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Gilles Deleuze CONVERSACOES Traducao Peter Pal Pelbart Be editoralll34 ISBN AS~a5u ABIL Por que reunir textos de entrevistas que se estendem por quase vinte anos? Certas conversacdes duram tanto tempo, que nao sabemos mais se ainda fazem parte da guerra ou ja da paz. E verdade que a filosofia é inseparavel de uma cdle- ra contra a época, mas também de uma serenidade que ela nos assegura. Contudo, a filosofia no é uma Poténcia. As re- ligides, os Estados, o capitalismo, a ciéncia, o dircito, a opi- nido, a televisao sao poténcias, mas nao a filosofia. A filoso- fia pode ter grandes batalhas interiores (idealismo — real mo, etc.), mas sio batalhas risiveis. Nao sendo uma potén- cia, a filosofia nao pode empreender uma batalha contra as poténcias; em compensagao, trava contra elas uma guerra sem batalha, uma guerra de guerrilha. Nao pode falar com elas, nada tem a Ihes dizer, nada a comunicar, ¢ apenas mantém conversacées. Como as poténcias nao se contentam em ser exteriores, mas também passam por cada um de nds, é cada tum de nds que, gracas 3 filosofia, encontra-se incessantemente em conversagdes ¢ em guerrilha consigo mesmo. Gilles Deleuze colecao TRANS ou-7 MN aditoralli34 day de ual colecdo TRANS Gilles Deleuze CONVERSAGOES editorallf34 Jardim E ‘ax (1 6 s CONVERSAGOES M Lda. (edigio 2 LDEO Trés questdes sobre Seis Sobre A in Sobre A imagem-tempo. Daividas sobre o imaginario Carta a Serge Daney: Otimismo, pessimisme UL, Micitet Foucat Rachar as coisas, rachar as palavras 7" Reimpressio A vida como obra de art Sobre a filosofia Por que reunir textos de entrevistas que se estendem quase vinte anos? Certas conversagées duram tan que nao sabemos mais se ainda fazem parte d da paz. E verdade que a filosofia é inseparave contra a época, mas também de uma serenidade qu Contudo, a filosofia nao é uma Poténcia. As reli »s Estados, o capitalismo, a ciéncia, o direito, a opin a televisio so poténcias, mas nao a filosofia. A filosofia p + grandes batalhas interiores (idealismo — realisn fia nao pode empreender uma batalha contra as poténcias; em pensacio, trava contra elas uma guerra sem bat guerra de guerrilha, Nao pode falar com elas, nada tema thes dizer, nada a comunicar, e apenas mantém conversagbes. Co- 10 as poténcias ndo se contentam em s es, mas tam: bém passam por cada um de nés, é $ que, gra I DE O ANTI-EDIPO A MILLE PLATEAUX CARTA A UM CRITICO SEVERO 1 Michel Cressole, Deleuze, Ed. Universitaires, 1973 Voce é encantador, inteligente, malevolente, quase ruim, Mais um esforco... afinal, a carta que voce me manda, invc cando ora 0 que se diz, ora o que vocé mesmo pensa, ¢ 0s doi nisturados, € uma espécie de jibilo pela minha suposta infe icidade. Por um lado, vocé diz que estou acuado, em todos bs sentidos, na vida, no ensino, na politica, que me tornei uma dete imunda, que alias isso nao dura muito, e que nao te lho saida, Por outro lado, vocé diz que eu sempre estive a re- boque, que sugo o sangue e degusto os venenos de vocts, os verdadeiros experimentadores ou heréis, ¢ que eu mesmo fico é nada disso. J4 estou to cheio dos verdadeiros ou falsos esquizos que me converteria com prazer 4 parandia. Viva a parandia! O que vocé pretende me injetar com sua carta é un pouco de ressentimento {vocé esta acuado, vocé est acuado, ‘confessa”...) € um pouco de ma consciéncia (nao tem ver gonha, esta a reboque...); se era s6 isso, no valia a pena me escrever. Voce se vinga por ter feito um livro sobre mim. Sua carta est repleta de uma comiseragao fingida e de uma re sede de vinganga. Primeiro, é bom lembrar, apesar de tudo, que nao fui quem desejou este livro. Vocé diz. porque quis fazé-lo: “Por sumor, acaso, sede de dinheiro ou de ascensao social.” N: jo como vai satisfazer todas essas coisas assim. Ainda um 2, & problema seu, ¢ desde o comeco eu avisei que este li- ro ndo me concernia, que eu no 0 leria ou s6 0 leria mais arde, e como um texto referente exclusivamente a vocé. Voeé pti mpens no b is nada me parec alguém olhando para elas (interpre Enfim da para diz Mas >u puder” terpretacio politica, Xcé escolhe a pior acio: ele quer se zar, se fazer de Greta Garbo Iquer modo, de tox meu: nhum jamai notado minhas unhas, achando- ninguém falar confessa. Procurador geral! Nao confesso nada. Ja que se trata por sua culpa de um livro sobre mim, gostaria de explicar como vejo 0 que escrevi. Sou de uma geracao, uma das iit mas geracdes que foram mais ou menos assassinadas com 2 histéria da filosofia. A historia da filosofia exerce em filoso- fia uma fungao repressora evidente, é o Edipo propriamente filos6fico: “Vocé nao vai se atrever a falar em seu nome en- quanto nao tiver lido isto e aquilo, ¢ aquilo sobre isto, ¢ isto sobre aquilo.” Na minha geracao muitos nao escaparam dis regras, um novo tom. Quanto a mim, “fiz” por muito tempe storia da filosofia, li livros sobre tal ou qual autor. Mas eu ¢ compensava de varias maneiras. Primeiro, gostando dos autores que se opunham & tradigao racionalista dessa hist6. ria (e entre Lucrécio, Hume, Espinosa, Nietzsche, ha para mim um vinculo secreto constituido pela critica do negativo, pela cultura da alegria, 0 dio a interioridade, a exterioridade das forcas e das relagdes, a deniincia do poder...,etc.). O que eu mais detestava era o hegelianismo e a dialética. Meu livro sobre Kant é diferente, gosto dele, eu o fiz. como um livro sobr engrenagens — tribunal da Razao, uso comedido das facul- Jades, submissao tanto mais hipécrita quanto nos confere 0 itulo de legisladores. M ha principal maneira de m safar nessa época foi concebendo a historia da filosofia come uma espécie de enrabada, ou, o que da no mesmo, de ima alada concepcao. Eu me imaginava chegando pelas costas de um fazendo um filho, que seria seu, € no entanto tia monstruoso. Que fosse seu era muito importante, por que 0 autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo qu the fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também uma necessidade, porque era preciso passar po: espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emiss6x de rir acusando-me por eu ter escrito até sobre Bergson. £ que eles nao conhecem 0 suficiente de historia. Nao sabem ¢ tanto de édio que Bergson no inicio pode concentrar na Uni: versidade francesa, e como ele serviu —querendo ou nao, pou co importa — para aglutinar todo tipo de loucos e marginais, mundanos ou nao. Foi Nietzsche, que li tarde, quem me tirou disso tudo. Pois € impossivel submeté-lo ao mesmo tratamento. Filhos pe costas é ele quem faz. Ele dé um gosto perverso (que nem Marx para cada um de dizer coisas simples em nome proprio, de falar por afectos, intensidades, experiéncias, experimentagies. Dizer algo em nome préprio € muito curioso, pois néo é absoluto quando nos tomamos por um eu, por uma pes: ou um sujeito que falamos em nosso nome. Ao contrario, um ndividuo adquire um verdadeiro nome proprio ao cabo de mais severo exercicio de despersonalizacao, quando se as multiplicidades que o atravessam de ponta a ponta, as in tensidad > percorrem. O nome como apreensio instan tanea de uma tal multiplicidade intensiva é o oposto da des: personalizagao operada pela hist6ria da filosofia, uma despe sonalizacdo de amor e nao de submissao. Falamos do fundo daquilo que nao sabemos, do fundo de nosso préprio subd senvolvimento. Tornamo-nos um conjunto de singularidad. soltas, de nomes, sobrenomes, unhas, animais, pequenos acon tecimentos: 0 contrario de uma vedete. Comecei ento a fa « dois livros nesse sentido vagabundo, Diferenca e repe do sentido. Nao tenho ilusdes: ainda esto c aparato universitario, sdo pesados, mas tento sacudi com que alguma coisa em mim se mexa, tratar a escrita como um fluxo, no como um cédigo. E ha paginas de qu em D: € repeticao, aquelas sobre cias. Nao fui mi E depois houve meu encontro com Félix Guattari, a ma neira como nés nos entendemos, completamos, despersona zamos um no outro, singularizamo-nos um através d tro, em suma, nos amamos. Isso deu O anti-Edipo, ¢ foi um novo progresso. Eu me pergunto se uma das razGes formais para a hostilidade que as vezes surge contra este livro nao é justamente por ter sido feito a dois, uma vez. que as pess costam das brigas e partilhas. Entao