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PSICOLOGIA: MONOTEÍSTA OU POLITEÍSTA ?

Na conclusão de Aion, muito ocupado com o simbolismo cristão, Jung diz: “O estágio
anima/animus corresponde ao politeísmo, o si-mesmo ao monoteísmo.”[1] Embora demonstre
grande respeito pelos “númens, anima e animus”[2] e compreenda o si-mesmo como uma
conjunção, ele, ainda assim, sugere que do mesmo modo como anima/animus são um pré-estágio
do si-mesmo, o politeísmo também o é do monoteísmo. Além disso, também afirma que o si-
mesmo é “o arquétipo mais importante para nossa atual compreensão.”[3]

A preferência pelo si-mesmo e pelo monoteísmo apresentada nesse trabalho bate de frente com o
âmago de uma psicologia que dá ênfase à pluralidade dos arquétipos. (O que chamei de
“psicologia arquetípica” origina-se com a noção junguiana dos complexos, cujos núcleos
arquetípicos são a base para toda e qualquer vida psíquica.) Uma primazia do si-mesmo sugere,
mais propriamente, que a compreensão dos complexos num nível diferenciado, outrora formulada
como um panteão politeísta, que teve sua melhor representação na psique da antiguidade grega e
da Renascença, é menos importante para o homem moderno do que o si-mesmo do monoteísmo.
Fosse assim, a psicologia arquetípica não seria nada além de uma fantasia da anima ou de uma
filosofia do animus. Então, explorações da consciência em termos dos deuses – Eros e Psiquê,
Saturno, Apolo, Dioniso – seriam apenas preliminares para algo mais importante: o si-mesmo.
Dessa forma, o arquétipo do si-mesmo seria soberano, e dever-se-ia investigar sua fenomenologia
no quaternio, na coniunctio, nas mandalas, na sincronicidade, e no unus mundus. A questão
“politeísmo ou monoteísmo” representa um conflito ideacional fundamental na psicologia
atualmente. Qual fantasia governa nossa visão de cultivo da alma e de processo de individuação –
o múltiplo ou o uno?

O próprio tom da pergunta já nos indica a que grau somos dominados por uma predisposição em
direção ao uno. Unidade, integração, e individuação parecem um avanço sobre a multiplicidade e a
diversidade. Assim como o si-mesmo parece uma integração ulterior a anima/animus, também o
monoteísmo parece superior ao politeísmo.

Colocando de lado a parte psicológica da questão por um momento, vamos primeiro destituir a
noção teológica reinante de que na história das religiões e na etnologia dos povos o monoteísmo é
um desenvolvimento ulterior e superior proveniente do politeísmo. Paul Radin dedicou uma
monografia a este assunto.[4] Ele concluiu: “...assim como a maioria dos etnologistas e dos
estudantes imparciais deveria admitir agora, a possibilidade de se interpretar o monoteísmo como
parte de um progresso intelectual e ético geral deve ser abandonada...” (p.24). Ele contesta
vigorosa e convincentemente a visão evolutiva de que o monoteísmo emerge, é posterior ou
superior, ao politeísmo ou ao animismo (p. 29-30).

Radin não baseia o monoteísmo em estágios de desenvolvimento, mas na idéia de temperamento.


Algumas pessoas são monoteístas por temperamento; têm uma psicologia monoteísta. “Todos os
monoteístas, acredito eu, originaram-se da categoria dos eminentemente religiosos” (p. 25). “Tais
pessoas são admitidamente pouco numerosas...” “A característica de tais indivíduos, insisto, é
conceber o mundo sempre como um todo unificado...” (p.25) Estes são os pensadores teológicos,
uma pequena elite em qualquer cultura, compartilhando um mesmo temperamento, e sua
influência sobre seus confrades da mesma cultura é inflexível e efetiva.

A persistência inexpugnável da religião monoteísta pode ser justificada psicologicamente pela


teoria junguiana do si-mesmo. Poderíamos ser tentados a concluir, então, que o monoteísmo é tão
forte por ser o equivalente teológico de uma condição psíquica mais completa, integrada e
poderosa (numinosa). Mas duas objeções surgem de pronto. Em primeiro lugar, Radin diz que o
monoteísmo “obviamente não foi o triunfo do princípio unificador sobre o disruptivo” (p. 29). Isto
quer dizer que ordem e desordem religiosa e social, unidade e desunião, não podem ser
correlacionadas com monoteísmo e politeísmo. Em segundo lugar, fundamentar a força do
monoteísmo religioso através da analogia com o estado psicológico mais completo do si-mesmo
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toma por certo a mesma questão que ainda não foi provada em lugar nenhum: a superioridade do
monoteísmo sobre o politeísmo. A persistência não demonstra necessariamente a superioridade
do monoteísmo, nem mesmo sua vitória. Gray[5] chama nossa atenção para o fato de que duas
atitudes diversas em relação a Deus podem existir ao mesmo tempo; a monolatria de Jahweh
existiu entre os Judeus (mesmo tão tarde quanto no período do exílio) lado a lado com a adoração
de outras divindades.

Apesar da evidência histórica das religiões, há uma noção insensata, sem fundamentação
adequada, de que o monoteísmo é o pináculo e de que “a evolução da religião manifesta, assim
parece, uma tendência definitiva em direção à integração de nossa vida mental e emocional...”
(Radin, p. 6) Os fatos históricos da religião podem não confirmar a teoria junguiana, mas o pode a
predisposição psicológica dos historiadores da religião que colocam o monoteísmo no topo em
nome da integração.[6]

Dois exemplos ajudam a mostrar esta tendência ao monoteísmo evolutivo. Em seu exame do
declínio da religião grega, Nilsson[7] considera o movimento religioso que passa dos Deuses
singulares, bem delineados, para uma multiplicidade de poderes e daimones, uma degeneração. A
magia, a superstição e o ocultismo que prevaleceram nos períodos mais tardios eram, segundo
Nilsson (que vem da Suécia protestante), uma desintegração. Um século antes, Schelling fantasiou
um vago Urmonotheismus, que se desenvolveu mais tarde em um monoteísmo do Antigo
Testamento claramente formulado como o produto mais importante da consciência religiosa. Entre
o primeiro monoteísmo primitivo e o estágio posterior altamente desenvolvido, tivemos Babel, que
para Schelling representou a incursão do politeísmo.[8]

A hipótese da superioridade do si-mesmo e do monoteísmo sobre anima/animus e o politeísmo


encontra parceiros entre os historiadores da religião. Conseqüentemente, a hipótese de Jung pode
ser mais uma expressão do temperamento teológico. Este temperamento foi descrito de modo
mais estreito como introversão, pois como diz Jung: “A tendência monística pertence à atitude
introvertida, a pluralística à extrovertida.”[9] Assim como em outras áreas da atividade humana,
Jung percebe que as duas tendências na teologia, onde são expressas como monoteísmo e
politeísmo, estão também em “guerra constante.”[10] Nenhuma dessas tendências de atitude é
superior à outra e nenhuma é a evolução da outra. Elas são dados, e estão igualmente dadas.

Dessa forma, devemos também manter distintas as idéias de desenvolvimento individual e cultural,
o estágio do si-mesmo do indivíduo e o estágio monoteísta da religião. Não está estabelecido em
nenhum lugar (apesar de E. Neumann) que os estágios do pensamento religioso (se é que existem
tais estágios, e Radin duvida disso) necessariamente traçam um paralelo com os estágios da
consciência individual (se é que existem tais estágios). Além disso, segundo Radin, não
deveríamos de modo algum pensar em termos de desenvolvimento com relação aos diferentes
tipos de religião. A cultura e a religião não se movem ascendentemente do múltiplo para o uno, da
desordem para a ordem, de Babel para Jahweh: o monoteísmo não é equivalente a superioridade,
exceto dentro de seu próprio Anschauung.

A idéia de um monoteísmo superior,[11] e de estágios progressivos em direção a ele, tem sido


utilizada para a noção de um si-mesmo superior, alcançado através dos estágios progressivos da
individuação. Agora, já que a superioridade monoteísta é questionável, também o deveria ser a
superioridade dos modelos monoteístas para o si-mesmo.

Talvez o pensamento linear em estágios não seja senão outro reflexo de um temperamento
monoteísta, cujas fantasias Judaico-Cristãs valorizam o desenvolvimento histórico e o
aperfeiçoamento hierárquico, enquanto que anima/animus e seu modelo de politeísmo tendem a
um campo múltiplo de focos mutáveis e relações complicadas. Talvez devêssemos ter menos
certezas sobre os estágios de desenvolvimento na religião e no indivíduo, e ser mais
questionadores a respeito do tipo de consciência que percebe em termos de estágios.
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Nosso argumento já se tornou psicológico. Não estamos mais examinando a evidência religiosa
apresentada por Radin, mas sim a teoria psicológica que ele propõe, ou seja, que o monoteísmo
resulta de “uma expressão intelectual-religiosa de um tipo muito especial de temperamento e
emoção.

Já sugerimos anteriormente[12] qual padrão arquetípico específico tende a se manifestar em


descrições do si-mesmo. O si-mesmo é personificado como o Velho Sábio; suas imagens são
freqüentemente tidas como ordenadoras, por exemplo, figuras geométricas, cristais, pedras e
abstrações que vão além das imagens; o comportamento associado ao si-mesmo e ao processo
que leva a ele é normalmente apresentado na linguagem da introversão, comum aos “filhos de
Saturno.” Do ponto de vista de uma psicologia arquetípica, “o tipo especial de temperamento e
emoção” que produz o monoteísmo, favorece o si-mesmo em detrimento de anima/animus e
enxerga sua relação em estágios seria o senex. Esse arquétipo pode também ajudar a justificar a
persistência obstinada do monoteísmo teológico, sua intolerância religiosa e convicção de
superioridade. Pode também justificar a peculiaridade do conceito de si-mesmo, o qual trabalha
simbolicamente para unir os reinos da religião e da psicologia. Isto leva não só a confusões
teológicas de psicologizar Deus – um problema com o qual Jung estava constantemente
preocupado. Leva também a confusões psicológicas de teologizar a psique, produzindo dogmas,
ritos propiciatórios, sacerdócios e adoração. Da mesma forma, a ênfase sobre o si-mesmo do
monoteísmo psicológico pode ajudar a explicar os interesses teológicos de junguianos
contemporâneos (assim como o interesse dos pastores contemporâneos por Jung) e a mistura
peculiar da psicologia analítica com o Cristianismo que discutiremos abaixo como a “direção
protestante”.

