laques. Mas agora
bastava um pouco o pensamento e a leitura, pois Scott e Matias iriam para a Ópera.
Chegando lá se sentaram no camarote e viam com binóculo a encenação da tragédia.
Como gostavam da alta cultura! Nem um só dia sem um só verso é o que pensara. Se
pudesse ouvir, escrever ou declamar já era o bastante, pois sabiam que a linguagem era
tudo o que de melhor produzira o homem. Claro que pensava também que sua
Lamborghini é superior a qualquer tenor, mas não dizia isso e sim gostava de demonstrar
em sociedade, ares de patrono da cultura, pois essa ópera que assistia agora, ele mesmo
patrocinara.

_Chegou o momento de fechar as cortinas meu caro Matias.

_ Sim, agora virão as damas da sociedade lhe brindar pelo espetáculo. – Avisa
Matias.

Chega uma senhora com traços germânicos e o saúda no que Scott saúda de
volta. E logo o burburinho estava armado. Todos em volta de Scott o homenageando por
facilitar tamanha honra à cultura clássica. De longe, Scott vê uma moça com a pele clara,
porém amorenada levemente e de profundos olhos azuis. De uma cor rara eram seus
olhos, mas o que mais o chamava a atenção era o semblante de perdição que tal face o
impressionava. Se pôs ao lado da moça e ela ao sentir a presença de Scott se esquiva um
pouco para o lado. O garçom passava por entre eles e assim Scott segura duas taças de
champanhe alcançando uma em direção a moça:

_ Uma moeda pelos seus pensamentos. – Diz Scott à moça.

_Hum. O que meus pensamentos serviriam, para alguém que já ouviu tantos
outros? – A moça responde.

_ Posso saber ao menos seu nome? – Scott pergunta, mas a moça ao invés de
respondê-lo fixa o olhar nos olhos de Scott – deixe eu adivinhar: Adélia.
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_ Como soube? – Ela pergunta com espanto.

_Apenas sei, não me pergunte como. – Assevera Scott.

Desse primeiro encontro em diante foram meses de conversa entre Adélia e


Scott, até que um dia Scott a chama para Fernando de Noronha. Ela recusa, porém Scott
já estava por demais fisgado por Adélia. Uma leve curiosidade por uma donzela de ar
virginal. Scott, portanto convida toda a família de Adélia para ir a Fernando de Noronha e
eles vão em um jato particular que Matias pilota. Ao chegarem na ilha vão se
intensificando os sentimentos recíprocos de um para o outro e Adélia se entrega para
Scott. Pois bem aí se vai mais uma conquista de Scott e ele satisfeito com o que se
sucedeu, programa mais viagens entre ele e ela. Para a surpresa de Scott, Adélia havia
entregado para ele sua última flor ou a virgindade e por uma sei lá das quantas
misteriosas pulsões femininas Adélia se torna incomunicável depois de todos voltarem
da viagem a Fernando de Noronha.

_Matias, o que será que deu nessa moça, ela estava tão radiante na ilha e agora é
como se tivesse sumido do mapa.

_ Mistérios da alma feminina. – Responde Matias à Scott sabendo, no entanto,


que não deveria ser nada disso.

Scott vai até o jatinho a fim de relembrar algo que poderia ter esquecido de dizer
ou dito demais quando estavam em voo e encontra um bilhete no chão. Pega-o e é um
cartão postal com a foto das savanas africanas. Atrás escrito: “talvez aqui eu pretendo
encontrar a inocência perdida. ” Quando Scott lê o bilhete não tem dúvida, uma súbita
paixão o encoleriza e ele avisa Matias:

_ Vamos, teremos que deixar a civilização. Sentimentos primitivos me privam de


qualquer razão diante do fato que me acontece no momento.

Chegando às Savanas africanas tudo se dá de forma escaldante. Um sol do


tamanho do céu e rubro como rubi se despontava. Logo foram Matias e Scott
procurando armar uma tenda. A comunicação era zero, pois onde estavam longe das
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torres de comando da telemática e ao avistarem um zulu foram logo tentando conversar


e saber informação de alguma moça que estivera por lá. Matias mostrou a foto para o
homem que de nada sabia. Os dias se passavam e a alimentação era com salsichas
enlatadas e presunto. Nada que Scott estava acostumado. Sabiam que a qualquer
momento, um leão ou um elefante podiam aparecer e Scott que era um leão na
civilização parecia o mais fraco dos animais na relva. Os mosquitos, não davam trégua e
todos os insetos pareciam se agigantar nesse momento. A água era salobra. Apenas
coaxar de sapo e uivos de lobos eram as suas operetas agora. Para finalizar, Matias se
prostra ao adquirir uma malária. Matias fica na tenda e Scott vai à cidade mais próxima
para pedir ajuda de algum médico. Vai em postos de saúde e quando lá chega... Ahhh!
Para a surpresa dele, era Adélia, a doutora. Eles se olham... e... naquele momento: tudo
estava resolvido. Ficam paralisados olhando um ao outro e não resistem, se abraçam no
despontar de um beijo onde ambos caem em um abismo. É o amor do reencontro.

_ Scott!

_Adélia!

_Quer se casar comigo? – Pergunta Scott.

_Agora que sei que você sabe se virar longe dos holofotes e da civilização: sim!!!

_Foi uma prova de amor. – Dá a última palavra, Scott.

Como tudo estava resolvido, agora, Matias é tratado por Adélia e voltam para São
Paulo. De lá vão para Nova York. Adélia, Scott e Matias. Por lá andam pelas ruas
movimentadas e tumultuosas. Scott estava novamente em seu habitar natural. Adélia se
casa com Scott em um bairro italiano da grande metrópole mundial. Scott cada vez mais
se interessa pelo show business como forma de aumentar sua fortuna, mas vai
percebendo Adélia cada vez mais desolada. Programam outra viagem. Agora pela Itália,
com Matias pilotando o helicóptero. Um salto duplo de paraquedas coloca Adélia e Scott
em meio a uma pastagem no sul da Itália e do helicóptero caem pétalas de rosas em uma
cidadela isolada do mapa, com planícies cheias de orvalho, um cercadinho branco de
madeira e como único automóvel, um Jeep. Scott não queria cair novamente na besteira
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de perder Adélia e nessa paisagem em que para beber leite era necessário ordenhar, por
lá ficaram Adélia e Scott. Onde viveram felizes para sempre.

Quanto à Matias, demitido, pousa o helicóptero em São Paulo, no heliporto que


Scott tem em sua propriedade e vai rumo à miséria, para um cortiço no centro, em que
de bebidas e prostitutas baratas, rola o rock pauleira de uns punks da cidade.
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O juiz que virou a casaca

Capítulo um

Benjamim, o filho do doutor Adamastor e filho também de Diana, tinha vinte e


três anos assim que se formou em Direito. Sempre fora um daqueles prodígios que fazia
os olhos brilharem diante de tal secura do pensamento. Puxara a fleuma do pai e sua
decisão sempre fora convicta. Entrara agora para a maçonaria e de lá, muitas
influências, o deu um ar de segurança e onipotência, que dista de um jovem.

Chegava na cidade uma prima sua, Amália. Amália é uma moça pobre do interior
que afeiçoando-se à família Braga sempre vira em Benjamim uma companhia agradável e
da austeridade do pai desse, uma respeitável reação angelical. O fato era que chegara à
família como a um pombo branco esvoaçante e ligeiro para adentrar os umbrais de tal
nobre família. Adamastor sempre fora, desde o tempo de juventude, um juiz honrado e
cumpridor de todas as promessas para a família. Havia agora, no entanto, instalado uma
pequena rusga na casa dos Braga, pois Diana começou a folhear livros de ocultismo.
Adamastor pegando-a no momento em que devorava um grimório altercou:

_Pobre Diana, pensa que um deus se ocultaria em tão baixa magia?

_Ora, não é por não acreditar em Deus que tu, na altura de sua sabedoria e
sapiência virá me dizer que Ele não existe, mesmo que de forma turva nesses escritos
ocultos eu o busco.

O fato era que para a família, nunca se viu algo como ateísmo generalizado sendo
Diana ocultista, Adamastor ateu e Benjamim católico. Amália, a prima pobre não se
interessava por religião, sendo uma agnóstica diletante.
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Na família, pequenas rusgas se instauravam ao longo de anos e elas não se


resolviam como que tratadas em banho maria. Amália se aproximou de Benjamim e este
a acalentou nos braços, como se estivesse a muito guardando uma saudade, que podia
agora se extinguir em pequenos afagos.

Mais um dia de labuta, no entanto, esperado por todos e chegou a hora de um


dia tão rotineiro e cotidiano se extinguir na casa dos Braga, que eram todos cumpridores
de seus deveres e que compraziam no leito cedo da noite.

Capítulo dois

Uma noite bem dormida todos tiveram, menos Amália. A prima começou a sentir
os primeiros sinais de que nada ia bem no seu organismo. Era uma tontura e fadiga
exageradas, logo ao se passar nove horas da manhã e em suas emoções, o longo trajeto
que fizera, mais o sentimento de rever a família condicionaram-na a uma noite mal
dormida, daquelas que se fica revirando na cama o tempo todo.

Benjamim chega ao encontro de Amália e por mais uma vez deixa transparecer a
ternura que sente pela prima:

_ Minha querida prima, você está com algum mal-estar causado pela viagem?

_Não é nada Benjamim. Algo passageiro.

Adamastor, porém, não podia deixar passar em branco tamanho desvario da


mulher que não prestou nenhum socorro à convalescente:

_Imagino que o que você está sentindo seja algo ligado aos boatos de bruxaria de
Diana, não ligue para ela. Sua indolência não fará surgir espíritos, pois como sabemos:
eles não existem.

Constrangida, Amália deu um discreto sorriso e se voltou para sua panqueca com
geleia de morango. Não era da índole de Amália tentar empreender um longo discurso
com os mais velhos, pois ela achava de bom tom manter a discrição.

Ainda assim, Benjamim, tinha seus olhos voltados para Amália, no que a mãe dele
procedeu em desiderato:
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_Imagine, meu amado filho, se agora que você está prestes a seguir a carreira do
seu pai você fizer aquela viagem dos seus sonhos na próximas férias? Creio que Amália
adoraria ser sua companheira nessa aventura. Quando não, ela era sua grande
companheira quando fazias todos seus aniversários na casa de sua avó.

_Sim mãe, não seria má ideia Amália vir comigo, afinal ela só tem dezoito anos e
uma ânsia gigantesca por esse grande mundo em que vivemos.

Amália que passara a maior parte do tempo no interior do sul do Brasil, não
conhecia mesmo o mundo e para ela seria ótimo conhecer outras cidades. No que ela
disse:

_Essa viagem é a sua última vez longe do trabalho por muito tempo?

_Sim. Eu pretendo empreender essa viagem de seis meses na Europa e depois me


dedicar somente à advocacia e à preparação do concurso para juiz.

_Eu muito te admiro primo. Não é em toda família que em seis gerações os filhos
homens foram juízes. Você será o sétimo.

