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cclecso sears DA CIDADE Rodrigo Bastos A ARTE DO URBANISMO re STS at Weditoraufse ©2014 Rodrigo Bastos Directo editorial: Paulo Roberto daSilva Projeto grfico, capa e editoragao: Paulo Roberto da Siva Revisio: Nilea Goes Fichs Catalogrifica (Catalogacao na fonte pela Biblioteca Universitaria da Universidade Federal de Santa Catarina) BS27a_Bastos, Rodrigo Aaarte do uhanismo conveniente : 0 decoro na implantacao de rnovas povoacées em Minas Gerais na primeira metade do século ‘XVIII / Rodrigo Bastos. - Florianépolis : Editora da UFSC, 2014. 248 p.:il, mapas, plantas. Indi bibliografia. 1, Arquitetura - Minas Gerais ~ Historia. 2. Urbanizagao. L Titulo. cpu:72 ISBN 978-85 328-0884-0 ‘Todos os direitos reservados. Neniuma parte desta obra poderi ser repro- durida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia ppermissio por escrito da Editora da UFSC. Impresso no Brasil capitulo 1 O DECORO Formulados ainda na antiguidade, os preceitos gerais da doutrina do decoro constituiram referéncias constantes para o pensamento e as praticas de representacio artistica.” Conservando o cerne de suas motivacées antigas, o decoro foi consagrado pelas autoridades da Retérica e da Poética como um preceito regular de adequacdo e conveniéncia, orientacio essencial 2 praticamente todas as manifestagdes técnicas eartisticas humanas. Consoantea forma mentis do periodo, estimulada pelo regime pottico-retérico dos séculos XVII e XVIIL, e ainda pelos tratados antigos e modernos de arquitetura ¢ engenharia militar - fundamentais formacao dos técnicos e oficiais responsaveis pela fabrica construtiva nas colénias ultramarinas -, a considera¢ao do decoro contribuiu decisivamente para a constituicao de uma politica de implantagao de povoagées. Nela rezava, além da recomendacao pela escolha dos sitios mais convenientes, uma orientag4o primordial de adequaco as circunsténcias, costumes e preexisténcias fisicas, naturais ¢ construfdas. Para melhor contempla-la, seré necessdrio conhecer alguns aspectos que motivaram sua génese e constituicdo, apés 0s quais estaremos concentrados no contexto luso-brasileiro que compreendeu 0 decoro entre os séculos XVI e XVIII - periodo que acompanha, inclusive, o incremento das ocupacdes ultramarinas portuguesas. ® CAMARERO, Antonio. La teoria etico-esttica del decoro en la antigiiedad, = 3. Nao se encontram obras de pesquisa em que tenha sido desenvolvida e sistematizada a abrangéncia de interpretacSes para o decoro em solo portugués. Muito recentes sio os estudos sobre a arte e a arquitetura luso-brasileira que the fazem referéncia. De um modo geral, a referéncia ao decoro é simultinea a discussio de outros conceitos ¢ doutrinas, concentrando-se na interpretago das traducées portuguesas de tratados principalmente italianos, ¢ na anélise de obras ou tratados portugueses de arquitetura. O decoro é nitidamente mais frequente nos estudos sobre obras europeias, principalmente italianas; ainda assim, aparece nesses estudos indiretamente, como uma das categorias envolvidas nas andlises. Pretendemos desenvolver algumas das fontes que condicionaram as compreensies do decoro em solo portugués, privilegiando os aspectos que indicam ter participado dos processos de implantacio de povoagées. Para tanto, servimo- nos de estudos, alguns muito recentes, que se debrugaram sobre arquitetos, obras e arquivos portugueses. As referéncias desses estudos vigoraram nossas hipéteses e a propria investigacao, expandindo os alcances analiticos e historiogrificos, exigindo