Você está na página 1de 3

28 NUNES, E. D.

Tentarei efetuar algumas hipóteses, bem re-


sumidas, relacionadas a esta quase estagnação
Roosevelt M. S. O centenário da publicação de O Suicídio, de criativa nos estudos sobre suicídio. Penso que
Cassorla E. Durkheim, e sua tão adequada contextuali- a maioria dessas hipóteses decorre da falta de
zação efetuada por meu mestre Everardo D. conhecimento ou da não-aceitação, por parte
Departamento de Nunes auxiliar-me-ão a discutir problemas, dos pesquisadores, da existência de um mun-
Psicologia Médica ainda atuais, relativos às tentativas de com- do mental inconsciente, que interage também
e Psiquiatria, Faculdade
de Ciências Médicas,
preensão do fenômeno suicídio. Criticar hoje com a sociedade. A psicanálise tem efetuado
Universidade Estadual uma obra escrita há cem anos não é difícil, e descobertas interessantíssimas, às quais os ou-
de Campinas, corre-se o risco imenso de avaliações injustas. tros profissionais não têm acesso, também em
Campinas, Brasil.
No entanto, surpreendentemente, as críticas razão de seu método peculiar. E os psicanalis-
que se lhe poderiam fazer não diferem das que tas, por sua vez, têm se fechado em suas hipó-
efetuamos à grande maioria dos trabalhos teses e descobertas, com quase nenhuma troca
atuais, e derivam basicamente de três condi- com pesquisadores de outras áreas.
ções: 1) restrição do conceito de suicídio; 2) fa- Hoje sabemos que o suicídio é a ponta do
lhas nas estatísticas; 3) conclusões discutíveis. iceberg de uma série de comportamentos e fan-
Estas conclusões, limitadas pelas premissas tasias. Ao contrário das definições comuns (in-
anteriores, são também contaminadas por con- cluindo a de Durkheim), raramente o indivíduo
ceitos e preconceitos, reflexos da não neutrali- possui a lucidez que se supõe, para saber que o
dade do conhecimento científico. Nunes mos- seu ato o levará à morte. Mais ainda, os seres
tra isso em várias situações. É clássica a seguin- humanos ignoram o que é a morte e criam fan-
te anedota, bastante crítica em relação a con- tasias sobre ela, como uma nova vida em ‘outro
clusões ‘científicas’. Um investigador afirma: lugar’, por exemplo. Essas fantasias, geralmen-
“As estatísticas mostram que o casamento pro- te inconscientes, são descritas nos trabalhos
tege contra o suicídio”. Ao que outro, mais com- citados abaixo. A pesquisa clínica mostra que o
petente e bem-humorado, retruca: “E o suicí- suicida não quer morrer: o que ele deseja é fu-
dio protege contra o casamento”. Não surpreen- gir de um sofrimento insuportável, a morte
dentemente, costumamos ver na clínica psica- sendo algo acessório, casual. As conseqüências