II

O que dizer então sobre o politeísmo e anima/animus? Primeiro, deixemos o monoteísmo um


pouco de lado, tanto em nossos julgamentos teológicos quanto em nossas convicções psicológicas
sobre estágios, unidade e avanço linear, ou até mesmo em espiral. Vamos também tentar deixar
de lado a influência penetrante de nossos desejos monoteístas por uma utopia de integração (a
Idade de Ouro de Cronos), e aquela fantasia de individuação que a caracteriza basicamente como
um movimento em direção à unidade, expressa na totalidade, na centralização, ou em figuras
como o Velho Sábio ou a Velha Sábia. Essa fantasia de individuação oculta sutilmente as
diferenças entre o psicológico e o teológico. Dessa forma, o solo fica preparado para uma elite
monoteísta (usando a linguagem de Radin) de “indivíduos eminentemente religiosos”,
“admitidamente pouco numerosos”. (Será que eles se tornaram nossos “analistas didatas” e
“supervisores”, nossos mestres da individuação sustentados pelo mana do monoteísmo do si-
mesmo?) Ao colocar de lado a dominação senex de nossas atitudes, poderemos considerar o
politeísmo de uma nova maneira, psicologicamente.

Jung usou uma descrição policêntrica para a psique objetiva. A luz da natureza era múltipla.
Seguindo as descrições tradicionais da anima mundi, Jung escreveu sobre o lumen naturae como
uma multiplicidade de consciências parciais, como estrelas ou centelhas ou olhos luminosos de
peixes.[13] Uma psicologia politeísta corresponde a essas descrições e proporciona sua
formulação imagística na principal linguagem tradicional de nossa civilização, isto é, na mitologia
clássica. Ao proporcionar um fundo divino de personagens e poderes para cada complexo, a
psicologia politeísta encontraria um lugar para cada centelha. Seu alvo seria menos juntá-los em
uma unidade do que integrar cada fragmento segundo seu próprio princípio, dando a cada Deus
sua parcela sobre aquela porção de consciência, aquele sintoma, complexo, fantasia, que pede por
um fundo arquetípico. Ela aceitaria a multiplicidade de vozes, a Babel da anima e do animus, sem
insistir na unificação destes em uma figura única, e aceitaria também o processo de dissolução na
diversidade como tendo o mesmo valor que o processo de coagulação na unidade. Os Deuses e
as Deusas pagãos seriam restituídos de seu domínio psicológico.
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Consideraríamos Ártemis, Perséfone, Atená, Afrodite, por exemplo, como retaguardas psicológicas
mais adequadas à complexidade da natureza humana do que a figura unificada de Maria, e a
diversidade expressa por Apolo, Hermes, Dioniso e Hércules, por exemplo, correspondendo melhor
às realidades psicológicas do que qualquer idéia de si-mesmo, ou figura de Eros, ou de Jesus e
Jahweh. Não que Maria, Eros, Jesus e Jahweh sejam falsos – muito, muito longe disso; só que
eles, assim também como Zeus, tendem a apresentar-se em descrições que dominam através da
unificação[14], portanto perdendo os valores formados por cada um dos outros Deuses e Deusas.

O foco sobre o múltiplo e o diferente (ao invés do foco sobre o um e o mesmo) também
proporciona uma variedade de maneiras de se olhar para uma condição psíquica. Existem muitos
caminhos para se descobrir as virtudes de um fenômeno psíquico. A depressão, digamos, pode ter
um sentido a partir do modelo de Cristo, seu sofrimento e ressurreição; através de Saturno pode
ganhar a profundidade da melancolia e da inspiração, ou através de Apolo servir para libertar o
pássaro negro do insight profético. Da perspectiva de Deméter, a depressão pode revelar a
consciência do mistério mãe-filha, ou, através de Dioniso, podemos pensar a depressão como um
refúgio das demandas excessivas da vontade reinante.

Essa ênfase sobre muitos dominantes favoreceria então a diferenciação de anima/animus. É bem
possível – e isto é o que afirmo e defendo – que um interesse mais intenso por uma variedade de
hipóstases divinas e seus processos encontrados nos mitos mostrar-se-á mais psicológico, mesmo
que seja menos religioso (no sentido monoteísta de religião). Esse interesse irá, provavelmente,
produzir mais insights de emoções, imagens e relacionamentos, mesmo que seja menos
encorajador para uma teologia de totalidade evolutiva. Irá provavelmente refletir de forma exata as
ilusões e embaraços da alma, mesmo que satisfaça menos a visão popular da individuação, que
segue do caos para a ordem, da multiplicidade para a unidade, onde a saúde da totalidade veio a
se tornar o uno dominando o múltiplo.

A psicologia politeísta obriga a consciência a circular por um campo de poderes. Cada Deus tem
sua parcela, assim como cada complexo merece respeito em si mesmo. Nessa circularidade de
topoi parece não haver uma preferência de posições, nenhuma afirmação certa sobre positivo e
negativo e, portanto, nenhuma necessidade de taxar algumas configurações e topoi como
“patológicos”; a própria patologia precisará de uma revisão politeísta. Quando a idéia de progresso
através de estágios hierárquicos é suspensa, há mais tolerância pelos componentes da psique que
não crescem, não sobem e são desordenados. Há mais espaço para a diferença quando mais
lugar é dado para a variedade. Poderemos então descobrir que muitos dos julgamentos que foram
anteriormente chamados de psicológicos eram antes teológicos. Eram afirmações sobre sonhos,
fantasias e comportamento, e pessoas também, vindo de um ideal monoteísta de totalidade (o si-
mesmo), que desvaloriza a multiplicidade primordial das almas.

Monoteísmo ou politeísmo, si-mesmo ou anima/animus propõem ainda outro ou/ou: teologia ou


psicologia. Tradicionalmente a psicologia lida com a segunda ordem das coisas, isto é, o mundo
emanado de fluxo, diversidade e o fenomenalmente imperfeito. Sua preocupação tem sido
tradicionalmente com as realidades da alma, seus modos de existência, suas fantasias, emoções e
experiências; ao passo que a teologia considera a alma escatologicamente, do ponto de vista do
si-mesmo. A totalidade definida pela psicologia significa todas as coisas – todos os fenômenos
como fenômenos, as coisas assim como se apresentam. A totalidade definida teologicamente
significa o uno – as coisas como elas são em Deus. A partir dessa diferença podem surgir duas
visões de completude, uma totalidade psicológica onde a individuação mostra-se como sendo o
que algo é como o é em relações múltiplas, e uma totalidade teológica onde a individuação mostra-
se em graus de aproximação de um ideal ou unidade. Quanto mais ocupado pela anima ou pelo
animus eu estiver, mais interessado estarei pelo caos dos fenômenos psicológicos. Quanto mais
ocupado pelo si-mesmo, mais interessado por metas, experiências extremas, e universalidade.

Vistos dessa perspectiva superior, Babel e a proliferação de cultos no período helenístico sempre
parecem uma degeneração. Da mesma forma, um “tribunal de animus” com sua ambivalência, ou a
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multiplicidade de mulheres oníricas, tornam-se nada além de um pré-estágio inferior da unidade.


(Lembrem-se de como os profetas alertaram contra a promiscuidade e a prostituição em Israel.) O
mundo multifacetado do Olimpo deve desaparecer diante de um Deus único (mesmo que dividido
em três pessoas).

Pode-se, no entanto, considerar a proliferação de cultos como uma therapeia (adoração, serviço e
cuidado) dos complexos em suas diversas formas. Desta maneira, poder-se-ia entender a
fragmentação psíquica supostamente típica em nossa época como o retorno do reprimido,
trazendo um retorno do politeísmo psicológico. Logo, a fragmentação indicaria a existência de
diversas possibilidades para a individuação, podendo mesmo ser o resultado da individuação: cada
indivíduo lutando com seus daimones. Se existe apenas uma forma de individuação, pode haver
individualidade verdadeira? Os complexos que não se integram forçam o reconhecimento de seus
poderes autônomos. Seus núcleos arquetípicos não serão servos do objetivo único da totalidade
monoteísta. Babel pode significar um declínio religioso a partir de um ponto de vista, e pode ser um
progresso psicológico, já que através das diversas línguas uma realidade psíquica discordante
mais abrangente está sendo refletida. Por isso, o deleite atual por superstições, astrologia, bruxaria
e oráculos tem uma significação psicológica mesmo que considerado como uma religião inferior.
Através dessas imagens e práticas os aspectos anima/animus da psique começam a encontrar
reflexão e contenção em um fundo impessoal. Sem os Deuses, que oferecem modelos
diferenciados para os fenômenos psíquicos peculiares da anima e do animus, nós os enxergamos
como projeções. Então, tentamos trazê-los de volta por meio de medidas introvertidas. Mas “o ego
individual é demasiadamente pequeno, seu cérebro demasiadamente frágil, para incorporar todas
as projeções retiradas do mundo. O ego e o cérebro rompem-se em pedaços na tentativa; os
psiquiatras chamam isso de esquizofrenia.”[15] Sem uma psicologia politeísta consciente não
estaremos mais susceptíveis a uma fragmentação inconsciente chamada esquizofrenia?

A psicologia monoteísta contrapõe o que ela enxerga como desintegração e colapso com imagens
arquetípicas de ordem (mandalas15a). A unidade compensa a pluralidade. A psicologia politeísta
teria sua própria linguagem para essa assim chamada desintegração, através da semelhança
arquetípica: similis similibus curantur. Cada fenômeno particular em uma experiência de colapso
seria visto menos em termos do constructo “colapso”. Em vez disso, seria levado de volta
(epistrophé) à sua fonte arquetípica – e a própria idéia de colapso seria articulada mais
precisamente em termos do herói, do puer, de Hermes, Dioniso, Deméter, e seus diferentes estilos.
Haveria menos necessidade de compensação por opostos.

O contraste entre anima/animus e o si-mesmo aparece em Aion como um contraste entre Deuses
pagãos e a imago Dei. Aqui Jung recapitula, em um nível psicológico, os conflitos antes vividos nas
controvérsias e guerras religiosas. De anima/animus Jung diz:

Eles são, no verdadeiro sentido da palavra, o pai e a mãe de todas as grandes


complicações do destino e, como tais, são conhecidos no mundo inteiro desde épocas
imemoriais: trata-se do par de deuses, um dos quais...é caracterizado pelo pneuma e pelo
nous, como o Hermes de múltiplas facetas, enquanto a segunda é representada sob os
traços de Afrodite, Helena (Selene), Perséfone e Hécate... São potências inconscientes, ou
precisamente “deuses”, como a antiguidade muito corretamente os concebeu. Esta
designação os aproxima, na escala dos valores psicológicos, daquela posição central em
que eles, seja qual for o caso, sempre se situam, quer a consciência lhes reconheça este
valor ou não...”[16]

O si-mesmo da totalidade psicológica, de maneira resumida, reflete mais claramente o Deus do


monoteísmo e o arquétipo do senex.

