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A angústia do trabalho numa era pós-lulista

Ruy Braga

Apresentação

Rebelião indígena no Equador. Insurgência plebeia no Chile. Derrota eleitoral do


neoliberalismo na Argentina. Os acontecimentos recentes não deixam dúvida: o ano de
2019 é um dos mais conturbados da história recente da América Latina. Não se trata
propriamente de uma surpresa. Afinal, desde 2008, pelo menos, é possível identificar
em muitas regiões do globo, em especial, no Sul global, o acúmulo das tensões sociais
derivadas da necessidade dos Estados nacionais estimularem o crescimento econômico
em um contexto recessivo e assegurarem a unidade das classes dominantes por meio da
promoção de um nacionalismo reacionário, enquanto respondem violentamente ao
avanço das formas mais ou menos inorgânicas de resistência popular.
A reprodução do conflito entre acumulação e legitimação tem fortalecido tanto a
financeirização do capital, a espoliação do trabalho e o crescimento lento sem a criação
de empregos, quanto estimulado o nacionalismo, o autoritarismo e a corrupção estatal
em uma escala sem precedentes. Aqui, vale lembrar que a informalização do trabalho
acompanhada pelo estímulo governamental ao empreendedorismo dos subalternos, uma
maneira de transformar o vício em virtude, tende a reforçar os efeitos deletérios do
choque entre a acumulação do capital e a legitimação da política. Afinal, em um
contexto de erosão em escala mundial dos rendimentos do trabalho, as expectativas
populares estimuladas pela ideologia do empreendedorismo fatalmente irão se frustrar
tendo em vista o estreitamento dos mercados nacionais.
Apesar do discurso facilmente identificável no noticiário econômico, o chamado
“capitalismo de plataforma” simplesmente não pode substituir a promessa da inclusão
social via trabalho subjacente à sociedade salarial exatamente por não ser capaz de
reproduzir a condição proletária sem excluir vastas parcelas de trabalhadores do acesso
aos direitos sociais elementares. Antes, a atual onda de plataformização do trabalho
revela a universalização da lógica da competição no interior das próprias classes
subalternas afinada com o polo da acumulação, mas, completamente divorciada do polo
da legitimação. Em poucas palavras, a “uberização” do trabalho, como este fenômeno

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tem se tornado conhecido, pode bem reforçar as pulsões autoritárias e, muitas vezes,
neofascistas que semeiam, em diferentes contextos nacionais, delimitações excludentes
e políticas de ressentimento apoiadas na angústia e no sofrimento dos subalternos.

1. A promessa da cidadania salarial

Apesar de ter chegado um pouco mais tarde na crise da globalização, a


sociedade brasileira tem experimentado, desde o golpe parlamentar de 2016, seguido
por governos radicalmente neoliberais, um desmanche sem precedentes do projeto
democrático construído entre o surgimento da Consolidação das Leis Trabalhistas
(CLT), em 1943, e a promulgação da Constituição, em 1988. Trata-se do
desaparecimento de um horizonte político, ou seja, da promessa da cidadania salarial no
país. Como já está amplamente estabelecido pela literatura especializada, a combinação
entre o surgimento da proteção trabalhista e a ampliação dos direitos sociais com
recursos assegurados constitucionalmente não apenas estimulou a industrialização do
país, como também assegurou às classes subalternas brasileiras um patamar, ainda que
mínimo e imperfeito, de bem-estar social. Para milhões de trabalhadores pobres e
vivendo em condições precárias de vida ou de trabalho, a existência da CLT e da
previdência social acalentava o sonho de um futuro melhor.1
Os efeitos sociais do desaparecimento deste horizonte político ainda não foram
plenamente percebidos no país. Os ataques aos alicerces da cidadania salarial, isto é, a
proteção trabalhista e previdenciária, ainda não se fizeram sentir por completo. Trata-se
de um processo que levará ainda um par de anos para revelar todo seu potencial
desagregador. No entanto, quando isso acontecer, o nível de ressentimento popular
deverá se tornar crítico. Afinal, o forte ciclo contrarreformista cristalizado na reforma
trabalhista e da previdência está desmantelando os principais instrumentos de
redistribuição de renda do país. Em um contexto marcado por altas taxas de desemprego
e de subocupação, declínio dos rendimentos do trabalho e aumento notável da
informalidade, seguido pelo crescimento das desigualdades sociais, é irrealista supor
que explosões sociais semelhantes àquelas que sacodem atualmente a sociedade chilena,
por exemplo, não estejam sendo gestadas também no Brasil.
Estamos presos em uma verdadeira encruzilhada histórica. Assim, enganam-se
aqueles que imaginam que o atual ciclo contrarreformista refere-se à administração da
1
Para mais detalhes, ver, por exemplo, Cardoso (2010).