Diana se exalta como se tivesse algo grandioso para falar e brada:

_ Sete! Esse é um número mágico meu filho. Sete são os orifícios da cabeça, sete
são as cores do arco-íris e sete são os dias da semana. Será mesmo isso uma profecia?

Ser juiz para os Braga era uma daquelas profissões, que além de um conforto,
trazem também a honra de se estar estendendo como uma dinastia pelo globo. Seria
como entregar o fogo sagrado dos deuses aos mortais dos quais nos damos conta. Não
era simples status social que buscavam os Braga, possuindo eles muitos familiares nesse
cargo, seria sim, uma ideologia utópica de salvadores da humanidade. Um juiz quer ou
não, tem em seu ofício coisas sérias e penosas, que mudam o destino de muitas vidas e
era isso que se fazia por lá. Uma família de juízes e nada mais nada menos.

Capítulo três

Pela manhã do terceiro dia, na casa dos Braga, resolveram Benjamim e Amália
tomar um ar junto aos galopes firmes dos mangas largas que tinham em seu aras. Foram,
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portanto, galopando ambos, lado a lado e olhando um para o outro de forma a não
alvitrarem nada do que seria a viagem, mas programando que poderia ser um bom
refúgio dessa civilização que Amália amando por desconhecimento e que não podia se
dizer o mesmo para Benjamim, criado e cultivado em um ar erudito que emana palavras
eloquentes e nobres sentimentos, entre os convivas que por algum vínculo tinham
grande familiaridade entre si. A viagem era importante para ambos que desfrutariam de
uma privacidade impossível dentro do círculo de suas famílias. Benjamim olha para
Amália e com um sorriso todo amável, a desce do cavalo e caminham da estrebaria para
casa, contentes pelos seus projetos.

“Ora, Benjamim, você não desfrutará do dom que deus lhe deu de unir-se aos
seus pares? ” – Pensa Amália consigo mesma.

Até quando Amália será uma intrusa entre os Braga? Essas questões eram
tácitas na família, por isso inventaram a tal viagem para que, Ben, como Amália o
chamava, tivesse a oportunidade de estreitar laços sanguíneos através de uma
convivência maçante. O problema era que Amália tinha deixado sua família composta de
pai, mãe e irmãos para passar um bom tempo entre os Braga. Ela queria mesmo ser uma
espécie de filha adotiva de Adamastor e Diana e consequentemente Ben seria seu irmão
mais velho.

“É por causa de meu pai, meu avô, meu bisavô e meus tataravôs que mais um
Braga figurará como um juiz emérito”. Adamastor assim pensava e se preocupava com o
futuro do filho e de sua reputação como pai. Formar um juiz não é nada fácil, mas ele
sabia que certa tendência colocava a família e filhos e netos todos a essa disposição.
Estava no dna da família esse sucesso no judiciário. O que poderia fazer senão esperar
que o coroamento de sua carreira fosse designado através de uma espécie de
testamento ideológico paterno?

Por sua vez, Benjamim só pensava na viagem e vai lá saber quais as intenções de
ambos os jovens que, na verdade, eram irmãos postiços.

_ A verdade é que nós não deixamos nossa infância muito para trás, Amália.
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_Oh Ben! Estaremos realmente sempre presos ao passado?

_Temo que seja muito recente nossa infância. Éramos primos muitos próximos
um do outro e me parece que agora, essa magia está voltando a nos envolver. É como se
eu pudesse sentir o vento nos meus cabelos quando brincávamos de trepar em árvores e
ver quem pegava o fruto mais doce. – Diz Ben.

_ Agora esse fruto é o fruto de seu trabalho e de toda confiança que seus pais
depositam em você.

_Projeções, meras projeções dos meus pais em meu futuro. Antes que tudo
venha a concretizar, somente podemos aproveitar essa viagem que será inesquecível
para nós.

Adamastor está com um ar sério, Ben chega a ele de forma inoportuna e detalha
para ele o programa da viagem. Diana lhe dá a benção e logo estão Benjamim e Amália,
como dois pássaros em revoada ansiando pelo caminho do trem que os levará ao
aeroporto mais próximo de sua pequena cidade. Ben está convicto, essa viagem revelará
à Amália o ser autêntico de Ben, aquele que ele sempre escondera por medo de
imoralismo, mas que agora ele sente ressurgir em frente os lábios trêmulos de Amália,
pois toda sua carne é trêmula.

_Filho meu, irás agora para uma longa viagem ao redor do velho mundo. Quando
voltares dará sua preparação para os estudos. Agora que você advogou três anos pode
começar a pleitear a vaga de juiz.

Capítulo quatro

Ben e Amália vão de trem até o aeroporto. Chegam tranquilos para a viagem.
Rumo à Europa estavam e ficariam lá por pelo menos seis meses conhecendo belas
construções e museus, pontos turísticos e a cultura que ele ouvia falar através dos
turistas estrangeiros de sua cidade.

_ Ben, será que esse avião não tem perigo de cair?

_ É improvável. Essas coisas acontecem raramente.


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Embarcam e têm uma viagem tranquila; só com o empecilho que Ben não podia
fumar seu charuto dentro do avião. Mas dentro de todas as possibilidades, a viagem foi
tranquila e chegam à Europa desembarcando na Itália. Ao invés de irem para o hotel vão
direto para o coliseu para apreciarem as ruínas de uma grande civilização.

_ Veja como eram os romanos. Sua diversão era ver gladiadores combatendo até
a morte. Hoje temos o boxe e as artes marciais. Será que somos menos romanos que
eles por isso? – Interroga Ben a Amália.

_ Imagino que não, pois o panis et circenses continua em nossa sociedade de


outra forma. Agora, com o advento da televisão, podemos saber que a vida é circo. Circo
de festivais musicais e o pão é sempre a gin tônica que tomamos quando queremos nos
divertir. Assim o governo nos deixam passivos para os verdadeiros problemas sociais e o
que não dizer: políticos! – Responde Amália à Ben.

Depois de verem o coliseu e passarem em um museu queriam ver a capela


Sistina, mas a entrada já se havia encerrado por aquele dia. O certo é que nesses seis
meses que ficaram na Europa fizeram um tour. Começaram a planejar a vida que virá e o
que acontecerá no futuro próximo. Tiveram ali uma paixão platônica desertada, mas
como eram quase irmãos, não se deixaram consumar a tentação de se apaixonarem
carnalmente e ficaram sempre abraçadinhos um com o outro dormindo de roupas
íntimas na mesma cama, mas sem terem concupiscência carnal, pois acima de tudo, a
família, mesmo longe, vinha em primeiro lugar em suas morais puritanas.

De volta da viagem, foram direto para a casa do pai e disseram tudo o que houve
na Europa. Sobre a estadia, os costumes do povo europeu, as bebidas, comidas e certos
detalhes que só eles sabiam. A paixão entre os dois já estava instalada e não parecia ser
coisa muito insossa pelo visto, mesmo que diante do calor das peles, não haver nenhum
ato mais profundo e sexual no agir de Ben e Amália.

_ Agora, meu filho, que você teve essa sua surpresa de conhecer o Louvre, a
capela Sistina, o rio Sena, a torre Eiffel e todas as belezas da Europa é hora de começar
os estudos para o concurso de juiz. Como bom advogado que foi imagino que conseguirá
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se tornar juiz. Está em nosso sangue e você será nosso sexto juiz na família Braga. –
Assevera o doutor Adamastor.

Diante de todas as aspirações e pressões da família, Benjamin se coloca a estudar


para o concurso de juiz, sempre convivendo nas horas vagas com Amália. Passava doze
horas estudando por dia e depois de dois anos vivendo em família e se dedicando a
cursinhos e leitura, ele presta o concurso para juiz. Passa com menção honrosa e vai
contar a novidade para os pais e Amália. Num almoço na família ele chega e fala:

_ Pai, mãe, Amália... é com grande satisfação que eu digo que eu sou o mais novo
juiz de nossa família.

_ Oh! Meu filho, a mamãe sempre soube que você conseguiria.

_ Filho meu, isso é a maior honra que recebi em vida, devemos congratula-lo com
um grande presente, pois de agora em diante tenho certeza que o legado dos Braga está
garantido por mais um século. – Diz o pai totalmente contente e sem conseguir disfarçar
as lágrimas que correram pelos olhos.

Capítulo cinco

Amália e Ben saem um pouquinho para ir no mercado central da cidade e quando


voltam, tem um carro na garagem da família. Ben pergunta que carro era aquele, um
luxo para a época, e assim que o pai diz que era seu presente de congratulação pelos
esforços meritórios, Ben e Amália vão dar um passeio.

_ Você conseguiu tudo que seus pais reservaram para você. – Amália diz.

_ Sim, menos uma coisa. Apenas uma coisa não consegui ainda nessa vida. Me saí
bem em todos os testes; em todos eu passei com louvor, apenas uma coisa deixa meu
coração aflito.

_ Mas essa coisa de não conseguir certa coisa é algo...

Ben não deixa nem Amália terminar a frase e se põe testa a testa com ela:

_ Sim Benjamin, isso você conseguiu... – e se beijam calorosamente.


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Depois de se beijarem vão a um lugar distante na cidade, onde ninguém os


poderiam ver e fazem sexo no banco traseiro do carro. Depois de três anos convivendo
juntos, o inevitável aconteceu e a paixão de um pelo outro extravasou como um vulcão
que não há como interromper o fluxo. Porém manteram em segredo o romance, pois
primo com prima não era bem visto na família.

Em casa a vida continuava. Se passaram oito meses como juiz e Ben julgava casos
e mais casos sem nunca pensar fora do âmbito da lei. Sempre pensara como se fosse um
cálculo por A mais B os processos que caíam na sua escrivaninha. Vivia sua vida
tranquilamente com o segredo guardado entre os dois. Pensavam que poderiam viver
assim até o resto da vida sem ninguém nunca saber de nada, mas como viviam às
escondidas, começaram a aparecer pretendentes tanto para Ben com seus vinte oito
anos quanto para Amália, que com seus vinte e três anos, já estava velha para casar
naquela época. Em um jantar comemorando o aniversário de Ben, eles resolveram
contar o segredo em público. Para uma plateia com mais de trinta pessoas ligadas à
profissão do judiciário, Benjamin sobe no tablado com Amália e anuncia:

_ Tudo bem pessoal? Todos me perguntam o porquê de eu estar assim no auge


da minha forma física sem nenhuma esposa a meu lado. Me perguntam se é culpa do
trabalho ou se eu não encontrei a mulher certa. Ainda mais, me apresentam mulheres da
alta classe, todas belas e muito bem aparatadas e inclusive duvidaram da minha
masculinidade, devido eu recusar todas elas. Com Amália é a mesma coisa. Mas venho
anunciar aqui para vocês, em primeira mão, que se eu e Amália não encontramos a
pessoa certa pelo ponto de vista social é porque estamos muito apaixonados um pelo
outro para ter oportunidade para isso.

_Que absurdo! Vocês são primos. – Grita a mãe já em tom de escândalo em meio
ao salão de festa.