A unidade e a totalidade se situam a um nível superior na escala dos valores objetivos,


uma vez que não podemos distinguir os seus símbolos da imago Dei. Tudo o que se diz
sobre a imagem de Deus pode ser aplicado sem nenhuma dificuldade aos símbolos da
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totalidade. Mostra-nos a experiência que os mandalas individuais são símbolos


ordenadores, razão pela qual se manifestam nos pacientes sobretudo em épocas de
desorientação ou de reorientação psíquicas. Eles exorcizam e esconjuram, sob a forma de
círculos mágicos, as potências anárquicas do mundo obscuro, copiando ou gerando uma
ordem que converte o caos em cosmo.[17]

Deixem-me apressar em esclarecer que uma psicologia politeísta também é religiosa17a. Ao


seguir Jung estamos considerando a anima e o animus em suas formas divinas e estamos dando-
lhes aquela “posição central, na escala dos valores psicológicos, em que eles, seja qual for o caso,
sempre se situam.” A religião é definida não pelo número de seus Deuses, mas através da
observação ou ligação dos eventos à divindade. O fato de se relacionar eventos psíquicos com
diversos Deuses e Deusas e com diversos poderes e daimones não deveria ser entendido como
uma diminuição da glória de um Deus único superior ou, por outro lado, como um alargamento
desse Deus único superior em algo maior e melhor. Podemos livrar-nos do “melhor e pior” assim
que deixarmos de lado o pensamento teológico e sua predisposição monoteísta que coloca a
questão nesse tipo de linguagem. A psicologia politeísta abre espaço para a apresentação
preferencial de qualquer mito específico num estilo de vida. Uma pessoa pode ser protestante,
hercúlea, dionisíaca, ou uma criança melancólica de Saturno, segundo o núcleo arquetípico
governando seu complexo dominante e, portanto, seu destino. E até os mitos podem mudar
durante a vida, e a alma servir a muitos Deuses.

Muitas distinções devem ser feitas neste momento. Em primeiro lugar, devemos discernir entre
servir aos Deuses e adorá-los, ou idolatria. A batalha bíblica não é contra os mitos de Deuses
pagãos. Na verdade, a perspectiva arquetípica da Bíblia, como Kaufmann diz com autoridade,
ignora completamente o mundo mítico pagão, de modo que uma consciência naquele modelo
monoteísta é obrigada a primeiro encarar sua própria lacuna mitológica, sua própria “ignorância do
significado do paganismo”[18] quando adentrando em arredores politeístas. Até mesmo os próprios
termos – “pagão”, “bárbaro”, “politeísta” – derivam desta lacuna e expõem-na. O que a Bíblia é
mais fervorosamente contra não são os mitos dos Deuses pagãos; ela nem os menciona. Anátema
é a adoração de imagens de “madeira e pedra”[19]. A psicologia politeísta entende suas estruturas
fundamentais, os Deuses, miticamente, em sua própria linguagem, e não literal e idolatricamente,
como objetos de crença, pois quem pode acreditar nos Deuses e Deusas antigos como presenças
reais nos dias de hoje? Não é nem o fato de sua multiplicidade, nem o modelo mítico imaginal de
sua apresentação que constituem o alerta bíblico. Não, é o concretismo fixo (madeira e pedra), a
ligação literal com os mitos, imagens e Deuses, uma proscrição com a qual também concordamos.

A segunda distinção diferenciaria ainda mais precisamente a religião monoteísta da psicologia


monoteísta – uma distinção difícil de guardar na memória devido à forte influência do monoteísmo
sobre nossa consciência, o que as mantém tão indistinguíveis. No entanto podemos tentar manter
a crença literal e a atitude metafórica separadas. Podemos ter uma sem a outra, como por
exemplo no Judaísmo. Ele aparenta ser definitivamente monoteísta como religião, mas nem tanto
como psicologia. No Judaísmo, En-Sof, JHWH não é definido[20] e a Torá pode ter seiscentas mil
faces, uma para cada judeu no exílio. O conteúdo da crença é deixado em suspenso, Deus não é
codificado, e a psique é livre para fantasiar uma multiplicação de leis e distinções. Os volumes de
comentários judaicos demonstram a riqueza sem fim dessas fantasias. A heresia é rara embora a
diferenciação seja altamente acentuada. Onde a religião mantém-se monoteísta, sua atitude
psicológica revela toda a variedade da multiplicidade. O cisma é raro (exceto por aquele principal,
o Cristianismo, que literalizou Deus como história, corpo, Igreja e doutrina).20a

A terceira distinção segue as outras. É uma distinção entre fé religiosa e fé psicológica, até mesmo
entre verdade religiosa e verdade psicológica. Deixem-me citar aqui uma passagem das minhas
Terry Lectures, que aparenta colocar esse ponto de vista de maneira mais sucinta:

Porque nossa psicologia politeísta não está fazendo reivindicações teológicas, porque não
está abordando os Deuses com um estilo religioso, a teologia não pode repudiar o
7

politeísmo psicológico como heresia ou como uma religião falsa com falsos Deuses. Não
estamos aqui para adorar Deuses gregos – ou outros de qualquer outra grande cultura
politeísta... Não estamos revivendo uma fé morta. Pois não estamos preocupados com a fé
[em Deus] ou com a vida ou a morte de Deus. Psicologicamente, os Deuses nunca estão
mortos; e a preocupação da psicologia arquetípica não é com a recuperação da religião,
mas com a sobrevivência da alma. [A fé na alma é nossa maior preocupação.][21]

A psicologia politeísta não suspenderia o mandamento de não ter “nenhum outro Deus acima de
mim”, mas estenderia esse mandamento a cada modelo de consciência. Dessa forma, cada
possibilidade arquetípica da psique – incluindo aquelas que agora chamamos de psicopatológicas
– poderia seguir seu princípio de individuação dentro de seu modelo divino específico. Nenhum
modelo estaria “antes” do outro, já que no politeísmo as possibilidades de existência não são tão
ciumentas a ponto de excluir as outras. Todas são necessárias já que juntas servem a uma única
lei: a necessidade. O politeísmo fornece à psicologia arquetípica um modelo religioso até mesmo
para a psicopatologia ao sugerir um fundo mítico adequado para cada sofrimento da alma.

III

O tema monoteísmo/politeísmo é imensamente complexo e carregado de energia. As melhores


cabeças dos primeiros séculos de nossa era estiveram obcecadas por esse assunto, e nesse
conflito do paganismo com o Cristianismo[22] nossa psique histórica e nossa teoria psicológica
foram moldadas no que finalmente tornou-se a atual direção protestante.

A essência dessa direção reflete a vitória cristã sobre o mundo pagão que pode ser resumida em
uma frase de Gregório Nazianzeno, quem, enquanto louvando os pagãos por sua cultura,
epitomava o método para integrá-los ao Cristianismo: “nós capturamos todo pensamento para
Cristo”.[23] O Deus único engole todos os outros; Pã foi morto porque o monoteísmo venceu. A
variada totalidade natural (Pã) dos modos de existir do mundo pagão, com seus atributos, traços e
tipos de consciência convivendo juntos, foi capturada ao vinculá-la à imagem e ao mito único
central. O monoteísmo alimentou-se, como Cronos, dos Deuses que reprimia. À medida que o
Cristianismo expandia-se, “a filosofia [leia-se psicologia] grega encarcerada submergia exausta nos
braços da religião”.[24] Mesmo que admitíssemos que esse evento histórico foi benéfico para a
religião – e existem outros além de Nietzsche que não gostariam de dar qualquer valor a essa
vitória – não foi necessariamente benéfico para a psicologia. Isso porque padrões específicos de
consciência foram privados de seus fundos arquetípicos e aprisionados pelo modelo cristão, cuja
perspectiva os fez parecer patológicos. Eles só poderiam retornar pela porta dos fundos da
aberração mental.[25] Uma visão patológica de muitos dos fenômenos psíquicos é inevitável se a
psicologia não mantém vivas a individualidade e a variedade de formas arquetípicas e seus modos
diferentes de enxergar a alma e a vida. Lembrem-se, até mesmo a alquimia cristã adverte contra
conjunções e unificações que criam o monstrum, ou seja, monstruosidades psíquicas. Preferindo a
psicologia, em vez disso, fundir as formas diversas em uma totalidade determinada pelo
monoteísmo, o ego em direção ao si-mesmo, “o um em direção ao Um”[26], não submergirá
também – se é que ainda não submergiu – exausta nos braços da religião?

A direção protestante da psicologia analítica surge de muitas formas. Atualmente a vemos: na


ênfase sobre o amor como uma panacéia, sem diferenciação de suas facetas e consciência da
tradição relacionada às suas constelações; no mérito do trabalho duro consigo mesmo; na
inculcação de um ‘ego forte’ na terapia através do enobrecimento de escolha, responsabilidade,
compromisso, e a conseqüente manipulação da culpa; na confiança na simplicidade, na
ingenuidade e na emoção grupal; numa tendência anti-intelectual, anti-logos, onde a confiança
(pistis) no ‘inconsciente’ ou no ‘processo’ é suficiente; ou, como um reverso de pistis, numa
objetividade científica pura em conjunto com as preocupações clássicas do capitalismo –
pagamentos, contratos, clientes, leis, seguro; na ênfase sobre a revelação (através de sonhos,
oráculos, imaginação, psicose, analista, ou Jung); numa combinação peculiar de religiosidade
introvertida e popularização missionária.
8

Vemo-la também no modelo único para o sofrimento psicológico no qual o valor da morte é
deslocado para o renascimento, um processo linear de obtenção de uma condição melhor em troca
de uma pior. Esse modelo desvaloriza fundamentalmente a importância existencial da depressão e
a descida para a dissolução per se. Os fenômenos decrescentes são bons, não por eles mesmos,
mas porque oferecem uma esperança pela ressurreição. Aparece principalmente na obsessão
teológica pelo mal, que, recapitulemos, não era pauta no politeísmo grego. Os gregos não tinham
um Diabo; cada forma de consciência tinha seus componentes específicos de mal-fazer e tragédia.
O mal não era um componente separado, mas um fio tão bem costurado a tudo que a ‘integração
da sombra’ já era dada nos padrões de vida, ao invés de ser uma tarefa para o ego desempenhar.
E a direção protestante aparece na noção de “eixo ego-si-mesmo”, a confrontação entre eles, o
novo ponto central como a nova aliança, e “Cristo como um paradigma do ego individuado”.[27]

Quando nosso modelo de individuação é governado pela psicologia monoteísta em sua direção
protestante, toda fantasia torna-se prisioneira de Cristo. Toda fantasia nada pode fazer a não ser
encontrar sentido em termos do caminho único, como o peregrino em seu progresso em direção à
integração. Mesmo aqueles que não se adaptam voluntariamente podem ser aprisionados através
da idéia de uma “anima pagã”, um “animus ctônico”, uma “inflação de puer”, ou de um “problema
do mal”. Esses conceitos vinculam os eventos psíquicos ao mito dominante da direção protestante.
Onde antes a ciência, e depois a pragmática clínica eram os inimigos da psique, hoje a ameaça à
liberdade psíquica de formar símbolos não é nada mais do que o Cristianismo desvanecido
voltando sobre o disfarce de uma teologia do Si-mesmo para reivindicar a alma para si mesmo.
Libertar os Deuses reprimidos ou os prisioneiros de Cristo significa perceber em primeiro lugar
quão limitada deve ser nossa hermenêutica para os fenômenos psíquicos quando temos um
modelo monoteísta simplista para a totalidade.

