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em extinção
Claudia Alexandre2
Introdução
Este texto tem como objetivo trabalhar o tema de mulheres negras e o espaço
radiofônico, mostrando que mulheres negras participaram ativamente da história social do
rádio no Brasil e não há nenhum estudo sobre esse dado. Assim, nos aproximando das
reflexões e provocações suscitadas no curso Representação, Imaginário e Imagens de
Mulheres Negras, com Rosane Borges3 abordamos esse tema, que também dialoga
diretamente com a minha atuação profissional em emissoras de rádio de São Paulo,
principalmente em programas de alcance e conteúdo popular, especialmente voltados para o
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A narrativa é construída no pensamento de Stuart Hall (2016). Esteriotipagem [...] reduz as pessoas a
algumas poucas características simples e essenciais, que são representadas como fixas por natureza. P.
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Jornalista, Produtora de Conteúdo Digital, Especialista e Mestre em Ciência da Religião (PUC);
Doutoranda em Ciência da Religião (PUC-SP). Estuda Africanidades Culturais e afroreligiosidades.
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Ministrado on-line pela plataforma zoom no link do Centro Cultural Barco, entre 2 e 23 de maio de
2020
samba e a cultura negra. Em especial destaco três fases distintas do meu percurso no rádio, o
início em 1988, o primeiro emprego em uma emissora AM, informativa e de entretenimento
como repórter do programa Rede Nacional do Samba, cujo o apresentador era um homem
negro. Em 1992, como apresentadora da Radio Transcontinenal FM, onde atingi reconhecido
sucesso, ficando quatro anos em primeiro lugar, na cidade de São Paulo e região
metropolitana, atingindo diariamente cerca de 450 mil ouvintes/minutos. Em 2018, como
empreendedora e âncora da rádio digital, BR Brazil, com uma programação 24 horas de
samba. Há 30 anos, sou uma das únicas mulheres negras, jornalistas, que permanece
disputando espaço nesse lugar altamente competitivo machista, racista e em extinção.
As macacas de auditório
Foi em um desses programas4 que em 1953, que surgiu a cantora Elza Soares. Com
apenas 13 anos, com o filho doente, sem ter o que comer ela viu no concurso de calouro de
Ary Barroso, na rádio Tupi (RJ) uma chance de ganhar dinheiro. Sem ter uma roupa
“apresentável” para ir ao programa, a cantora conta que usou um vestido da mãe, bem maior
que ela. Ao chegar entrar para cantar, ela lembra de ver toda a plateia rindo, foi quando o
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www.mdemulher.abril.com.br/planetafomeahistóriasurreal. 21/05/2020
apresentador fez a “infeliz”pergunta: “De que planeta você veio minha filha?”. Mesmo com as
pessoas rindo com a pergunta ela não teve dúvidas em responder: “do mesmo planeta que
você seu Ary. Do planeta fome”. Ela cantou. Foi nesse dia que ela foi consagrada por Ary
Barroso: “Senhoras e senhores, nesse momento nasce uma estrela”.
Hall (2016, p. 192) diz que a estereotipagem tende a ocorrer onde existem enormes
desigualdades de poder, e que é geralmente dirigido contra um grupo subordinado ou
excluído, “e um dos aspectos, de acordo com Dyer, é o etnocentrismo 5. O termo “macaca de
auditório” remete a essas mulheres que frequentavam os programas de auditório das
emissoras de rádio. Porque eram alegres, falantes, “entusiastas de cantores de rádio e
televisão e que frequenta os programas de auditório” 6. Werneck (2013) diz que essas mulheres
“submersas na expressão pouco lisonjeira, são mulheres dotadas de características especiais:
sua presença e participação nos auditórios dos programas musicais radiofônicos chamou
atenção, mereceu destaque, virou expressão dicionarizada”. Para a autora, ao criar o termo
para definir as participantes dos programas de rádio nas décadas de 40 e 50, “Nestor Holanda,
talvez não tivesse consciente da amplitude discursiva de sua criação. Macaca, macaco, têm
sido ao longo dos anos do racismo entre nós, termos pejorativos para definir de modo ofensivo
e inferiorizante a pessoa negra. Animalização, desumanização e discriminação se associam a
este recurso, que habita o cotidiano e o senso comum da sociedade brasileira”.
Neste caso vimos a mulher negra ser destituída da nobreza da convidada, da ouvinte
consumidora, da personalidade no auditório. Seu corpo ali como consumidora de produtos
culturais, destaca-se pelos “excessos – de gesticulação, de ruídos, de expressão – buscando
destacar o seu oposto, a falta de: modos, de recato, de elegância, de contenção, prescritos às
boas mulheres da época. E principalmente, a falta de pertencimento” 7.