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dívida pública. Na realidade, trata-se de todo um projeto de sociedade que está sendo
destruído. Os direitos sociais e a luta por sua efetivação deram forma a um inédito e
legítimo espaço de disputas políticas que historicamente foi ocupado pelas classes
subalternas nacionais. Afinal, foi o processo de ampliação da cidadania salarial que
cimentou o consentimento das massas populares em relação ao Estado burguês no país.
A partir, sobretudo, dos anos 1930, as greves e protestos sociais relacionados ao
tenentismo e à criação do Partido Comunista do Brasil aprofundaram uma crise de
hegemonia a qual o Estado Novo, isto é, a ditadura instaurada por Getúlio Vargas a
partir de 1930, respondeu por meio de concessões protetivas aos trabalhadores. A
regulamentação da jornada de trabalho e a lei do salário mínimo foram, aos poucos,
consolidando-se após a promulgação da CLT.
Tratou-se de um ciclo histórico de construção de um espaço legitimado pelo
Estado para o conflito entre as classes no país. A “questão social” deixou, pela primeira
vez na história brasileira, de ser tratada como um “caso de polícia”. Nas décadas de
1950 e 1960, consolidou-se uma identidade classista nacional que açambarcou o
conjunto da classe trabalhadora, quer estivesse empregada na indústria fordista ou não.
O “trabalhador nacional” tornou-se uma imagem central da cena política do país,
protagonizando greves e garantindo o apoio a governos comprometidos com o esforço
de industrialização do país. A construção da sociedade salarial no Brasil, ainda que
frágil e problemática, foi o fator chave para a superação da crise de hegemonia na qual o
país encontrava-se inserido desde a década de 1920.2
A centralidade desse processo de construção social era tão reconhecida que nem
mesmo o golpe civil-militar do 1º de abril de 1964 foi capaz de alterar substantivamente
o quadro. Apesar dos interesses empresariais, a CLT manteve-se praticamente intacta,
limitando-se, em 1966, a substituir a lei da estabilidade no emprego para aqueles que
superassem 10 anos de trabalho pela criação do Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço (FGTS). Da mesma forma, a despeito de pequenas alterações na legislação
trabalhista ocorridas nos anos 1970 que flexibilizou a contratação de força de trabalho
em setores de apoio, como os vigias e seguranças, por exemplo, a democratização do
país associado à intensificação do ciclo grevista nos anos 1980 redundou no coroamento
da proteção do trabalho na forma do capítulo dos direitos sociais da Constituição de
1988.

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Para mais detalhes, ver Antunes (2011).

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A partir de então, a nova Constituição promoveria os direitos sociais e
trabalhistas, elevando a proteção social das classes subalternas para um patamar inédito
na história brasileira por meio, sobretudo, da criação do Sistema Único de Saúde, além
de definir fontes tributárias estáveis para os gastos sociais e para os investimentos em
educação. Nem mesmo o colapso do modelo nacional-desenvolvimentista no final dos
anos 1980 e duas décadas de hegemonia neoliberal estabelecida no país a partir do
Plano Real, em fevereiro de 1994, foram capazes de impedir que a dinâmica da
afirmação de direitos sociais por meio de lutas democratizantes refluísse de maneira
significativa.
Durante os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, apesar da manutenção do
tripé macroeconômico neoliberal – formado por uma combinação entre as taxas de juros
elevadas, câmbio flutuante e independência operacional do Banco Central –, houve
aumento real do gasto social, ampliação da formalização do mercado de trabalho e
investimentos em educação, algo que se alinhava, em linhas gerais, ao fluxo geral dos
anos 1980. Na realidade, entre idas e vindas, é válido dizer que, o ciclo histórico
marcado pela construção de uma sociedade salarial no país estendeu-se dos anos 1930
até 2016 sem enfrentar grandes contratempos. Este quadro mudou dramaticamente com
o advento do golpe de 17 de abril de 2016 e a posterior eleição de Jair Bolsonaro em
novembro de 2018.