Essa noite não foi boa na casa da família Braga. Passaram a noite inteira
discutindo o como era impossível levar à frente esse relacionamento e sobre como,
enquanto um respeitado juiz de sua comarca, deveria desatar esses nós semincestuosos
que ligavam um ao outro. A mãe dizia que ambos iriam esquecer um ao outro depois que
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 17

encontrassem bons e permitidos partidos, pois o amor proibido não poderia se firmar em
uma sociedade tão respeitável.

Capítulo seis

Tristes e desconsolados, Ben e Amália ficaram. Como poderiam fazer agora sem o
consentimento da família? O que seria daqueles suculentos beijos que outrora faziam os
dois sentirem frio na barriga? Será que poderiam se separar assim depois de um e outro
encontrarem suas almas gêmeas? Um dia saíram para a praia todos juntos e Ben
conversou com seu pai:

_ Não tem jeito meu pai, nós nos amamos. Como fazer para separar o que é
como unha e carne?

_ Benjamin, não tem como vocês se casarem. Isso nunca aconteceu na família:
um primo em primeiro grau casar com uma prima em primeiro grau. O que eu disse a
você está decidido. Ainda sou eu que dou as ordens aqui na família. Uma família que vive
pela lei tem que seguir as leis e os costumes da sociedade. Deixe que outras mulheres
irão te procurar, afinal, mulher não se difere muito uma da outra e quando você ver,
você terá filhos saudáveis com sua próxima conquista, coisa que sua prima não tem
genética para oferecer. Você sabe, a probabilidade de nascer uma aberração de vocês
dois é grande. Pode vir um filho cego, o segundo também e daí por diante. Senão coisa
pior. – Decide pôr um fim em tudo, o doutor Adamastor.

Ben e Amália eram só desolação. Tentaram ficar uns meses longe um do outro e
ficaram. Um, dois, três meses. Mas quando deu noventa dias não conseguiram e se
encontraram às escondidas. Amália continuava morando com os Braga e Ben em um
hotel. Foi quando se encontraram Amália e Ben e este deu um passaporte para Amália
rumo à Nova York, dando também, o endereço do hotel em que ela se hospedaria até ele
chegar. Passou um mês e Ben foi também rumo à Nova York. Chegando lá, encontrou
Amália no ano de 1969. Assim puderam se rever e matar a saudade. Isso só reforçou o
amor dos dois. Perceberam que eram feitos um para o outro. Eles que sempre se
encontravam às escondidas agora andavam de mãos dadas pelas ruas de Nova York.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 18

_ Ben, e quando tudo isso acabar e você cair na real e tiver que voltar para o seu
ofício de juiz? Não poderemos nos ver mais e viver casados tendo um ao outro como
amante, não é o que sonhei para mim.

_ Vamos para um festival hoje. – Ben avisa.

_Woodstock?

_ Exatamente.

No festival de Woodstock lá estão Ben e Amália. Não podiam imaginar que seria
tão divertido assim. E quando começam a fumar maconha os dois entram em uma
barraca que eles mesmos levaram e começam a fazer amor e sexo. Não acreditam em
tanta liberdade. Passam-se dois dias e um hippie muito alucinado de LSD faz o
casamento dos dois ali mesmo, quando cada um dos dois, promete um ao outro jamais
se separarem. Ben e Amália se tornam hippies e por lá deixa sua toga para nunca mais
voltarem ao Brasil. Vivem felizes para sempre e por muita sorte seus filhos nascem
saudáveis. Ben se torna encanador e eletricista e Amália baby-sitter, que no Brasil é algo
parecido com babá. Eles se casam legitimamente na igreja depois de um ano morando
juntos. E vivem felizes para sempre, ou melhor, até que a morte os separe..
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 19

Armênia e Renato

Naquela tarde, ele passou a repensar a sua vida. O que seria ele mesmo?
Complexos de uma fase de meia idade que o aturdia por completo. Já chegara na metade
da vida. Não fora fácil o mal-estar na civilização em que viveu. Um ambiente provinciano
de pessoas sem a mínima boa vontade e ainda muita desonestidade e algo podre, a
carcaça da noite pairando no ar, com um fétido cheiro de traição. O perigo a rondar seus
mais nefastos hábitos de vida e agora a notícia da demissão por justa causa devido ter
discutido com o chefe.

“O que será de mim? ” – Pensava ele em seu íntimo.

Certamente nunca havia sido fácil trabalhar para enriquecer o patrão, enquanto
ficava-se pobre para sempre, mas a miséria ao menos nunca havia batido em sua porta.
Há uma grande diferença entre um pobre empregado e um miserável mendigo e essa
última alternativa ele não tinha provado de forma alguma em sua vida. Não sabia mais o
que fazer diante de tal situação periclitante.

Ele saiu para um bar com os seus últimos trocados no bolso que lhe restava para
se não resolver o problema, ao menos adormecê-lo por uma noite. A noite da triste
notícia da empresa em que trabalhava. Ao chegar no bar havia uma apresentação de
dança do ventre acontecendo no recinto. Era um dia especial e ele fora sortudo em
chegar num dia em que havia algo assim acontecendo. Um evento interessante como a
dança do ventre.

Sentou em uma mesa e ficou a observar aquele requebrado de uma dançarina


cuja cintura modelada e flexível era uma bela visão quase que paradisíaca para um
amante da beleza feminina. Ela dançava como se estivesse em uma superfície flutuante e
fazia certas acrobacias com uma espada. A música árabe o hipnotizava e ele seguia com
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 20

os olhos, o sensual movimento do ventre que a dançarina sabia tornar ainda mais
visualmente espetacular.

A dançarina desceu do palco e se aproximou de Renato, 35 anos e recém


desempregado. Ela tinha feições belas e insinuava com o corpo tudo o que mil palavras
não dizem.

Ficou frente à frente com Renato. Olhos vidrados um no outro. O umbigo da


dançarina estava a um palmo do nariz de Renato e este procurava olhar para o rosto
dela, ainda que não deixava de abaixar os olhos de vez em quando para ver os
movimentos corpóreos da odalisca. Ela se virava de lado de vez em quando
acompanhando o movimento da música, mas mesmo assim não deixava de fitar Renato
com aqueles grandes olhos amendoados.

O garçom chega até a mesa de Renato e com muita cordialidade coloca um


uísque na mesa dele:

_ Cortesia da casa. – Diz o garçom.

_Verdade? Enfim... não tenho palavras para agradecer. – Renato diz meio
timidamente.

_É scotch dezoito anos, a garrafa toda para você. Beba à vontade. – O garçom
explica.

Renato seguiu a ordem do garçom que era muito fácil de ser cumprida, afinal, era
uma bebida de qualidade genuína. Passou a beber seu caubói e a odalisca não saia de
sua frente e ao virar, ela saiu rebolando.

Renato estava tendo uma noite digna de um príncipe das arábias em comparação
ao que estava acostumado em viver em sua vida. Alegre como nunca, solta gritos de
satisfação, já alcoolizado pela bebida que fora uma cara cortesia da casa.

O tempo foi passando rapidamente aquela noite, pois como estava bom para se
curtir a vida, o tempo então passava rápido. Deu então sete horas da manhã no bar e
ficara lá apenas Renato, a odalisca e mais distante deles uma mesa com quatro homens.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 21

Esses homens têm as barbas longas. Uns usam turbantes, outros batas que chegam até
os joelhos e ficam tomando áraque e fumando narguilé. O cheiro de anis e aromáticos se
misturam pelo ar.

Acabada a dança que havia sido somente para ele mesmo, o Renato, o som foi
desligado e o silêncio se instalou no ambiente. Porém, agora acabada a festa, a odalisca
se aproxima de Renato e diz:

_ Que prazer é sentir o clima do Brasil, o calor é parecido com o do deserto, mas
há uma amenidade nesse ar úmido que me excita.

_ Certamente é um dos melhores climas, esse dos trópicos. – Responde Renato.

A mulher se senta ao lado de Renato. A mulher de cintura fina que desemboca


em um largo quadril. A barriga um pouco saliente era uma espécie de adaptação natural
para melhor desenvolvimento e apresentação de seus movimentos na dança. Possuía
uma pele morena, levemente queimada, mas de cor avermelhada. Seus olhos são
oblíquos e grandes, amendoados como a noite parcamente enluarada. Ao sentar na
mesa de Renato passam a conversar.

_ Como é seu nome?

_ Renato.

_ E o seu?

_ Armênia.

_ Lindo nome.

_ Mais lindo ainda é o futuro que não possui nenhum tipo de acaso.

_ Há Há Há! É verdade, embora para mim acredito que não sei nada do futuro.
Ontem mesmo não sabia o que me aconteceria hoje. – Renato contradiz.

_ Espero ser melhor que o presente, o futuro que se aguarda.

_ Sim Armênia, mas acredito que fazemos o futuro de acordo com o presente que
vivemos.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 22

_ Belas palavras. Merece um beijo.

Renato não estava entendendo como após a notícia tão triste de sua demissão
podia estar mais alegre do que nunca, pois vivia esse dia de príncipe das arábias e
acabara de beijar a bela odalisca Armênia. Estava agora vivendo de forma intensa.

Após o beijo Armênia diz:

_ Quero ir para casa agora.

_ Para a minha ou para a sua? – Renato convida.

_ Para a sua!

Acontece a primeira noite de sexo entre Renato e Armênia. Durante dois meses
eles ficaram se encontrando e Renato cada vez mais vendo suas economias minguarem.
Não tinha saída, até que Armênia lhe propôs trabalho. Ele devia somente entregar no seu
primeiro dia uma encomenda em uma mansão. Renato aceitou de bom grado, inclusive
como tábua de salvação o freelance de office boy. Era algo simples de se fazer. Na
entrega chegou a sacudir a caixa um pouquinho, mesmo tendo estampada no fundo
“frágil”. Não adivinhou o que era, mas entregou assim mesmo. Recebeu duzentos reais
para entregar a encomenda e o relacionamento com Armênica ia criando vínculo.

_ Estamos cada vez mais próximos um do outro. – Diz Armênia apaixonadamente.

_ Isso é ótimo minha linda. Cada vez melhor.

_ Mas chegou a hora de você decidir de que lado está. Já conheceu minha família
e percebeu que todos são árabes; gostou do nosso estilo de vida? Não preocupamos
com dinheiro como a maioria das pessoas e sei que seu problema é justamente esse.

_ Onde quer chegar?

_ Bom Renato, demos um jeito de você entrar no nosso esquema sem você saber,
mas agora já é procurado pela polícia do Brasil.

_ Por que? Não estou sabendo de nada. – Desnorteado tenta Renato saber o que
está acontecendo.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 23

_ Simples, atentado à bomba. Aquela encomenda que você entregou era uma
bomba que se deflagrou. Parabéns, bem vindo ao terrorismo. Como você é ingênuo.
Nesses dois meses não percebeu que somos extremistas? Não te culpo, na verdade você
não conhece nossa língua, nossos símbolos, nossa cultura.

_ Meu Deus! Estou em apuros.

_ Calma. Iremos te proteger, mas você deverá contribuir para a causa ou senão
será preso imediatamente, não tem chances de escapatória.

_ O que faço agora? O que? – Renato está nesse momento aflito e em desespero.