Jung chamou atenção para o fato de que “a exterminação do politeísmo” anda de mãos dadas com
a supressão da fantasia individual, e que à medida que “a idéia cristã começa a desaparecer, uma
recrudescência da formação de símbolos individual deve ser esperada”.[28] Podemos chegar à
conclusão de que a “formação de símbolos individual” requer uma psicologia politeísta, pois os
símbolos referem-se aos seus semelhantes na variedade de formas arquetípicas através das quais
encontram sua autenticação. Jung previu que sua ênfase sobre a totalidade e a inteireza poderia
ser transformada pelo monoteísmo de nossa cultura, e dessa forma conduzir a uma nova
unilateralidade? A imitatio Christi,[29] desaparecendo como um dogma ou uma prática religiosa,
torna-se um dogma psicológico ao redirecionar sutilmente o fluxo vital da fantasia individual de
volta para o antigo recipiente, agora chamado “totalidade”, sua cruz octangular da tipologia, agora
tornada sagrada através da objetivação científica.

O contraste junguiano do cristão com o politeísta sugere uma tensão entre eles em sua alma. No
tributo a Jung em seu funeral, o pastor falou dele como um herético. Sua heresia, se
acompanharmos seu pastor nessa denominação, era, no entanto, de expansões e revisão, não de
negação. Ele acrescentou um quarto elemento à trindade e, com isso, a dimensão da realidade
psíquica ao dogma cristão. Com isso também, o Deus interno foi reafirmado. O Deus empírico e
fenomenológico da psicologia abrangia uma quarta dimensão, uma face inferior que Jung enxergou
como a sombra, a feminilidade, Mercúrio, e o passado pagão. Ele acrescentou ao Cristo da
ortodoxia a riqueza do imaginário alquímico e, como os filósofos cristãos de épocas anteriores,
conectou suas explorações repetidas vezes à imagem de Cristo. Além disso, sua descrição da
imago Dei29a como o Si-mesmo segue o modelo monoteísta, ao incluir os diversos opostos em um
objetivo maior, a união. Heresia maior foi evitada.

O Oriente[30], (a que pertencem a noção de si-mesmo, a mandala e o Velho Sábio) e a alquimia


forneceram a Jung alternativas ao problema desesperador da heresia, que tanto obsecaram os
gigantes da Renascença e os mais profundos românticos. Bruno, que postulou uma pluralidade de
mundos, foi expulso da ordem dominicana e depois queimado; Ficino tomou outra postura e na
metade de sua vida foi ordenado aos serviços da Igreja. O panteísmo místico de Wordsworth
deteriorou-se em um apoio confuso à religião estabelecida. Coleridge, totalmente imerso nos
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dilemas do politeísmo neoplatônico (aparecendo na sua época como panteísmo), “considerou-se


como um ortodoxo da Igreja Anglicana”.[31] A tensão entre sua vida imaginal, sensual e suas
convicções cristãs foram consideradas como o centro de sua agonia privada. O poder
extraordinário de Blake para imaginar seu próprio cosmo e seus personagens permitiram-no seguir
o método de Gregório Nazianzeno ao considerar todas as fantasias dentro do nexo judaico-cristão,
no entanto, sem perder a imaginação. Aqueles que começaram corajosamente no paganismo –
Shelley, Keats, Byron – morreram antes que a questão recaísse totalmente sobre eles. Berdyaev
acreditava que a questão era insolúvel: “uma Renascença pagã é impossível em um mundo
cristão, absolutamente impossível”.

Será isso também verdade no reino da psicologia? A restauração das figuras pagãs a seus postos
como dominantes arquetípicos da psique é impossível em um mundo psicológico monoteísta? Se
assim for, devemos abandonar nossas tentativas de uma abordagem arquetípica baseada na
policentricidade e aceitar que a psicologia analítica seja uma prisioneira do monoteísmo em sua
atual direção protestante e deixar a psicologia submergir exausta onde quer que seja. Ou:
contrafobicamente a essa submersão, a psicologia monoteísta luta heroicamente por um Ego
racional, secular e humanista, no qual a religião é ou uma ilusão ou um ‘instinto’ constituinte que
deve ser integrado na totalidade humana.

Deixem-me enfatizar que a tarefa da psicologia não é a reconciliação do monoteísmo com o


politeísmo. Quer a diversidade seja os vários aspectos da unidade, ou emanações da unidade, ou
suas hipóstases e personagens, esta é uma discussão para a teologia, não para a psicologia.
Dessa forma, também as tentativas de integração de anima/animus no si-mesmo (como, por
exemplo, a noção de estágios) tendem a ser teológicas: apresentam teorias num modelo senex
para integrar as diferenças em uma ordem única. O resultado geralmente desfavorece a
pluralidade das diferenças individuais. E essas diferenças são, precisamente, o que desejamos
levar em consideração, seguindo uma das definições de Jung para a individuação como
diferenciação.[32] Logo, a psicologia politeísta não foca sua atenção sobre constructos tais como
identidade, unidade, centramento, integração – termos que entraram na psicologia por meio de
suas influências monoteístas. Em vez disso, uma psicologia politeísta favorece diferenciação,
elaboração, particularização, complicação, afirmação e preservação. A ênfase é menos em mudar
o que existe para algo melhor (transformação e desenvolvimento) e mais em aprofundar o que
existe em si mesmo (individualização e cultivo da alma).

A ‘saída’ para o dilema politeísta/monoteísta é talvez menos teórica e mais empírica. Qual padrão
oferece à minha psique, na confusão de seus complexos, melhor opções de significado? Critérios
pragmáticos heurísticos sempre foram decisivos na escolha entre estruturas rivais de consciência.
Constantino tornou-se cristão (e através dele nossa civilização) porque a nova religião monoteísta
oferecia, então, redenção para áreas perdidas de sua psique, às quais o paganismo da época não
poderia dar vida.[33] “...os cultos pagãos eram nada mais do que uma miscelânea confusa,
amarrados de uma forma muito solta pela habitual dedicação a ‘todos os deuses’. Eles não tinham
nenhuma organização comum e tendiam a separar-se em seus próprios átomos.”[34] A
independência das cidades-estado gregas e das cidades italianas da Renascença, o grito de
liberdade em nome do paganismo durante a revolução romântica, assim como os movimentos
separatistas contemporâneos demonstram no nível político uma dissociação psicológica longe da
autoridade central.[35] Traduzindo esses fenômenos politeístas e separatistas em uma metáfora
psicológica temos a visão junguiana da psique objetiva onde os átomos refletem as múltiplas
centelhas.

O monoteísmo evidentemente forneceu o foco central de que necessitava a psique de Constantino.


Hoje em dia, não será a situação o oposto? O atomismo de nosso paganismo psíquico, ou seja, a
impulsividade da formação de símbolos individual agora se expandindo enquanto o culto cristão
desvanece, pode ser contido por uma psicologia de auto integração que ecoa seu modelo cristão
moribundo? Se for assim, então o si-mesmo é realmente “o arquétipo mais importante para a
nossa atual compreensão”. A resposta se arrasta na balança da história; e o prato da balança, tão
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cheio de fantasias individuais recrudescentes, está claramente tombando para o lado oposto à
definição monoteísta de ordem e sua imago Dei. O perigo é que uma retomada verdadeira do
paganismo como religião torna-se, assim, possível, com toda sua pompa de adivinhações
populares, sacerdócios sagazes, divinações astrológicas, práticas extravagantes, e a erosão das
diferenciações psíquicas através de entusiasmos ilusórios. Essas papoulas opiáceas florescem por
todos os lados. O si-mesmo não fornece proteção já que suas descrições monoteístas, em sua
maioria através de imagens do senex, e a interpretação protestante deixam muita coisa fora – ou
encobrem muita coisa através da coberta confortável da ‘totalidade’. Mas quando o si-mesmo pode
ser re-imaginado com precisão, como uma relação de valor com uma variedade de perspectivas
arquetípicas ambíguas e menos seguramente pelo senex, a consciência pode encontrar
receptáculos para sua formação de símbolos individual. Para opor-nos ao renascimento do
paganismo como religião precisamos de modelos psicológicos adequados que dêem crédito total
ao politeísmo inerente da psique, deste modo fornecendo receptáculos psicológicos para as
centelhas. Elas podem explodir em conflagrações religiosas[36] quando não são observadas
psicologicamente, ou quando são forçadas a uma integração monoteísta que simplesmente não
funciona.

A restauração dos Deuses e Deusas como dominantes psíquicos reflete verdadeiramente tanto a
beleza multicor quanto a confusão desordenada, e a limitação trágica, de anima/animus, sua
multiplicidade fascinante, seus conflitos, sua falta de coesão ética, sua tendência a levar-nos a um
aprofundamento na vida e em direção à morte. A psicologia politeísta pode oferecer uma
diferenciação sagrada à nossa desordem psíquica e acolher suas individualidades bizarras em
termos dos padrões clássicos.