2. O contrarreformismo forte

Aprovou-se, então, um teto constitucional para os gastos públicos que atinge


severamente os gastos sociais, sem alterar o principal gasto do governo federal que é
sua conta de juros e de amortizações da dívida pública. Além disso, aprovou-se uma lei
que permite a universalização da terceirização e uma contrarreforma da CLT que, em
termos práticos, elimina a promessa da sociedade salarial para a imensa maioria dos
trabalhadores brasileiros. Além de permitir a generalização do trabalho terceirizado e
intermitente, atinge mortalmente a função dos sindicatos no país de fiscalizarem o
respeito aos direitos trabalhistas pelas empresas por meio do princípio do negociado
sobre o legislado, a contrarreforma votada pelo congresso nacional no dia 11 de julho de
2017 permite incontáveis formas de flexibilização da jornada de trabalho, colocando um
ponto final naquele ciclo protetivo que, historicamente, iniciou-se há exatos 100 anos,
com a greve geral do junho-julho de 1917 na cidade de São Paulo.

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Recentemente, o Congresso Nacional aprovou uma contrarreforma da
previdência que ampliou o tempo de contribuição para a aposentadoria, diminuiu o
valor das pensões e dificultou o acesso aos benefícios sociais pagos pelo sistema de
seguridade social. Assim, o governo de Jair Bolsonaro, um político historicamente
ligado à milícia carioca conseguiu realizar aquilo que uma ditadura seguida por
governos neoliberais moderados não foram capazes: sepultar a promessa da cidadania
salarial, eliminando o polo protetivo e fazendo ruir um dos pilares centrais da
legitimação do regime político no país. Sem proteção trabalhista e com uma proteção
previdenciária cada vez mais restrita, que tipo de legitimação um governo
ultraneoliberal imagina poder conquistar numa sociedade onde praticamente todas as
dimensões do bem comum já foram mercantilizadas?
As promessas de criação de milhões de empregos após a aprovação das
contrarreformas foram totalmente desmentidas pelos números do mercado de trabalho.
No trimestre encerrado em agosto de 2019, a taxa de desemprego era de 11,8%,
exatamente o mesmo índice de novembro de 2017 quando a contrarreforma trabalhista
foi aprovada. No entanto, a informalidade e a taxa de subocupação bateram recordes: a
taxa por insuficiência de horas trabalhadas ficou em 7,9% no trimestre até agosto ante
7,4% no trimestre até abril, e o número de trabalhadores por conta própria atingiu a
marca de 24,1 milhões de brasileiros, o maior número da série histórica mais recente.
Isso tudo sem mencionar que a lei do teto dos gastos não impediu a deterioração da
dívida líquida do setor público em meio a mais lenta recuperação econômica da história
brasileira.
Afinal, com esses números, como o ultraneoliberalismo praticado pelo governo
Bolsonaro poderá lidar com o problema da legitimação? Para responder a essa questão,
vale lembrar que desde a redemocratização, é mais ou menos claro que agendas
distributivistas têm mais chances de vencer eleições no Brasil. Essa máxima valeu, em
especial, para as sucessivas vitórias eleitorais dos candidatos petistas a partir de 2002.
Não é de se espantar, tendo em vista as pornográficas desigualdades sociais brasileiras.
Na medida em que estes formam a maioria dos eleitores é razoável supor que eles
tenderão a votar em candidatos que prometam mitigar essas desigualdades, em
particular, a desigualdade de renda. Mesmo se considerarmos as eleições de Fernando
Henrique Cardoso nos anos 1990, é notório que o plano de estabilização econômica
conhecido como Plano Real foi um momento redistributivo importante experimentado

