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De macaca que grita à mulher negra que fala: a estereotipagem 1 numa sociedade radiofônica

em extinção

Claudia Alexandre2

... Em suma, a estereotipagem é aquilo que Foucault


chamou de uma espécie de “poder/conhecimento”do
jogo. Por meio dela, classificamos as pessoas segundo
uma forma que definimos como o Outro.

Hall, 2016, p. 192

Mulheres negras era maioria nas plateias dos programas de rádio

Introdução

Este texto tem como objetivo trabalhar o tema de mulheres negras e o espaço
radiofônico, mostrando que mulheres negras participaram ativamente da história social do
rádio no Brasil e não há nenhum estudo sobre esse dado. Assim, nos aproximando das
reflexões e provocações suscitadas no curso Representação, Imaginário e Imagens de
Mulheres Negras, com Rosane Borges3 abordamos esse tema, que também dialoga
diretamente com a minha atuação profissional em emissoras de rádio de São Paulo,
principalmente em programas de alcance e conteúdo popular, especialmente voltados para o
1
A narrativa é construída no pensamento de Stuart Hall (2016). Esteriotipagem [...] reduz as pessoas a
algumas poucas características simples e essenciais, que são representadas como fixas por natureza. P.
190
2
Jornalista, Produtora de Conteúdo Digital, Especialista e Mestre em Ciência da Religião (PUC);
Doutoranda em Ciência da Religião (PUC-SP). Estuda Africanidades Culturais e afroreligiosidades.
3
Ministrado on-line pela plataforma zoom no link do Centro Cultural Barco, entre 2 e 23 de maio de
2020
samba e a cultura negra. Em especial destaco três fases distintas do meu percurso no rádio, o
início em 1988, o primeiro emprego em uma emissora AM, informativa e de entretenimento
como repórter do programa Rede Nacional do Samba, cujo o apresentador era um homem
negro. Em 1992, como apresentadora da Radio Transcontinenal FM, onde atingi reconhecido
sucesso, ficando quatro anos em primeiro lugar, na cidade de São Paulo e região
metropolitana, atingindo diariamente cerca de 450 mil ouvintes/minutos. Em 2018, como
empreendedora e âncora da rádio digital, BR Brazil, com uma programação 24 horas de
samba. Há 30 anos, sou uma das únicas mulheres negras, jornalistas, que permanece
disputando espaço nesse lugar altamente competitivo machista, racista e em extinção.

Do auge ao declínio, o rádio no Brasil acaba de completar 98 anos de operação, num


país onde mais se consumiu programação radiofônica. De acordo com dados do IBOPE/Media
em 2019, mais de 80% dos brasileiros afirmava que ainda escuta rádio pelo aparelho comum,
20% pelo celular, 4% por outros equipamentos e 3% pelo computador, com a projeção de que
os smathphones já estejam na preferência de mídia por boa parte das pessoas. Ao longo do
tempo, sob ameaça constante de sumiço, o veículo foi sofrendo transformações passando do
AM para o FM, e agora as rádios digitais já não são mais o futuro. Vários países da Europa e da
Ásia avaliam parar com as transmissões em FM, assim como a Noruega onde só há canais
digitais desde 2017.

A mobilidade e as barreiras profissionais enfrentados por negros e negras no espaço


radiofônico paulista foram estudados na década de 60 por Pereira (2001), que apontava o
rádio como oportunidade de inclusão racial, no mercado de trabalho. Porém, não isento de
manifestações de racismo. Com sua estrutura dinâmica, o rádio participa da vida sócio-
economica do país como um veículo que dinamiza a informação, mexe com os imaginários, a
partir de vozes confinadas. O corpo, a estética não são pensados. Entre funções técnicas,
administrativas o topo da visualização que o rádio oferece é para a bela e carismática voz.
Assim, cantores negros e cantoras negras foram absorvidos nesse espaço, nas primeiras
décadas do rádio, nas radio-novelas e em programas de auditório.