tentam separar o indis cernivel ou fixar 0 que pertence a cada um de nés. Mas v que cada um, como todo mundo, ja € muitos, isso dé muita ente. E sem diivida nao se pode dizer que O anti-Edipo es teja livre de todo aparato de saber: ele ainda é bem académi co, bastante comportado, e nao chega a ser a pop’filosofia ou a pop’anilise sonhadas. Mas surpreende-me 0 seguinte: os que acham sobretudo que este livro € dificil sio aqueles com mais cultura, prineipalmente cultura psicanalitica. Eles dizem: ‘© que ¢ isso, 0 corpo sem érgios, o que quer dizer maquinas desejantes? Ao contrario, os que sabem pouca coisa, os que ndo esto envenenados pela psicandlise tém menos proble mas, ¢ deixam de lado 0 que nao entendem sem preocupagio. fpastisaciciurislesemc ures lee aclemeioyteidige to, se dirigia a pessoas com idade entre quinze e vinte anos. E que ha duas maneiras de ler um liveo, Podemos consider » como uma caixa que remete a um dentro, ¢ entio vamos scar seu significado, e ai, se formos ainda mais perversos 11 corrompidos, partimos em busca do significante. E trata mos o livro seguinte como uma caixa contida na preceden on contendo-a por sta ver. E comentaremos, interpreta emos, pediremos explicacoes, escreveremos o livro do live > infinito. Oua outra maneia: consideramos um livro com ma pequena maquina a-significante; 0 tinico problema é isso funciona, e como é que funciona?” Como isso para vocé? Se nao funciona, se nada se passa, p tra leitura € uma leitura em intensidade: ab Nao ha nada a explicar, nada a com preender, nada a interpretar. E do tipo ligagao elétrica, Cor po sem rgaos, conheco gente sem cultura que compreendeu mediatamente, gracas a seus proprios “habitos”, gragas a sua maneira de se fazer um. Essa outra maneira de ler se opde a anterior porque relaciona imediatamente um livro com 0 Fora. Um livro é uma pequena engrenagem numa maquina outros, sem nenhum privilégio em relagao aos demais, e que entra em relagdes de corrente, contra-corrente, de redemoi: nho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de acio, de erotismo, de dinheiro, de politica, etc. Como Bloom, escrever na areia com uma mao, masturbando-se com 2 outra — dois fluxos, em que relagio? Nos, 0 nosso fora pelo menos umdleles, foi uma certa massa de gente (sobretu ovens) que estio fartos da psicanalise. Eles esto “acu se analisando, j4 pensam contra a psicanalise, mas p contra cla em termos psicanaliticos. (Por exemplo, tema de intimo, como é que os rapazes do Fhar de Liberagao das Mulheres - MLF, ¢ tros ainda, podem fazer anilise? Isso nao os incomoda ditam nisso? O que sera que procuram no diva?) E a exis cia dessa corrente que tornou possivel O anti-Edipo. E psicanalistas, dos mais estipidos aos mais inteligentes, t em geral uma reacao hostil livro, embora mais defer de pessoas que esto cada vez mais cheias de se ouvirem di zet “papai, mamae, Edipo, castragao, r rem propor da sexualidade em geral, e da sua em particular uma imagem propriamente imbecil. Como se diz, os psicana jistas deverao levar em conta as “massa”, as pequer as_Recebemos bel pemproletariado da psi tigos da crit Bisalifiiricira dele ential edsacre com esta a de ter por si s6.e pela primeira vez quebrado as maqui: foie? ERE Satea Cctv maR nna CBMaA Vina bSeRpetimest: nas de cooptagio, ¢ de ter tirado 0 intelectual de sua situa: n livro, fragmentacio do livro, maquinagio dele com ou estio na provocagio, na publicagao, nos questiondrios, nas s coisas, qualquer coisa ,,é uma maneira amoros confissdes puiblicas (*confessa, confessa...”). Sinto chegar, a Ora, voce o leu exatame recho da sua carta q contrario, a idade proxima de uma clandestinidade meio v parece belo, mara , até, € on conta como d luntaria meio imposta, que sera o mais jovem desejo, inclusi como 0 usou pal pena! politico. Vocé me quer acuado profissionalmente, porqui Infelizmente vocé volta rapido demais as recriminagGes: vocé dei aula por dois anos na Universidade de Vincem ndo vai se sair dessa, vamos v que dizem, diz vocé, que ali nao fago mais na tamos de olho, s6 esperando... Na dita que enquanto eu dava aula estava na ca nos nossa posi¢ao. Vamos continuar porque gostamos de cusando a posigao do professor mas con valhar antes ikl naveded dahiodira pith uiare retomando a rédea quando todo mundo a havia largado Com a ajuda do fora, faremos uma coisa to diferent sensivel as contradigdes, no sou uma bela alm: em termos de linguagem e de pensamento, que as pessoas que o trigico de sua ¢ (0. Falei porque o desejava mu 3s “esperam” serdo obrigadas a dizer: eles ficaram com poiado, injuriado, interrompido, por militantes, falsos lou amen Ibiteaay GtneaCTearatISeN Gu foratn incaphtes cos, loucos de verdade, imbec muito inteligente, era tinuar. Decepcionar é um prazer. Nem de longe quere uma farra viva em Vincennes. Isso durou dois anos, foi o sufi ingir de loucos, mas enlouqueceremos & nossa m: ciente, € preciso mudar. Entio, agora que ja nao falo nas m ssa hora, nao precisam nos empurrar. Sabemos que O an mas condigdes, voce diz ou conta que se diz. que jé nao fag Edipo primeiro tomo ainda esta cheio de concessées, entulha- nada, € que imp gorda rainha impotente. Na do de coisas ainda eruditas e que se parecem com conccitos. menos falso: eu me escondo, continuo fazend Pois bem, mudaremos, jd mudamos, vamos de vento em popa sas com 0 minimo de gente possivel, e vocé, em vex de me quem acreditasse que formariamos um quinto grupi me deixa a opgdo entre a impoténcia e a contradigao. Po psicanalitico. Que pobreza! Nés sonhamos ¢ tras c ‘océ me quer acuado no plano pessoal, famil sas, mais clandestinas e mais alegres. Nao faremos mais c .cé ndo voa muito alto. Explica que tenho uma mulh essiio alguma, ja que necessitamos menos delas. E sempre ilha que brinca de boneca ¢ triangula pelos canto poderia acrescentar que tenho um fitho log Vocé me julga acuado. Nao é verdade: nem Félix nem cu nos tornamos os subchefes de uma subescola. E se algu se analisar. Se vocé acredita que sio as bonecas que pr leila ves let chG temthe oliticetnentereciaaica's nao é uma boneca, é uma sectecao interna, é uma glandu a festos e petigdes, “super-assistente social e nunca se luta contra as secrecées edipianas sem lutar cc dade, ¢ entre todas as homenagens que se deve a Foucau tra si mesm¢ perimentar contra si mesmo, sem se t na de ser amado, que n Amores nao-edipianos nao ber que ndo basta ser celib Je grupos, para evitar F de grupos, para evitar Ed (erm ver da vontade choramin. onduz, todos, ao psicanalista > € pouca co oct deveria sa atario, sem filhos, bicha, membro ipo, j4 que ha o Edipo de grupo, homossexuais edipianos, MLF edipianizado..., etc. Testemu nha disso é um texto, “Os edipiano que minha filha. Portanto, nao tenho 1 de 0 nim; de em outros projetos. Passo boque, poupando meus € perimentacies dos outro: soquistas, louces..., etc, de irabes ¢ nds”, que € ainda mai: ada a “confessar”, O sucesso r nos compromete, nem a Félix nem nos diz respeito, jé que estamos ‘nto a sua outra critica, mais dura m dizer que sempre estive a te foros, me aproveitando das ex bichas, drogados, alcodlatras, ma gustando mente suas delicia i, onde perg nao Mas o que sabe vocé de mim, uma vez que eu acr no segredo — quer dizer, n falso— mais do que nos r xatidao e na tos que revelam um: rerdade? Si E minha relaga tem gente que fi ald ext @agiecufpcae nhamentos, agh is obliqua e in om as bicha ue cada um deva ser a ma consciéncia ¢ 0 inspetor do ou tro, Eu nao devo nada a vocés, nem vocés a mim. Nao hi nenhuma razio para que eu frequente s jetos, ja que te nho 0s meus. O problema nu sistiu na natureza deste ou daquele grupo exclusi s nas relacdes transversaisem que os efeitc zidos por tal ou qual coisa (homossexua lismo, drog 1 ds sktros ios. ( 1 s sou aquilo 8 sua infancia ou destino} .ciso pensar em termos inc impr > ou, tantas buscas out corpo, atrave da um populacdes, as e bitam. Por que n médico, ja que fale E por que Raso realisn mundana, bastante esnobe. Vocé me pede um ENTREVISTA SOBRE O ANTI- pois m ¢ maldades. Minha carta, por causa da sua, com Félix Guattar parece uma justificagdo. Assim nao se vai longe. Vocé nao é am arabe, € um chacal. Vooé faz de tudo para que eu me trans L’Arc, n° 49, 1972, entrevista a