A elaboração desses padrões em termos psicológicos ainda está por ser feita. Ainda precisamos
entender Ártemis e Perséfone, Apolo e Poseidon, em termos de nossas imagens de alma e de
nosso comportamento. Embora Jung tenha devotado bastante espaço em seus trabalhos para o
par divino e suas configurações, e também aos aspectos pessoais da anima e do animus em
nossas vidas, ele concentrou-se basicamente na fenomenologia do arquétipo do si-mesmo. O
mesmo trabalho exaustivo precisa ser feito com anima/animus. Mas antes que esse trabalho possa
ser realizado precisaríamos reconhecer sua importância e enxergar o mundo através de sua
perspectiva arquetípica, isto é, em termos de uma psicologia politeísta. Daí a insistência dessas
observações. (A idéia dos quatro estágios[37] da anima e do animus, inspirados principalmente em
Goethe e onde a progressão distancia-se do físico em direção ao espiritual, é somente uma
tentativa de uma fenomenologia de anima/animus em termos da mitologia clássica.[38]) Enquanto
não seguirmos Jung examinando a diferenciação da totalidade com o mesmo cuidado que ele
aplicava à integração da totalidade, nossa psicologia não alcançará a necessidade psíquica da
compreensão arquetípica de seus problemas.

Se existem outras opções psicológicas para nossa necessidade, não consigo encontrá-las. Essas
idéias e sua apresentação deixam muito a desejar, de forma que outros que possam ver a questão
e suas respostas de maneira mais clara estão convidados a responder ao assunto exposto ao
longo destas linhas.

IV

Pós-escrito – 1981: E assim concluía-se o artigo original publicado há dez anos. A ele seguiram-se
dez respostas – notavelmente a de Kathleen Raine sobre o politeísmo cristão de Blake – que pode
ser encontrada na reedição de Kraus dos números antigos da Spring. Depois, em outubro de 1976,
nos encontros da Academia Americana de Religião em St. Louis, havia outros dez debatedores
sobre o tema monoteísmo/politeísmo. Tanto David Miller quanto eu estávamos engajados nesse
painel, junto com Elizabeth Sewell, Richard Underwood, Tom Moore, William Paden, Daniel Noel, e
outros. Essas respostas procuraram esclarecer alguns equívocos de pensamento – filosóficos,
históricos, teológicos. A questão psicológica permaneceu bastante evitada. Mais uma vez, em
1979, quando esta versão revisada saiu na Alemanha no Gorgo: Zeitschrift für archetypische
11

Psychologie und Bildhaftes Denken, seguiram-se comentários, dentre os quais sobressaem


particularmente os de Wolfgang Giegerich e Ulrich Mann .

Essas discussões tornaram clara a necessidade de corrigir (não aperfeiçoar) o artigo. Um pouco
disso já foi feito em artigos subseqüentes. Isto é, o assunto dessa obra de 1971 foi articulado
detalhadamente em minhas Terry Lectures de 1972 (Revisioning Psychology 1975) e em meus
artigos sobre a “Anima” na Spring (1973 e 1974). Essa obra foi fundamental para o que veio
depois, como David Miller foi o primeiro a perceber. Apesar de emendas ainda fazerem-se
necessárias, não posso abarcar neste pós-escrito todas as questões levantadas pelos debatedores
nem dar a importância que merecem. Não quero nem tentar. Só quero usar este ringue para entrar
em mais uma ou duas brigas.

1. O que sugeri como uma psicologia politeísta foi inevitavelmente entendido como uma teologia
politeísta cujo alvo é o Cristianismo e o monoteísmo judaico-cristão. A questão psicológica aqui
não é se isso é ou era meu objetivo, disfarçado ou não, mas antes pode alguém fazer psicologia
sem ao mesmo tempo fazer teologia? Em 1971, a resposta de Philipp Wolff dizia que este era
precisamente o dilema da psicologia junguiana: ela usa categorias religiosas para descrever o
mundo psíquico e por esta razão está, quer queira quer não, presa na teologia. Ele está certo. A
interpenetração deliberada entre psicologia e teologia é onde o contexto junguiano deste artigo é
mais visível. A psicologia de Jung tem sempre implicações teológicas e, onde foi regularmente
ignorada por psiquiatras, foi ativa e até mesmo radicalmente aceita pelos teólogos. A colaboração,
neste livro do Miller, entre ele, Corbin, e eu, mostra a interpenetração da teologia com uma
psicologia da alma. Se quisermos mover a psicologia e a terapia, teremos que mover sua bagagem
também.

E nenhuma bagagem oprime mais qualquer passo psicológico nosso do que o monoteísmo de
nossa cultura, o qual, porque a cultura secularizou-se, não mais aparece com a visibilidade devota
e fanática do Islã; ao invés disso, o monoteísmo aparece em centenas de pressuposições
psicológicas sobre como as coisas são e como deveriam ser. E pluribus unum é apenas uma
pequena manifestação da ubiquidade da singularidade, da qual a representação suprema é o ego
ocidental, o monoteísmo completamente subjetivado e reduzido a uma psicologia humanista
secular. A nova e excelente Introdução de Miller demonstrando a ascensão contemporânea dos
plurais admite, apesar de tudo, um monoteísmo vasto, ameaçador e tácito como pano de fundo,
contra o qual esses plurais parecem meros choramingos e sussurros.

Devido ao fato da nossa cultura trazer como bagagem a oposição entre monoteísmo e politeísmo,
ela está profundamente arraigada no inconsciente coletivo de cada um de nós. O que quer que
digamos, o que quer que escrevamos, está tão carregado de suposições monoteístas, que uma
compreensão da psique politeísta é quase impossível. Não importa o fato de que um
Renascimento pagão, como Berdyaev disse acima, é impossível em um mundo cristão: o que é
mais seriamente impossível, porque tão inconsciente, é simplesmente uma compreensão de
nossas bases culturais – Homero, Platão, Aristófanes, Plotino – devido ao fato de abordarmos o
mundo politeísta com uma bagagem monoteísta. O fato de ainda chamarmos de “pagão” o que é
na verdade clássico e é o próprio solo de nossa imaginação mítica é um pedaço dessa bagagem.
Até mesmo o texto cristão usado para dar suporte a esse ponto de vista reduziu-se a tal
simplicidade de significado que seus ricos ecos clássicos foram perdidos. Vejam a própria palavra
“singleness”[simplicidade, singularidade, unicidade]. Mateus 6:22 (cf. Lucas 11:34): “Sendo pois o
teu olho único (single), também todo o teu corpo será luminoso.” Single[39] (haplous) significa
claro, sincero, mero, puro, natural, franco, e simples. Mas agora que a palavra single significa
apenas uma singularidade de foco, unívoca, a passagem será lida de uma maneira puritana e
fundamentalista, demonstrando a tendência inerente da consciência monoteísta de considerar sua
retórica com uma singularidade de significado, isto é, literalmente. Quando o Um significa o “único”
(unicidade, unilateralidade), o literalismo é inevitável.
12

Não me importa se é a teologia ou a psicologia que traz consciência de nossa bagagem, desde
que a consciência aconteça. Em vez de separar a mistura teo-psíquica, deixe que ela continue. Ela
vai continuar de qualquer maneira. É uma combinação autêntica, já que a alma é, ela própria,
composta desse mesmo tipo de mistura. Por definição, a alma está relacionada à religião e
naturalmente envolvida com questões teológicas. Não podemos deixar essa relação e essas
questões para teólogos profissionais (vacilando sob suas malas) mais do que podia C.G.Jung.

2. É claro que esse acolhimento da teologia deixa a psicologia politeísta aberta a correções
teológicas tais como as que foram trazidas pelos colegas da Religião em St. Louis e de novo de
forma brilhante por Ulrich Mann na Gorgo. Por exemplo: como podemos supor que o Cristianismo
está desaparecendo; não teria eu me esquecido a piedade e probidade da própria direção
protestante por mim atacada; e não teria eu simplificado a bela complexidade, o mistério e a
riqueza (inerentemente politeísta) do monoteísmo cristão? Mais importante, no entanto, não estaria
eu promulgando uma base religiosa para a psicologia que então seria abandonada no meio do
caminho por não seguir com a elaboração de uma práxis: culto, rito, oração, sacrifício e
comunidade. E o que dizer sobre a crença?

Como venho dizendo em vários artigos, o politeísmo psicológico está preocupado menos com a
adoração do que com as atitudes, com a maneira como vemos e posicionamos as coisas. Os
Deuses, para a psicologia, não são nem acreditados nem abordados diretamente. Eles são mais
adjetivos do que substantivos; a experiência politeísta percebe que a existência é qualificada por
uma presença arquetípica e reconhece as faces dos Deuses nessas qualificações. Somente
quando essas qualidades são literalizadas, separadas como substâncias, isto é, quando se tornam
teologizadas, é que temos que imaginá-las através da categoria da crença.

Será que as culturas politeístas têm uma categoria de crença como a nossa, com disputas e
afiliações de credo? Egípcios e polinésios, peruanos e mesopotâmios, gregos, hindus e celtas –
eles faziam, fazem juramentos doutrinários, ou afirmações teológicas, para pertencerem e
experimentarem seus Deuses? Vamos evitar a crença, assim como os gregos. Como nos apontou
Tom Moore, os mitos são lidos com humor, não com crença. Os Deuses não exigem minha crença
para sua existência, da mesma forma como não exijo crença para minha experiência da existência
deles. Basta-me saber que sou mortal para perceber seu vulto. Basta simplesmente olhar ao redor
com os olhos abertos. A crença ajuda somente quando não se consegue ver, ou quando há a
necessidade de se ver através de um vidro, obscuramente. A fé, como a vejo, é uma fé animal
(Santayana): o que está lá está lá não porque acredito, nem irá desaparecer quando eu deixar de
acreditar. O cão que fareja o vento não acredita no vento: ele simplesmente tenta apanhá-lo e
perceber o que ele está dizendo. Não tão simples, a propósito.

A psicologia pode ficar muito bem sem a categoria da crença. Continuaremos sonhando, mesmo
que “não acreditemos mais nos sonhos” e continuaremos amando e odiando e lutando com nossos
daimones quer declaremos nossa crença neles ou não. A crença nos leva a tantos becos antigos,
fechados com muros: subjetivismo; evidência; o status de “objetos de crença”; delusão, ilusão, e
crença; o problema da dúvida e todos aqueles tormentos culposos. O simples ato de liberar esse
peso nos coloca tranqüilamente na direção do vento.

Há uma outra razão para não seguir com prescrições para práticas religiosas. Talvez culto, rito,
sacrifício, oração e comunidade já estejam acontecendo – se olharmos para a psicoterapia com um
olhar religioso. Talvez um tipo de religião politeísta – conciliação dos daimones, compromissos
ativos com as imagens da imaginação, diálogos criativos (uma das definições de oração de Corbin)
— já esteja sendo praticada nas comunidades dentro dos consultórios. Não seria muito forçado
usar as metáforas da religião quando se olha para o que ocorre na psicoterapia. E então não
seríamos tão obrigados a ser tão literalmente religiosos, isto é, a planejar e proscrever práticas que
não seriam necessárias se se percebesse o que está acontecendo com um olhar religioso. E é
desse olhar, não da promulgação de uma Nova Igreja do Politeísmo, que meu artigo e O novo
politeísmo de David Miller falam.
13

3. Seríamos poupados desse tipo de debate se o artigo de 1971 não tivesse sido criado em forma
de debate. Sua retórica de argumentação conceitual (mono ou poli) permanece monoteísta apesar
de tudo. Isto mostra mais uma vez a dificuldade de se tentar acessar o modo politeísta depois da
morte de Pã. Somos forçados a estimular antigos padrões de pensamento helenísticos e
patrísticos: qual sistema é melhor, o seu ou o meu. A psicologia desaparece nessa tentativa.
Sobram-nos os enigmas monoteístas do dualismo.