_ Há uma comunidade aqui no Brasil que estamos espionando. Você será um dos
nossos espiões. Queremos apenas que você ache o homem que procuramos. Sabemos
que ele está no Brasil.

Renato concorda, afinal de contas, caso ele se entregasse à polícia haveriam de


condená-lo por homicídio devido ele ter entregado a bomba. Pensava ele que seria isso o
que aconteceria, pois não querendo entregar Armênia teria que entregar somente a si
mesmo, o que faria com que somente ele fosse acusado pelo crime. Mesmo sendo
inocente, todavia seria condenado, era o que ele tinha por certo em sua previsão. Fora
cooptado pelo estado islâmico e nada faria com que voltasse atrás, afinal, não tinha para
onde ir, não tinha o que comer e amava Armênia como jamais amara alguém antes na
vida. Seu aluguel vencera e suas economias minguaram. Não conseguiria emprego
depois de ter passado a ser um foragido da polícia.

Começou então a espionagem. Ele começou pela internet a levantar dados que o
auxiliassem na procura de tal homem. Só sabiam que ele estava em algum lugar do
Brasil, um país de tamanho continental – diga-se de passagem.

Deram para Renato inúmeras fotos e vídeos do homem que procuravam. Ele
analisou todo material e por onde passava olhava nos rostos das pessoas na vã
esperança de achar o tal homem. Ele pensava: “São Paulo é muito grande, não vou
encontrar.” E mesmo desacreditado esperava por mais pistas.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 24

Armênia chega em Renato e traz as boas novas:

_ Facilitarei seu trabalho. Agora sabemos que o homem usa o nome falso de
Ibsen e esteve no Rio de Janeiro semana passada. As fontes são confiáveis.

Renato foi logo para o Rio de Janeiro e com as fotos e o nome falso foi em boates,
bares, prostíbulos e na praia distribuindo as fotos com o nome falso escrito no verso.
Prometia vultosa recompensa para quem o desse pistas. Depois de duas semanas
recebeu um telefonema anônimo de que um homem chamado Ibsen e com a mesma
descrição das fotos andava em uma Mercedes Benz branca de placa HQI 0007. Consultou
a placa, mas essa não existia nos registros do governo. Passou um mês, dois meses, três
meses e nada.

Certo dia Renato foi a um clube afastado do Rio de Janeiro e nessa: BINGO!
Encontrou a Mercedes na porta de um clube, adentrou e avistou o homem que
procuravam. Dali seguiu-o e descobriu o Hotel em que estava hospedado. Logo ligou
para Armênia.

_ Encontrei quem você procura. Ele está em um hotel no subúrbio do Rio de


Janeiro.

_ Já era tempo. Como você sabe que é ele?

_ Achei-o pelo carro. Daí fui investigar e se parece com o homem da foto e dos
vídeos. Entrei em um clube que o carro estava estacionado e o vi. Perguntei o nome dele
discretamente no balcão e não era Ibsen, já tinha mudado de nome. Mas é igual às fotos.
Nem mesmo a placa da Mercedez era a mesma que eu procurava, mas pela cor e modelo
suspeitei. Aqui no Rio de Janeiro ainda por cima. Quando cheguei mais perto dele ouvi
que ele falava em árabe. Vamos ver se é ele mesmo.

_ Perfeito, me dê sua localização.

_ Ok. Já enviei para o seu celular a localização do hotel e do clube.

Renato estava no encalço de tal homem sem nem mesmo parecer saber o que
ele fez. E veja a diferença entre o parecer que ele dava aos seus comparsas e o que ele
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 25

realmente pensava ou sabia. Assim mesmo, tudo prosseguia como o esperado, pois
Armênia era uma grande planejadora e controladora e não acreditava em acaso.

Depois de uma hora de voo Armênia chega à cidade e já vai direto para o Hotel
em que estava o homem procurado. Ficaram de campana no hotel, Armênia e sua
equipe e quando viram o homem e sua comitiva entrarem em dois carros, sendo um a
Mercedes branca e partiram em captura. Ao fecharem os dois carros um conseguiu fugir
e apenas a Mercedez ficou. A perseguição havia sido frenética e apenas com um forgão
importado dos Estados Unidos, Armênia e seus comparsas conseguiram parar a
Mercedez e tirar o homem procurado de lá de dentro. Este, entretanto não dizia nada
além de “I don’t speak portuguese”. Daí começaram a falar inglês com ele e ele passou a
dizer “I don’t speak english. ” Era tudo o que ele falava. Finalmente falaram com ele em
libanês e ele disse em português alguma coisa que saia sussurrada como “eu não sei o
que estão dizendo”. Daí começaram a bater no homem. Levaram o homem para um
bosque e começaram uma sessão de tortura com afogamento, socos, ameaças e ele não
dizia nada que queriam ouvir. Decidiram então que teriam que cevar o porco, daí o
levaram para uma chácara nas extremidades do Rio de Janeiro. Depois de um mês a pão
e água e sendo torturado com privação de sono e agressões, o homem resolve falar. Mas
não tinha nada o que dizer pois ele simplesmente não era o homem que procuravam e
sim um impostor. Um testa de ferro que era usado apenas para tirar a atenção de
homens que eram procurados pelos extremistas islâmicos. Perceberam, portanto que a
missão era impossível e que não havia solução. Mataram então o homem, mas ficaram
gratos por Renato ter tido sucesso em sua segunda missão.

Por outro lado, Armênia e Renato decidiram se casar. Depois que casaram Renato
ia cumprindo as missões que Armênia passava para ele e a cumplicidade entre os dois
cristalizou-se em sólido amor.

Após cinco anos de muito sangue derramado com o auxílio de Renato, este chega
a Armênia e diz:

_ Já são mais de cinco anos de serviços prestados à vocês, mas vocês me


disseram que eu iria fazer só alguns trabalhinhos e me veria livre. Já fiz inúmeros.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 26

_ Você está indo bem. – Diz Armênia

_ Entretanto, tenho sangue em minhas mãos.

_ Apenas de nossos inimigos. – Diz Armênia capciosamente.

_ Quem afinal são seus inimigos?

_ Os infiéis. Os judeus. Queremos acabar com a raça deles. Com toda a etnia.

_ Não quero mais participar disso. – Renato afirma com resolução.

_ Por que não Habib?

_ Em tenra idade eu fui adotado nos Estados Unidos por um casal de judeus e me
converti ao judaísmo posteriormente. – Explica-se Renato.

_ Mas agora você nos auxiliou a matar muitos judeus. Como vai explicar isso aos
seus condescendentes?

_ Eles me perdoarão ao souberem que a primeira vez foi armação.

_ E nós? Nosso amor Renato? Nosso casamento.

_ Somos no amor como unha e carne, porém nossas religiões são como óleo e
água.

_ Não podemos ficar juntos, mas o quanto amo você está escrito nas estrelas. Se
eu não puder ser tua, já que irão te matar ao souberem que você traiu sua etnia, não
quererei ser de mais ninguém. Nosso amor é proibido.

_ Eu mudei minha identidade para poder viver como alguém comum fora da
guerra que havia no Oriente Médio e quando chego ao Brasil, me deparo com isso.
Quando fui dos Estados Unidos para Israel meus pais morreram em um bombardeio e
resolvi ter nova vida e identidade. Mas eu trouxe algo que resolverá nosso problema.

Nesse momento Renato ergue um cálice cheio de cicuta, bebe a metade e passa
o cálice para Armênia. Armênia vê em poucos minutos Renato morrer. Bebe o restante
do cálice e se abraça ao corpo de Renato para esperar a morte. Ambos morrem.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 27

Passadas algumas horas, chega os homens de Armênia no quarto e vê os dois corpos.


Logo que veem, tira a camisa de Renato e observam uma tatuagem ainda fresca de tinta
onde havia três símbolos verticalmente dispostos. O primeiro e acima de todos era a
inscrição I.N.R.I que foi inscrita na cruz do calvário, o segundo logo abaixo era a cruz
judaica e abaixo, na base, a bandeira de Israel. Vendo isso um dos homens falaram:

_ Eis o homem que procurávamos.


NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 28

Os selos, o punhal e a coroa

Haviam três primos. Um era marinheiro, um museólogo e um terceiro que era


coveiro. Esses primos viveram juntos na infância e sempre diziam desde garotos que
quando estivessem adultos seriam grandes amigos novamente. Sabiam que depois que
passasse a infância pobre em Caruaru teriam que se afastar, pois era necessário que cada
um buscasse novos horizontes, fosse em grandes capitais, fosse no exterior.

O tempo se passou e cada um foi se mudando para outras cidades, um de cada


vez. Primeiro foi Felisberto que havia conseguido se alistar e entrou para a marinha. Dois
meses depois desse vai Adamastor estudar museologia na USP. Ficou para trás apenas
Irineu, que não conseguindo nenhuma chance na vida, foi mesmo é ser coveiro na cidade
natal dos três primos.

O tempo passou mais um bocadinho e depois de alguns anos lá, estavam os três
na vida como arautos da história, menos é claro, o Irineu que vivia a reclamar da vida.
Felisberto agora era suboficial da marinha. Seu outro primo, Adamastor, já havia se
formado e conseguira uma bolsa de estudos no exterior, na Inglaterra, além de ter
conseguido o emprego de organizador de exposições em museus londrinos. Já Irineu,
pobre coitado, só vivia cavoucando a terra com a pá.

Fora o fato de Irineu viver reclamando por telefone para seus primos de que a
vida era amarga e infeliz, ainda havia outro problema. Saiba de uma vez por todas, pois é
importante para a história que narro, que os três primos tinham uma manifestação de
sintoma diante de nervosismo ou obstáculo. Eles viviam normalmente, mas se surgisse
algo fora do comum, Irineu entrava em pânico, Felisberto proferia chistes e atos falhos e
Adamastor começava com seu tique nervoso de limpar a garganta. Esses sintomas eram
fundamentados em hereditariedade familiar e só podia se dizer que na infância eles riam
muito uns dos outros, devido a essas manifestações sintomáticas, mas riam porque
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 29

tinham uma espécie de cumplicidade no fato dos três primos terem sintomas
considerados desviantes para o padrão normal.

Certo dia houve uma reunião de família em que o importante era que todos os
parentes se reencontrassem depois de tantos anos. Felisberto que vivia nos mares veio
de navio para o Brasil e assim como Adamastor chegaram em Caruaru um dia antes da
festa. Ficariam na casa de Irineu até o fim da festa e o retorno de cada um para o seu
país de origem. Na casa de Irineu agora estavam os três primos reunidos depois de mais
de uma década sem se verem. Começaram a conversar:

_ Como vão vocês primos, mal sabia que veríamos novamente, mas quando
lembrei da promessa que fizemos na infância, sabia que esse encontro seria inadiável. –
Diz Felisberto.

_ Sim primos, percebo que os dois se deram bem na vida, mas, e quanto a mim,
que não consegui ser mais que um mero coveiro? – Irineu amarga a atmosfera do
reencontro com sua lamúria.

_ Não se preocupem, eu tive uma boa ideia coveiro, mas é só para te ajudar. A
bolada pode ser boa. – Assevera por final Adamastor.