Catherine Backés-Clément forme nisso que vocé critica, pequena vedete, vedete, vedete nao Ihe peco nada, mas gosto muito de vocé — para por GILLES DELEUZE — Seria preciso falar come nininhas, no condicional; a gente teria se encontrado, teria icontecido isso... Ha dois anos ¢ meio encontrei Félix. Ele tinha a impressio que eu estava adiantado em relagao a esperava alguma coisa, £ que eu nao tinha nem as respons bilidades de um psicanalista, nem a culpa ou os condicion: mentos de um analisado. Eu nao possuia absolutamente lu- gar algum, o que me dava mobilidade, e achava principalm engracado como a ps is el. Mas eu tr ava unicamente no pla s, e ainda de ma ida, Félix me falou do q nas desejantes: toda uma concep¢ao t nte-maquina, do inconsciente esquizofrénic Entdo tive a imp que era ele quem estava adiantado em relagao a mim. Mas com seu inconsciente-maquina ele toda alava em termos d tura, de significante, de fa rente, ja que devia tantas coisas a Lacan (e Lacan quem diz: nao m n. Iriamos ajuds-lo esquiz renicamente. E é claro que devemos tanto mais a Lacan quan ‘0 renunciamos a nogdes como as de estrutura, simbélico o} significante, totalmente improprias, e que Lacan mesmo sem pre soube revirar para mostrar seu avesso. Félix e eu decidimos entio trabalh ar juntos. No comeco sso aconteceu por cartas. Depois, a cada tanto, sessé que um escutava 0 outro. Divertimo-nos muito, Entedi nos muito, Sempre um de nés falava demais. Acontecia fre quentemente de um propor uma nogio que nao dizia nada a0 outro, ¢ este se servir dela s6 meses depois, num contexto di ferente. De resto liamos muito, nao livros inteiros, mas p dagos. As vezes achvamos coisas completamente idiotas, q nos confirmavam os estragos de Edipo e a grande miséria psicanalise. Outras vezes, coisas que nos pareciam admirave € que tinhamos vontade de explorar. E escreviamos muito Félix trata a escrita como um fluxo esquizo que arrasta em seu curso todo tipo de coisas. Quanto a mim, interessa-me q ama pagina fuja por todos os lados, e no entanto que esteja aja num livro retengdes, ressonancias, precipitagdes, € um monte de larvas, Escreviamos realmente a dois, isso no cons: ituia um problema. Fizemos sucessivas verses, PELIX GUATTARI — Eu, de minha parte, tinha “luga res” demais, pelo menos quatro. Vinha comunist depois da oposigao de esquerda; antes de Maio de 68 agita se muito, escrevia-se um pouco, por exemplo as “nove tese Oposigdo de esquerda”. Também participei da clinica de La Borde em Cour-Cheverny, desde sua constituigo por Jean Oury em 1953, no prolongamento da experiencia Tosquelles: entava-se definir pratica e teoricamente as bases da psicote- rapia institucional (quanto a mim, experimentava noges co mo “transversalidade” ou “fantasma de grupo”). No mais, tinha sido formado por Lacan, desde o comego dos seminé- ios. Por tiltimo, tinha uma espécie de lugar ou de discurso esquizo, sempre fui apaixonado, atraido pelos esquizos. F preciso conviver com eles para compreender. Os problemas dos esquizos pelo menos sio verdadeiros problemas, nao pro- blemas de neurético. Minha primeira psicoterapia foi feita com um esquizo, com a ajuda de um gravador, Ora, esses quatro lugares, esses quatro discursos néo eram apenas lugares e discursos, mas modos de vida, neces- ariamente um pouco dilacerados. Maio de 68 foi um abalo, a Gilles e para mim, bem como para tantos outros: na época nao nos conheciamos, mas mesmo assim este livro, atualmente, é uma continuagio de 68. Eu precisava nao uni: ficar, mas juntar um pouco esses quatro modos de vida. Ja tinha algumas direges, por exemplo a necessidade de inter pretar a neurose a partir da esquizofrenia. Mas nao possuia a légica necessaria a essa junio. Eu havia escrito um texto para Recherches, “Deum signo a outro”, muito marcado por Lacan, porém onde ja nao havia mais significante. No entanto, eu ainda estava emperrado numa espécie de dialética. O que eu esperava do trabalho com Gilles eram coisas como essas: ‘corpo sem 6rgaos, as multiplicidades, a possibilidade de uma lgica das multiplicidades conectada ao corpo sem rgios. En nosso livro, as operagdes logicas so também operages fis cas. E.0 que buscavamos ¢m comum era um discurso ao mes: ‘mo tempo politico e psiquidtrico, mas sem reduzir uma dimen. sio & outra, Le Fn podetalalnige 2 esq que se pode realme mmo fazem, que Fr rava 0 dominio das m nos dos F. G. — E complicado. Sob certos aspectos, Freud sabia perfeitamente que seu verdadeiro material clinico, sua bas clinica, lhe vinha da psicose, via Bleuler e Jung. E isso nac cessard: tudo o que surgir de novo na psicandlise, de Melanie Klein a Lacan, vird da psicose. Por outro lado, 0 caso Tausk: Freud talvez receasse uma confrontagio dos conceitos anali ticos com a psicose. No comentario sobre Schreber encontram se todas as ambiguidades possiveis, Quanto aos esquizos, tem se a impressio de que Freud nao gosta em absoluto deles, diz as horriveis a seu respeito, totalmente desagradaveis... Mas quando vocé diz que Freud nao ignora as maquinas do dese jo, é verdade. E justamente essa a descoberta da psicanalise 6 desejo, as maquinarias do desejo. Isso nao para de zumbir, produzir, numa andlise. E os psicanalistas ¢ tempo todo estdo suscitando méquinas, ou re-suscitando-as sob fundo esquizofrénico. Porém talvez eles fagam ou desen cadeiem coisas sobre as quais nao tém uma consciéncia cla- ra, Pode ser que sua pratica implique operagdes esbocadas que ‘0 aparece com clareza na teoria. Nao ha divida que a psicandlise abalou o conjunto da medicina mental, funcionan do como uma maquina infernal, Pouco importa que desde « nicio houve concessdes, 0 fato € que ela abalava, impunh novas articulagdes, revelava o desejo. Vocé mesmo invoca os parelhos psiquicos tal como Freud os analisa: hé ai todo um aspecto maquinaria, produgio de desejo, unidades de produ cao. Além disso ha o outro aspecto, da personificacao desses parelhos (0 Superego, © Eu, 0 Isso}, uma encenacio teatral que substitui as verdadciras forgas produtivas do inconsciente por simples valores representativos. Entao, as maquinas de desejo se tornam cada vex mais maquinas de teatro: 0 super ego, a pulsio de morte como deus ex machina. Elas tendem nais ¢ mais a funcionar por tras do pano, nos bastidores. Ou ram maquinas de iluséo, de efeitos. Toda a producao dese- 1 é esmagada, O que nés dizemos, é: Freud descobre o de sejo enquanto libido, desejo que produz, e ao mesmo temp¢ re-aliena sem parar a libido na tepresentacio familiar (Edipo). A psicandlise tem a mesma histéria que a economia politica, tal como Marx a viu: Adam Smith ¢ Ricardo descobrem a sséncia da riqueza enquanto trabalho que produ ram de re-aliené-la na representagio da prc batimento do desejo sobre uma cena familiar qu a psicandlise desconheca a psicose, s6 se reconhega na ne rose, ¢ dé da propria neurose uma interpretagio qu ra as forgas do inconsciente —Eoque G.D.—O que ima ideologia que seria a da psicanilise. E a propria psicandlise, em sua pratica € su teoria. A esse respeito nao ha contradigao entre dizer que é algo formidavel, e que jd comega mal. A virada idealista est li desde o principio. Nao € contradit6rio: flores magnificas 10 entanto, é podre desde o inicio. Chamamos idealismo psicandlise todo um sistema de rebatimentos, de redugdes eoria e pratica analiticas: redugdo da produgdo desejante a.um sistema de representagoes ditas inconscientes, e a f mas de causagio, de expressio ¢ de compreensao correspon: dentes; redugao das fabricas do inconsciente a uma c teatro, Edipo, Hamlet; redugao dos investimentos soci libido aos investimentos familiares, rebatimento do d sobre coordenadas familares, ainda o Edipo. Nao queremos dizer que a psicanilise inventa 0 Edipo. Ela responde a de manda, as pessoas chegam com seu Edipo. A psicanilise nic mais do que elevar Edipo ao quadrado, Edipo de trans! réncia, Edipo de Edipo, i como uma terrinha lamacenta. aparelho de repressdo das maquinas desejantes, e de modo algum uma formacao do préprio inconsciente. Nao queremos dizer que o Edipo, ou seu equivalente, varie conforme as for mas sociais consideradas. Antes acreditariamos, com os ¢s truturalis € um invariante. Mas € o invariante de um desvio das forcas do inconsciente. E por isso que atacamos