Eles apareceram nas discussões. Spiegelman usou um modelo da Kundalini com muitos centros,
em que nenhum em particular detinha a autoridade suprema. No entanto, o uno permanece
invisivelmente como a energia fluindo dentro do sistema como um todo unificado, de forma que em
essência o múltiplo é contido por e representa expressões do uno. Paradoxalmente, Cowan
misturou o uno e o múltiplo através da palavra grega Pã, que significa tanto “todo” quanto “tudo”.
Mas Pã está morto, e não morreu ele e rompeu-se aquele paradoxo naquela época da antiguidade
quando o novo Deus do monoteísmo cristão apareceu acabando com a possibilidade da resolução
grega que Cowan propõe? Kathleen Raine deu ao nosso dualismo outra dimensão: espírito e alma,
monoteísmo espiritual e politeísmo psicológico. Mas, aqui a advertência de Raine deve ser
relembrada: o monoteísmo coloca-se numa posição superior ao politeísmo. Em Gorgo, Giegerich
deu uma reviravolta. O monoteísmo é uma verdade parcial mais estreita e extrema, enquanto o
politeísmo é superior porque é mais básico, ubíquo e duradouro.

Então, prefiro a formulação de Lopez: “o múltiplo contém a unidade do uno sem perder as
possibilidades do múltiplo.” Isso reafirma a idéia neoplatônica de skopos: a unidade temática da
intenção, o objetivo ou alvo que oferece uma necessidade e um ajustamento internos a cada parte
de uma obra de arte. Aqui o uno não é algo separado e oposto ao múltiplo, deixando-os como
pedaços fragmentados rudimentares, mas aparece como a unidade de cada coisa, que cada coisa
é como é, com um nome e um rosto.

Como realidade psíquica, o uno aparece somente como essa ou aquela imagem: uma voz, um
número, uma grande confusão, uma idéia universal, etc. E aparece como a unidade de cada
evento específico, passível de ser descoberta fenomenalmente somente a partir da singularidade.
Os argumentos de que o uno é a base do múltiplo, sua continuidade, ou o todo que abarca a tudo,
são de novo inclinações de uma consciência monoteísta tentando usurpar um lugar mais
fundamental, superior e insuperável em um sistema metapsicológico, onde o próprio sistema
pertence à retórica do senex. Devemos tomar cuidado com palavras como “base”, “todo” e “tudo”, e
lembrar que a unidade também pode ser imaginada politeisticamente. Para a consciência
politeísta, o uno não aparece como tal, mas é considerado como um entre muitos e dentro de cada
unidade do múltiplo, como diz Lopez. A carta preliminar de Corbin acima mencionada, e seu
trabalho magistral sobre os paradoxos do monoteísmo no livro dedicado a este tema, Oneness and
Variety (Eranos Jahrbuch 45, 1976), pode levar o leitor de maneira mais profunda para dentro dos
dualismos desconcertantes do monoteísmo.

Isso nos ajuda a relembrar que o dualismo é uma função do monismo. Os argumentos entre “o Uno
e o Múltiplo” exaurem-se na arena já montada pela consciência monoteísta. O pluralismo, no
entanto, é uma outra mixórdia, totalmente diferente, que se torna esvaziada quanto colocada na
estrutura dualista do Uno contra o Múltiplo, como se, como alguns debatedores indicaram, todo o
jogo do mono-poli se resumisse a isso. A filosofia gosta desses jogos, dessas reduções que
consideram todas as questões, no final das contas, como notas de rodapé de Platão (por exemplo,
as erísticas do Uno/Múltiplo em Parmênides). Quando a filosofia significa literalmente Platão, a
psicologia está mais interessada nas notas de rodapé, o midrashim abaixo da linha. É aí que estão
os desvios e as divergências, e é aí que ficamos realmente interessados.

Por exemplo: as conexões feitas por Lopez (Hermes e seus Filhos) entre o politeísmo clássico e a
sexualidade polimorfa de Freud colocam o Problema do Múltiplo de uma maneira atrevidamente
ameaçadora. O politeísmo torna-se polissexualidade, não mais apenas para os filósofos, mas um
bando de demônios em nosso próprio quintal de desejos. Outro exemplo: que Pã e Príapo,
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Dioniso, Hermes, Afrodite e Ares são Deuses e Deusas significa que as imagens, as fantasias e os
comportamentos que eles nos oferecem – toda a obscenidade, o tumulto, o artifício e a guerra –
são divinos, apoiados pela divindade, com um ethos e um logos. Que revolução radical em nossas
certezas filosóficas sobre bem e mal, certo e errado, doença e saúde. Não é de se espantar que a
filosofia tenha de se defender contra este radicalismo (que se consolida, está consolidado) com
termos tais como “relativismo”.

O que a consciência monoteísta vê somente como um relativismo radical é, do ponto de vista


politeísta, uma realidade radical: pois não há a necessidade de colocar tudo no mesmo caldeirão.
Essa necessidade é, ela mesma, uma fantasia ou uma força paranóica em direção a um sentido
unificado que não enxergou além para compreender sua base arquetípica, que chamei acima de
senex. Pode-se argumentar que a hipótese politeísta “coloca tudo no mesmo caldeirão” mesmo
que de uma forma diferente: ao menos dá um valor coerente. Verdade; mas ao mesmo tempo não,
pois não há uma “hipótese politeísta” quando se está dentro de sua perspectiva. Há somente o
método de epistrophé e uma atitude consistente, mas nenhuma tentativa de coerência geral. Henri
Frankfort explica este fenômeno assim:

Os antigos não tentavam solucionar os problemas fundamentais confrontando o homem


com uma teoria única e coerente; ... O pensamento antigo – mitopoético, pensamento
“mítico” – admitia lado a lado certos insights limitados, que eram considerados
simultaneamente válidos, cada um em seu próprio contexto, cada um correspondendo a
uma abordagem definida. Chamei isto de “multiplicidade de abordagens”... este hábito do
pensamento concorda com a experiência básica do politeísmo. (Ancient Egyptian Religion,
Harper & Row Torchbook, 1961, p.4)

O dualismo com o monoteísmo é uma forma da filosofia manter o politeísmo num tandem. A
retórica filosófica funciona com comparações, antinomias e a lei da contradição. Emparelha
escuridão com luz, enquanto que um poema pode mostrar as nuanças da escuridão (“Thirteen
ways of Looking at a Blackbird” [Treze maneiras de se olhar para um pássaro-preto]) sem fazer
referência à luz, e uma pintura pode diferenciar qualquer topos sem precisar contrastá-lo com
outro. O politeísmo não é necessariamente a metade de um par filosófico, que exige o monoteísmo
para ocupar a outra metade. O politeísmo é um estilo de consciência nele mesmo – e este estilo
não deveria nem ser chamado “politeísta”, já que estrita e historicamente, quando reina o
politeísmo não existe tal palavra. Onde os daimones estão vivos, “politeísmo”, “panteísmo”,
“animismo”, e até mesmo “religião” não aparecem. Os gregos tinham daimones mas não esses
termos, de forma que devemos abster-nos de usar a retórica monoteísta ao entrarmos naquele
campo e estilo imaginativos que fomos forçados a chamar de “politeísta”.

Assim, poderemos encontrar esse outro olhar psicológico de maneira imagística, mítica e poética,
liberando insights intuitivos de eventos particulares perceptíveis. A psique, e a psique do mundo
também, mostraria seus padrões em lendas, em imagens e nas qualidades fisionômicas das
coisas. Toda a mostra seria diferente, e realmente a vida psíquica é mostra, show, tanto a comédia
e a agonia do drama, e schau, cada aparição uma essência imagística, uma demonstração para
fora, revelações, teofanias.

Quando William James descreveu A Pluraristic Universe [Um universo plural] (Dutton 1971, p.183),
colocou esta frase em itálico: “A realidade PODE existir de maneira distributiva, não na forma de
um todo mas de um conjunto de singularidades, exatamente como parece ser.” E ainda
acrescentou: “Há isto em favor das singularidades, que elas são, em qualquer nível, reais o
bastante para se fazerem pelo menos aparecer para todos, enquanto que o absoluto [totalidade,
unidade, o uno] ainda só apareceu para uns poucos místicos, e, mesmo para eles, de forma muito
ambígua.”

A singularidade de cada coisa: é isto o que compartilho com James e com Jung, pois o que mais é
a individuação senão uma particularização da alma? Para James, essa singularidade não é
15

conquistada através de um processo de individuação, uma vez que ela já está lá “exatamente
como parece ser.” James toca a sua singularidade em uma Guitarra Azul, “as coisas como elas
são”, os arbustos azuis da imaginação incrustados inextricavelmente no sentido claro das coisas.
Somente com estas singularidades individuais podemos ser íntimos, diz James. A visão pluralista
abre as portas para a intimidade, o amor, e o mundo verde imediato dos sentidos. Oh, prove e
comprove! Como disse Jung, os arquétipos não podem ser compreendidos sem a função
sentimento. A vida psíquica é particularizada no vale do mundo, e este vale está infinitamente vivo
com qualidades, uma incrustação (Whitehead) de individualidades concretamente sentidas e que
não são, de maneira nenhuma, descritas suficientemente como as Dez Mil Coisas, partículas
atômicas, pluralidade, o Múltiplo, ou por qualquer dos outros termos da teoria da percepção, da
teoria física, ou da doutrina religiosa enunciada por uma consciência monoteísta distante, que se
assenta tão acima do vale que seus julgamentos parecem apenas dados estatísticos
desqualificados, uma confusão exuberante de quanta, ameaçadora e sem face.