Neste contexto me remeto há 1996, quando fui convidada, para ser jurada em um
programa de calouros de grande audiência, comandado pelo apresentador Raul Gil (TV
Record). Na época, eu era uma das principais vozes do rádio de São Paulo. Com certeza,
poucas pessoas sabiam que eu era mulher negra, incluindo a diretora do programa que me
convidou por telefone. Convite aceito. Ao chegar à emissora, no dia marcado, fui levada por
uma produtora ao camarim, onde fiquei por um longo tempo, aguardando o horário de ir ao
estúdio. Tempo esse que foi interrompido, duas vezes, pela abertura da porta, por uma mulher
loira, me olhava, ignorava e saia. Até que minutos antes do início a produtora volta
acompanhada da mulher loira, reafirmando que eu estava ali sim. A mulher, que era a diretora
que tinha me ligado, se surpreendeu comigo e só conseguiu balbuciar: “nossa é você? Pelo
rádio você tem a voz de uma mulher gorda e baixa!”. Minha reação foi buscar meus
pensamentos e me questionar, que se minha voz tivesse cor, talvez não teria sido convidada.
Até quando?
A pesquisa foi publicada sob o título Brancos e Negros em São Paulo, pela Cia. Editorial
Nacional, na Coleção Brasiliana (1959), depois que a Unesco declinou de lançar oficialmente o
resultado do levantamento, de quase 500 páginas. Nesta época, a sociedade brasileira se via
às voltas com o aparecimento da televisão, que ameaçava a potência das emissoras de rádio 8
e em pouco tempo seria um grande marcador do preconceito estético. Os padrões de beleza
trazidos pela imagem ditariam o que seria belo, o que seria feio ou aceitável, para ser exposto
ao público.
Um dos dados que a pesquisa apontou com ineditismo naquele momento, é que havia
dois espaços de ascensão profissional para o negro na sociedade, o futebol e o rádio. O lugar
do esporte estava atrelado ao esforço muscular e ao gingado do corpo negro. No caso do
espaço radiofônico, a especial habilidade para o manuseio técnico e artístico (humoristas,
cantores, cantoras, instrumentistas) muito bem-vindos no início, quando o veículo se valia
desses profissionais para a produção de publicidade, programas e radionovelas ao vivo.
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A radiodifusão surge na cena brasileira em 1922, como produto de elite para elite, e pelas mãos do
antropólogo Roquette Pinto (fundador da Radio Sociedade RJ – 1923). O rádio imediatamente começa a
sua trajetória de mudança; A elite se afasta e o rádio é acolhido pelas camadas populares, se
transformando em um veículo de massa. A TV surge como uma extensão do rádio (imagem + som) em
1923, e se populariza no Brasil, a partir de 1948 (Olavo Bastos Freire, Juiz de Fora – MG). O rádio vive
sua época de outro em 1962, quando o Brasil ocupa o primeiro lugar em número de emissoras, 934
prefixos.
da radiodifusão em São Paulo. Era justamente o rádio, vetor da magia comunicacional,
amplificador de vozes, romantizador do imaginário, um espaço de mobilidade profissional de
cor no campo artístico-musical. Segundo o autor, havia no momento de alta popularização do
rádio uma combinação entre interesses da política cultural com a massificação da tradição
musical associada às manifestações negras.
Para negros e negras, o rádio se tornou uma das raras oportunidades de inserção na
estrutura global e de partícipe da função do veiculo de comunicação dentro de três segmentos
principais: publicitário, recreativo e informativo. [...]possível nele reconhecer aquele
mecanismo que em dado instante da vida brasileira representou o foco canalizador e
redistribuidor do preto para outras esferas ocupacionais do amplo campo artístico nacional, no
qual se inscrevem o teatro, o cinema, as gravadoras, os clubes noturnos e mais recentemente
as estações televisoras”. (PEREIRA, 1966, p. 22)
Mas, por sua vez, ao se popularizar o radio vai atuar sobre categorias de sujeitos que
compõem uma macroestrutura ou estrutura radiofônica 9, entre eles os ouvintes A categoria
ouvinte, que nos interessa, é composta de milhares de pessoas, o que se chama de audiência.
Sem audiência seria impossível a existência da história do rádio. Mulheres negras fizeram a
história social do rádio no Brasil, mas ninguém fala disso!
Referências bibliográficas
Bell hooks. O Feminismo é pra todo mundo. Tradução Ana Luiza Libâno. Rio de Janeiro: Editora
Rosa dos Tempos, 4ª ed. 2019.
BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Cia
Editora Nacional, Coleção Brasiliana, v. 305, 2ª. ed., 1959
PEREIRA, João Baptista Borges. Cor, Profissão e Mobilidade: O Negro e o Rádio de São Paulo.
SP: EDUSP, 2001
NOTA: Os auditórios foram criados na cidade a partir de 1935. Essa modalidade de lazer
começou com a Rádio
Kosmos, que inaugurou o primeiro auditório em 1935, inicialmente como uma espécie de clube de
elite, mas que
logo fo
i obrigado a abri-lo às massas em busca de diversões gratuitas (Pereira op. cit. 61).
168 Revista do Rádio Nº456, 7-6-1958, p.5-7