_ Me deixou curioso agora sobre o que seria tal jogada de mestre. – Felisberto.

_ Ora primo Felisberto, a única forma de dar errado o que penso é se de alguma
forma você for atacado por um virtuosismo ético. – Irineu

_ Então vocês dois estão de conluio, ora essa, eu sou o último a saber dessas
coisas. – Felisberto.

_ Tudo bem. Eu vou te contar. Na Europa eu trabalho com exposições de arte em


museus e assim eu consegui livre acesso às câmaras de segurança e todos alarmes. Fiz o
mapa de toda a segurança do museu e lá se encontram raridades como os sete selos e as
joias da coroa britânica. São preciosidades que nos deixarão ricos. – Adamastor.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 30

_ Mas como você pretende roubar? Não sabe que mesmo que conseguíssemos sair do
país com o negócio ainda assim encontrariam pelas buscas? Uma vez que colocaria uma
recompensa tão grande que seríamos descobertos? – Felisberto.

_ Aí é que está. Eu consigo os selos, as coroas e os cetros. Você, os traz para o Brasil e o
Irineu esconde. O plano é perfeito, mas tem que ser feito em equipe.

_ Me parece um plano muito ousado. Não queria dizer, mas como escaparemos da
polícia, da fiscalização e das buscas? – Pergunta Irineu.

_ Não importa, acho que devíamos tentar, pois como está planejado na minha cachola
não tem como dar errado, pois seremos bastante rápidos em nossas ações. – Adamastor,
o mentor do grupo dá as palavras finais.

No outro dia festejaram e beberam muito em nome do plano que estariam


prestes a concluir.

Tudo como planejado então, Adamastor, foi em um dia normal de trabalho para o
museu. Lá estando fez tudo certo. Retirou as joias da coroa e colocou réplicas e duplicou
as imagens das câmeras digitais com um software que existia no mercado negro. Depois
deixou tudo no carro de Felisberto que por sua vez trouxe a encomenda por navio até o
Brasil e de lá rumou para Caruaru. Chegando na cidade nordestina foi até Irineu e pediu
para que ele escondesse no lugar mais seguro que ele conhecesse.

Já era notícia por todo mundo. Haviam roubado as joias da coroa e ninguém sabia
quem tivera sido. A Interpol e a Scotland Yard entraram no caso e agora todos estavam
confiantes que as peças seriam recuperadas. Perderam de vista o bem simbólico mais
precioso da tradição inglesa, as joias da coroa, mas todos estavam aturdidos perante o
fato, ainda que estivesse tudo bem com a família real.

O que seria feito todos perguntavam. Pelo menos que fossem presos os ladrões
era o que todos clamavam, mas não se tinha nem notícia, nem pistas de onde estaria as
joias da coroa. E em um mundo tão vasto como esse, era como caso perdido, embora
todos acreditassem nas instituições centenárias que se disporam a solucionar o caso.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 31

Um ano se passou e ninguém mais ouvira falar do caso das joias desaparecidas e
os sete selos. O que então poderia preocupar os três primos protagonistas dessa
história? É que eles não sabiam como vender as peças para o mercado negro. Não
confiaram nos que apareceram e recusaram propostas abaixo da recompensa que valia a
recuperação das joias e selos. E uma alta recompensa foi oferecida pela Scotland Yard.

O problema é que notícias correram nessa oferta que fizeram e não sabiam,
Adamastor, Felisberto e Irineu que seria necessário vender agora para o primeiro que
aparecesse, pois se depois de um ano ainda não tinham conseguido comprador,
dificilmente conseguiriam posteriormente dentro do Brasil. O fato é que estava difícil de
conseguir lograr êxito mesmo tendo a faca e o queijo na mão. Se não conseguissem um
homem milionário pronto a acatar um crime contra o patrimônio humano, talvez o plano
não daria certo, mas sabiam que estavam com algo como o bilhete premiado da
mega-sena e só precisavam dar um passo a mais para tudo dar certo de uma vez por
todas.

Irineu certa vez tinha um enterro para gerir no cemitério. E ele mesmo para não
levantar suspeitas nesse ano que passou ficou trabalhando de coveiro. Todos os três
primos fizeram isso e esperavam apenas a chance de reverter o crime em lucro. Nesse
dia, Irineu acordou cedo e foi para o cemitério. Tudo ocorria normalmente no ato
fúnebre e assim ele se demorava no cemitério até depois da meia noite, pois o velório
tinha sido muito longo e o enterro só começara às oito da noite. Quando era meia noite
foi que Irineu indo trancar os portões do cemitério avistou algo estranho. Viu um homem
de longe com coroa e cetro e um manto de rei dizendo: “Eu sou Ricardo III, você me
chamou dos mortos. ” Irineu chegou mais perto para ver quem era, mas quando olhou
para a cara do sujeito viu um rosto pálido e sem vida. Ele disse para o estranho “o que
você é? ” – e a caveira respondeu: “Ricardo III, o rei da Inglaterra que jaz morto. O
porco-bravo que veio buscar o que é seu. ”

Irineu tentou se conter, mas entrou em pânico. Seu coração começou a palpitar
fortemente, calafrios passavam pelo seu corpo, suas mãos suavam frio... logo que passou
o ataque de pânico a aparição de Ricardo III desapareceu.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 32

Pela manhã Irineu relatou por telefone para Adamastor e Felisberto o que tinha
ocorrido na noite anterior e nenhum deles acreditou. Pensaram que Irineu havia bebido
demais. Logo veio de viagem Adamastor e Felisberto, para dar um fim nessa história e
meter a mão no dinheiro que eles haveriam de ganhar com a venda dos produtos
roubados. Acharam um comprador para os sete selos reais e foram de encontro a ele.
Conversou com o receptador e estipulou o valor. Combinaram de trazer o selo um dia
depois, após ver o dinheiro em espécime.

Na noite desse mesmo dia após a negociação foram a um restaurante no centro


da cidade para conversarem e comemorarem que finalmente iriam ver a cor do dinheiro.
Felisberto conversava com mulheres sobre viagens, Irineu bebia uísque importado e
Adamastor, pelo telefone, acertava com o receptador os últimos detalhes da negociação.
Foi quando entrou no estabelecimento um sujeito altivo e dono de toda lábia possível.
Chegou conversando com Adamastor e Felisberto, enquanto Irineu estava no carro
recuperando da cachaça. Adamastor pareceu incomodado com aquele falastrão cheio de
conversações e Felisberto logo acreditou que era alguém da polícia.

Quando o estranho fala sobre a História de Ricardo III todos ligam os fatos e
passam a pensar que a História que Irineu contava poderia ser mesmo verdade. E tentam
sair de fininho, mas para não levantarem suspeitas, trocam as palavras finais com o
homem desconhecido e ao se despedirem, se viram para a porta. É quando Irineu
voltando do carro fica frente a frente com o desconhecido e reconhece. Era o suposto
Ricardo III da noite que trabalhou no cemitério. Logo que viu ficou nervoso novamente e
começou a entrar em estado de pânico. Aquele frio na barriga, aquelas palpitações, suor
excessivo...

_ O que foi Irineu? Parece que viu fantasma. – Pergunta Felisberto.

_ Fantasma não vi não, mas é parecido com o homem que vi no cemitério à noite.
– Diz Irineu.

_ Talvez você já me conheça. Eu sou Maxwell, mas pode me chamar de Max. –


responde o homem que havia entrado no restaurante e conversado com Adamastor e
Felisberto.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 33

Nesse momento o homem começou a piscar sem parar enquanto Irineu estava
em plena taquicardia e pediu socorro.

_ Não reparem, quando eu estou meio estressado minhas pálpebras se movem


autonomamente. – Diz Max que nessa altura, ainda tentava esconder sua verdadeira
identidade de agente da polícia inglesa.

_Pax...humm... quero dizer táxi. Poxa, Max... – Felisberto se enrola em um chiste


pois começa a ficar nervoso e complementa – é bom eu vir até aqui; queria dizer me ir
daqui... pois...pois o meu primo se encontra preso – PORRA (grita) – eu queria dizer
tenso.

_ E você, Adamastor... – Diz o policial Max

_ O que seria? – Responde Adamastor.

_ Sabe alguma coisa sobre Ricardo III?

_ Não nunca ouvi falar.

_Ele foi um grande rei da Inglaterra que agora rola no túmulo devido ao
desaparecimento das joias da coroa.

_ Rei – cof cof cof – da – cof cof cof – Inglaterra – cof cof cof. – Adamastor tenta
argumentar, mas é pego por um acesso nervoso de tosse.

_ Pois é pessoal. Três primos e um crime perfeito. Ou quase perfeito se assim


como eu não fossem vítimas de manifestações como essas – nesse momento Max pisca
um dos olhos freneticamente – como essa que vocês também veem em mim.
Manifestações psicológicas de nervosismo. E sabe por que estou nervoso e pisco assim
sem parar? É por estar a um passo de descobrir o paradeiro das joias e selos reais, mas
ao mesmo tempo pensar que talvez vocês não estejam com elas mais. – O policial Max
questiona os três primos.

Na resposta dessa questão ouvíamos os três tentando se defender, mas a única


coisa que se podia ouvir do emaranhado de sintomas que manifestavam eram tosses ou
tiques com a garganta como limpar a garganta, um deles que dava para ouvir o coração
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 34

bater de longe e os impropérios de um terceiro que não conseguia articular as palavras. E


continua com a averiguação.

_ Pelo meu lado eu não vejo como se poderia esconder tão bem assim pertences
procurados pelo mundo inteiro, hummm... vejamos bem... em um cemitério? Não
acredito que vocês tenham vendido ainda nada do que roubaram senão não estariam
mais aqui. Sempre voltando à mesma cidade. Sem dúvida estão nervosos – a pálpebra de
Max pisca como uma borboleta – assim como eu como podem verem. Mas o que mais
me intriga é que vocês foram traídos por uma manifestação que seria assim para vocês
como assim é para mim, esse meu tique de piscar um olho freneticamente. Muito é que
me surpreendi, se nessa comparação eu pudesse dizer para vocês que foram assim
traídos por uma piscadinha. Ao menos assim seria eu, se estivesse no lugar de vocês. –
conclui Max brilhantemente.

Logo em seguida, eles foram encaminhados para a delegacia, onde depois de


muitos calmantes confessaram o crime e indicaram a cova em que haviam escondido as
joias das coroas, pois os sete selos estavam em um compartimento secreto no carro, já
que haviam conseguido comprador e se não fosse por um dia de véspera, teriam
conseguido vendê-los.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 35

A fantasia ocasional de uma reputada dama da sociedade

Um típico americano de Colorado resolve jogar. Seu bilhete da loteria é premiado


e ele de um dia para o outro está com uma bolada que jamais havia imaginado ganhar.
Um caipira do interior dos Estados Unidos, uma pessoa que vive em suas pequenas
terras sem nada mais querer que colher o milho gerado por uma plantação de seis
hectares e mais dezesseis hectares próprios para ele fazer um chiqueiro, um galinheiro e
deixar suas trinta e nove vacas e sessenta e sete bois produzindo leite, couro e carne.
Não era nem rico nem pobre como todos os outros de sua região, mas um típico caipira
que para o padrão dos Estados Unidos passaria muito bem por um remediado que se
supre da subsistência.