nalítica, indivíduos celibatários com dificulda- dessas constatações são várias. Entre elas: 1)
des de se relacionarem emocionalmente, resul- não podemos afirmar, com certeza, que atos
tado de conflitos similares aos que contribuem suicidas são resultantes de uma busca (cons-
para condutas suicidas. Penso que o valor do ciente ou não) da morte; 2) muitos atos que
trabalho de Durkheim torna tais falhas irrele- não terminam em morte têm componentes li-
vantes, como o texto de Nunes nos mostra, cla- gados a fantasias suicidas.
ramente. A incerteza nas definições é uma das cau-
Vou deter-me, neste Debate, em problemas sas das falhas nas estatísticas. Supõe-se que
comuns aos trabalhos mais recentes sobre sui- mais de 50% dos suicídios com um alto grau de
cídio. A grande maioria das investigações utili- intencionalidade (consciente) ocorrem como
za métodos epidemiológicos, muito similares acidentes, geralmente de trânsito. Essa porcen-
aos usados por Durkheim. Associações e corre- tagem pode ser muito maior, pois é bastante
lações estatísticas, envolvendo características difícil determiná-la. Os suicídios inconscientes
demográficas, hábitos, fatores culturais, even- constituem-se em outro grupo, certamente
tos, doenças etc., continuam sendo efetuadas, imenso, que também se manifesta em aciden-
redundando em descrições que pouco contri- tes, comportamentos e variadas formas de vio-
buem para um conhecimento mais profundo. lência. Como sugere Nunes, possivelmente o
Raríssimos são os trabalhos em que existem próprio Durkheim intuiu o componente suici-
grupos-controle, mas eles também deixam a da inconsciente, na queda acidental de seu
desejar, devido aos motivos que assinalarei querido amigo Hommay. Outros fatores, cultu-
abaixo. Ultimamente, com o uso de estatísticas rais e individuais, subestimam as estatísticas
mais sofisticadas, descrevem-se conglomera- de suicídio, mesmo em países desenvolvidos
dos de variáveis, que pouco ou nada nos têm (os atestados de óbito sendo deformados), e a
auxiliado na compreensão do fenômeno. Con- própria Organização Mundial da Saúde (OMS)
sidero o fenômeno suicídio ímpar para consta- alerta os pesquisadores para esse fato.
tarmos que, quando nos defrontamos com fe- Outro fenômeno consciente ou inconscien-
nômenos humanos, com variáveis complexas, te, e cada vez mais comum, é o homicídio pre-
que interagem por meio de infinitos emara- cipitado pela vítima, ao que acrescentaria os
nhamentos dinâmicos, os métodos científicos acidentes precipitados pela vítima. Além dos
clássicos são bastante limitados. acidentes de trânsito e dos envenenamentos