As macacas de auditório

Sobre a audiência na história do rádio em São Paulo, a década de 50 é marcada pela


presença e participação vibrante de mulheres negras, nas plateias dos programas ao vivo.
Composta por uma maioria de donas de casas, babás e empregadas domésticas, a audiência
das radionovelas e shows de calouros garantiam os melhores faturamentos comerciais das
emissoras. Estranhamente nos estudos sobre a história do rádio não se encontra “nenhuma
investigação sistemática feita no Brasil sobre essa categoria social” (PEREIRA, 2001, p. 69)
chamada ouvintes, principalmente porque eram fundamentais para a realização dos
programas de auditório.

Foi em um desses programas4 que em 1953, que surgiu a cantora Elza Soares. Com
apenas 13 anos, com o filho doente, sem ter o que comer ela viu no concurso de calouro de
Ary Barroso, na rádio Tupi (RJ) uma chance de ganhar dinheiro. Sem ter uma roupa
“apresentável” para ir ao programa, a cantora conta que usou um vestido da mãe, bem maior
que ela. Ao chegar entrar para cantar, ela lembra de ver toda a plateia rindo, foi quando o
4
www.mdemulher.abril.com.br/planetafomeahistóriasurreal. 21/05/2020
apresentador fez a “infeliz”pergunta: “De que planeta você veio minha filha?”. Mesmo com as
pessoas rindo com a pergunta ela não teve dúvidas em responder: “do mesmo planeta que
você seu Ary. Do planeta fome”. Ela cantou. Foi nesse dia que ela foi consagrada por Ary
Barroso: “Senhoras e senhores, nesse momento nasce uma estrela”.

Hall (2016, p. 192) diz que a estereotipagem tende a ocorrer onde existem enormes
desigualdades de poder, e que é geralmente dirigido contra um grupo subordinado ou
excluído, “e um dos aspectos, de acordo com Dyer, é o etnocentrismo 5. O termo “macaca de
auditório” remete a essas mulheres que frequentavam os programas de auditório das
emissoras de rádio. Porque eram alegres, falantes, “entusiastas de cantores de rádio e
televisão e que frequenta os programas de auditório” 6. Werneck (2013) diz que essas mulheres
“submersas na expressão pouco lisonjeira, são mulheres dotadas de características especiais:
sua presença e participação nos auditórios dos programas musicais radiofônicos chamou
atenção, mereceu destaque, virou expressão dicionarizada”. Para a autora, ao criar o termo
para definir as participantes dos programas de rádio nas décadas de 40 e 50, “Nestor Holanda,
talvez não tivesse consciente da amplitude discursiva de sua criação. Macaca, macaco, têm
sido ao longo dos anos do racismo entre nós, termos pejorativos para definir de modo ofensivo
e inferiorizante a pessoa negra. Animalização, desumanização e discriminação se associam a
este recurso, que habita o cotidiano e o senso comum da sociedade brasileira”.

Neste caso vimos a mulher negra ser destituída da nobreza da convidada, da ouvinte
consumidora, da personalidade no auditório. Seu corpo ali como consumidora de produtos
culturais, destaca-se pelos “excessos – de gesticulação, de ruídos, de expressão – buscando
destacar o seu oposto, a falta de: modos, de recato, de elegância, de contenção, prescritos às
boas mulheres da época. E principalmente, a falta de pertencimento” 7.

Neste contexto me remeto há 1996, quando fui convidada, para ser jurada em um
programa de calouros de grande audiência, comandado pelo apresentador Raul Gil (TV
Record). Na época, eu era uma das principais vozes do rádio de São Paulo. Com certeza,
poucas pessoas sabiam que eu era mulher negra, incluindo a diretora do programa que me
convidou por telefone. Convite aceito. Ao chegar à emissora, no dia marcado, fui levada por
uma produtora ao camarim, onde fiquei por um longo tempo, aguardando o horário de ir ao
estúdio. Tempo esse que foi interrompido, duas vezes, pela abertura da porta, por uma mulher
loira, me olhava, ignorava e saia. Até que minutos antes do início a produtora volta
acompanhada da mulher loira, reafirmando que eu estava ali sim. A mulher, que era a diretora
que tinha me ligado, se surpreendeu comigo e só conseguiu balbuciar: “nossa é você? Pelo
rádio você tem a voz de uma mulher gorda e baixa!”. Minha reação foi buscar meus
pensamentos e me questionar, que se minha voz tivesse cor, talvez não teria sido convidada.
Até quando?