e proporcionando uma melhor incisio sobre os problemas tratados. Algumas teses e dissertagdes utilizadas nao estdo, apesar do mérito, publicadas, chegando-nos gracas a providéncia de colegas ¢ amigos. ‘Irazem subsidios considerados pelos préprios estudiosos bem longe de estarem esgotados, restando muito a se fazer ainda em arquivos piblicos e privados, em estudos monogréficos e teméticos no Brasil e em Portugal. De que maneira as nogdes do decoro por I se consolidaram? De que maneira teriam sido aplicadas no povoamento das colénias, particularmente em Minas Gerais? De que maneira os artistas assimilaram e proporcionaram sua difusio? Qual a importancia dos técnicos, arquitetos e engenheiros militares, estrangeiros, portugueses e brasileiros, envolvidos com as aulas de arquitetura e engenharia militar em Portugal e no Brasil, das quais foi inclusive professor no Rio de Janeiro o sargento- mor e engenheiro portugués José Fernandes Pinto Alpoim (a quem foi atribuido © plano de expansao da cidade de Mariana), no uso ¢ transmissdo dessas nogdes? Quais os principais tratados que circularam em Portugal? Quem sabe na colénia e na capitania? Recentes pesquisas demonstraram como varios tratados constitufram fundamentos para a formaco dos oficiais e técnicos responsdveis pela arquitetura e pelo urbanismo das vilas e cidades sob a insignia da “Conquista” portuguesa. Como se dava a circulagio empirica e oral dessas nogées, no caso peculiar dos artifices artesios, para quem a formacio se deveria fundar predominantemente no cotidiano dos oficios? Asrespostasaessas perguntas demandam ainda longase variadasinvestigagées. Orientaram, todavia, as pesquisas,jé que estivemos lidando com nogdes que, segundo nossas hipéteses e indicagdes recolhidas, estariam sendo difundidas e orientando politicas de povoamento. A complexidade dessas ¢ outras questées reafirmou a preméncia da verificacao das fontes documentais primérias coevas relativas as obras ¢ também a administragao da capitania. Se nio elucidam plenamente 0 processo de difusio e transmisséo dos conhecimentos e das priticas, indicam, ao menos, sua presenga e consideracdo efetivas em determinado lugar e momento. Os temas tratados neste capitulo privilegiam obviamente o problema em questio da implantagao de “novas povoagées”. Ainda assim, sera possivel perceber, neste € nos préximos capitulos, como os preceitos do decoro, oportunamente concentrados nos termos e contextos das fontes documentais, serviam, de forma abrangente e integradora, a praticamente todos os ambitos da manifestacao artistica e construtiva, da cidade ao ornamento. Imaginéria, arquitetura, talha, poesia, sermonistica etc. repousavam sobre os mesmos preceitos, dentre cles, e com precipua importancia, o decoro. Apesar de verificados em contexto especifico, as nogdes ¢ termos estudados — presentes na documentagio andloga em toda a colénia, como se verifica em obras publicadas ~ reenviam a discussio do decoro a um contexto mais amplo: justamente © luso-brasileiro, e seu admirdvel acervo artistic, arquiteténico e urbano. Realimentam nao apenas as discusses concernentes & doutrina do decoro assimilacao, reelaboracao e aplicacio -, como também os temas envolvidos na posse, ocupagdo e permanéncia dos territérios ultramarinos portugueses. 