Aqui no nosso mundo, estamos incrustados nos contextos imediatos e a idéia do Múltiplo serve
apenas para separar a nós e às cordas da guitarra. O Múltiplo é uma idéia defensiva contra a
experiência das coisas como elas são. O chapéu que você usa, a dor nos seus olhos, meu último
sonho esta manhã, o cachorro arranhando a coleira. Cada imagem contém a si própria.
Ultrapassados estão os fragmentos, os pedaços, e ultrapassada também está a necessidade de
uma visão de mundo unificada e de uma personalidade unificada que possa segurar o mundo, e de
um Si-mesmo que mantenha tudo isso. Cada evento mostrando sua própria face é a forma como o
mundo vai e como nossas vidas são, e esses eventos são um kami (japonês), um theos (grego),
anunciando a divindade das coisas como imagens dos Deuses.

Nós ‘monoteisamos’ as “imagens dos Deuses” muito rapidamente; como se as imagens fossem
representações diretas, imagens espelhadas de Deuses reais que admiramos nos estatuários dos
museus. Como se tivéssemos que emparelhar a singularidade de cada Deus com o seu
background múltiplo. Não; a arte de emparelhar os mitos é apenas um exercício visual; precisamos
procurar imagens míticas para que possamos ver imagisticamente. Uma vez que o modo
imagístico está no olhar, a frase “como imagens de Deuses” é menos literal e refere-se, então, a
um tipo teofânico de consciência onde a realidade psíquica é onipresente; sem distinção palpável
entre a alma e o vale do mundo, anima mundi.

Isso nos leva, enfim, a outro sentido, estético, da vida, de uma psicologia politeísta como uma
psicologia estética. Mas precisamos deixar esse assunto para um outro momento, mesmo que um
certo esboço já esteja presente aqui. Pois uma psicologia estética deriva de um mundo cheio de
alma, cujas qualidades são dadas diretamente como uma harmonia fisionômica com a natureza de
cada evento em sua interação com os outros. Todas as coisas assinadas, significando; uma
caligrafia de inerente inteligibilidade. E essa linguagem já conhecemos em nossas almas animais.

4. Gastei tantas palavras com os aspectos teológicos e filosóficos devido ao fato de este ser um
pós-escrito a um adendo de um livro de um professor de religião. O livro se preocupa em fazer uma
revisão teológica. Contudo, a minha maior preocupação é com uma revisão da psicoterapia. Um
modelo politeísta da psique parece lógico e útil ao confrontarmos as muitas vozes e ficções que
surgem em qualquer paciente, incluindo a mim mesmo. Não consigo nem imaginar como
poderíamos algum dia ter começado a praticar a terapia sem um background politeísta. Por um
longo tempo não consegui compreender o motivo pelo qual os clínicos investiam tanto em um ego
forte, na integração supressiva da personalidade e na independência unificada da vontade às
custas da ambivalência, dos instintos parciais, complexos, imagos, vicissitudes – para não falar das
alucinações e das cisões de personalidade – até perceber, nas entrelinhas dessa linguagem
clínica, o basso profundo antigo e poderoso do Uno. A retórica clínica tem sido tão convincente
(principalmente quando recebe uma mãozinha, equipada com um soco inglês, da farmacologia
clínica e do sistema legal) porque ela fala com a retórica superior, a retórica da superioridade, da
consciência monoteísta. Em situações clínicas, essa consciência reforça a noção de “Eu” (le moi,
16

das Ich) e então, o que mais os Deuses podem fazer, além de se tornarem doenças, que é onde
Jung os encontrou?

Foi aí também que William James encontrou seus plurais, seus particulares. Refiro-me à mesma
passagem (268) citada por Miller no começo da sua introdução. A visão de James surge das
“analogias com a psicologia comum e com os casos da psicopatologia, com aqueles da pesquisa
psíquica... e da experiência religiosa.” Ou do que ele também chama de: “o particular, o pessoal e
o doentio.”

Que pena, que mórbido, literalmente, que nós consigamos nos adentrar nesse estilo de
consciência apenas por meio dos “casos de patologia e pesquisa psíquica.” Mas essa é a nossa
cultura monoteísta. Como disse James Frazer:

A divisibilidade da vida, ou... a pluralidade de almas, é uma idéia sugerida por muitos fatos
familiares, e tem merecido a atenção de filósofos como Platão, bem como de selvagens.
Somente quando a noção de alma... se torna um dogma teológico é que se persiste na sua
unidade e indivisibilidade como algo essencial. O selvagem, que não se encontra preso
pelos dogmas, é livre para explicar os fatos da vida a partir da suposição da existência de
quantas almas ele achar necessário. (The Golden Bough, abr. ed. [Nova York: MacMillan,
1947], 690).

Como é diferente a experiência de surto e de clínica que surge quando, livres de dogmas,
podemos supor a existência de quantas almas forem necessárias. Não seria esse mesmo dogma o
que fez as almas “adoecerem”? Não foi esse dogma que fez a alma do mundo em nossa
civilização adoecer ao afastá-la dos fatos da vida, das coisas como elas são, da nossa parte
selvagem?

Talvez a revisão clínica com a qual venho lutando desde que comecei a fazer uma análise da
minha própria parte nessa doença, e também em inúmeros artigos desde 1960, encontre o seu
logos na premissa politeísta deste artigo, que procura, por meio de uma contestação antiquada,
libertar as figuras divinas da alma, anima e animus, do dogma da dominação do si-mesmo. A
terapia individual e a terapia da anima mundi prosseguem a passos largos. A revisão clínica é, ao
mesmo tempo, uma revolução da Weltanschauung. Citando Frankfort mais uma vez:

O politeísmo sustenta-se pela experiência humana de um universo vivo de ponta a ponta.


Forças confrontam o homem aonde quer que ele vá e, no surgimento desses confrontos, a
questão da unidade suprema não aparece.

Ao suspender a questão da unidade suprema podemos ficar parecidos com aqueles selvagens,
silvestres, animais na floresta, traçando nosso caminho a partir das necessidades que vamos
encontrando e da presença dessas forças. E esse selvagem não é um animal tosco e cambaleante
– ou apenas o é se Belém for a última palavra, definitiva e fundamental. Esse animal foi violentado
pelo mesmo dogma; nossa conversão perverteu esse ser no homem bárbaro, cujo retorno nós
tememos, incapazes de distinguir a segunda vinda de Cristo do retorno do recalcado.

O selvagem também não é o mesmo de Rousseau, embora as agitações de Pã, o único Deus do
panteão grego que é parte animal, estejam profundamente ligadas a essa nostalgia. Pã escapou
do paraíso bucólico da natureza. Todos os outros Deuses estão lá dentro. Agora, ele reside na
imaginação selvagem, com suas cavernas, suas caçadas, sua liberdade natural para tomar a forma
que quiser, aquela “recrudescência da formação de símbolos individual”, que Jung, acima, diz
podermos esperar na medida em que “a idéia cristã começar a sumir.” Talvez Pã não esteja de
todo morto, nem Juliano, e nem as páginas de Celso totalmente queimadas; e se disputas
polêmicas são o pai de todos os eventos, talvez este apêndice, cuja erística busca constelar Éris,
17

Deusa da discórdia, continuará gerando nova vida psíquica ao ensaiar em nossos dias mais uma
vez o antigo chamado do politeísmo.

[1]
C.G. Jung, Coll. Works 9, ii, par. 427.

[2]
Ibid., par. 425.

[3]
Ibid., par. 422.
[4]
P. Radin, Monotheism Among Primitive Peoples (Ethnographical Museum), Basel, Bollingen
Foundation, Special Publ. 4, 1954.
[5]
C.B. Gray, Hebrew Monotheism (Oxford Society of Historical Theology, Abstract of Proceedings,
1922-23), citado por Radin, p. 22. Sobre o politeísmo que existia junto com o monoteísmo grego,
ver M.P. Nilsson, Greek Piety (“Monotheism”), Nova York: Norton Paperback, 1969, pp. 116-17. O
monoteísmo judaico-cristão, no entanto, não tolerava a co-existência do paganismo grego, cf.
Nilsson, p 124.

[6]
Dois historiadores que buscaram uma re-valorização do politeísmo são A. Brelich, “Der
Polytheismus”, Numen, VIII, 1960, p. 121ff., e Jean Rudhardt, “Considerations sur le Polythéism”,
Ver. De Théol et de Philos. (3. ser. 16), 1966, pp. 353-64 (sua aula inaugural na Universidade de
Genebra).
[7]
M.P. Nilsson, “The Dionysiac Mysteries of the Hellenistic and Roman Age”, Skr. Utg. Svenska
Inst. Athen, 8, V, Lund, 1957. Cf. Greek Piety, op. cit., sup., último capítulo.

[8]
Existe uma longa tradição de tentar subordinar Platão ao monoteísmo judaico-cristão ocidental,
pois, como considerar a superioridade de seu pensamento se ele era um politeísta pagão? Para
uma forte recusa dessa leitura cristã de Platão, ver F.M. Cornford, “The ‘Polytheism’ of Plato: An
Apology”, Mind (N.S.) XL, 1938, p. 321-30; Christopher Rowe, “One and Many in Greek Religion”,
Eranos Jahrbuch-45, 1976.
[9]
Coll. Works 6, par. 536 (minha citação foi retirada da primeira edição, 1923). Do ponto de vista
de Jung, o pluralismo de William James vem de sua natureza extrovertida.
[10]
Coll. Works 5, par. 149.
[11]
Mais bons exemplos da fantasia de superioridade do monoteísmo podem ser encontrados em
Alessandro Bausani, “Can Monotheism be Taught?”, Numen X, 1963, pp. 167-201.

[12]
J. Hillman, “On Senex Consciousness”, Spring 1970, p. 153.

[13]
Coll. Works 8, par. 388ff.

[14]
Daí a identificação fácil e freqüente entre Júpiter e Javé, tanto entre os pagãos quanto entre os
judeus, cf. Marcel Simon, “Jupiter-Yahvé”, Numen XXIII, 1, 1976, pp. 40-66.

[15]
Coll. Works 11, par. 145.
18

15a
Não apenas os mandalas apresentados por Jung e sua escola, mas também, por exemplo, os
mandalas islâmicos em H. Corbin, “Le Paradoxe du monothéisme” em Eranos Jahrbuch-45, 1976,
pp. 89, 97.
[16]
Coll. Works 9 ii, par. 41.

[17]
Coll. Works 9ii, par. 60.

17a
Sobre a relação entre psicologia arquetípica e religião, ver o pós-escrito de 1981 e meu
Revisioning Psychology, abertura do capítulo IV.
[18]
Y. Kaufmann, The Religion of Israel, traduzido do Hebreu por M. Greenberg, Univ. Chicago
Press, 1960, p. 20. Para mais informações sobre o papel do politeísmo dentro do monoteísmo
bíblico e seu desenvolvimento em direção à exclusividade, ver os artigos de Othmar Keel, H.-P.
Muller, e F. Stoltz em Monotheismus um Alten Israel und seiner Umwelt (O. Keel, ed.), Friburgo:
Verlag Schweizer. Katholisches Bibelwerk, 1980.