Negros e negras nos espaços radiofônicos

Quando as relações étnico-raciais entre brancos e negros na cidade de São Paulo


foram objeto de estudo dos sociólogos Roger Bastide e Florestan Fernandes, na década de 50,
5
A aplicação das normas da própria cultura para a dos outros (Brown, 1965: 183), Hall, 2016, p. 192
6
Dicionário Aurélio. Macacas-de-auditório
7
Jurema Werneck, 2013. www.geledes.org.br/macacasdeauditorio 21/05/2020
descortinou-se, para bons entendedores, uma sociedade brasileira onde definitivamente a
falaciosa democracia racial não tinha lugar. O projeto já estava quase pronto quando a
UNESCO e a USP fecharam a parceria para financiar a pesquisa, que foi criticada por expor
para as sociologias etnocêntricas um Brasil em “estado de conflito”, acusada de exagerar no
emprego de conceitos sobre “preconceito e discriminação que não haviam sido considerados
sistematicamente”. Mais do que isso, remexeu sobrevivências da sociedade escravista diante
de inovações da sociedade capitalista, que negava oportunidades de mobilidade profissional
para homens negros e mulheres negras.

Observou-se, entre outros aspectos dificuldades como barreiras profissionais,


estereótipos da classe patronal, da ideologia dos brancos em suas relações com a
gente de cor, no setor industrial e comercial [...]A côr permanece um assunto tabu.
Predominam as formas polidas: "falta de lugar", "o lugar acaba de ser preenchido", "no
momento não há nenhuma possibilidade", "queiram deixar-nos o seu enderêço, assim
que aparecer alguma coisa, escreveremos". Mas ninguém se ilude, e mal o negro se
afasta, o lugar "já preenchido" é dado ao primeiro branco, ainda que menos capaz.
(BASTIDE e FERNANDES, 1959, p. 190)

A pesquisa foi publicada sob o título Brancos e Negros em São Paulo, pela Cia. Editorial
Nacional, na Coleção Brasiliana (1959), depois que a Unesco declinou de lançar oficialmente o
resultado do levantamento, de quase 500 páginas. Nesta época, a sociedade brasileira se via
às voltas com o aparecimento da televisão, que ameaçava a potência das emissoras de rádio 8
e em pouco tempo seria um grande marcador do preconceito estético. Os padrões de beleza
trazidos pela imagem ditariam o que seria belo, o que seria feio ou aceitável, para ser exposto
ao público.

Um dos dados que a pesquisa apontou com ineditismo naquele momento, é que havia
dois espaços de ascensão profissional para o negro na sociedade, o futebol e o rádio. O lugar
do esporte estava atrelado ao esforço muscular e ao gingado do corpo negro. No caso do
espaço radiofônico, a especial habilidade para o manuseio técnico e artístico (humoristas,
cantores, cantoras, instrumentistas) muito bem-vindos no início, quando o veículo se valia
desses profissionais para a produção de publicidade, programas e radionovelas ao vivo.

O futebol, o rádio e agora também o teatro constituem esferas de sucesso marcante


para os negros. A ideia de que os pretos são especialmente dotados para “certas
coisas”, está substituindo as antigas noções de que o seriam “para nada”, ou que o
seriam, mas no mau sentido, ou de que só seriam aproveitáveis no serviço doméstico”.
(BASTIDE e FERNANDES, 1959, p. 357)

Nesta mesma época, quem se ocupou do fenômeno cor e profissão no meio


radiofônico paulistano foi João Baptista Borges Pereira (2001), estudando os primeiros 40 anos