2308 240s 1.1 Génese e nogées gerais 1.1.1 O “esplendor conveniente” Elaborados ainda na antiguidade, os preceitos da doutrina do decoro foram compreendidos, assimilados e reelaborados continuamente durante todo © percurso da cultura dita ocidental, além de alicercados e alimentados, durante séculos, pelo primado preceptivo da Retérica e da Poética antigas.” Os preceitos gerais que motivaram e nortearam sua constitui¢ao, tratados na obra de Antonio Camarero," indicam que o decoro representava mais do que um preceito artistico normativo. Decorum é a traducao latina para o que na Grécia antiga designava © termo prépon - 10 npenoy, “o conveniente”® Em sua origem, prépon nao se restringia exclusivamente ao ambito das artes, constituindo antes um preceito geral fundamental, sobre 0 qual outras doutrinas ¢ conceitos se integravam e adquiriam exceléncia. Prépon se estendia, segundo Camarero, ao conjunto mais abrangente das ages e relagdes humanas. Compreendia uma disposigao ética e pottica, que orientava 0 homem rumo a uma “aspiragao priméria” de se integrar ao belo € a0 bem (kalokagathia), virtudes nas quais deveriam repousar as finalidades e os meios, “principio supremo de toda vontade e de toda conduta humana’ Assim, as criagées artisticas ocupavam um papel decisivo, devendo servir sempre a integragao *® Cf, GARCIA BERRIO, Antonio; FERNANDEZ, Teresa Heernindez. Poética, tradigiio e modernidade, Tradugao de Denise Radanovic Vieira. So Paulo: Litera Mundi, 1999. A tradigfo classica da podtica, p. 7-20; ef. também GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexdes sobre a distincia. Tradugio de Eduardo Brando, Sao Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cap. 6 Estilo, Inclusio e excluséo, p. 139-175. Ginzburg destacou sobretudo a permanente orientay30 pela adequagio (adequatio); © SELIGMANN-SILVA Marcio. Introducto/intraduso: mimesis, tradugZo, enargeia a tradigtio da ut pictura poesis. In: LESSING. Laocoonte, ou sobre as fromteiras entre a pintura e a poesia. Sao Paulo: Iluminuras, 1998. p. 10-11 3 CAMARERO, Antonio. La teoria etico-estética del decoro ent la antgiiedad. ® CAMARERO, op. cit, p-9. ® CAMARERO, op. cit, p. 6. Todas as tradugSes do presente trabalho so nossas, salvo referéncia. dos dois valores imanentes da arte (delectare et prodesse): satisfagio advinda da aparéncia sensivel e aprimoramento do homem, espiritual, individual e social - uma orientagao, portanto, ético-poética, politico-educativa, projetada ao bem-estar comum. Esse o objetivo primordial, o télos da arte ocidental em suas primicias. A arte, em comunhao com as ages e relagdes humanas, possufa um principio diretivo comum: o prépon. Essa propriedade diretiva e primordial, essa arché, refletiu-sena constituicao € no reconhecimento, também em ambiente latino, do prépon-decorum como preccito “hiperénimo”™ da arte. O que quer dizer isso? Significa que prépon-decorum orientava nao apenas os meios e 0s fins, mas também os demais preceitos, contribuigdes individuais das escolas e seus pensadores: “harmonia” (pitagéricos), “justa medida” (Platao), “meio-termo” (Aristételes), “oportunidade” sofistas), “sindnimos entre sie complementares & determinagdo da beleza’. Assim, prépon-decorum — adequacao conveniéncia de meios e fins — terminou assumindo o “vinculo de todas as categorias estéticas’, critério sistematico o mais geral e necessério a determinacéo da beleza natural ¢ a consecugio da beleza artistica, sob a orientagao do qual se aplicavam todos os demais.* Retrocedendo ao étimo, Camarero identificou no termo prépon um duplo sentido de “distingao e conveniéncia.