A bolada que ele havia ganhado na loteria poderia o dar uma nova vida, mas Arm,
nada queria a mais da vida, senão continuar vivendo do que a terra produz para seu
consumo próprio, por isso resolveu torrar todo seu dinheiro na diversão. Queria algo a
mais que a vida pudesse oferecer além de brejeiras tardes domingueiras. Talvez pudesse
realizar algo como comprar tratores novos, uma camionete de última geração ou coisas
do tipo, mas resolveu gastar uma bolada, que mesmo não deixando de ser uma grande
bolada o dava direito a poucas coisas além do que a classe média poderia comprar e
aquém do que os ricos poderiam esbanjar.

O que faria Arm, nessa situação? Esses cem mil dólares, poderiam o dar bens de
luxo, mas preferia ele algo de consumo rápido, porém intenso e inesquecível. Uma
aventura que o trouxesse novamente o sabor da vida. Resolveu então gastar sua
pequena fortuna com uma estadia em Hollywood, onde poderia ver pessoas as quais, ele
teria uma grande aspiração em conhecer e se envolver; até mesmo relacionar.

Foi direto para uma noite na calçada da fama onde havia grande alvoroço de
gente a se reunir em glamorosos encontros noturnos. O cinema estava representado
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 36

pelos indicados ao Oscar do ano corrente e beldades e astros se expunham ao interesse


público e midiático. Eles se encontravam em um lugar onde podiam tomar drinks e
conversar, enquanto os outros ficavam do lado de fora nas calçadas, fazendo filas para
ver um ou outro famoso passar correndo em direção às limusines sempre estacionadas
em locais estratégicos.

Arm estava lá. Todo-todo em seu novo terno que comprara recentemente e por
motivos de urgência. Sua forma caipira de ser não passava desapercebida, mas ninguém
reparava muito nele, embora o achassem simpático, entretanto desajeitado.

Entrava Arm em um restaurante japonês onde, um sashimi apenas, custava cem


dólares e tomava como acompanhamento um sakê das melhores safras. Isso o fazia
passar por um igual a todos os que ali estavam, aparentemente, embora ninguém o
conhecesse. Esse fato de ninguém o conhecer o fazia uma pessoa morna da qual não o
requisitavam a participar de eventos mais íntimos.

Por outro lado, lá estava Loretta, uma fina e reputada dama da alta sociedade dos
EUA. Uma mulher requintada, filha de senador. Loretta, por ser bastante tímida e
reservada, não gostava de aparecer na televisão e em grandes mídias e deixava para
esses encontros pessoais, tudo o que se poderia chamar de encontro. Era tão reservada
a jovem dama que nem em tais encontros ela se esmiuçava em conversas, ficando mais a
ser prestigiada que a prestigiar. Nesse dia, porém, ela queria curtir. Queria algo discreto,
talvez um beijo, que servisse pelo menos como início de um namoro reservado e casto,
pois a virgindade para ela era algo complacente em seu direito de casar intocada, como
um pomar cheio de cerejas em que na noite de núpcias poderia ser saboreado aos
poucos.

Loretta ficava em uma mesa repleta de segurança em volta. Os seguranças


sempre atendendo aos pedidos dela. Ninguém entrava em contato com ela, a não ser se
fosse para a pista de dança e ainda assim observada de perto pelos seguranças. Tomou
seu primeiro martini às dez da noite e agora, à meia noite, já estava no seu sexto martini.
Estava embriagada. Ela havia ido para a festa com um vestido de tubinho cor de rosa e
bem transparente, o qual ela havia comprado de um grande estilista que fez o vestido
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 37

sob medida para ela. Por cima vestia um casaco de pele que custava a camionete ford de
Arm, apesar de tal camionete ser do ano. Seu colar de pérolas destacava em volta do
pescoço, seu celular que ela usava apenas para falar com seus familiares por
teleconferência ficava sempre na mão, caso o papai quisesse dizer algo que fosse
conveniente para a imagem da filha querida. Saltos agulha e na sua microbolsa feita de
marfim e couro ela guardava apenas sua identidade e as chaves de seu mustang, que ela
pilotava escoltada pela equipe que o pai colocava em torno dela.

Loretta sempre fora estudiosa, mas ultimamente ela queria entrar para o esporte
no colégio, mas ainda mais queria ser líder de torcida. A forma como ela se vestia e toda
a pompa de elite, a deixava acima dos demais à primeira vista, embora a boate em que
ela estava fosse frequentada por celebridades de Hollywood.

A boate era por sinal muito interessante. Em seu centro havia uma réplica da
torre Eiffel que subia até a abóbada, toda feita por vidros blindados. Ao redor da pista de
dança central de onde erguia-se o monumento, havia plataformas em estilo panóptico
ligadas por pequenas escadas rolantes. Pequenos abajours ornamentavam as mesas e ao
redor da pista, balcões feitos do mármore mais alvo.

As pessoas brincavam de empilhar taças de vidro cenográfico e fazer cascatas de


champanhe. Loretta queria algo a mais nessa noite. Ela foi para curtir algo que nunca
havia feito, pois sua reputação não a permitia ir muito longe. Não podia ser devassa nem
chamar muita atenção, para não manchar o nome do pai senador.

Ela, já embriagada, despista um pouco a atenção dos seguranças e desce na


escada rolante para a pista de dança. Quando chega ao final da escada rolante seu salto
agulha engastalha em uma fresta da máquina, obrigando-a a tirá-los e ficar com os
sapatos em mãos.

Passa rapidamente no guarda-volumes da boate e deixa os sapatos serem


guardados. Depois despe-se de seu casaco de pele e também o guarda, ficando em
mãos, apenas a chave de seu mustang 1967 e o celular com botão do pânico caso
houvesse alguma eventualidade. Sua bolsa de marfim e couro ela também guarda
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 38

juntamente aos outros objetos no guarda-volumes e encaminha-se para sair da boate


para ir até o seu carro conversível.

Loretta já havia deixado seu casaco de peles e fora obrigada a deixar os sapatos
também no guarda-volumes, pois o salto havia quebrado a ponta na escada rolante.
Agora ela estava acidentalmente descalça, vestindo seu tubinho importado e também
tirou a chave do carro da bolsa e a deixou, a bolsa, no guarda-volumes. Saiu até à porta
da boate e estava com o celular e chave em mãos. Quando passou pela porta, uma
mulher com distúrbios mentais puxa seu colar de pérolas que se desfaz todinho. Ela logo
foi ver no chão o que tinha sido feito do seu colar e a mulher louca, sai de perto de
Loretta, não sem antes esbarrar nela fazendo a chave do carro cair e sumir. Naquela
multidão demoraria até achar a chave. Pensa ela então em ir até o chofer saber se ele
tinha uma chave reserva. Tira um batom vermelho e passa na boca jogando o batom
fora. Nesse momento começa a chover e seus mamilos se destacam por molhar seu
vestido. Sua maquiagem se desfaz ficando apenas o batom vermelho em destaque. Ela,
no entanto, não se resigna e se dirige até o estacionamento convicta em chegar em seu
carro e voltar com ele até a porta da boate.

Arm, por outro lado, como o bom caipira que era realmente, tinha modos e
personalidade muito hilários. Era realmente um homem hilário, muito hilário... Ele que
estava no final da fila dessa boate, mas não uma fila indiana, se comportava, assim como
todos os outros, de modo a parecer que havia uma festa fora da boate. Uma fila
horizontal e dispersa. Ele, então, no limite de onde terminava a fila, avistava duas garotas
de programa, na outra esquina paralela à que ele estava. Era evidente que elas eram
garotas de programa, pois estavam oferecendo e parando os homens que passavam na
esquina. Ora essa, nos EUA a prostituição é crime e o cliente é punido judicialmente caso
caia nas graças das primeiras profissionais da História, as prostitutas. Helen and Kelly, as
garotas de programa, avistam Arm na outra esquina e decidem passar para o lado que
ele estava, não sem antes passarem pela porta da boate. Quando Helen and Kelly
chegam nas proximidades da porta da boate topam com Loretta, que tem um súbito mal
estar, quando por coincidência, as garotas chegam perto dela. As garotas Helen and Kelly
a acodem e prometem ajudá-la, em meio à multidão que ia abrindo passagem, até o
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 39

estacionamento, pois o chofer estava fora no momento. O chofer havia saído com o
carro de um cliente para fazer algo proibido. Assim que elas viram a esquina lá estava
Arm, pensando se tratar de três prostitutas.

Arm, ao ver as três pensa que com uma delas iria sair, não importasse o preço.
Ele olha e logo gosta de Loretta. Apesar de Loretta estar descalça ele havia gostado dela.
Apesar de ela estar só de vestido, o que para Arm era um vestido sedutor, ele não sabia
que era um vestido que pela grife não seria de uma prostituta, pois elas não costumam
usar roupas de grife e sob medida. Apenas pensou que era uma mulher muito desleixada
por andar descalça ou que tinha perdido os sapatos. Ele, portanto, chega nas três moças
e começa a conversar com elas. Fica a conversar com duas, enquanto, Loretta, fica séria
e calada. Loretta pensava que aquelas duas mulheres que a acudiram eram amigas de
Arm, mas logo entende que o que se passava ali era uma cena de prostituição.

A filha de senadora logo passa a pensar que não podia ser vista ali em ambiente
tão inadequado para alguém com a reputação dela e que isso poderia se tornar até
mesmo escândalo e atrapalhar a carreira do pai dela. Quando avista alguns homens com
máquinas fotográficas, puxa as duas desconhecidas pelas mãos até o estacionamento
sem dizer o que estava acontecendo e sem se apresentar a elas. Apenas as puxa e Arm
foi as seguindo até o estacionamento.

“E agora?” Pensava Loretta. “Falo logo para eles quem eu sou? Não sem antes
saber o nome desse caipira engraçado.” Foi quando as duas garotas de programa
começaram a alisar Arm, que excitado retira a carteira do bolso a abrindo e falando a
plenos pulmões:

_ HOW MUCH? (Quanto é?)

Loretta olha tudo com muita naturalidade e em um súbito devaneio diz:

_ Que loucura! Pura curtição!


Não é que a heroína ruborizou e pensou que aquele insignificante caipira do
interior era um ser muito engraçado? Ela, uma filha de senador sendo confundida com
uma prostituta, somente porque evitava a exposição de sua imagem e por isso nem
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 40

todos a conheciam através da mídia. Inconscientemente era a única fantasia que ela
reprimia, a de um dia ser relegada a um objeto e nada mais.

Com a carteira ainda em mãos e aberta, Arm franze o cenho, no que Loretta, sem
mais nem menos, apenas alcança uma nota da carteira de Arm e se dirige a sua
camionete Ford, apenas para realizar uma fantasia sexual.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 41

O cotidiano juvenil

Já eram quinze para o meio dia, quando soou a campainha. Martins, o mais nerd
da turma, contia sua frustração pelo fim da aula de Jackeline, sua professora preferida,
no entanto, o restante da turma jogava os cadernos para o alto e iam correndo para a
saída da escola.