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pelos trabalhadores pobres que não conseguiam se proteger do descontrole
inflacionário.
Aqui, vale observar que a eleição de Jair Bolsonaro configurou um agudo desvio
de rota nessa conhecida trajetória eleitoral. Desde a redemocratização (1988), é mais ou
menos claro que agendas distributivistas têm mais chances de vencer eleições no Brasil.
Essa máxima valeu, em especial, para os sucessivos êxitos eleitorais dos candidatos
petistas a partir de 2002. Não é de se espantar, tendo em vista o abismo que separa os
ricos e os pobres no país. Na medida em que estes formam a maioria dos eleitores é
razoável supor que eles tenderão a votar em candidatos que prometam mitigar as
desigualdades sociais, em particular, a desigualdade de renda. Mesmo se considerarmos
as eleições de Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990, é notório que o plano de
estabilização econômica conhecido como Plano Real foi um momento redistributivo
importante experimentado pelos trabalhadores pobres que não conseguiam se proteger
do descontrole inflacionário.
Assim, a eleição de Bolsonaro foi um ponto fora da curva. Se estamos diante de
uma “eleição crítica” capaz de alterar a dinâmica da distribuição do poder entre as
forças sociais criando um novo alinhamento político é cedo para sabermos. No entanto,
algo parece claro: o candidato do PSL simplesmente não defendeu propostas
distributivistas durante a campanha. Ao contrário, ele associou diretamente o
desemprego ao suposto “excesso” de direitos trabalhistas e Paulo Guedes, seu “guru”
econômico treinado em Chicago, prometeu entregar uma reforma da previdência ao
gosto do mercado financeiro. Para Bolsonaro: “O trabalhador terá que escolher entre
mais direitos e menos emprego, ou menos direitos e mais emprego”. A retórica contrária
aos direitos sociais e trabalhistas guiando uma campanha presidencial vitoriosa é um
fato inédito na história das eleições brasileiras desde a redemocratização.
Como interpretar essa anomalia sociológica? Como compreender que, em um
país tão desigual quanto o Brasil, parte substantiva da classe trabalhadora tenha optado
por um candidato nitidamente contrário a uma agenda distributivista e que prometia
atacar os direitos previdenciários e trabalhistas? Desde logo, afastemos as análises que
tentaram explicar a eleição de Bolsonaro pela avalanche de fake news nas últimas
semanas da campanha eleitoral. Se bem é verdade que o recurso às fake news foi
amplamente utilizado pela campanha de Jair Bolsonaro e, em menor escala, também
pela campanha de Fernando Haddad, essa hipótese simplesmente não explica o porquê

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durante mais oito meses o candidato Jair Bolsonaro ter liderado as pesquisas de opinião
quando o favorito, Luiz Inácio Lula da Silva, não era mencionado.
Uma segunda linha argumentativa recorre à reação do eleitorado formado,
sobretudo, por homens brancos de classe média aos recentes progressos das lutas
feministas, dos negros e dos LGBTs. Percebendo a ameaça aos seus privilégios de
gênero e classe social, esse importante setor da sociedade teria reagido, afirmando uma
vez mais sua histórica truculência por meio da eleição de alguém que o representasse.
Sem querer minimizar a importância dessa hipótese, parece-me que, assim
colocada, ela subestima a expressiva votação que Bolsonaro alcançou entre as mulheres
(41% dos votos válidos), pretos/pardos (41% dos votos totais) e os setores populares
concentrados em famílias que percebem entre 2 e 5 salário mínimos (61%). Ademais,
essa hipótese tende a diminuir a importância da adesão das igrejas evangélicas não
denominacionais ao então candidato Jair Bolsonaro (59% dos votos totais, contra apenas
26% dos votos para Haddad, segundo o Datafolha), sem a qual, de acordo com a
maioria dos analistas políticos, provavelmente, ele teria perdido o segundo turno da
eleição para o candidato petista.
Uma série de processos mais profundos foi se desenrolando na década anterior à
eleição de Jair Bolsonaro que nos ajuda a compreender a ascensão da extrema-direita no
Brasil, em especial, seu apelo entre aqueles que vivem em famílias cuja renda média
concentra-se na faixa entre 2 e 5 salários mínimos.
Trata-se de um enorme setor da população, correspondendo a mais de um terço
do eleitorado, que, desde 2002, usualmente votava nos candidatos petistas e que, em
2018, mudou sua opção: 61% dos eleitores nessa faixa de renda optaram por Jair
Bolsonaro, contra 39% dos eleitores que escolheram o candidato Fernando Haddad.
Considerando que os eleitores mais pobres, ou seja, vivendo em famílias que recebem
até 2 salários mínimos, mantiveram-se fiéis ao PT e que os eleitores com renda mais
elevada haviam optado por Bolsonaro já no início da campanha, é razoável inferir que
foi a oscilação dos que recebem entre 2 e 5 salários mínimos que explica a eleição do
candidato do PSL.
André Singer e Gustavo Venturi argumentam de modo convincente que a adesão
popular ao candidato ultradireitista deveu-se à ênfase no problema da segurança pública,
associado à confiança na “sinceridade e pretensa competência daquele que se propôs a
combater a criminalidade”.