[19]
“Uma grande parte da literatura bíblica é dedicada à batalha contra a idolatria, esforçando-se
para expor seu absurdo e desacreditá-la perante os olhos de seus crentes. Ao examinarmos esse
material, percebemos que (a) não está dito, em lugar nenhum, que os Deuses, que os pagãos
acreditam habitar o céu e a terra, não existem; (b) não é proibido contar os mitos, nem acreditar
neles; (c) nenhum escrito bíblico utiliza temas mitológicos em sua polêmica; (d) que o único
argumento contra a religião pagã é que ela é uma adoração fetichista de ‘madeira e pedra’”.
Kaufmann, ibid., p. 13.

[20]
A definição judaica de Deus como tendo muitos nomes (ou nenhum), como infinito e além de
qualquer medida, admite uma multiplicidade em sua própria definição. Existem provas, também,
para uma ambigüidade no número de expressões hebraicas para Deus na Bíblia, onde Deus é
mais como um “nós”, uma personalidade ampliada. Isso explica as oscilações entre as formas
plural e singular em várias menções bíblicas (hebraicas) de Deus, permitindo que a palavra seja
lida tanto como Deus quanto como Deuses. Ver Aubrey R. Johnson, The One and the Many in the
Israelite Conception of god, Cardiff: Univ. Wales, 1961 (2ª ed.), especialmente par. 3.

20a
Cf. Ernest Barker, From Alexander to Constantine, Oxford: Clarendon, 1956, pp. 430-34. Celso
(fl. 180) – cuja obra Alethes Logos (razão verdadeira) foi destruída pelos cristãos e é conhecida
pelas referências a ela na sua refutação (Contra Celsum) de Orígenes – já havia explicado que a
heresia e o cisma são um resultado direto da literalização cristã do monoteísmo: a elevação de um
detalhe sobre os outros, isto é, a insistência em uma visão parcial específica em detrimento de
todo o universo da diversidade religiosa. A “heresia”, que significa pegar para si mesmo, escolher,
é desastrosa em uma psicologia politeísta: vejam a escolha de Páris, que desencadeou a guerra
de Tróia, a escolha de Hipólito e sua ruína. Para Celso, o monoteísmo judaico fazia parte do
mundo helenístico; era a religião de uma nação (ethnos) no meio de várias, em uma ampla ordem
social politeísta. Mas quando os cristãos ‘acreditaram’ que o Salvador havia chegado e, assim,
tornaram a verdade absoluta como história, de forma que um homem não poderia mais servir a
muitos mestres, deu-se o cisma. (Cf. meu “Schism” em Loose Ends, Spring Publications, 1975).

[21]
Meu Re-visioning Psychology, N.Y.: Harper & Row, 1975, p. 170).

[22]
A. Momigliano (ed.), The Conflict Between Paganism and Christianity in the Fourth Century,
Londres, 1963; ver, também, E.R. Dodds, Pagan and Christian in an Age of Anxiety, Cambridge,
1965, para uma caracterização psicológica concisa da época e para referências.
19

[23]
Gregório de Nazianzo, “In Praise of Basil” (Pat. Gr. 36, 508), citado em inglês de J. Shiel, Greek
Thought and the Rise of Christianity, Londres, 1968, p. 76. Para mais informações, B. Delfgaauw,
“Gregor von Nazianz: Antikes und christliches Denken”, Eranos Jahrbuch-36, Zurique, 1967.

Um exemplo simples de “tornar todo pensamento prisioneiro” é a cristianização da


multiplicidade grega em relação à própria palavra “Deus”. Enquanto que os pais gregos da igreja
podiam encontrar cinco raízes etimológicas para theos, a tradução latina para deus reduziu a
palavra a uma só raiz. Cf. Ilöna Opelt, “Christianisierung Heidenischer Etymologien”, Jahrbuch f.
Antike und Christendom, 1959, pp. 70-85.

[24]
“Aqui, o conhecimento é substituído pela revelação no êxtase. Depois que a filosofia grega
desempenhou essa auto-castração, ela caiu exausta nos braços da religião; assim como Proclo
declara em um de seus hinos aos deuses: ‘And so let me anchor, weary one, in the haven of piety’.
[Deixa-me, pois, ancorar, oh homem fatigado, no porto da piedade.]” E. Zeller, Outlines of the
History of Greek Philosophy, Londres, 1931, pp. 313-315, citado em J. Shiel, op. cit. sup.

[25]
O mais marcante de todos os retornos das aberrações é a própria noção de inconsciente.
Antes, na época clássica, havia um profundo mundo subterrâneo que abrigava nossos sonhos e o
lado noturno da alma. Mas a psicologia monoteísta atormentou o Hades e transformou-o em
Inferno, de forma que todo os fenômenos do mundo subterrâneo tornaram-se pecado ou doença.
(Esse tema está elaborado de maneira bastante abrangente no meu Dream and the Underworld,
Nova York: Harper & Row, 1979.) No entanto, o Inferno abrigou ao menos alguns fantasmas
poderosos da imaginação até que eles também secaram com o Iluminismo (Cf. D.P. Walker, The
Decline of Hell, University of Chicago Press, 1964). Wallace Stevens escreve: “The death of Satan
was a tragedy/For the imagination. A capital/Negation destroyed him in his tenement/And, with him,
many blue phenomena… Phantoms, what have you left? What underground?/What place in which
to be is not enough/To be? You go, poor phantoms, without place.” [A morte de Satanás foi uma
tragédia/Para a imaginação. Uma negação/mortal destruiu-o em usa morada/E, com ele, muitos
fenômenos sombrios... Fantasmas, o que vocês deixaram? Que submundo? Que lugar, aonde ser
não é o bastante/Ser? Ide, pobres fantasmas, sem lugar.] “Esthétique du Mal” vii, Collected Poems
of Wallace Stevens, N.Y.: Knopf, 1978, p. 319.

[26]
“…this is the way to pray as single one to single one.” [é assim que se ora do um para o um.]
Plotino, Enneads, V, 1, 6 (trad. de Shiel), ou “alone towards the alone” [o sozinho em direção ao
sozinho] (trad. de Mackena). Cf. V.9.11: “solitary to solitary.” [solitário para solitário.]
[27]
Para formulações básicas sobre a direção protestante ver, em especial, E. Edinger: “Christ as
Paradigm of the Individuating Ego,” Spring 1966, Nova York; “The Ego-Self Paradox,” Journal of
Analytical Psychology, V. 1, Londres 1960; “Ralph Waldo Emerson: Naturalist of the Soul,” Spring
1965, Nova York, onde encontramos (97) a seguinte passagem: “No processo de assimilação da
antiga cultura pela nova psicologia, descobrimos sempre novos colegas de espírito. Emerson é um
deles. Ele foi um dedicado precursor da nova visão de mundo que só agora começa a alcançar sua
total emergência. A essência dessa nova visão de mundo foi muito bem descrita por um outro
colega de espírito, Teilhard de Chardin.” A ênfase em ambos, Emerson e Teilhard de Chardin, diz
respeito claramente a uma totalidade evolucionária transcendente. Mas Jung teve muitos outros
tipos de colegas espirituais. Nos livros científicos ele é encontrado junto com Freud e Adler; em
seus próprios escritos, encontramos pistas de que ele segue uma linha espiritual que inclui Goethe,
Carus, Kerner e os alienistas franceses do século dezenove; aquele escândalo abrasivo às
autoridades, Paracelso, e Nietzsche também, podem ser colegas de espírito. (Pude identificar,
muitas vezes, um neoplatonismo em Jung.) Também já o colocaram lado a lado com Tillich e
Buber, já o chamaram de sucessor de William James, e já consideraram seus colegas de espírito
os Mestres do Oriente, Albert Schweitzer, os Gnósticos, e tantos outros que não vale a pena
mencionar. O fato de que existem todas essas opiniões a respeito de Jung e sua obra é mais uma
testemunha de sua psicologia múltipla e da multiplicidade de pontos de vista, isto é, de uma
psicologia politeísta, em geral. A direção protestante é apenas mais um raio do espectro.
20

[28]
Coll. Works 8, par. 92.

[29]
Cf. James Yandell, “The Imitation of Jung: An Exploration of the Meaning of ‘Jungian’”, Spring
1978.

29a
Cf. James Heisig, Imago Dei: C.G. Jung’s Psychology of Religion, Bucknell Univ. Press, 1979.

[30]
Para um exemplo do reforço oriental da psicologia monoteísta, ver Jung, “Psychological
Commentary on ‘The Tibetan Book of the Great Liberation’,” Coll. Works 11, par. 798, que começa
assim: “’ Se realmente não há uma dualidade, o pluralismo não é verdadeiro.’ Essa é certamente
uma das verdades mais fundamentais do oriente...”

[31]
T. McFarland, Coleridge and the Pantheist Tradition, Oxford, 1969, p. 220; para mais, p. 223.

[32]
Coll. Works 6, pars. 755, 761.

[33]
A. Alfoldi, The Conversion of Constantine and Pagan Rome, Oxford, 1948 (1969), p. 8.

[34]
Alfoldi, op. cit., p. 12, onde a apresentação da vitória cristã sobre o paganismo é agrupada por
inteiro como um triunfo do monoteísmo sobre o politeísmo.
[35]
Cf. James Ogilvy, Many Dimensional Man: De-centralizing Self, Society, and the Sacred, N.Y.:
Oxford University Press, 1977.

[36]
Por exemplo, o catastrófico culto cristão de Jonestown, na Guiana.
[37]
Sobre os quatro níveis da anima, ver Coll. Works 16, par. 361; sobre os quatro níveis do
animus, tirados de Fausto, ver E. Jung, Animus and Anima, N.Y.: Spring Publications, 1969 (3ª
edição), p. 2f. Para uma elaboração da anima em termos da personagem grega Core, ver Coll.
Works 9, i, par. 306-383.
[38]
Meus longos artigos sobre a “Anima” nas Spring 1973 e 1974 são uma tentativa de abordar a
fenomenologia desse conceito.
[39]
[A palavra single, utilizada pelo autor, assume aqui o significado a partir da raiz grega haplous,
enquanto que atualmente o seu significado deriva da raiz singulus. A tradução como simples não
satisfaz à necessidade do texto, pois simples não possui uma estreiteza de significado tal qual
single vem assumindo no inglês. N. do T.]

Tradução Gustavo Gerhein


Revisão: Gustavo Barcellos

Íntegra do texto em: http://www.rubedo.psc.br/artigosb/psimopol.htm

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