_ Você viu a professora hoje? Estava bem safada para o lado do Samuel. Ela
estava dando muita atenção para ele e falando daquele jeito de gata borralheira. – Diz
Miguel.

_ Ela morre de amores por ele, Miguel. – Diz Martins.

_ Que belas coxas ela tem, só que infelizmente o Samuel já ganhou essa parada.

Na saída, todos se acotovelavam para ver a banda passar. Era dia da bandeira,
quando ressoavam os tambores e as cornetas. Do lado de Monique, uma colega de sala,
Samuel se aprochegou:

_ Que coisa é essa daquele retardado do Martins de preferir ficar no colégio que
ir para casa reunir com os amigos ou ficar vadiando na rua? – Pergunta Samuel.

_ Não sei, mas que palhaçada é essa de você ficar tirando casquinha da minha
bunda? Tira a mão! – Monique contesta.

_ Como queira. É só pedir. – Samuel obedece.

Nesses dias de marchinha, o que não faltava eram cantadas. O colégio inteiro só
pensava em se dar bem com seus pares. Ainda que todas as garotas quisessem
exclusivamente o Bruno, mas por ele ser somente um e ter uma namorada
extremamente ciumenta, o jeito era se virar com os que estavam soltos e
descomprometidos.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 42

Jackeline andava por entre os moleques seduzindo todos e eles babavam só dela
insinuar alguma coisa, pois ficava passando a mão nas próprias coxas como se tivesse
alguma coceira, mas não era nada disso, ela fazia isso para levantar a saia um pouquinho
e discretamente.

_ Sai daí Miguel, eu já estou tinindo e quero ver essas coxas, quiçá apalpar.

_ Não enche Samuel, você acabou de levar o fora da Monique e agora quer
empatar com a Jackeline? Você sabe que ela tem uma quedinha por você, mas não vai se
achando. Ela é a caçadora e você é a presa.

_ Não enche, se eu quiser de verdade eu durmo com ela.

_ Duvido.

_ Veja só então!

Samuel, em meio ao burburinho e agitação dos festejos chega perto de Jackeline


e fala no ouvido dela algumas sacanagens e ela fica sorridente e toda alegre, dando um
beijo no seu rosto. Ele volta e diz a Miguel: “Viu só? É só eu querer que ela cai na minha
lábia. ”

_ Por que não ficou lá com ela agora, seu trouxa?

_ É que aqui no meio de todos ela não pode. Nem dar bandeira ela pode.

_ Eu duvidei, mas é verdade mesmo. Você come a professora de inglês.

_ À noite é só eu ir na casa dela e pimba. Tá na minha.

_O que você mais quer? – Pergunta Miguel ao Samuel.

_ Que ela não me reprove esse ano, afinal, sempre tenho uns trabalhos extras
com ela.

_ Você pensa que uma mão lava a outra? Filho da mãe! Você não sabe a sorte
que tem. Acho até que você é muito pretensioso, se eu fosse você, não sairia dizendo
por aí tudo o que acontece entre vocês, para ninguém ficar sabendo.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 43

Martins chega meio cabisbaixo:

_ E a aula de História, gostou? – Pergunta a Miguel.

_ Eu vou lá gostar de uma coisa inútil como essa?

_ Não é bem assim, sabendo do passado podemos prever, prevenir e ter


consciência do futuro.

_ Não vejo assim, o que passou: passou.

_ Mas você não gosta de filosofia Miguel? Coisa mais inútil não há.

_ É diferente. Sou amigo do professor e ele me curte. A matéria é como todas as


outras. Basta repetir o que foi falado.

_ Você sabia que o Samuel já fumou maconha? – Pergunta Martins.

Nessa vibe Samuel se destaca do grupo e desce a rua sozinho.

_ Acho que vai fumar um agora. Olha lá ele descendo a rua. Vamos flagrar ele? –
Planeja Martins.

_ Vamos nessa Martins. Vamos pegar ele com a boca na botija.

Martins e Samuel descem a rua a uma distância considerável atrás de Samuel.

_ Olha lá, cara. Ele vai comprar com aqueles maconheiros da outra escola. – Diz
Martins.

_ Não é possível, como ele pode ter se metido nisso? Vamos embora, vai que
aqueles caras marcam nossa cara.

Samuel chega em uma roda de malandros traficantes e pergunta:

_ Qual é? Tem baseado?

_ Quanto é?

_ Cinquenta paus.

_ Tá na mão meu brother. Esse aí vai te mandar pro espaço.


NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 44

_ Valeu. – Se despede Samuel guardando a droga na mochila.

Depois de pegar a encomenda, Samuel sobe para sua casa.

II

Chegando em casa, já estava na hora do jantar e ele senta na mesa com os olhos
vermelhos.

_ Você está com os olhos vermelhos filho?

_ Sim mãe, acho que peguei isso lá no colégio.

_ Samuel, isso é conjuntivite mesmo? – Esbraveja o pai.

_ Já falei porra. – Desconjuntura, já se ausentando da mesa.

Samuel entra no quarto ligando o som no último volume. Pega uma revista
pornográfica e começa a folheá-la. “Essa é muito bonita” – pensa enquanto imagina a
professora de inglês pelada em sua frente.

TOC. TOC. TOC. “Abre essa porta.”

_ Que foi pai? Estou ocupado.

_ Vem logo aqui seu vagabundo. – A fúria do pai é incontida nesse momento.

Ele abre a porta de seu quarto.

_ Olha o que eu encontrei na sua mochila. – O pai esfrega cinquenta gramas de


maconha na cara do filho.

_ Não é meu pai.

_ Você esqueceu na mochila. É seu sim.

Socos na cara e pontapés nas canelas são dados em Samuel pelo seu pai.

_ Eu devia é chamar a polícia seu maconheiro. Onde conseguiu isso? –


Esbofeteando-o.

_ Para pai – em prantos – foi na rua.


NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 45

_ Quero que saiba – o pai falando e cuspindo na cara de Samuel – que não criei
filho para virar bandido. Você vai parar com isso ou não vai? Faz quanto tempo que você
usa drogas?

_ Pouco tempo.

_ Mentira, por essa quantidade aqui você é viciado.

_ Maconha não vicia.

_ Mentira deslavada. Você vai no médico amanhã depois da aula e eu vou jogar
essa porcaria na privada. Dinheiro você não vai ter mais.

_Desculpa pai, isso não vai mais acontecer. Não queria nem que tivesse
acontecido.

_ Não adianta chorar o leite derramado. Agora é tomar uma direção na vida e sair
desse vício maldito antes que vire traficante, ladrão ou um malandro safado. Quer cair na
cadeia por uma merda dessas? Pelo amor de Deus meu filho!

_ Você me bateu.

_ Você mereceu.

III

No colégio pela manhã:

_ Nossa Miguel, você não sabe o que me aconteceu!

_ Você rodou em casa pela primeira vez.

_Como você sabe?

_A sua boca tá inchada.

_ Aquele velho sacana me bateu pra caralho.

_ Que isso! Não fale do seu pai assim. Ele fez isso para ver se você toma vergonha
na cara e para com... sei lá... como vocês chamam isso?
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 46

_ Curtir.

_ Eu chamo de doideira.

_ Minha vontade é de sumir daquela casa para sempre.

_ Você tem que passar em medicina, direito, engenharia ou odontologia para seu
sonho ser realizado.

A professora Jackeline entra na sala vestida em um decote sensual e passa a falar:

_ Hoje vamos estudar o verbo to be, past tense, e o emprego de will e ing. Vocês
sabem do que estou falando?

_ Sabemos professora. – Em uníssono.

Aos cochichos, Samuel e Miguel continuam a conversa, mas a sala inteira estava
apenas a olhar o decote da professora, feito cães que olham para frangos assados em
uma churrasqueira elétrica. Enquanto isso, ela explicava a matéria do dia calmamente.

_ Pois é Samuel, não fique com raiva do seu pai, logo logo ele esquece tudo isso.

_Não sei não, ele ficou furioso e acho que perdeu a confiança em mim para
sempre. Estou perdido. Talvez ele vai me tirar do colégio e me matricular em escola
pública. Como vou fazer tendo que trabalhar agora? Não serei nem advogado, nem
engenheiro, médico ou qualquer coisa dessas que garante um futuro melhor.

_ Você vai é perder os peitões da professora. E suas chances com ela terão
acabado.

IV

O futebol consiste em dois times de cada lado do campo que precisam acertar a
bola na rede seja com a cabeça, pés, barriga ou calcanhar, sem utilizar os braços ou as
mãos. Todos sabem disso. Mas agora estava aberta a temporada de jogos intercolegiais.
Com o campo cedido pelo clube da cidade, seria promovido o campeonato e os treinos
seriam realizados em escolinhas de futebol ou em campos particulares. De dois em dois
anos havia esse campeonato e Samuel que era bom de bola, resolveu jogá-lo para se
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 47

distrair dos camaradas das drogas. Já ouvira muitos exemplos de pessoas que saíram das
drogas e do álcool através de um esporte.

Os caras mais velhos vinham nesses campeonatos para azarar as adolescentes e


todos esses rapazes de universidade se davam bem com as garotas de dezesseis e
dezessete anos, pois elas adoravam homens mais velhos que elas.

_ Vai jogar esse ano? – Pergunta Martins ao Samuel.

_ Acho que sim. É o único jeito de eu sair fora da galera do mato queimado. Se
tivesse jeito eu seria um jogador de futebol. Sou tão foda jogando bola que seria tão bom
quanto o Maradona.

_ Não se iluda. Você sabe jogar, mas não é nenhum gênio da bola como você
mesmo sabe.

_ O palha é que aquele compromisso com a Jackeline foi por água abaixo. O
namorado dela virá para o campeonato e ficará de olho nela.

_ O cara é pinta?

_ Nada. É um coroa barrigudinho, careca e baixote.

_ Mas eu vi ela entrando em uma Mercedes Benz. O cara tem bala na agulha.
Esses caras que pegam essas gostosas que nós ficamos babando em cima. Todas elas.

_ Vou treinar todo dia para o campeonato. Será nosso o título desse ano. No ano
passado ficou com a B, mas na final contra nós da A, o juiz roubou feio, por isso nós
perdemos.

_ Mas e aquele negócio lá? Está sentindo vontade de pitar o mato queimado?

_ Nada. Parei para sempre.

_ Nunca diga nunca.

_ Que nada Martins, se nunca diga nunca, sempre diga sempre. É parceiro ou não
é?
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 48

_ Sou.

_ Pois é. Não deu para viciar e também não quero levar mais sabão do meu pai.

_ É que eu sei que uma surra não muda nossos valores. Ainda mais de você
Samuel. Você era tão envolvido com aquele pessoal lá do beco; os doidões de todos os
tipos, que não sei se esqueceu tudo o que ocorreu.

_ Vivem me chamando para fumar um e eu dou uma desculpa qualquer para não
ir.

_ Que massa que você saiu dessa.

_Estou consciente. Drogas não levam a nada. É só curtição, mas muito


desnecessário. Era só para socializar mesmo.