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Parece-nos que Singer e Venturi têm total razão em identificar no problema da
violência social o detonador da adesão, tardia, diga-se, do setor popular cuja renda
familiar mensal oscila entre 2 e 5 salários mínimos ao candidato do PSL. Ainda assim, é
necessário compreender as razões que levaram esse importante setor do eleitorado
brasileiro a abandonar a candidatura lulista de Fernando Haddad e aderir ao discurso
“necropolítico” de Jair Bolsonaro. Em outras palavras, nossa hipótese é que se o medo
da bandidagem foi a causa imediata da adesão popular ao bolsonarismo, a tendência
global de frustração, particularmente saliente entre trabalhadores precários e informais
vivendo em grandes centros urbanos, com os limites (políticos, econômicos e éticos) do
modo de desenvolvimento pilotado pelo lulismo foi a causa profunda capaz de tornar
inteligível a aproximação dessa massa popular ao discurso colérico do candidato
ultradireitista.
As contradições do lulismo são um tema já muito debatido. Em outra
oportunidade, eu mesmo registrei na indústria paulistana do call center o nascimento de
um sentimento de frustração das expectativas em relação à mobilidade social apoiada no
trabalho precário e no consumo à crédito. Estimulado por políticas públicas como o
crédito consignado, a valorização do salário mínimo e o Programa Minha Casa Minha
Vida (PMCMV), os trabalhadores precários, porém, formalizados, de fato, passaram a
consumir bens e serviços antes inacessíveis. No entanto, a elevação do consumo deveu-
se ao aumento do endividamento das famílias trabalhadoras. Daí a razão de muitos
trabalhadores não reconhecerem a importância das políticas lulistas em suas vidas,
preferindo atribuir o progresso econômico ao próprio esforço.
Não é de todo surpreendente que, aos olhos de muitos desses trabalhadores, as
políticas públicas da era petista, como o Programa Bolsa Família ou as cotas raciais
universitárias, por exemplo, nada mais tenham feito do que estimular a preguiça e o
clientelismo político, transformando os cidadãos em parasitas e objeto de exploração
eleitoral de políticos corruptos:
Endividadas durante o auge do lulismo, muitas dessas famílias de trabalhadores
precários deslocaram-se para as periferias mais distantes das cidades, passando a
depender cada dia mais de serviços públicos notoriamente ineficientes.
Em suma, da perspectiva das classes subalternas brasileiras, o progresso social
experimentado foi real, porém, ambíguo. Houve aumento no consumo das famílias
trabalhadoras, porém, à custa do endividamento. Ocorreu um incremento da proteção do
trabalhador via formalização do emprego, mas, à custa da terceirização e de baixos

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salários. Verificou-se uma diminuição do déficit habitacional, mas, à custa da
segregação territorial urbana e do aumento da dependência em relação a serviços
públicos ineficientes.
Apesar dessa ambiguidade, a relação das famílias que recebem entre 2 e 5
salários mínimos com o projeto petista manteve-se estável até o momento em que o
governo de Dilma Rousseff decidiu aplicar medidas neoliberais no início de seu
segundo mandato, criando uma recessão econômica que logo se revelaria a pior da
história recente do país. Entre 2015 e 2016, o PIB diminuiu 7% e o desemprego quase
dobrou, passando de 6,8%, em 2015, para 12,8%, em 2017. Sem querer minimizar a
importância das escolhas estratégicas do segundo mandato de Dilma Rousseff, entre as
quais, a adoção de uma política contracionista que agravou o quadro recessivo, foi a
combinação entre a crise política e a crise econômica que devastou o governo da petista.
Não iremos no deter na evolução da crise que culminou no impeachment sem
crime de responsabilidade da presidente Dilma Rousseff. No entanto, vale observar que,
muito provavelmente, o governo não cairia se não tivesse ocorrido um ciclo de
agitações e protestos populares, alimentado pela desilusão das classes subalternas com
as políticas postas em prática pelo segundo governo de Dilma Rousseff.
Com o aprofundamento da crise econômica entre os anos de 2015 e 2016, a
desilusão com o governo petista rapidamente transformou-se em uma onda de
ressentimento popular mais ou menos ruidoso que, com o aumento do desemprego,
transbordou em uma onda de raiva social contra o então partido governante. Nem
mesmo a impopularidade do governo de Michel Temer foi capaz de reverter esse
sentimento bem-assentado entre aqueles que foram mais atingidos pelo desemprego.
Afinal, qual o fundamento sociológico para esse sentimento popular antipetista que
acabou se concentrando nos setores que recebem entre 2 e 5 salários mínimos?
Aqui, cabe apresentar algumas observações alicerçadas nos esforços de pesquisa
do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) e de pesquisadores que
investigaram o fenômeno eleitoral Jair Bolsonaro da perspectiva dos setores subalternos
da sociedade brasileira. Em primeiro lugar, na segunda metade dos anos 2000, isto é, no
auge do lulismo, portanto, dados colhidos em pesquisas de campo localizados na
periferia da cidade de São Paulo apontavam para, diante do aumento do trabalho
terceirizado e cooperativado, uma evidente queda no prestígio dos sindicatos como
referências de organização coletiva e um aumento da importância das igrejas
evangélicas neopentecostais na construção de identidades coletivas periféricas.