8
A radiodifusão surge na cena brasileira em 1922, como produto de elite para elite, e pelas mãos do
antropólogo Roquette Pinto (fundador da Radio Sociedade RJ – 1923). O rádio imediatamente começa a
sua trajetória de mudança; A elite se afasta e o rádio é acolhido pelas camadas populares, se
transformando em um veículo de massa. A TV surge como uma extensão do rádio (imagem + som) em
1923, e se populariza no Brasil, a partir de 1948 (Olavo Bastos Freire, Juiz de Fora – MG). O rádio vive
sua época de outro em 1962, quando o Brasil ocupa o primeiro lugar em número de emissoras, 934
prefixos.
da radiodifusão em São Paulo. Era justamente o rádio, vetor da magia comunicacional,
amplificador de vozes, romantizador do imaginário, um espaço de mobilidade profissional de
cor no campo artístico-musical. Segundo o autor, havia no momento de alta popularização do
rádio uma combinação entre interesses da política cultural com a massificação da tradição
musical associada às manifestações negras.

Ao redor do rádio, em todos os tempos, sempre houve dois públicos socializadores: o


interno do mercado de trabalho, incluindo os antigos calouros dos programas de auditório; e o
externo, onde estavam os ouvintes, que também podiam assistir ao vivo as edições animadas
de shows e telenovelas. Pereira ( 2001, p. 36) pesquisou os outros agentes que interagiam na
cadeia produtiva do rádio, como “publicitários, compositores, professores de música,
jornalistas, críticos musicólogos, membros de escola de samba, artistas de teatro e de
televisão, anunciantes e com pessoas que pela sua vivência e familiaridade com o meio
artístico-profissional, pudessem dar informações significativas para a pesquisa”.

Para negros e negras, o rádio se tornou uma das raras oportunidades de inserção na
estrutura global e de partícipe da função do veiculo de comunicação dentro de três segmentos
principais: publicitário, recreativo e informativo. [...]possível nele reconhecer aquele
mecanismo que em dado instante da vida brasileira representou o foco canalizador e
redistribuidor do preto para outras esferas ocupacionais do amplo campo artístico nacional, no
qual se inscrevem o teatro, o cinema, as gravadoras, os clubes noturnos e mais recentemente
as estações televisoras”. (PEREIRA, 1966, p. 22)

Mas, por sua vez, ao se popularizar o radio vai atuar sobre categorias de sujeitos que
compõem uma macroestrutura ou estrutura radiofônica 9, entre eles os ouvintes A categoria
ouvinte, que nos interessa, é composta de milhares de pessoas, o que se chama de audiência.
Sem audiência seria impossível a existência da história do rádio. Mulheres negras fizeram a
história social do rádio no Brasil, mas ninguém fala disso!

Referências bibliográficas

Bell hooks. O Feminismo é pra todo mundo. Tradução Ana Luiza Libâno. Rio de Janeiro: Editora
Rosa dos Tempos, 4ª ed. 2019.

BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo: Cia
Editora Nacional, Coleção Brasiliana, v. 305, 2ª. ed., 1959

HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Editora Apicuri/PUC-Rio, 2016

PEREIRA, João Baptista Borges. Cor, Profissão e Mobilidade: O Negro e o Rádio de São Paulo.
SP: EDUSP, 2001

WERNECK, Jurema. Macacas de auditório?. SP: Portal Geledés. 2013.


https://www.geledes.org.br/macacas-de-auditorio/

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


9
Pereira, 2001, p. 67
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS
-
GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
ALEXANDRE ARAUJO BISPO
Os percursos da memória e da integração social:
o arquivo pessoal de Nery e Alice Rezende, mulheres negras em São
Paulo,
(1948
-
1967)

Apesar de não serem fãs, como


a grande maioria das frequentadoras dos programas
de rádio, em função do interesse que tinham pelo rádio, elas podem, em algum
momento, ter
sido enquadradas, mesmo que a contragosto, na categoria “macacas de
auditório” como
aponta a matéria ilustrada da
Re
vista do Rádio
: “Não somos macacas de auditório”, na qual as
entrevistadas rejeitam a designação pejorativa (figura 40)
166
. Usada em tom depreciativo para
definir essas novas con
sumidoras da rádio comercial e seus derivados impressos
-
fotos e
revistas
-
Borges Pereira (op.cit.111) explica que a expressão surge para identificar a
presença
da “mulher de cor” nos auditórios. Tal presença não apenas é acentuada em
comparação com
a do
s homens, como o seu comportamento, continua ele, é “barulhento e
espetaculoso”. Nos
meios radiofônicos elas são rebaixadas a ‘macacas de auditório’, “numa alusão
direta àquelas
generalizações populares que procuram identificar características
negróides a
traços
simiescos” (
idem
, p.112).
Não somos ‘macacas’ de auditório.
Revista do Rádio
, nº456, 7
-
6
-
1958, p.6
-
7