_ O problema é que da socialização vem o vício.

_ Pior. Deixa eu treinar. Falou. – Samuel se despede de Martins.

Pela cabeça do pai de Samuel, passava agora o arrependimento por ter sido tão
duro com o filho e mesmo muito agressivo por tê-lo espancado. Sempre sonhara com
um filho que fosse modelo e exemplo para a família e agora o moleque punha tudo a
perder com a malandragem. Pelo menos não era homossexual, pois só faltava ser as duas
coisas: drogado e gay. Entretanto o pai de Samuel tinha uma cabeça retrógrada e não
havia se acostumado com a revolução sexual que ocorrera desde seus tempos de
juventude. E ainda por cima havia uma segunda revolução sexual ocorrendo que era o
libertarismo gay, que ele tinha que engolir a duros bocados. Seu ideal de vida era
apoiado por um tripé de OBEDIÊNCIA-TRABALHO-FAMÍLIA, que havia passado para seus
pais através de seus avós. Não queria ter filho bandido nem gay, pois quando jovem
essas pessoas eram consideradas a escória da sociedade. Pelo seu nível de cultura baixo
ou mesmo reacionário, a igreja católica que frequentava o dava as diretrizes de um padre
ultraconservador e tendencioso, mas essa era a educação que o havia sido transmitida e
nada o tirava da cabeça que obedecer a Deus e aos poderes instalados na sociedade era
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 49

o seu dever de cidadão, sendo o resto, tudo palavrório fútil e vazio. Colocava o
casamento e a criação dos filhos em primeiro lugar, sendo isso uma forma de incutir
obediência aos filhos, através da chantagem e opressão, mas sem dúvida amava sua
família. Já estava na meia idade e por isso não esperava mais grande coisa da vida. Só
tocar a empresa e continuar vivo era o que o bastava. Esquecera de todos os seus sonhos
de juventude. Queria quando jovem ser ator de teatro, o que o fora tirado por um
acidente de carro que danificou a sua memória, mas com certeza o raciocínio continuava
intacto e conseguiu ser tornar contador. Veja como a vida é cruel. Um acidente basta
para matar os sonhos de um jovem e determinar a vida do sujeito para sempre. Ainda
que ele houvera recuperado a memória posteriormente, já era tarde e não era mais
possível voltar à dramaturgia. Sua preocupação maior era com o futuro de Samuel e no
casamento, as coisas não iam muito bem, pois um homem que querendo ter uma família
após uma desilusão amorosa, desistiu da mulher de sua vida, para casar com uma que
pudesse ser uma boa mãe e esposa.

Samuel chega do treino exausto. Havia marcado três gols e com certeza seria o
titular, o atacante artilheiro se tudo corresse bem:

_ Oi filho, como foi o treino campeão?

_ Marquei à revelia, pai.

_ Meu garoto, tomara que ganhem esse ano.

_ O senhor vai aos jogos?

_ Depende do horário. Se for a noite vou a todos.

_ E a mãe?

_ Está lá cuidando de seus afazeres e se maquiando. Estranho! Por que ela está se
maquiando a noite?

_ Ora pai, o senhor não sabe?

_ O quê?
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 50

_ Hoje tem missa.

_ À quinta-feira?

_ Claro! É inauguração da igreja nova, da nova sede. Esses padres estão é ricos.

_ Os bispos episcopais meu filho, os padres fazem voto de pobreza. Não são
como os pastores de igreja evangélica que vivem em carrões e mansões.Esses sim, vivem
e vivem bem.

_ Padres, pastores, professores, psicanalistas...ah...tanto faz. Para mim são todos


iguais. Só falam e falam. Ação que é bom não vejo nenhuma dessas pessoas.

_ O mundo é assim filho, a palavra tem grande poder. E como eu gostava dela na
juventude, em cima de um palco.

_ Eu acho que o senhor não devia ter desistido.

_ É... mas foi como contador que eu ganhei a vida, ainda estava muito abalado
com o acidente dias antes da minha apresentação e assim havia esquecido o texto. Foi
um vexame. Mesmo que eu pudesse retornar, não era mais a mesma coisa. Não tinha
tanto pique assim para bater o texto dois dias antes da apresentação e conseguir ter
sucesso nessa atividade.

_ Trágico! Trágico, pai.

_ Sua mãe que foi a mais feliz nisso tudo. Depois que eu abri a contabilidade
ilimitada ela comprou tudo o que queria para a casa e como ela gosta do lar, se sentiu
realizada.

_ Às vezes fico pensando o que a mamãe queria da vida na minha idade. O senhor
ao menos tinha um objetivo muito claro, mas ela queria ser somente dona de casa?
Aposto que não.

_ Ora Samuel, sua mãe teve você. Isso já é uma realização para uma mulher.

_ Não sei não pai, eu sou o sentido da vida da mamãe? Me parece tacanho.
NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 51

_ É verdade, mas instinto materno é assim mesmo. Sei que ela gostava muito de
cinema. Talvez ela quereria ser uma diretora de cinema ou algo do tipo.

_ Frustrações por todos os lados. Poucos são aqueles que realizam seus sonhos
de juventude.

VI

Chega o dia do campeonato intercolegial. As garotas agitando pons pons e


cantando os gritos de guerra dos seus times e os rapazes todos concentrados para o
início dos jogos. Vez por outra estourava uma briga por ciúmes ou rixa e todos faziam
uma roda para ver os valentões baterem em alguns maricas. Quando a briga era entre
dois valentões o colégio inteiro parava para ver. Monique e Isabela assistiam a briga:

_ Yahoo!!! Vai-vai bate nele com mais força. – Monique coloca lenha na fogueira.

_ Não sei. Não sei porque os homens são tão imbecis. – Contrapõe Isabela.

_ É massa; é muito doido. Eu superadoro. – Monique empolga.

Chega o diretor e os bedéis para separarem a briga. Alguns alunos ajudam.

_ Nããão! Deixa eles se matarem. – Grita Monique da plateia.

_ Não é com você né? – Isabela reclama.

O diretor se coloca no meio da roda e fala com autoridade.

_ Parou. Vocês deviam é ser amigos.

_ Amigo de um otário como esse. – Retorque Mateus enquanto limpa sangue da


boca com as costas da mão.

_ De qualquer forma não é permitido briga no colégio. Lá fora vocês façam o que
quiserem, mas aqui dentro não tolero esse tipo de situação. – O diretor dá um basta no
ocorrido e a roda é desfeita. Tudo volta ao normal.

VII

Miguel e Samuel estão encostados na capela discutindo estratégias de jogo.


NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 52

_ O negócio é o seguinte. Só tem dois marcadores bons no time deles. O resto é


tudo fácil de passar. São só os dois zagueiros que guardam retaguarda que dificulta a
passagem até o gol. – O estrategista Samuel fala.

_ Parece que eles sabem muito bem guardar posição, por isso, mesmo não tendo
boa marcação homem a homem e não sendo muitos os bons marcadores, ainda assim
eles não darão muito espaço para vocês jogarem. – Miguel completa a leitura de campo
de Samuel.

Enquanto eles conversavam um cara se aproxima dos dois e se direciona para


Samuel.

_ E aí brother?

_ Firmeza? – Samuel responde.

_ Fiquei sabendo que você não curti mais fumar um baseado. Para mim isso é
coisa de viadinho.

_ Olha cara, parei já faz tempo.

_ Você que sabe seu mané, mas se quiser tenho um aqui. Tá afim não?

_ Não, não e não. Valeu, mas não quero. Parei.

O cara mal encarado sai olhando para trás.

_ Está vendo no que você se meteu? Agora é conhecido como maconheiro. –


Miguel endereça a reprimenda a Samuel.

_ Deixa pra lá. Estou decidido a não fumar essa merda mais e não vai ser um
maluco desses que irá me obrigar a fazer o que eu não quero.

VIII

Começa o grande jogo. Samuel entra em um jogador do time adversário de


carrinho e o juiz apita.

_ Que isso juiz. Foi na bola. – Samuel tenta explicar.


NÉVOA AZUL – RICARDO RASSI JÚNIOR - 2017 53

_ Não interessa, foi carrinho. – O juiz lhe dá cartão amarelo.

Samuel está perdido. Seu time parece não trabalhar em equipe. É só rifando a
bola para frente e correndo de lá para cá. A única coisa que faziam além disso era falta.
Daí Samuel toma a responsabilidade para si. Recebe a bola na intermediária. Dribla um,
dois, três – a plateia levanta – e chuta para o gol, o goleiro espalma e no rebote Samuel
marca.

GOOOOOOOOL! Grita a turma da A em pavorosa.

A partida acaba e a A vence. Samuel sai como um herói e entrando no vestiário,


quem o para! A professora de inglês. Toda emperiquitada e empertigada começa a falar
com o Samuel:

_ Samuel, você foi demais. Amanhã me encontra depois da aula na pracinha


perto do colégio.

Pronto! Samuel havia matado dois coelhos em uma cajadada só, como era de
costume ele fazer. Seu time avançou de fase e ele tinha agora um encontro com
Jackeline. Será que ela finalmente iria dar tudo o que recusava a todos os outros alunos
só para Samuel?

IX

Um dia depois foi tudo como combinado. Samuel assistiu a aula e foi até a praça
como tinha combinado com Jackeline. Eles se viram, abraçaram-se e beijaram-se
ardentemente.

Em casa aquela tranquilidade sem igual. O pai de Samuel havia aberto uma filial
da empresa no interior e estava prosperando como nunca. Sua mãe feliz e terna com o
filho e sua boa situação.

Um ano se passou e as visitas a escondidas entre Samuel e Jackeline se


intensificaram. Samuel presta o vestibular e passa para medicina.

Seus amigos ainda lembram do campeonato do ano passado que Samuel levou
nas costas conseguindo o título para a A.
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Tudo ia bem, Samuel com certeza conseguiria atingir todos os seus objetivos.
Entretanto, no dia que ele saiu para o beco novamente ele recaiu depois de muito tempo
e fumou a maldita maconha. Entretanto não havia mais seu pai para recrimina-lo, pois já
era maior de idade. Cursava o curso que todos pretendiam cursar e agora Jackeline havia
deixado o ex-namorado e passou a namorar com Samuel.

Ele não sabia, mas o fim estava próximo, pois no dia que ele foi comprar um
baseado para fumar a polícia chegou no exato momento, dando um flagrante, e ele foi
internado em uma clínica psiquiátrica, deixando seu curso, sua namorada e sua família
para trás.

Um fim trágico para quem tinha tudo na vida e preferiu curtir certos momentos
de torpor. Da clínica ele saiu tão mau que repetiu o fracasso do pai em não realizar os
sonhos de juventude. Durou seis meses o martírio de Samuel. Quando ele voltou não
sabia mais o que fazer. Não sabia como recomeçar, mas como era um ótimo sujeito e
havia trancado a matrícula da faculdade, voltou a cursar medicina, Jackeline o recebeu
de braços abertos e seus pais passaram a serem mais compreensivos com ele, pois afinal,
mesmo deslizando, ele não caiu no abismo e com muita determinação conseguiu
retomar a vida, claro, com algumas perdas irreparáveis.
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