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Paralelamente, a evolução da investigação revelou que, ao menos na cidade de
São Paulo, as políticas públicas de saúde e assistência social, desenhadas pelos governos
lulistas estavam sendo administradas por organizações sociais controladas por igrejas
evangélicas. Para o público-alvo dessas políticas públicas, as igrejas evangélicas eram
mais usualmente associadas ao Programa Bolsa Família (PBF) ou, mesmo, à atuação de
agentes comunitários de saúde, do que o distante governo federal.
Em síntese, podemos concluir que a era lulista foi um período que associou um
modesto, porém, efetivo, progresso material apoiado na desconcentração da renda dos
que vivem do trabalho a um enfraquecimento de identidades coletivas apoiadas no
trabalho organizado, em especial, nos sindicatos.
Surpreendentemente, quem mais se beneficiou em termos organizativos da
hegemonia lulista foi o movimento evangélico neopentecostal cujo crescimento foi,
conforme os dados do Censo de 2010, de 15,4%,, em 2000, para 22,2, em 2010 (ver
tabela abaixo). E, ao contrário do que acontecera durante os anos 1970, quando o
florescimento da religiosidade popular em comunidades de base ocorreu pari-passu ao
fortalecimento do poder sindical, agora, uma teologia bastante diferente enraíza-se no
âmbito popular: a teologia neopentecostal da prosperidade, isto é, uma variante do
televangelismo estadunidense que valoriza a manifestação da graça na satisfação de
desejos individuais de proteção e prosperidade material.
Enquanto o movimento sindical foi a grande força motriz por trás, para
lembrarmos a expressão de Chico de Oliveira, da “era das invenções” democráticas dos
anos 1970 e 1980, aproximando as classes subalternas da promessa da cidadania
salarial, o movimento neopentecostal floresce contemporaneamente num contexto de
desmanche da proteção trabalhista, fortalecendo nos setores populares uma
subjetividade claramente alinhada ao modelo da gestão neoliberal de si. A mediação
entre o trabalhador e o mundo do trabalho deixa de ser predominantemente coletiva e
passa a se refugiar no âmbito de uma subjetividade em grande medida prisioneira das
fórmulas do empresariamento popular.
E com a aprovação da contrarreforma trabalhista em 2017, o poder sindical
deslocou-se inapelavelmente para uma posição defensiva.
Seguramente, a imagem mais icônica do enfraquecimento do poder associativo
do sindicalismo brasileiro frente ao fortalecimento do poder associativo das igrejas
neopentecostais é a venda da sede nacional da CUT no bairro paulistano do Brás, um
imponente prédio de 7 andares que abrigava a central há 23 anos, para a Igreja Mundial