Edipo, nao em nome de sociedades que nao o comportariam, mas naquela que 0 comporta eminentemente, a nossa, a ca pitalista. Nao 0 atacamos em nome de ideais pretensamente superiores a sexualidade, mas em nome da propria sexuali: dade que nao se reduz a0 “sujo segredinho familiar”. E nao fazemos diferenga alguma entre as variagdes imaginarias do Edipo e um invariante estrutural, visto que é sempre o mes: impasse nos dois extremos, 0 mesmo esmagamento das \4quinas desejantes. O que a psicandlise chama de resolugao ou dissolucio do Edipo é absolutamente comico, é precisa mente a operacao da divida infinita, a andlise interminav © contégio do Edipo, sua transmissio de pai para filho. E alucinante a quantidade de bobagens que se pade dizer em nome do Edipo, a comesar sobre a crianca Uma psiquiatria materialista é a que introduz a produ Go no desejo ¢, inversamente, o desejo na producao. O del rio ndo se refere ao pai, nem sequer a0 Nome do Pai, mas aos nomes da Historia. E como a imanéncia das maquinas dese jantes no interior das grandes maquinas sociais. Ele é o inv timento do campo social hist6rico pelas maquinas desejantes. © que a psicandlise compreendeu da psicose foi a linha “pa randia”, que leva ao Edipo, a castragao..., etc., todos esses aparelhos repressivos injetados no inconsciente. Mas o fun do esquizofrénico do delirio, a linha “esquizofrenia”, que traca tum desenho nao familar, escapa-Ihe totalmente. Foucault dizia que a psicandlise ficou surda as vozes da desrazao. De fato, ela neurotiza tudo; e através dessa neurotizacao contribui ndo s6 para produzir o neurético de cura interminavel, mas tam: bém para reproduzir 0 psicético como aquele que resiste & edipianizagao, Porém a psicandlise fracassa inteiramente na abordagem direta da esquizofrenia. Assim como Ihe escapa a natureza inconsciente da sexualidade: por idealismo, por idealismo familiar e tea O linn tomando, de certa investimentos fascistas, campo social, Hé ai algo que ao mesmo tempo politica e d psicandlise, Mas percebe-se mal 0 que voces te mas também as conseqiiénc amente importantes, Pois se n. entos fascistas”, se nenhum. F,G, — Sim, como muitos outros nés anunciamos 0 de- senvolvimento de um fascismo generalizado, Ainda no se vi nada, nao hé razo alguma para que o fascismo nao se desen: volva. Melhor dizendo: se nao se montar uma maquina rev lucionéria capaz de se fazer cargo do desejo e dos fendmenos de desejo, o desejo continuara sendo manipulado pelas forcas de opressio ¢ repressao, ameacando, mesmo por dentro, as ndquinas revoluciondrias. O que distinguimos so duas espé s de investimento do campo social, os investimentos pré onscientes de interesse ¢ os investimentos inconscientes de sejo. Os investimentos de interesse podem ser realmente re volucionarios, ¢, no entanto, podem deixar subsistir investi- entos inconscientes de desejo nao revoluciondtios, ou até fas cistas. Num certo sentido, o que propomos como esquizoand- lise teria por ponto de aplicagao ideal os grupos, e grupos mi litantes: pois € ai que se disp&e mais imediatamente de um ma- terial extra-familiar, e que aparece o exercicio por vezes con traditorio dos investimentos. A esquizoanalise € uma andlise militante, libidinal-econémica, libidinal-politica. Quando opo- mos os dois tipos de investimento social, nao estamos contra: pondo 0 desejo enquanto fenémeno romantico de luxo, aos interesses que seriam exchusivamente econdmicos ¢ politicos. Acreditamos, a0 contririo, que os interesses sempre se encon tram e se dispéem onde o desejo lhes predetermina o lugar. Por is80, nao ha revolugao conforme aos interesses das classes opri- midas se 0 desejo mesmo nao tiver tomado uma posigao re- volucionéria mobilizando as préprias formagées do incons: ciente. Pois de qualquer modo o desejo faz parte da infraes trutura (no acreditamos de modo algum num conceito como de ideologia, que nao da bem conta dos problemas: nao ha ideologias). © que ameaca eternamente os aparelhos revolu- cionarios é elaborarem uma concepgio puritana dos interes: ses, € que so sempre realizados apenas em favor de uma fra io da classe oprimida, de tal modo que essa fragao reproduz uma casta ¢ uma hierarquia totalmente opressivas. Quantc mais se sobe numa hierarquia, mesmo pseudo-revolucionaria, menos possivel se torna a expresso do desejo (em compen- sagdo, ela aparece nas organizagdes de base, por mais defor mada que seja). A esse fascismo do poder, nés contrapomos as linhas de fuga ativas e positivas, porque essas linhas con duzem ao desejo, as maquinas do desejo e 4 organizacio de um campo social de desejo: nao se trata de cada um fugir “pesso almente”, mas de fazer fugir, como quando se arrebenta um cano ou um abcesso. Fazer passar fluxos, sob os cédigos so iais que os querem canalizar, barrar. Nao existe posigio de desejo contra a opressio, por mais local ou mintiscula que seja essa posi¢ao, que nao ponha em causa progressivamente 0 njunto do sistema capitalista, e que nao contribua para fazé lo fugir. O que denunciamos sdo todos os temas da oposi¢a homem-maquina, o homem alienado pela méquina..., etc. Des de o movimento de maio de 68, 0 poder, apoiado pelas pseu: do-organizagées de esquerda, tentou nos fazer crer que se tra- tava de jovens excessivamente mimados lutando contra a so- ciedade de consumo, enquanto os verdadeiros trabalhadores, sabiam perfeitamente onde estavam seus verdadeiros interes- ses..., etc. Nunca houve luta contra a sociedade de consumo, essa nogio imbecil. Dizemos, a0 contrario, que ndo ha con- sumo suficiente, que 0 artificio nao foi longe o bastante: nunca os interesses pasar para o lado da revolucao se as linhas de descjo nao atingirem o ponto em que desejo e maquina se transformem numa tinica e mesma coisa, desejo ¢ artificio, a ponto de se voltarem contra os chamados dados naturais da sociedade capitalista, por exemplo. Ora, esse ponto é ao mes. no tempo o mais facil de atingir, porque pertence ao mais mi niisculo desejo, mas também o mais dificil, porque implica to dos os investimentos do inconsciente G. D. — Nese sentido, o problema da unidade deste li- vro nao se coloca. De fato, ha dois aspectos: 0 primeiro é uma critica do Edipo e da psicanilise; 0 segundo, um estudo do capitalismo e de suas relagdes com a esquizofrenia, Ora, 0 primeiro aspecto depende estreitamente do segundo. Ataca mos a psicanalise nos seguintes pontos, que concernem sua pratica no menos que sua teoria: seu culto ao Edipo, sua ‘edugio a libido e aos investimentos familiares, mesmo s as formas indiretas e generalizadas do estruturalismo ou do simbolismo. Nés dizemos que a libido procede a investimen tos inconscientes distintos dos investimentos pré-conscientes de interesse, mas que incidem no campo social ndo menos que 6s investimentos de interesse. Mais uma vez o delirio: pergun taram-nos se alguma vez haviamos visto um esquizofrénico, € nossa vex de perguntar aos psicanalistas se alguma vez es: cutaram um delirio. O delirio é historico-mundial, de mod algum familiar. Delira-se sobre os chineses, os alemaes, Joai Arc ¢ 0 Grio-Mongol, sobre os arianos e 0s judeus, sobre © dinheiro, 0 poder e a produgao, ¢ nao em absoluto sobre papai-mamae. Ou melhor: 0 famoso romance familiar depen- de estreitamente dos investimentos sociais inconscientes que aparecem no delirio, e nao o contrario. Tentamos mostrar em que sentido isso ja ¢ verdade no caso da crianga, Propomos ama esquizoandlise que se op6e & psicanalise. Basta tomar os dois pontos em que a psicanslise tropeca: nao consegue atin- gir as maquinas desejantes de ninguém, porque se limita as figuras ou estruturas edipianas; nao chega aos investimentos sociais da libido, porque se restringe aos investimentos fami liares. E 0 que se vé bem na psicanalise exemplar in vitro do presidente Schreber. O que nos interessa é 0 que nao interes- sa 8 psicandlise: 0 que so as tuas maquinas desejantes? Qua a tua maneira de delirar 0 campo social? A unidade de nos: so livro esta em que as insuficiéncias da psicandlise nos pare- cem estar ligadas tanto a sua profunda pertenca a sociedade capitalista quanto ao seu desconhecimento do fundo esqui zofrénico. A psicandlise 6 como o capitalismo: tem por limi te a esquizofrenia, mas nao cessa de repelir o limite e de ten- tar conjuré-lo, Esse livro estd cheio de referencias, de tex dos alegremente, no seu sentido proprio ou em sent rério; em todo caso, 6 um livro que tem por solo uma Dito isto, vocés atribuem muit pouca a lingiistica; muita im gleses e americanos, mas quase nents teorias contemporaneas da escrita. Por que esse ataque espe. mente contra a nocao de significante, e por que raza cusam seu siste F. G.