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05/04/2021 DONALD TRUMP & OS FILÓSOFOS | G@vet@s @bert@s

G@vet@s @bert@s
Eurico de Carvalho é, desde 1990,
professor de Filosofia do Ensino
Secundário, tendo adquirido os graus de
Licenciado (1989), Mestre (2009) e
Doutor (2018) na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. É também
investigador do «Research Group
Aesthetics, Politics and Knowledge» do
Instituto de Filosofia da Universidade do
Porto, no quadro do qual tem
desenvolvido e publicado o seu trabalho
em torno do pensamento de Guy
Debord.

DONALD TRUMP & OS FILÓSOFOS


Publicado em 20 de Julho de 2018 por Eurico de Carvalho

Mais de cem dias são transcursos já sobre a tomada de posse de Donald Trump. Milhares de palavras foram
gastas, entretanto, com o episódio («inexplicável», segundo alguns) da eleição presidencial do multimilionário
norte‑americano. Ora, à revelia das «bolhas de sabão» dos media e das sondagens, não só pretendemos
demonstrar a plausibilidade da vitória de Trump, mas também a sua evidência «democrática». Em vez das
avenças tribunícias e hebdomadárias da paróquia das letras lusitanas, vamos convocar a voz maior, para o efeito,
de Platão, Bacon, Marx e Nietzsche. Cada um destes gigantes da tradição intelectual do Ocidente pode ajudar‑nos
a compreender, de facto, o que tantas penas da praça pública julgaram ser incompreensível: a singularidade
ontológica correspondente ao quadragésimo quinto Presidente dos Estados Unidos da América.

Assim sendo, num registo que combina o doce tom do didactismo com o fio agreste da polémica, vamos desdobrar
quatro teses e os argumentos que as sustentam. Nelas, todavia, não há que ver a súmula do «pensamento político»
dos autores que citámos. Trata‑se, antes, de fazer um uso instrumental das suas ideias‑chave sobre a sociedade e o
homem, de modo que se evidencie, pelo menos, a base antropológica da «ilusão democrática».

TESE 1: A VITÓRIA DE TRUMP NÃO TERIA SURPREENDIDO PLATÃO

Toda a gente conhece o desprezo de Platão pela democracia [cf. A República, 492b‑c]. Em tal regime, de acordo
com o seu argumento nuclear, cuja exposição se faz no sexto livro dessa obra‑prima, não é possível garantir, à
partida, que sejam os melhores, realmente, a governar. Torna‑se até provável, pelo contrário, o preciso avesso
desse anseio universal. Como a conquista do poder depende, desde logo, do voto dos eleitores, quem governa não
é necessariamente o mais apto para o cargo, mas tão‑somente aquele que consegue persuadir a maioria. Na
verdade, são fatalmente díspares, para Platão, as competências que então se exigem, quer num caso (ser governo)
quer noutro (ganhar eleições). «Onde está — perguntar-se-á — a fatalidade?» Na impossibilidade pedagógica,
segundo ele, de que essas mesmas competências se conjuguem, de facto, numa única pessoa. Seria preciso, afinal,
que os reis se tornassem filósofos — ou que estes últimos, por sua vez, viessem a ser os primeiros [cf. Rep.,
473c‑e/499b‑c]. Neste pessimismo antropológico, de resto, ressoa, por certo, a memória da morte do seu mestre e,
consequentemente, a eficácia retórica dos demagogos, da qual advém o «esmagamento democrático» da
capacidade técnica dos especialistas [cf. Rep., 469b‑c]. Daqui resulta igualmente o corolário platónico de que a
democracia se constitui como a pior organização constitucional da comunidade humana, porquanto incrementa a
mentira (i.e.: a manipulação do povo, de que as «notícias falsas» se erigem como o derradeiro avatar do nosso
tempo), a corrupção (subjacente à urgência de seduzir o máximo número de votantes) e a incompetência
governativa, de que Donald Trump emerge presentemente como inenarrável e supremo exemplo.
https://euricodecarvalho.wordpress.com/2018/07/20/donald-trump-os-filosofos/ 1/3
05/04/2021 DONALD TRUMP & OS FILÓSOFOS | G@vet@s @bert@s

TESE 2: A CAVERNA E O MERCADO FORAM AS MOLAS DA CAMPANHA DE TRUMP

No primeiro livro do Novum Organum (I, 38‑44), Francis Bacon, filósofo e estadista inglês, procede, em 1620, à
identificação, que se tornou célebre, de quatro superstições da mente humana (a que ele chama «ídolos»: da tribo,
da caverna, do mercado ou do foro e, ainda, do teatro), das quais devemos destacar, para o nosso propósito, a
segunda e a terceira. Com os «ídolos da caverna», cuja designação alude à respectiva alegoria platónica, Bacon
denuncia o encerramento subjectivo do espírito, i.e., que resulta da influência fantasmal de preconceitos e hábitos
pessoais (advenientes, por conseguinte, da constituição idiossincrática de cada indivíduo e da sua educação). Já
num plano intersubjectivo, por outro lado, Bacon também critica os «ídolos do mercado», ou seja, as distorções
cognitivas que ele assaca ao uso indevido da linguagem e, em especial, à confusão entre palavras e coisas, de que é
farto sintoma o fenómeno intelectual da reificação.