Jurema Werneck, que atribui a expressão ao jornalista, escritor e radialista, Nestor


de
Holanda Cavalcanti (1921
-
1970), indica como “
macaca, macaco, têm sido ao longo dos anos
do racismo entre nós, termos pejorativos para
definir de modo ofensivo e inferiorizante a
pessoa negra” (2013: s/p)
. A autora sugere ainda que se deve olhar para o grande contingente
de mulheres negras nos auditórios das rádios ressaltando sua capacidade
de
agência e seu
protagonismo, e não como meras
figuras manipuladas pela mídia de massa. Nesse sentido
justamente por serem barulhentas e “espetaculosas”, as fãs do rádio se
organizaram para
protestar contra aquilo de que discordavam.
Mas quem eram elas? De quais bairros provinham? Seriam todas
realmen

te empregadas domésticas, como sugere Pereira


(op.cit.113)? Como não são individualizadas na matéria, não tendo seus nomes e
sobrenomes
divulgados, nada podemos saber delas como indivíduos singulares, mas sabemos
que agiram
coletivamente nos auditórios inc
lusive formando um time interracial
167
No
momento em que ainda moravam na Bela Vista, as irmãs Rezende podiam,
se
quisessem, ir aos auditórios das emissoras para acompanharem seus ídolos,
obtendo deles
seus retratos assinados; podiam também ir à redação de algumas das
publicações localizadas
no ce
ntro por onde circulavam, assim como comprar suas publicações prediletas em
bancas de
jornais e revistas.
De todo esse material lido por elas é interessante observar alguns dos temas
tratados
nas letras de música
-
mulheres negras, homens negros, relaçõe
s entre brancos e negros,
trabalho e religiosidade afro
-
brasileira, por exemplo
-
reveladores do momento social e
cultural em que viviam, do lugar subordinado dos negros na ordem social
vigente e do racismo reinante, embora sempre “envergonhado”, como diss

e o jornalista e diretor do Teatro


Experimental do Negro de São Paulo (TENSP) Geraldo Campos de Oliveira
169
.
É possível imaginar que Alice e Nery, ainda jovens, tiveram que encontrar formas
de
lidar com a imaginação social corrente de seu tempo sobre quem eram,
sobre seus corpos,
sobre a cor de suas peles e conduta sexual, tendo que “negociar”,
subjetiva, social e
simbolicamente, com sua condição de mulheres negras, a forma como se viam e
er
am vistas.
Não serem “macacas”, mas apenas fãs de quem admiravam era uma forma de se
colocar no
mundo, de tomar posição.
A ilustração que acompanha a marchinha “Si éssa nega fosse minha...”, gravada
pelo
cantor negro Francisco Egídio (1927
-
2007), é sintom
ática de uma concepção da mulher negra
como sexualmente disponível e de como seus atributos físicos despertavam o
desejo, tanto de
homens negros, quanto, principalmente do branco português. A letra, porém, alerta
para o fato
de que essa mulher só seria ace
itável se passasse por certa reforma corporal expressa pelo
alisamento do cabelo, ou como indica a letra “espichar” o cabelo (figura 41). A
ambiguidade
da situação é que quem canta a música é um homem negro, para quem a
transformação física
da mulher negra
atrairá não ele, mas o português, espécie de parceiro ideal conforme sugere a
letra
170
.

NOTA: Os auditórios foram criados na cidade a partir de 1935. Essa modalidade de lazer
começou com a Rádio
Kosmos, que inaugurou o primeiro auditório em 1935, inicialmente como uma espécie de clube de
elite, mas que
logo fo
i obrigado a abri-lo às massas em busca de diversões gratuitas (Pereira op. cit. 61).
168 Revista do Rádio Nº456, 7-6-1958, p.5-7

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