—O significante nao nos serve para nada. Nao so ‘mos 05 tinicos, nem os primeiros. Vejam Foucault, ou o liveo significante, € porque se trata de uma entidade difusa rebate tudo sobre uma maquina de escrita obsoleta. A oposi- ¢do exclusiva e coercitiva entre significante e significado esta tomada pelo imperialismo do Significante, tal como ele emerge com a maquina de escrita. Tudo passa a set referido, de dit reito, a letra, Ea propria lei da sobrecodificagio despotica jossa hipotese é a seguinte: o signo do grande Désp Idade da escrita), ao retirar-se, teria deixado uma praia de componivel em elementos minimos com relagies regrad entre eles. Tal hipdtese pelo menos da conta do carter tira nico, terrorista e castrador do significante. E um enorme ar- caismo, que remete aos grandes impérios. Nem sequer temos certeza que o significante funcione para a linguagem. Foi por essa razao que recorremos a Hjemslev: ja ha muito tempo ele fez uma espécie de teoria espinosista da linguagem, onde os fluxos, de conteiido e de expressio, prescindem de significante A linguagem como sistema de fluxos continuos de contetido e de expressio, recortado por agenciamentos maquinicos de figuras discretas ¢ descontinuas. O que nao desenvolvemos neste livro foi uma concepgao dos agentes coletivos de enun: ciagdo, que pretenderia ultrapassar o corte entre sujeito d enunciagao € sujeito do enunciado. Somos puramente fun- cionalistas: 0 que nos interessa é como alguma coisa anda, funciona, qual € a maquina. Ora, o significante ainda perte ao dominio da questo “o que isso quer dizer”?, € esta ques: vo mesma enquanto questao interdita. Mas para n6s o in- consciente nao quer dizer nada, a linguagem tampouco. O que plica o fracasso do funcionalismo é que tentaram instaura jo em dominios que nao sio os seus — grandes conjuntos estruturados: estes nao podem formar-se, no podem ser for mados da mesma maneira que funcionam. Em compensaga o funcionalismo impera no mundo das micromultiplicidades das micromaquinas, das maquinas desejantes, das forages moleculares. Neste nivel, as mquinas ndo so qualificadas como isto ou aquilo, como uma maquina lingitistica, por exemplo; h4 che-xmentos lingiiisticos em qualquer maquina, junto com outricms elementos. O inconsciente € um micro-in- consciente, ele «molecular, a esquizoandlise ¢ uma microa nilise. A tinica xqguestao € como isso funciona, com intensida- des, fluxos, proxxessos, objetos parciais, todas coisas que nio querem dizer nzawnda, G..D.—Pe-arasamos a mesma coisa de nosso livro. Trata se de saber se elie funciona, e como, ¢ para quem. Ele mesmo uma méquina.... Nao se trata de o reler, sera preciso fazer outra coisa. E nam livro que fizemos com alegria. Nao nos dirigimos aos quisae consideram que a psicanilise vai bem ¢ tem uma visio justa «do inconsciente, Nos nos dirigimos aqueles que acham que toda essa historia de Edipo, castragao, pulsio de morte..., etc- é bem monétona, e triste, um ronrom. Nos nos dirigimos acoss inconscientes que protestam. Buscamos alia- dos. Precisamos: «cle aliados. E temos a impressao de que esses aliados jd existex=n, que eles nao esperaram por nés, que tem muita gente que esté farta, que pensa, sente e trabalha em direcdes andlog.am-s: nZo € questao de moda, mas de um “ar do tempo” mais pr-comfundo, em que pesquisas convergentes esto sendo realizada:s: em dominios muito diversos. Por exemplo em etnologia. Exam psiquiatria. Ou entdo o que faz Foucault: nosso método n:2:0 é 0 mesmo, mas temos a impressio de que nos encontramess com ele em diversos pontos, que nos pare- cem essenciais, camminhos que ele foi o primeiro a tragar. E bem verdade que lermcos muito. Mas desse jeito, um pouco ao aca so. Nosso probless-ma certamente nao é 0 de um retornoa Freud, nem a Marx. N'@iLo é uma teoria da leitura. O que buscamos num livro é a ma==aneira pela qual ele faz passar alguma cois: que escapa aos «<=Sdigos: fluxos, linhas de fuga ativas revolu- cionérias, linhass de descodificacio absoluta que se opdem cultura. Mesme> mo caso dos livros ha estruturas edipianas, cédigos ¢ ligadunm-as edipianas tanto mais sorrateiras quanto sio abstratas, n-atno figurativas. O que encontramos nos gran des romancistas ingleses ou americanos é este dom que os fran- ceses raramente tém, as intensidades, os fluxos, os livros-mé: quina, 0s livros-uso, os esquizo-livros. Nés temos Artaud ¢ uma metade de Beckett. Talvez critiquem nosso livro por set literdrio demais, mas temos certeza de que uma critica dessa vird de professores de literatura, Sera culpa nossa se Lawrence, Miller, Kerouac, Burroughs, Artaud ou Beckett sabem mais de esquizofrenia que os psiquiatras e os psicanalistas? — Voiés nao estardo se expondo a uma critica mais gra- ve? A esquizoandlise que propéem na verdade é uma desand- lise, Talvez digam que vocés valorizam a esquizofrenia de uma maneita romantica e irresponsdvel. E até que tendem a con- fundir o revoluciondrio com o esquizo. Que atitude teriam diante dessas criticas eventuais? G.D./F. G.—Sim, uma escola de esquizofrenia nao se ria mal. Liberar os fluxos, ir cada vez mais longe no artficio: © esquizo é alguém descodificado, desterritorializado. Dito sto, niio somos responsaveis pelos contra-sensos. Sempre ha vera gente interessada em fazé-los propositalmente (vejam os ataques contra Laing ¢ a anti-psiquiatria). Recentemente no PObservateur apareceu um artigo cujo autor-psiquiatra dizia: sou muito corajoso, eu denuncio as correntes modernas d psiquiatria e da anti-psiquiatria, Nada disso. Ele escolheu justo © momento em que a reagdo politica se fortalece contra toda € qualquer tentativa de mudar 0 que quer que seja no hospi tal psiquidtrico e na indtstria farmacéutica. Por trs dos con: tra-sensos sempre ha uma politica. Nos colocamos um pro: blema bem simples, semelhante ao de Burroughs a propésito da droga: ser que € possivel captar a poténcia da droga sem se drogar, sem se produzir como um farrapo drogado? F mesma coisa para a esquizofrenia. N6s distinguimos a esqui zofrenia enquanto processo ¢ a produgao do esquizo come entidade clinica boa para o hospital: os dois esto antes em azao inversa. O esquizo do hospital é alguém que tentou alguma coisa e que falhou, desmoronou. Nao dizemos que 0 revolucionrio seja esquizo. Afirmamos que ha um processc squizo, de descodificacao e de desterritorializacao, que s6 a atividade revoluciondria impede de virar produgao de esqui- zofrenia. Colocamos um problema que concerne a relagao estreita entre o capitalismo e a psicanalise, de um lado, e en- € 05 movimentos revolucionarios ¢ a esquizoanilise, de ou ro. Paranéia capitalista e esquizofrenia revolucionaria; po demos falar assim porque nao partimos de um sentido psiqui trico desses termos, ao contrario, partimos de suas determi nagdes sociais ¢ politicas, de onde decorre sua aplicacao psi- quidtrica apenas em certas condigées. A esquizoandlise tem uum iinico objetivo, que a maquina revolucionaria, a maqui na artistica, 2 maquina analitica se tornem pegas ¢ engrena- ens umas das outras. Para tomar ainda uma vez 0 caso d delitio, parece-nos que ele tem dois polos, um polo paranGi co fascista e um pélo esquizo-revolucionario. Ele nao para de scilar entre esses polos. E isso que nos interessa: a esquize ‘evoluciondria por oposigao ao significante despético. Em odo caso, nao vale a pena protestar de antemao contra os contra-sensos, nao se pode prevé-los nem lutar contra eles quando jé estado feitos. Mais vale fazer outra coisa, trabalhar com aqueles que vo no mesmo sentido. Quanto a ser respo! ssivel ou irresponsivel, no conhecemos esses termos, so no- des de policia ou de psiquiatria forense ENTREVISTA SOBRE MILLE PLATEAUX Libération, 23 de outubro de 1980, entrevista a Christian Descamps, Didier Eribon e Robert Maggiori. CHRISTIAN DESCAMPS — Como esto agenciados ‘6s? O livro