Para ilustrar esses desvios «idolátricos» do pensamento, haverá melhor momento do que uma campanha eleitoral
de cariz populista? (Como a resposta é óbvia, podemos passar à devida ilustração.) Tendo bem presente a corrida
presidencial de Trump, impõe‑se a desmontagem dos seus principais «ídolos»: o simplismo da mensagem
mediática («Make America great again!»), o seu enquadramento paroquial («America First!») e o respectivo
avesso, i.e., a diabolização do outro (por exemplo: a assimilação do emigrante mexicano a um «ladrão de
empregos americanos» e a assunção de que um refugiado muçulmano passa por ser, em primeiro lugar, um
potencial terrorista). Como estamos a ver, acumulam‑se, em plena praça pública, impressionantes slogans e
sound bites, sendo eles, pelo seu imediatismo, um fértil viveiro de «ídolos», de que as redes sociais são hoje, sem
dúvida, o dispositivo que facilita a sua instantânea disseminação.

TESE 3: O TÍPICO ELEITOR DE TRUMP É UM SUJEITO COM FALSA CONSCIÊNCIA

Como é que se explica que tantos estado‑unidenses (v.g.: operários, pobres e desempregados) tenham votado num
multimilionário? Trata‑se claramente de um caso de falsa identificação, cuja estrutura mental potencia, como é
sabido, a despersonalização e, concomitantemente, a tribalização. Com vista à produção desse efeito, o discurso de
Trump faz‑se — assumidamente — em nome de um nacionalismo xenófobo, organizando‑se, portanto, em torno
da oposição entre «nós» e «eles», com a consequente assunção de um culto inconsciente, maquinal e totémico da
identidade. Para Marx, bloqueia‑se assim, i.e., ideologicamente, a tomada de consciência de classe, sem a qual, de
facto, não pode haver o reconhecimento subjectivo da miséria nem, por conseguinte, a motivação para lutar
politicamente pela sua superação. Mas a psicologia colectiva possui forças, sem dúvida, que o próprio marxismo,
em prol de uma irmandade internacional de proletários, acaba infaustamente por recalcar. Daí que seja recorrente
o «retorno do recalcado», i.e., das pulsões destrutivas que impedem o reconhecimento, por parte dos
trabalhadores, de uma mesma comunidade de interesses, quer sejam negros ou brancos, homens ou mulheres,
nacionais ou estrangeiros. Disso é prova bastante, certamente, a notória adesão do «Cinturão de Ferrugem» (Rust
Belt) à campanha eleitoral de Donald Trump.

TESE 4: O VOTO EM TRUMP TORNOU-SE A ARMA DO RESSENTIMENTO

É a globalização, claro está, o acontecimento que singulariza epocalmente o nosso destino (planetário, doravante).
Ora, precisamente, situa‑se entre os seus deserdados, como sabemos, o maior número de apoiantes de Donald
Trump. Trata‑se de uma grande vaga reactiva, cuja motivação básica, segundo o Nietzsche d’A Genealogia da
Moral (I, 10), não é senão o ressentimento, i.e., o «Não!» dos impotentes e oprimidos. Não podemos reduzir esse
fenómeno psicológico, porém, à mera condição nosográfica de uma patologia da vontade, de que é sintoma a
passividade de inúmeras vítimas do reino autocrático da economia capitalista. No ressentimento, com efeito,
também devemos ver uma força vingativa, a qual, ainda que opere dissimuladamente, não deixa de ser
socialmente eficaz. Se outros testemunhos não houvesse do que temos dito, tanto individual como colectivamente,
teríamos, pelo menos, o que se viu há poucos meses: a incredulidade dos media tradicionais relativamente à
singularidade ontológica correspondente ao quadragésimo quinto Presidente dos Estados Unidos da América.

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05/04/2021 DONALD TRUMP & OS FILÓSOFOS | G@vet@s @bert@s

Independentemente do contexto original em que operam os conceitos que transplantámos [a saber: (i)
demagogia, (ii) ídolo, (iii) falsa consciência e (iv) ressentimento], cujo campo de aplicação, aliás, não devemos
ignorar [respectivamente, (i) a avaliação constitucional dos regimes políticos, (ii) o inventário propedêutico dos
obstáculos epistemológicos, (iii) a crítica económico‑política das ideologias e (iv) a origem histórico‑psicológica da
moralidade], não se trata de um transplante artificial, tanto mais que é evidente, pelo que acima se lê, o seu valor
heurístico. Por outro lado, não decorre automaticamente das quatro teses, cuja convergência judicativa parece ser
inegável, nada que seja intrinsecamente adverso, do ponto de vista do autor, às virtudes republicanas da
organização democrática da sociedade. Com a presente análise, enfim, apenas se pretende exibir a dificuldade
máxima com que esse modelo se confronta estruturalmente: a necessidade última de garantir a correspondência
entre a sua forma abstracta (a igualdade de todos os cidadãos perante a lei) e o seu conteúdo substancial (a
liberdade negativa dos agentes civis). Aqui reside, é certo, o monumental «nó górdio» da democracia. Em vez de
um Alexandre, porém, quem temos perante nós? Donald (hélas!) Trump.

Eurico de Carvalho

In A Vaca Malhada, n.º 11 (Primavera de 2017), pp. 20‑21.

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