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do Poder de Deus (IMPD) liderada pelo “apóstolo” Valdemiro Santiago, um
televangelista que rompeu no final dos anos 1990 com a Igreja Universal do Reino de
Deus (IURD), liderada pelo bispo Edir Macedo.
Evidentemente, a erosão das bases do poder associativo dos sindicatos não se
explica unicamente pelo avanço do neopentecostalismo. No entanto, a combinação entre
o crescimento da influência do neopentecostalismo nos meios populares e a crise do
emprego formal revelou a escala inédita do desmanche da cidadania salarial no país. A
tendência atual é que a proteção social, agora interpretada como proteção dos “valores
tradicionais familiares”, seja “privatizada” e “terceirizada” pras igrejas evangélicas,
como bem demonstra a criação pelo governo Bolsonaro do “Ministério da Família”
liderada por uma pastora fundamentalista.
Esquematicamente, o processo histórico de mobilização coletiva pela construção
do polo protetivo do trabalho liderado pelos sindicatos está sendo absorvido pelo
movimento neopentecostal conforme uma chave privatista, isto é, circunscrita ao
domínio familiar. É claro que estamos nos referindo a um processo ainda
protoplasmático, evolvente e com características contraditórias. Mesmo o contrato
firmado por Deus com os crentes precisa se manifestar em conquistas mundanas, dentre
as quais, a proteção social é uma das mais almejadas.
Além disso, o neopentecostalismo não denominacional é plural, não se limitando
às igrejas mais bem sucedidas em termos políticos e empresariais, como a Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD). Em suas versões autenticamente populares, essa
vertente do cristianismo pode desenvolver certas afinidades eletivas com os movimentos
sociais de trabalhadores pobres, como o MTST, por exemplo, cuja militância de base é
majoritariamente formada por crentes evangélicos neopentecostais.
Ademais, a desconstrução da classe trabalhadora fordista e periférica brasileira
não logrou fazer com que o sindicalismo deixasse de ser um ator politicamente
relevante. Em 2017, por exemplo, observamos ainda um considerável número de greves
(1.566 greves, sendo 814 na esfera pública e 746 na privada), ainda que menor do que o
ano anterior (em 2016, tivemos 2.093 greves, sendo 1.100 na esfera pública e 986 na
privada) e com características igualmente defensivas. Mas, é inegável que o fluxo global
dos acontecimentos favorece um deslocamento do eixo das formas coletivas de
organização popular do movimento sindical para o movimento neopentecostal.
Das expectativas frustradas da era lulista relativas ao progresso material com
proteção social, nós chegamos ao atual contexto marcado pelo medo do desemprego e

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da violência social amplamente registrado nas pesquisas de opinião. E o encontro de um
medo com o outro aconteceu na rua: quando um trabalhador perde o emprego e não
logra retornar ao mercado formal de trabalho, resta-lhe o subemprego, normalmente,
como vendedor ambulante. Do espaço privado e relativamente protegido da violência
social proporcionado pela fábrica ou pelo escritório, passamos ao espaço público da
competição por pequenos negócios na informalidade.

3. A angústia do trabalhador

Em termos esquemáticos, esse é o contexto global no interior do qual a pesquisa


intitulada “Trabalho e sofrimento psíquico: histórias que contam essa história”
movimentou-se ao revelar por meio de um conjunto muito bem articulado de entrevistas
as expectativas e frustrações de trabalhadores e profissionais, ocupados e
desempregados, estáveis e precários, vivendo na cidade de São Paulo. 3 Começando com
os afastados, os desempregados e os desalentados, passando por trabalhadores jovens,
informais, por conta própria, estáveis e terceirizados, até chegar nos gerentes e quadros
empresarias, essa notável e necessária pesquisa conseguiu captar de forma clara uma
tendência muito preocupante que desafia a sociedade brasileira: a extrema
individualização da angústia de todos aqueles que trabalham vis-à-vis a um apagamento
quase que completo das formas coletivas tradicionais de elaboração do sofrimento
relacionado ao trabalho.
A fragmentação da experiência social e o sentido geral de dês-socialização são
as regras nesse novo e cada dia mais injusto mundo do trabalho que se consolida na
sociedade brasileira. Na realidade, nos diferentes relatos captados pelos pesquisadores
da equipe de campo, destaca-se um sentimento de perda do lugar de fala dos
trabalhadores cujas identidades foram profundamente desconstruídas por um processo
de aguda deterioração do mercado de trabalho. Os parâmetros gerais que balizavam as
escolhas individuais vão sendo alterados, sem, no entanto, que novas regras
sedimentem-se de maneira coerente. Mesmo entre aqueles que ainda conseguem
alcançar alguma segurança contratual transparece a preocupação permanente com a
insegurança. A violência social subjacente ao processo de mercantilização do trabalho
expresso no aumento da precariedade, na compressão dos rendimentos do trabalho, na
banalização da informalidade e no adoecimento psíquico, atinge invariavelmente a
3
Para mais detalhes, ver Capellano e Carramenha (2019).