Mille plateaux ndo se dirige apen omposto em diversos modos, no sen Tomemos 0 sumari s lobos; 1947 é 0 momento em que Artaud ontra 0 corpo sem 6rgaos; 1874, 0 ano em que Barb a; 1227 éa morte de Ge Schumann... A s aqui sao acon! E como um conjunto de anéis quebrados. Fles podem penetrar uns nos outros. Cada anel, ou cada platé, deveria ter seu clima proprio, seu proprio tom ou seu timbre. um livr de conceitos. A filosofia sempre se ocupou de conceitos, fa- zer filosofia é tentar inventar ou criar conceitos. Ocorre que 08 conceitos tém varios aspectos possiveis. Por muito tempo eles foram usados para determinar 0 que uma coisa é (essén- cia). N6s, a0 contrario, nos interessamos pelas circunstancias de uma coisa: em que casos, onde € quando, como, etc.? Para ns, 0 conceito deve dizer 0 acontecimento, ¢ nao mais a es: séncia. Dai a possibilidade de introduzir procedimentos ro- ‘manescos muito simples em filosofia. Por exemplo, um con. ito como o de ritornelo deve nos dizer em que casos senti- nos necessidade de cantarolar. Ou entdo o rosto: acredita 0S que O rosto é um produto, e que nem todas as socieda- des produzem rosto, embora algumas necessitem produzi-lo, Em que casos ¢ por qué? Cada anel ou platé deve pois tragar um mapa de circunstancias, por isso cada um tem uma data, uma data ficticia, e também uma ilustracao, uma imagem. f um livro ilustrado. Com efeito, 0 que nos interessa sio os modbos de individuagao que ja no so os de uma coisa, de uma pessoa ou de um sujeito: por exemplo, a individuagao de uma hora do dia, de uma regio, de um clima, de um rio ou de um vento, de um acontecimento. E talvez seja um equi voco acreditar na existéncia das coisas, pessoas ou sujeitos. O titulo Mille plateaux remete a essas individuagdes que nao so pessoais nem de coisas. C.D. Hoje em dia o livro em geral, e 0 de filosofia em particular, encont situacao estranba. Por um lado, bores da gloria cel o ar do tempo; por outro, assiste 2 analisar o trabalho, em nome frouxa nogio de ex- pressio. Jean Luc Godard afirma que 0 que importa é menos ivro de éum livro mo tempo, um objeto totalmente erramentas formidavelmente aberta, contanto que se queira ou se precise fazer uso dela no momen- to, Mille plateaux oferece efeitos de conbecimento; mas c ipresenté-lo sem fazer dele um efeito de opiniao, de estrelismo, urinbo quea cada semana “descobre” a obra prima do século? Se déssemos owvido ao barulho emitido pelos ‘osos de plantio, nao teriamos mais necessidade nceitos. Uma vaga subi da por jor Dra, 0 ck uma obra con aposta poderosa —e em —E uma questio complicada. Primeiro, a filosofia nunca steve reservada aos professores de filosofia. E filsofo quem se torna filésofo, isto é, quem se interessa por essas criagdes muito especiais na ordem dos conceitos. Guattari um fildsofo extraordindrio, antes de mais nada e principalmente quando fala de politica, ou miisica. Portanto, precisariamos entender qual 0 lugar, o papel eventual desse género de livro atualmen: te, Num contexto mais geral, seria preciso saber o que se passa hoje no dominio dos livros. Vivemos ha alguns anos um pe riodo de reagdoem todos os dominios. Nao ha raziio para que ela poupe os livros, Estio nos fabricando um espago literario, bem como um espago judicisrio, econdmico, politico, comple: tamente reacionarios, pré-fabricados e massacrantes. Creio que esta em andamento uma operacao sistematica, que o jor nal Libération deveria analisar. A midia desempenha nisso um papel essencial, mas ni exclusivo. E muito interessante, Co: mo resistie a esse espago literario europeu que esta se consti- tuindo? Qual seria o papel da filosofia nessa resisténcia a um terrivel novo conformismo? Sartre tinha um papel excepcio nal e sua morte € um acontecimento muito triste em todos os sentidos. Depois de Sartre, a geracdo a qual pertengo me pa rece ter sido rica (Foucault, Althusser, Derrida, Lyotard, Ser res, Faye, Chatelet, etc.). Agora, o que me parece dificil € situagio dos fildsofos jovens, mas também de todos os jovens escritores, que esto criando alguma coisa. Eles correm o ris co de serem sufocados de antemao, Ficou muito dificil traba- Ihar, porque se montou todo um sistema de “acultura de anti-criagio proprio aos paises desenvolvidos. f hem que uma censura. A censura provoca efervescéncias nas a reaciio quer tornar tudo impossivel, Esse periodo de seca nao vai durar necessariamente muito. Provisoriamente quase que s6 podemos opor-lhe redes. Entdo, a questo que nos interessa a propésiste=o sale Mille plateaux é se ha ressonin- cias, causas comuns coma: <=aquilo que buscam ou fazem outros escritores, misicos, pintscomnes, filésofos, socidlogos, de tal modo que se possa ter mais fcor=x¢: longo dos capitulos dedicados a ela (“Postulados da lingiiist=ic—=av~”, “Sobre alguns regimes de signos") sao elaborados conceitcas= modo atravessam todos os outros “plats”. Por outro ladon... «= trabalho que vocés rea as teorias de Chomsky, Fr maaaP=0v, Hjemslev ou Benveniste poderia facilmente ser tomado «=crse10um aporte, certamente critico, a lingitstica. E no entanteo, .fifsca claro quea preocupacao de vocés nao é detectar na linguargz=uesen zonas de cientificidade que pode- riam circunscrever a serreaxi-rttica,a sintatica, a fonemética e ow tras “aticas”, mas antess «mclenunciar as pretensoes da lingitsti- cade “fechar a lingua =comd>ere si, ao referir os enunciados aos ficantese as enuncicar¢—advats 20s sujeitos. Como entender entiio importancia atribuidea xe lingitistica? Trata-se de prosseguir na luta empreendida de'=sac4a= © anti-Edipo contra a ditadura do significante de coloragzmic=» Macaniana, e até contra o estrutura- lismo? Ousimplesmentae a..< do mu a n: trever um “real”, que li sem afinidade c rar Mille — Nao, de modo algum. Hoje em dia tornou-se corri- queiro observar a faléncia dos sistemas, a impossibilidade de fazer sistema, em virtude da diversidade dos saberes (*nao se est mais no século XIX...”). Essa idéia tem dois inconvenien tes: jd nao se concebe um trabalho sério sendo sobre pequi nas séries muito localizadas e determinadas; , piot ainda, con fia-se 0 que é mais amplo a um nao-trabalho de vision onde cada um pode dizer qualquer coisa. Na verdade, os sis s nao perderam rigorosamente nada de suas forcas vivas. 1 hoje, nas ciéncias ou em légica, todo o principio de uma teoria dos sistemas ditos abertos, fundados sobre as interagoes que repudiam somente as causalidades lineares ¢ transfor- mam a nogao de tempo, Admiro Maurice Blanchot: sua obra nao sio pequenos pedagos ou aforismos, é um sistema aber to, que construia, antecipadamente, um “espago literario” ca az de se opor ao que nos acontece hoje. © que Guattari e eu chamamos de rizoma é precisamente um caso de sistema aber: Volto a questo: que é a filosofia? Porque a resposta a essa gunta deveria ser muito simples. Todo mundo sabe que a ‘onceitos. Um sistema é um conjunto de conccitos. Um sistema é aberto quando os conceitos sio rela- cionados a circunstincias, e no mais a esséncias. Mas, por um lado, 0s conceitos nao sto dados prontos, eles nao preexistem: € preciso inventar, criar os conceitos, e nisso ha tanta criagéo ¢ invengao quanto na arte ou na ciéncia. Criar novos concei- E que, por outro lado, os conc lidades moda da nuito bem pensar sem conceito obre poca. Ao contrario, luxos de pensamento ordindrios: pode-se ha verdadeiramente filosofia. Nada a Um conceito é cheio de uma forca critica, poli no sao genera- tarefa da so singularidad dade. £ justamente a poténcia do sistem destacar 0 que é bom ou ruim, 0 que é solutamente, tudo depende d cos. Em Mille pl nas desde que haja conceito na ideologia. nao numa construgao de conceitos. Nada ¢ bom ab- uso e da prudénci aux tentamos dizer: o bom nunca esta ga rantido (por exemplo, nao basta um espaco liso para as estrias € as coergdes, nem um corpe e nem um corp palavras complicadas a fim de “ pala aldoso, é idiot a. Um conceito ora a para ser designado, ora se se Em todo caso n sentido singular. parecer chique”. sit ereio que o pensamento fi mportante quant ma nova fi sma ofensa a todo p ria tratar desse pro Mas vocés advertem: o espago liso nao t nos. As linhas de f C =O que chamamos de um “mapa”, ou mesmo um “di rama”, € um conjunto de linhas diversas