* Vejamos a “distingao”; o verbo grego prépein, “distinguir-se, fazer-se notar’ refere-se tanto aquela pessoa que impressiona por sua qualidade fisica e aspecto exterior grato e apropriado (e em evidéncia de “exceléncia de condi¢ao human”), quanto a fendmenos e objetos que se revelam e se ressaltam por seu esplendor caracteristico, “brilho particular, luminosidade, aroma e sonoridade” Em ambos os casos, pessoas e objetos, aplica-se ao que é concreto, solicitando a atengao privilegiada dos sentidos. Conquanto advenha necessariamente dos sentidos, a referéncia se legitima no reconhecimento de que essas manifestagées notaveis * CAMARERO, op. cit, p.6. * CAMARERO, op. cit, p. 6-10, passim. Camarero se preacupou em destacar sua compreensio a respeito do termo “estética’ 2 “realidade como aparéncia concreta sensivel"; CAMARERO, op. cit, ps ™ CAMARERO, op. cit, p.9. adja (interessantes por seu destaque, elegancia e nitidez aparente) so aspectos distintivos, como se revelassem um “determinado estado de alma” A “conveniéncia” se define pelo sentido ativo de convir. Aplica-se ao especifico e ao pertinente, quando as agdes e expresses sio convenientes as condigées éticas de quem as manifesta. Por exemplo: Deus, homem, mulher, velho, jovem, escravo, livre etc. determinam expectativas de agdes e expressdes caracteristicas que thes sao pertinentes e, portanto, Ihes convém. Soaria estranho um velho se expressando ou agindo como uma mulher, tanto quanto a mulher como um velho. As agGes e expressdes sio convenientes segundo as condigdes préprias de cada um. Em relagio a seres, coisas e objetos, 0 sentido aplica-se igualmente expressio apropriada de suas qualidades ou virtudes. Reunindo, assim, grata distingio e conveniéncia pertinente, a beleza ~ orientada por, ou mesmo sinonimizada ao prépon - foi reconhecida como um “esplendor conveniente’ a toda pessoa, ser, objeto ou obra artistica, em unidade organica apropriadamente especifica entre suas partes e todo”"* 1.1.2 As virtudes da adequacao Definida ainda pelos antigos, uma diviséo didética facilita bastante 0 entendimento ¢ 0 tratamento objetivo da doutrina. Assim, pode-se falar de uma adequacao ou decoro interno: acomodacao das partes convenientes entre sie 20 todo da obra, que deve estar orientada a satisfagao da finalidade essencial requerida pela adequacio ou decoro externo: a finalidade ética da obra, quando ela proporciona recepgio e desempenho apropriados a sua destinacao. No decoro interno, atuam diretamente as requisigbes de caréter e unidade orginica da obra. O decoro interno regula os aspectos referentes & disposigio, escolha e acomodagao dos recursos e elementos mais adequados 4 composi, especificos ao tema, assunto, género etc. Sobre essa ordenacao interna, atuam as condicées e circunstancias AMARERO, op. cit, p.9. © CAMARERO, op cit, p. 10. externas: circunstancias de tempo, de lugar e de recepsio destinatdria. Ambos sio interdependentes, estdo intimamente relacionados. O decoro interno esta submetido necessariamente & satisfacio do decoro externo - a conveniéncia ultima -, sinalizando sempre a devida acomodacio dos meios ou das partes.” Essa atengio constante a destinagio final reafirma a condicéo concomitantemente ética e pottico-retérica fundamental consoante ao prépon- decorum, atuante em todas as fases de concepcao, claboracao e producao de qualquer obra. Apesar de parecer conformar um ideal a ser alcangado, a aplicacao do ” Prépon possui virios sindnimos e derivardes latinas cognatas: decorum, decus, decor, aptun, decens, quid decet, accommodatum, digntam, (decoro, adequado/adaptado, decente, o que fica bem, acomodado, digno) sendo mais consagrado deles 0 primeiro, decorum, denominando a teoria. Em Roma, os retricos identificaram 0 termo api: (adaptado, adequado, capaz) a0 decoro intemo, & decorum, ou decor ao decoro externo. Mas o que vai persistir mesmo € 0 termo geral: decorum CAMARERO, op. cit, p. 61-62. Cf. também HANSEN, Joio Adolfo, Decoro/Verossimihanca, So Paulo: FFLCH-USP, notas de aula, [s. 4], p. 1 (gentilmente cedido pelo autor). “ ARetérica romana consagrou cinco fases:intelecto, imventio, dspositio, elocutio, acti. Na retbriea € no teatro‘poesia, evidencia-se a tltima “fase”, a ago (actio). Ela corresponde & efetiva oragao do discurso retérico-politico frente & audigneia ou & encenacio do texto postico diante da platca, Agui, outros aspectos sio exigidos logicamente também apropriados ao todo da obra e& sua recepsao. Residem na caracterizagdo do ator, mascaras e adomos caracteristices, assim como na vestimenta do corador e nas expresses condizentes e condignas do rosto; na disposico e nos movimentos do corpo, nos gestos elegantes e precisos, na entonag ¢ ritmo da voz consonantes as partes do texto, 20 teor das palavras ¢ dos argumentos ou sentimentos (pths). No processo da aco, é convocada a simpatia entre emissor e receptor. Persuade o eloquente; comove aguele que demonstra estar comovido. Na audigncia retérica, os argumentos devem se subordinar & melhor e mais apropriada persuasio: 10 teatro postico, 0 éthos e o pathos revelados das personagens instauram a verossimilhanga e roporcionam a purificagZo catértica, Imprescindiveis também as condigdes do local da agiio, exigido ‘© decoro correspondente para a arquitetura do auditrio do teatro e seus cendrios. As recomendages adequadas ¢ convenientes figuram praticamente todos os tratados, conferir especialmente CICERON, Marco Tulio. El Orador. In: Obras completas de Marco Tulio Cicerén: vida y discursos, Tradugio de Marcelino Menéndez. y Pelayo, Buenos Aires: Anaconda, 1946. p. 487-537; HORACIO. Arte ‘Pottica: epistola ed pisones. In: A podtica clissca: Arist6teles, Horécio, Longino. Tradugio direta do ‘rego e do latim por Jaime Bruna. So Paulo: Cultrix, 1997. p. 53-68. Sobre a recomendagao de decoro para a arquitetura dos teatros, cf. também. DIAZ-PLAJA, Guillermo. El teatro: espiritu y técnica. In: DIAZ-PLAJA, Guillermo (Dix). H teatro: enciclopedia del arte escénico, Barcelona: Noguer, 1958. p. 19: o aspecto exterior dos teatros [latinos] era semelhante-a0 dos gregos, dos quais hrerdaram a tradigo do decora”. = 43s decoro era uma pritica. O fim das ages e produgées humanas nao deveria servir sendo ao que é “devido ao homem’* A conveniéncia final a se manifestar como uma adequacao a vida e suas varias circunstncias, da qual literalmente participam todos 0s elementos ou partes da obra. ‘Mimetizando e se adequando a vida, a arte procuraria reunir, equilibrar € harmonizar as diversidades e circunstancias.® Convocava a essa disposi¢ao a Natureza (Késmos)® - unidade organica em continua e permanente acomodacao harménica. Por mais que isso a Natureza se tornaria modelar, e sua lei suprema, a conveniéncia, 0 meio imprescindivel a todas as obras humanas, técnicas e artisticas. Vale destacar como, ainda no século XVIII, as medidas-padrao da arquitetura (palmos, pés, bragas etc.) serdo testemunhos de uma analogia fundamental com o corpo humano ~ paradigma natural antigo de utilidade e beleza. Contemplada a arquitetura, essa requisigiio de adequagdo 4 vida nao seria ‘menos significativa, certamente até mais problematica do que nas demais artes devido sua inelutavel dimensio habitual e ordinéria. Intimamente relacionada ao decoro, a concomitdncia entre utilidade e aparéncia ~ aspectos igualmente “gémeos” da mesma realidade como o “belo” e o “bem ~ em arquitetura exigiria muito daquela interdependéncia decorosa entre fatores internos e externos: a harmonia entre disposicao compositiva e destinagao ética.