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):7-34, jan-mar, 1998


O SUICÍDIO 29

acidentais (estes mais em crianças), não pode- interno, inconsciente, e o mundo externo. É
mos esquecer-nos das overdoses e do número evidente que um grau de integração social
cada vez maior de infecções pelo vírus da Aids, frouxo facilitará o isolamento do indivíduo. No
por causa da imprudência, ‘amor’ e ‘rodas de entanto, verifica-se que qualquer que seja o
pico’. O indivíduo se coloca numa situação em grau de integração social, muitas pessoas, por
que tem grandes chances de ser morto. Aque- fatores internos, inconscientes, têm uma gran-
les homicídios são mais comuns em popula- de dificuldade em integrar-se, ou em buscar
ções em que a violência é endêmica, e tudo in- grupos sociais nos quais essa integração seja
dica que sua incidência deve ser grande em possível. Durkheim já nos chamava a atenção,
nossas cidades. Considero estes comportamen- en passant, sobre isso, ao referir-se aos melan-
tos uma espécie de ordália. Aliás, penso que to- cólicos. Hoje encontramos também as chama-
dos os atos suicidas são na verdade ordálias: das personalidades narcísicas e afins, cuja fre-
um jogo com a sorte, em que o desespero, a qüência e sofrimento me faz supor que já se
culpa, o sofrimento, as perturbações no conta- constituem num problema de saúde pública.
to com a realidade etc., conduzem o indivíduo Ao referir-nos a essas personalidades, de-
rumo a um sacrifício de uma parte de si mes- frontamo-nos com um desafio à interdiscipli-
mo. Falta a discriminação de que, caso ocorra a naridade: sociólogos e psicanalistas têm se
morte, ela o atingirá por inteiro. O resultado aprofundado na compreensão do narcisismo,
(morte ou sobrevivência) será creditado ao tanto em sua vertente social, como individual,
destino, inconscientemente confundido com um fenômeno crescente, e relativamente re-
aspectos internos que funcionam como deu- cente. Em nossa sociedade tendem a predomi-
ses, com variados graus de sadismo, inveja, se- nar seres individualistas, cuja vida repousa no
dução ou capacidade de restauração. Médicos, parecer e não no ser. Essas pessoas ignoram a
psiquiatras, psicanalistas e sociólogos podem humanidade dos outros (e de si mesmas), são
perceber que essa ordália tem por alvo tam- altamente competitivas e seu objetivo primor-
bém a sociedade. É ela que vai determinar se o dial é vencer na vida, para quem vencer signifi-
indivíduo vai ou não morrer, na maioria dos ca ter mais dinheiro, poder, status etc. Não
casos. A medicina cumpre sua parte e as esta- existe solidariedade e os seres humanos per-
tísticas de suicídio são influenciadas, sem qual- dem sua humanidade, coisificados. Muitos
quer dúvida, pelo aumento dos recursos médi- workaholic” podem encaixar-se neste grupo.
cos existentes, que permitem a sobrevivência Pessoas que lutam desesperadamente para
de muitas pessoas que tentaram matar-se. A conseguirem cargos nos quais se sentem pode-
psiquiatria e a psicanálise podem, muitas ve- rosos, também; currículos com centenas de
zes, auxiliar a prevenir o ato. E a sociedade é trabalhos publicados podem esconder um va-
responsável pelas condições que devem permi- zio imenso na vida de pesquisadores... etc. Po-
tir a compreensão, acolhimento e elaboração deríamos dizer que a somatória desses indiví-
do sofrimento emocional. Hoje se sabe que a duos constitui a sociedade narcísica, ou que a
convivência com instrumentos mortíferos de- sociedade narcísica produz estes indivíduos.
termina um aumento considerável nos núme- Certamente as duas vertentes se mesclam,
ros. Não ter acesso a armas de fogo diminui as pouco importando se antes vem o ovo ou a ga-
taxas de suicídio (e também de homicídios). linha.
Este fácil acesso é um dos fatores para o maior Ressalvo que, ao referir-me ao narcisismo
índice de suicídio em militares (esses números individual, descrevo pessoas que assim vivem
já haviam sido assinalados por Durkheim) e automaticamente, impulsionadas por fatores
também nas nossas polícias militares (ainda inconscientes e estimuladas pela sociedade.
que, neste último caso, já se conheçam outros Não estou efetuando uma avaliação moral,
fatores importantes). Médicos também se ma- ainda que pessoas amorais ou imorais possam
tam mais, e tudo indica que os anestesistas ter algumas dessas características, mas elas
ocupam o primeiro lugar pela facilidade de pertencem a outras categorias. Quando conhe-
acesso a drogas letais. Modernamente, tende- cemos pacientes narcísicos, pela psicanálise,
se a usar esse conhecimento, bastante simples, encontramos um terrível vazio interior e uma
como um forte fator preventivo. sensação de superficialidade em suas vidas,
A classificação de Durkheim continua ex- que os faz questionar o seu viver. Evidente-
tremamente útil. Certamente, hoje podemos mente, estes pacientes somente procuram tra-
aprofundá-la ao sabermos mais sobre determi- tamento quando suas defesas desabam. O so-
nados fatores. O suicídio egoísta continua sen- ciólogo, por outro lado, identificará na socie-
do identificado, mas agora temos conhecimen- dade narcísica o imediatismo, a falta de objeti-
tos razoáveis sobre a interação entre o mundo vos, a esterilidade criativa, o consumismo, a