funcionando ao mesmo tempo (as linhas da mao formam v Com efeito, ha tipos de link erentes, na arte, mas tam. bém numa sociedade, numa pessoa. Hé linhas que represen tam alguma coisa, e outras que sio abstratas. Hé linhas de segmentos, ¢ outras sem segmento. Ha linhas dimensionais ¢ inhas direcionais. Ha linhas que, abstratas ou nao, formam contorno, ¢ outras que nao formam contorno. Aquelas sio as mais belas. Acreditamos que as linhas sao os elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos. Por isso cada coisa tem sua geografia, sua cartografia, seu diagrama. O que ha de interessante, mesmo numa pessoa, sao as linhas que a compéem, ou que ela compoe, que ela toma emprestado ou que ela cria. Por que privilegiar a linha em relacao ao plani ou ao volume? De fato nao ha nenhu gio. Ha espa interviriam nogdes cientificas, como os “objetos fractais” d Mandelbrot). Este ou aquele tipo de linha envolve determi nada formagao espacial e volumosa. Dai sua segunda observacao: nés definimos a “maqui: na de guerra” como um agenciamento linear que se const sobre linhas de fuga. Nesse sentido, a maquina de guerra nao tem absolutamente por objeto a guerra; ela tem por objeto um > muito especial, espaco liso, que ela compée, ocup: 2 maquina de guerra toma a guerra por objeto (quandc parelho: quina de guerra princip maquin jo a mais para ndo se julgar antecipadamente. Pode-se defi nir 0s tipos de linha; dai nao se pode concluir que esta é boa e aquela ruim. Nao se pode dizer que as linhas de fuga sejam forgosamente criadoras; que os espacos lisos sejam melhores que os segmentarizados ou os estriados: como mostra Virili, co submarino nuclear reconstitui um espaco liso a servigo da gucr- -a e do terror. Numa cartografia, pode-se apenas marcar ca ninhos e movimentos, com coeficientes de sorte e de perigo. Eo quechamamosde “esquizoanilise” essa andlise das linhas, dos espagos, dos devires. Parece que é a0 mesmo tempo mui to proximo e muito diferente dos problemas da historia. imentos... Fis-nos tal cig eed iciainespeitchiedlatashOis -omporta uma data: “7000 a.C. — Apa- Ano zero— Rostidade”... Datas f stabelecam a faldvamos. — Que cada platé esteja datado, com uma data ficticia, m importancia maior do que o fato de que estejailus- rado, ou que comporte nomes préprios O estilo telegrafico tem uma poténcia que nao vem s6 de a brevidade. Seja uma proposigdo do tipo: “Julio chegar cinco horas da tarde.” Nao faz. muito sentido escrever assin Mas é interessante se a escrita por si mesma chega a dar esse sentimento de iminéncia, de algo que vai suceder ou ac ba de se passar nas nossas costas. Os nomes préprios designam es, doencas, lugares e momentos, muito antes de designar pes as. Os verbos no infinitivo designam devires ou acontecimento que ultrapassam os modos ¢ os tempos. As datas nao remetem um calendério tinico homogéneo, mas a espagos-tempos que mudam a cada vez... Tudo isso constitui um agenciamento de aunciacdo: “Lobisomens pulular 1730”... etc Il CINEMA ESTOES SOBRE SEIS VEZES DOIS do que du > Godard. £ um lidac é olidac um grande povoamento. De certo modo, trata-se sempre de 1 gago. Nao ser gago em sua fala, mas ser gago da propria linguagem. Geralmente, s6 da para ser estrangeiro numa ov a lingua. Aqui, ao contrario, trata-se de ser um estrangeiro 1m sua prépria lingua. Proust dizia que os belos livros forgo- mente sio escritos numa espécie de lingua estrangeira. Acor tece o mesmo nos programas de Godard; ele até aperfeigoou seu sotaque suigo com essa finalidade. E essa gagueira criat va, essa solidao que faz de Godard uma forga Porque, vocés o sabem melhor do que eu, ele sempre es teve sé. Nunca houve o sucesso-Godard no cinema, como gostariam de fazer crer os que dizem: “Ele mudou, daf em n geral estes S40 os que « diante ja nao é mais o mesmo. detestavam desde o comeco. Godard se antecipou a todo mun: do e deixou em todos sua marca, mas nao pela via do suces- so, antes continuando sua prépria linha, uma linha de fuga tiva, linha o tempo todo quebrada, em ziguezague, subter nea. O fato é que, em relaco ao cinema, conseguiu-se mais ou menos confiné-lo em sua solidao. Fixaram-lhe um lugar. Eis que ele aproveita as férias, um vago apelo a criatividade para ocupar a TV por seis vezes com dois programas. Talvez seja 0 Gnico caso de alguém que nao se deixou enganar pel TV. Em geral ja perdemos antes de comegar. Té-lo-iam per: doado se tivesse mostrado seu cinema, mas nao por fazer essa série, que muda tantas coisas no que toca mais de perto a TV entrevistar pessoas, fazé-las falar, mostrar imagens vindas de outro lugar, etc.). Mesmo que ja nao se fale nisso, mesmo se caso foi abafado, E natural que muitos grupos e associagdes tenham se indignado: o comunicado da Associagao dos jor nalistas, reporteres-fotdgrafos ¢ cineastas € exemplar. Pel menos Godard reavivou 0 édio. Mas também mostrou qui um outro “povoamento” da TV era possive — Esta bem, mas as idéias, ter uma idéia n; gia, éa prética. Godard tem uma bela formula: ndo uma ima- gem jussta, justo uma imagem. Os fildsofos também deveriam dizé-lo, e conseguir fazer: nao idéias justas, justo idéias. Por- que idéias justas sio sempre idéias conformes a significagées minantes ou a palavras de ordem estabelecidas, so sem re idéias que verificam algo, mesmo se esse algo esta por vir, mesmo se é 0 porvir da revolucdo. Enquanto que “justo id as” € proprio do devir-presente, é a gagueira nas idéias; iss 86 pode se exprimir na forma de questdes, que de preferé cia fazem calar as respostas. Ou mostrar algo simples, que quebra todas as demonstraces. Nesse sentido, ha duas idéias nos programas de Godard que nao param de se imbricar uma na outra, de se misturai ou de se separar segmento por segmento. £ uma das razdes pelas quais cada programa é dividido em dois: como na cola priméria, os dois polos, aligdo das coisas e a licao de lin guagem. A primeira idéia diz respeito ao trabalho. Creio que Godard nao para de questionar um esquema vagamente mai xista, que penetrou por toda parte: haveria algo bem abstra. to, como uma “forca de trabalho”, que se venderia ou se com praria em condiges que definiriam uma injustica social fun damental ou, a0 contrario, estabeleceriam um pouco mais ¢ justiga social. Ora, Godard coloca questdes muito concretas, ele mostra imagens que giram em torno disso: O que ao cer to se compra ¢ se vende? O que é que alguns esto dispostos comprar, ¢ outros a vender, que nao é forgosamente a mes- na coisa? Um jovem soldador esta disposto a vender seu tr. palho de sold. nas nao sua forca sexual, tornando-se « amante de uma velha senhora. Uma faxineira esta dispos sender horas de limpeza, mas nao quet vender 0 momento ef que canta um trecho da Internacional, por qué? Porque néo de trabalho. Primeiro, a nogdo mesma de forga de trabalho sabe cantar? Mas se a pagam para falar justamente daquilo isola arbitrariamente um setor, corta o trabalho de sua rela- yue ela nao sabe cantar? E inversamente, um trabalhador 40 com 0 amor, a criagao ¢ até com a producio. Ela faz do relojoaria especializado quer ser pago por sua forca relojoci trabalho uma conservacdo, o contrério de uma criagao, vis- mas se recusa a ser pago por seu trabalho de cineasta ama 10 que se trata para ele de reproduzir bens que séo consumi Jor, seu “hobby”, diz ele. Ora, as imagens mostram que nos dos, e reproduzir sua propria forca, numa troca fechada. Desse dois casos, na linha de produgao da relojoaria e na linha de ponto de vista, pouco importa que a troca seja justa ou in montagem do filme, os gestos so singularmente semelhan: justa, visto que sempre ha a violencia seletiva de um ato de es, a ponto de nos confundir. Nao, diz no entanto o relojoeiro, Pagamento, mistificacao no préprio principio que nos faz existe uma grande diferenca de amor e de generosidade nes: falar de uma forga de trabalho. Se o trabalho fosse separado © que um fotdgrafo, por sua vez, esta disposto a pagar? Em lacao direta com os fluxos de dinheiro, independentemen: certos casos, se dispée a pagar seu modelo, Em outros, é page de qualquer mediagao por uma forca abstrata. Sou ainda por seu modelo. Mas quando fotografa torturas ou uma exe mais confuso que Godard. Tanto melhor, jé que 0 que cont: as paga? De maneira