®* A estrutura concreta da arquitetura, 4“ CAMARERO, op. cit, p.8. ® CAMARERO, op. cit. p. 11. Sobre a participacio da arte na vida e no cotidiano dos gregos, cf. POHLENZ, Liuomto greco, p. 508-508. © CAMARERO, op. cit, p. 105. “ JAEGER, apud CAMARERO, op. cit p.6. © CAMARERO, op. cit, p. 3. CE. especialmente a introdugdo de Alberti para o capitulo quinto do livro sexto do tratado De re aedifcatoria. A obra de arquitetura é entendida por Alberti como um ‘complexo, na qual cada membro deve estar disposto segundo ordem, mimero, lugar, amplitude, Aisposicao etc. conciliando “necessidade e comodidade’. Alberti recomenda ao arquiteto atentar para “pritica conveniéncia’, para as “especificas destinagdes do edificio, de modo que cada parte do edificio nos resulte indispensév, stil, em bela harmonia com todas as outras’, sem setisagbes as quais se perderia 0 “decoro” Cf. ALBERTI, Leon Battista. LArchitettura (De re aedificatoria). ‘Tradugio de Giovanni Orlandi, Milano: Il Polifilo, 1989. ¥.2, L. 6,5, p. 468. materiais, elementos, ornamentos etc., participa diretamente da geracio das relagdes estéticas derivadas de seus arranjos entre sie com 0 todo, com 0 contexto e 0 sitio de implantacao. Tais relagdes devem estar tao afinadas ao efeito proporcionado pela aparéncia, quanto também diretamente envolvidas na comodidade abrigada ou desempenhada pela arquitetura. Afinal, é a acomodacio (adequada) dos elementos que proporciona comodidade (conveniente).. “ Decorum e accommodatum constituem sinénimos latinos para © prépon. A acomodagio é uma conveniéncia,é também uma adequagao que se pode identificar interna cexterna, como o decoro. A acomodacdo guarda tanto 0 sentido de arranjo compositivo das partes - acomodagdo ou adequagio (interna) das partes entre si e 2o todo -; quanto o sentido de satisfagao ética e utlitiria (externa), quando a obra oferece ao destinatirio — no todo ou em suas partes ~ uma acomodagao necessitia ¢ Proveitosa. Os conceitos que se desprendem dessa matriz, todavia, sio problematicos. A nogio de “comodidade, p. ex, segundo Werner Szambien, é uma das mais variadas dentre os principios da arquitetura. No decorrer dos séculos XVI, XVII e XVIII a interpretasio da “comodidade” oscil, or assim dizer, entre as propriedades compositivas e as satisfagdes utiitirias. Para Jean Martin, Primeiro tradutor francés de Vitnivio (1547), “a ordenagio ‘é uma comodidade [ou conveniéncia] entre os membros da obra”. Martin relaciona as nodes de comodidade e proporgao, tornando “commodités” aterminasio francesaparaa “commoditas” vitruviana, Szambien concluiopensamento de Jean Martin; “a comodidade [..] € a conveniéncia da proporgao” Um século mais tarde, na sua famosa tradugio de Vitrivio, Perrault (1673), segundo Szambien, “evita qualquer ambigtiidade” ao relacionar commodité diretamente & utilidade do edificio, em partes ou totalmente, sem prescindir «das vitudes proporcionais. Assim, a ordenacio "6 o que proporciona a todas as partes do edificio a sua justa grandeza, em relagio ao seu uso; sejam consideradas separadamente, sejam em deferéncia 4 proporgio ou simetria de toda a obra” CE SZAMBIEN, Werner. Synumétrie, gout, caractére:theorie ct terminologie de Tarchitecture a Tage classique ~ 1450-1480, Pars: Picard, 1986. “Commodi p. 85. E preciso notar ainda 0 aspecto “salubre” da