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todos. Ainda que ela seja mais cruel quando fustiga os trabalhadores terceirizados e os
informais.
Também entre aqueles que conseguem se manter empregados, multiplica-se o
sentimento de alienação de um trabalhador cada dia mais submetido a metas
inalcançáveis que pouco a pouco destroem a volição do trabalhador. O assédio moral e
o adoecimento psíquico, seguidos de casos frequentes de insônia e de abuso de
substâncias psicoativas, lícitas e ilícitas, coroam uma experiência individual cuja traço
mais marcante é o sofrimento especialmente saliente entre aqueles que conheceram
outros momentos das mesmas empresas. Isso sem mencionar os relatos de racismo e
discriminação de gênero no ambiente de trabalho que acrescentam mais angústia em
uma experiência percebida como violenta.
No entanto, o que mais chama a atenção quando observamos a totalidade dos
relatos colhidos pela pesquisa de campo é que as soluções encontradas pelos depoentes
para situações vertebradas por uma estrutura social que sistematicamente banaliza a
angústia do trabalhador nunca é coletiva: entre os empregados, sobressaem-se o
desinteresse pelo trabalho, a realização de cursos de atualização on-line, a postura
resignada e fatalista, os afastamentos para tratamentos psíquicos, o aumento do
absenteísmo, etc. Entre os trabalhadores informais, intermitentes e por conta própria, é
marcante a presença de uma postura resignada de “batalhador” que não tem outra opção
senão o aumento da autoexploração legitimado por certo discurso empreendedor. Ainda
que em alguns momentos, uma leve referência à importância da saúde pública seja
mencionada é sempre numa chave um tanto ou quanto negativa, isto é, a partir do receio
do trabalhador adoecer passar a depender dos serviços do SUS.
Daí que de uma inesgotável sequência de pequenas derrotas individuais
chegamos a uma grande derrota coletiva: os trabalhadores mais jovens perdem o
interesse pelo trabalho, tendendo a considerá-lo apenas um meio para alcançar objetivos
imediatos e, ao mesmo tempo, afastando-se dos esforços pela melhoria de suas
condições. Evidentemente, trata-se de uma atitude de autodefesa dos jovens diante de
um quadro desalentador. No entanto, como sociedade, é absolutamente lamentável que,
partindo nos anos 1940 da aspiração por uma sociedade integrada pela cidadania salarial
onde o progresso material e os direitos sociais seriam dimensões complementares de um
mesmo projeto civilizatório, tenhamos chegamos a conclusão de que os jovens prefiram
a “viração” ou o “corre”, ou seja, a combinação de atividades intermitentes, como os
“bicos”, por exemplo, a empregos formais que pagam muito mal e que exigem atitudes

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subservientes e, muitas vezes, humilhantes, como é o caso de alguns contratos
intermitentes e terceirizados.
Quando observamos países na América Latina explodindo devido aos custos
sociais elevadíssimos produzidos pelo fortalecimento da mercantilização da vida social,
não há como deixar de refletir sobre a teoria do “contramovimento” de Karl Polanyi
para quem o mercado autorregulado era uma utopia tão absurda que necessariamente
produziria uma reação de autodefesa da sociedade capaz de conter e mitigar seus
efeitos. No entanto, quando olhamos para a realidade do mundo do trabalho no Brasil,
percebemos desconcertados que essa reação ainda está muito distante de nossas
necessidades e que o tecido social brasileiro talvez já tenha sido esgarçado a tal ponto
que já não será mais possível reconstituí-lo por meio de uma promessa passadista de
universalização da cidadania salarial. É possível que para enfrentarmos nossa
encruzilhada história tenhamos que inventar um projeto mais radical no futuro a fim de
fazer frente à ameaça representada pelo casamento monstruoso do ultraneoliberalismo
com o neofascismo.

Referências

Antunes, Ricardo. O continente do labor. São Paulo: Boitempo, 2011.


Barchiesi, Franco. Precarious Liberation: Workers, the State, and Contested Social
Citizenship in Postapartheid South Africa. Nova Iorque: State University of New York
Press, 2011.
Capellano, Thatiana; Carramenha, Bruno. Trabalho e sofrimento psíquico. São Paulo:
Haikai, 2019.
Cardoso, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma
investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: FGV,
2010.
Oliveira, Francisco de. Quem canta de novo L’Internationale? In: Santos, Boaventura
de Sousa (org.), Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
Prashad, Vijay. The Poorer Nations: A Possible History of the Global South. Londres:
Verso, 2012.

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