andloga, Guattari propunha num con forca de trabalho nao é inocente, nem nada Sbvia, mesmo andlise que os analisandos fossem pagos pel sobretudo do ponto de vista de uma critica social. As reagées menos tanto quanto os psicanalistas, visto que nao se pode do Partido Comunista, ou de certos sindicatos & série de emis. propriamente dizer que o psicanalista fornega um “servigo es de Godard, se explicam tanto por essas razées quanto vani2didivitadide\trabalhojcvolugaby dale por outras ainda mais visiveis (ele tocou nessa nogdo sacros- o trabalho de escuta e de santa de forca de trabalho. alista, mas também 0 trabalho do incon: depois vem a segunda idéia, que diz respeito a informa sando. A proposta de Guattari parece que ni G40. Pois, também nesse caso a linguagem nos € apresentada nacdo, essencial 1 televisao, em vez de fazé-las pagar, j4 mente como uma troca. Aqui também se mede a informaga através de unidades abstratas. Ora, é improvavel que a prc necem um verdadeiro traba ‘cem, por st ico pablico? A divisio social do trabalho implica que nu fessora, quando explica uma operagao ou ensina a ortografia ja pago o trabalho de produgao, mas tam a escola, esteja transmitindo informagées. Ela manda, da pa ado e o dos laboratorios de pesquisa. Caso co avras de ordem. E fornece-se sintaxe as criangas assim como qu erarios sendo obrigados a ferrament. >peratios, a fim de que pros yuciplanejainteciie ados conform minantes. E bem li 5es e muitas outras, todas mente que € pre Pi a formula de Godard agens € muitas outras, tendem a pulverizar a nogac riangas séo prisioneiros os. A linguagem é um de comando, nao um meio de informagao. Na TV: “Agora va mos nos divertr..., e logo mais as noticias...”. Na verdade, se a preciso inverter o esquema da informatica. A informétic supde uma informacao teérica maxima; no outro polo, colo: ca. puro ruido, a interferéncia; e, entre os dois, a redundan: cia, que diminui a informagao mas Ihe permite vencer 0 rut do. Eo contrario: no alto, seria preciso colocar a redundan: cia como transmissio e repeti¢ao das ordens ou comandos; embaixo, a informacdo como sendo sempre © minimo exigi do para a boa recepgao das ordens; € mais embaixo ainda? Pois bem, haveria algo como o siléncio, ou como a gagueira, ou como o grito, algo que escorreria sob as redundancias eas, nformagdes, que escorracaria a lingu.agem, e que apesar dis- so seria ouvido. Falar, mesmo quando se fala de si, € sempre tomar o lugar de alguém, no lugar de quem se pretende falar a quem se recusa 0 direito de falar. O sindicalista Séguy é boca aberta quando se trata de transmnitir ordens e palavras de ordem. Mas a mulher com a crianga morta também é boca berta. Uma imagem se faz representar por um som, como um, operario por seu sindicalista. Um som toma o poder sobre uma série de imagens. Entao, como chegar a falar sem dar ordens, sem pretender representar algo ou alguém, como conseguir fazer falar aqueles que nao tém esse dineito, e devolver aos sons seu valor de luta contra o poder? Sem diivida € isso, estar na propria lingua como um estrangeiro, tracar para a linguagem uma espécie de linha de fuga Sao “justo” duas idéias, mas dua idéias é muito, ¢ enor ime, elas contém muitas coisas e outras idéias. Pois Godard questiona nogées correntes, a de forc.a de trabalho ea de in formagio. Ele nao diz que seria preciso dar verdade formagées, nem que seria preciso pagar bem a forca de tra balho (ai seriam idéias justas). Ele diz que essas nogdes si0 muito equiv escreve FALSO do lado. Ele disse ha muito tempo que preferiria ser um produtor a ser autor editor de telejornal ao invés de cineasta. Evidentemen ndo quis dizer que desejaria produzir seus proprios filmes, como Verneuil; nem tomar o poder na TV. De preferéncia, fazer um mosaico dos trabalhos, em vez de referi-los a um: tga abstrata; fazer uma justaposico de sub-informacoes, de todas as bocas abertas, em lugar de as referir a uma inform: ¢40 abstrata tomada como palavra de ordem do essas as duas idéias de Godard, sera que el gramas, o das “imagens e s —Nio, a coincidéncia é s6 parcial: forgosamente hé tam bém informagao nas imagens, e trabalho nos sons. Conjun: tos quaisquer podem e devem ser recortados de diversas ma neiras, que s6 coincidem parcialmente. Para tentar reconst ir a relagio imagem-som segundo Godard, seria preciso contar uma historia muito abstrata, com varios episédios, € perceber no fim que essa historia abstrata estava contida do jeito mais simples ¢ mais concreto num Gnico episédic 1. Existem imagens, as coisas mesmas so imagens, por Jo cessam de agir e de reagir entre si, de produzir e de con- sumit, Nao ha diferenca alguma entre as imagens, as c 2. Mas as imagens tém também um dentro, ou, certas imagens tém um dentro, e sao sentidas por dentro. Sao sujei tos (veja-se as declaragdes de Godard sobre Dias ou a a publicada pela Belfond, p. 393 ¢ segs.). Hi com efeito uma defasagem entre a acao sofrida por s imagens ¢ a re xecutada. E essa defasagem que the dé o poder de estocar outras imagens, isto €, de perceber. Mas © que elas estocam é somente o que Ihes interessa nas outras imagens: perceber é subtrair da imagem o que nao nos int ressa, sempre ha menos na nossa percepgio. Estamos tao re pletos de imagens que j4 nao vemos as imagens que nos che- “3, Por outro lado, existem imagens sonoras que parecem algum jo entanto um nao ter privilé tas imagens sonoras, ou algumas delas, tén 50, que se pode chamar como quiser, idéias, sentido, linguagem, tragos de expressao, etc essa via as imagens sonoras adquirem o poder de contrair ou de capturat as outras imagens ou uma série de outras imagens, Uma voz toma o poder sobre um conjunto de imagens (voz de Hitler As idéias, agindo como palavras de ordem, se en- que nos deve interessar nas outras imagens: elas ditam nossa golpe” central que normaliza percepcao. Sempre existe um as imagens, subtraindo o que ndo devemos perceber. Assim se delineiam, gracas a defasagem precedente, como que duas que vai das imagens ex correntes em sentido contrario: uma teriores as percepcdes, a outra que vai das idéias dominantes as percepgoes 4. Portanto, somos tomados numa cadeia de imagens, cada tum no seu lugar, cada um sendo ele mesmo imagem; mas a de idéias, que agem co ambém somos tomados numa trai mo palavras de ordem. Por conseguinte, a acio de God: imagens € sons”, vai a um s6 ten um lado, restituir as imagens exteriores seu pleno, fazer com que nao p m que a percepgio seja 1 as imagens tudo o que clas tém; 0 que j4 éuma maneira de lutar contra tal ou qual poder e seu! jolpes. Por outro lado, desfazer a linguagem como tomada de poder, fazé-la gaguejar nas ondas sonoras, decompor tod conjunto de idéias que se pretendam idéias “justas” a fim de crair dai “justo” idéias. Talvez haja duas razdes, entre ou. tras, pelas quais Godard faz um uso ti E um pouco como certos miisicos atuais: eles instauram un | | | plano fixo sonoro gracas ao qual tudo sera ouvido na m P 8 1! 4 ouvido na msi ca, E quando Godard introduz na tela um quadro bre o qual escreve, nao faz.dele um objeto de filmagem faz do quadro negro e da escrita um novo meio televisivo, substincia de expressiio que tem sua propria corrente, em relagdo a outras corrent ela Toda essa histéria abstrata em quatro episédios tem um aspecto de ficgo cientifica. E nossa realidade social hoje. O curioso é que essa histéria coincide em alguns pontos com 0 que Bergson dizia no primeiro capitulo de Matéria e mems ria, Bergson passa por um filésofo sensato, e que perdeu a novidade. Seria bom que cla Ihe fosse restituida pelo cinema ou pela televisao (deveria e ues - LD.H.E.C teja). O primeiro capitulo de Matéria e m Hautes E ralemes uma espantosa concepcio da fotografia e do movimento no t afia existe, jé foi obtida, jd foi tirada, no préprio interio Nao quer das coisas e de todos 0s pontos do espaco..., etc dizer que Godard seja be ando Be réprio camin mesmo Godard reno on, mas encontrando jele em seu ao renovar a televis: estdo fingind. € assim, Godard nao é um dialético. O que conta para ele nad €020u03,0 E O uso do E em Godard ¢ pensamento ¢ ssencial. E importante, porque todo , pelo E. A filo ou sua irredutibilidade. M ‘empre do verbs

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