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):7-34, jan-mar, 1998


30 NUNES, E. D.

competitividade e a coisificação. Nessa socie- tas, ainda que não conheçamos suas fantasias
dade importa o ter e se ignora o ser. Existe uma pós-morte.
confusão entre o que é próprio do homem e o Outro problema, bem atual, são os suicí-
que é material. Humanidade tende a ser um dios coletivos: os adeptos de Bill Jones, os re-
conceito teórico e a idéia de cidadania está centes suicídios na Suíça, Canadá, França, Es-
perdida ou deformada. Por sua vez, o cientista tados Unidos e Vietnã. As idéias de ‘viajar’ para
político identificará formas de governo, com um ‘mundo melhor’ na cauda do cometa Hale-
rótulos variados, todos excludentes da maioria Bopp levam-nos novamente rumo às fantasias
da população. sobre a morte e ao funcionamento do mundo
Para o psicanalista, o descrito acima reflete interno. Os grupos que se matam são coesos,
a autodestruição da capacidade de pensar, e, talvez coesos demais, o que nos afastaria do
em conseqüência, da capacidade de se ser hu- conceito durkheimiano de suicídio egoísta ou
mano. Algumas personalidades narcísicas não mesmo anômico. E é difícil encontrar neles
suportam o vazio, outras não suportam o fra- qualquer traço de altruísmo. Mais um desafio
casso em sua busca de algo que nunca os para seu estudo, interdisciplinar.
preenche. Em ambos casos poderemos ter con- Margaux Hemingway matou-se no aniver-
dutas suicidas, que se assemelham aos suicí- sário da morte de seu famoso avô. Mortes simi-
dios egoístas, segundo o referencial de Dur- lares a essa, decorrentes de processos de iden-
kheim. Mas, parte da descrição acima, somada tificação com pessoas perdidas, são bem co-
às rápidas mudanças de valores, à impossibili- nhecidas pelos psicanalistas. Ocorrem também
dade de adaptação a elas, e acrescidas da per- quando uma pessoa influente se mata ou mor-
da de referenciais sólidos (religião, moral, cren- re. Aqui, os psicanalistas sentem bastante falta
ças, hábitos etc.), levam-nos a condutas auto- do trabalho de outros profissionais que estu-
destrutivas que também se aproximam das dem o homem. As ‘reações de aniversário’ são
anômicas de Durkheim. Em termos psicanalíti- discutidas no texto citado nas referências (Cas-
cos, aqui encontraremos indivíduos com um sorla, 1991).
mundo interno frágil, geralmente confuso, on- Finalmente, não nos esqueçamos das con-
de defesas rígidas protetoras desmoronam dutas auto e heterodestrutivas individuais for-
diante de situações em que a onipotência é talecidas pela sociedade, que se refletem na
abalada. As origens desses mecanismos re- miséria, nos ‘sem-nada’, na violência, na morte
montam a fases precoces da vida e reforçam da capacidade de pensar, não somente dos
e/ou são reforçadas por aspectos sociais. Mui- oprimidos, mas também dos poderosos, que
tas vezes os fatores sociais não têm a menor ‘têm’ cada vez mais e ‘são’ cada vez menos. No
importância. Em outros casos, sociólogos di- entanto, as forças de vida (Eros, para os psica-
rão que os conflitos precoces são fantasias dos nalistas) estão sempre presentes, numa relação
psicanalistas. Somente a interdisciplinaridade dialética com Tânatos. O autor destas linhas
resolverá esta discussão, basicamente ideoló- confia bastante, de sua experiência, na força de
gica, evitando componentes “suicidas” no sa- Eros, inclusive para alertar-nos sobre as facetas
ber. O suicídio anômico é encontrado, com através das quais, sutilmente, Tânatos se mani-
certeza, entre os índios Guarani-Kaiowáas de festa.
Dourados – MS (que tiveram sua cultura e mi-
tos desestruturados), o que, em minha opinião, CASSORLA, R. M. S., 1991. Do Suicídio: Estudos Brasi-
leiros. Campinas: Papirus.
aproxima-se do que ocorre entre muitos dos
CASSORLA, R. M. S. & SMEKE, E. L. M., 1994. Auto-
adolescentes atuais. A interação entre compo- destruição humana. Cadernos de Saúde Pública,
nentes sócio-culturais e individuais naquele es- 10 (supl. 1):61-73.
tudo é claro, ainda que não se tivessem usado
instrumentos psicanalíticos (Cassorla & Sme-
ke, 1994).
Penso que Durkheim concordaria em cha-
mar suicídios altruístas àqueles que ocorrem
entre fanáticos que praticam atos terroristas.
Mas, sob outro ponto de vista, essas pessoas te-
rão grandes vantagens, já que em suas fanta-
sias pós-morte, rumarão a um paraíso fantásti-
co, onde serão recompensados como heróis. Já
os velhos da Nigéria que se mataram para dei-
xar o pouco alimento existente para as crian-
ças, há alguns anos, certamente foram altruís-

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):7-34, jan-mar, 1998

Você também pode gostar