comodidade; “talvea 0 mais importante’, segundo Szambien, diretamente relacionado ao “decoro natural” de Vitrivio: “Acomodar [..] de modo a garantir a satide dos habitantes conforme o lugar da construcio’. Esta orientacio repercutia sobre 2 escolha dos sitios, sobre a implantacdo e, consequentemente, sobre a distribuigdo das cidades, edificios e seus compartimentos (cdmodos); exigindo atentar, principalmente, para a condigio ¢ diregéo dos ventos, para a orientacdo solar, dispondo também aberturas bem proporcionadas em seus “lugares comodos e necessérios” No século XVIII francés, ainda segundo Szambien, commodité se subordinou gradativamente & “distribution”, associada preferencialmente & arquitetura privada. Cf. SZAMBIEN, op. cit, “Commodité, p. 85-91. passim. Os termos “comodo”, “comodidade’ ‘yeremos, io bastante recorrentes nos documentos setecentistas que estudamos em Minas Gerais. E indicam concentrar sentidos variados, ora definindo qualidades e atributos dos sitios, salubres «458 2 he Motivados principalmente pela sistematizagio operativa de Aristoteles, Poetas © oradores como Panécio, Cicero, Quintiliano e Horicio, os romanos notadamente, prepararam o caminho a ser seguido pelo decoro e demais preceitos ret6ricos ¢ poéticos. Contemporineo nesse processo, Vitrivio (séc. 1 a.C.) é presenca notivel, sobretudo por sua importante sistematizacdo da arquitetura antiga; embora tenha sido criticado por muitos, Leon Battista Alberti, um deles, em quem a Retorica se tornou argumento de propésitos liberais conferidos as artes - Pintura, Escultura € Arquitetura ~ ainda consideradas mecanicas no século XV." O decoro da arquitetura, inaugurado, por assim dizer, em Vitrivio, sera melhor abordado adiante, ao exainarmos algumas das leituras, tradugbes e redages de tratados empreendidas pelos portugueses nos periodos que mais nos interessam. A partir dos latinos, a Retérica se tornou uma espécie de “técnica geral da linguagem’, determinando preceitos para os ambitos da manifestagdo artistica e do Pensamento, inclusive a Filosofia e a Poética.* Aristételes, ademais, teria oferecido uma solugio posstvel ao impasse com o qual a arte ainda haveria, todavia, de se debater indefinidamente - oscilando entre as predomindncias de forma e contetido, entre beleza espiritual e beleza sensivel -, naquele momento dividida entre a idealizagio mistico-ontolégica de ascendéncia plat6nico-pitagérica e a autonomia sofistica da aparéncia. O “prépon estético” de Aristételes proporcionara o concilio - © “meio-termo” ~ entre aparéncia e ser, ao legitimar a imanéncia ética da forma” — manifestagao inexoravel da arte. Camarero alertou para 0 fato de que o decoro foi assumindo uma nogéo claramente preceptiva,® embora seja possivel identificar, sob a fluéncia de ¢ fisicos; ora referindo-se 4 acomodacao de elementos das edificagoes e dos nficleos urbanos;outras ‘mais, referindo-se explicitamente ao bem-estar publico no usufruto necessério e satisfatério das estruturas urbanas. ® Sobre 0 decoro e os propésitos de Alberti para as artes, cf. BRANDAO, Carlos Antonio Leite, Quid ‘Tum: 0 combate da arte em Leon Battista Alberti Belo Horizonte: UEMG, 2000. “ CAMARERO, op. cit p. 79-80. Sobre uma maitua influéncia entre Retérica e Poctica, cf. GARCIA BERRIO; FERNANDEZ, Poética,tradicio e modernidade,p. 3-7, © CAMARERO, op. cit p. 11-13; 43-53, ® CAMARERO, op. cit, p.7. caréter normativo, a laténcia dos preceitos fundamentais. A complexidade de seu entendimento foi confessada pelo escrito de varios autores tratado de modo predominantemente “negativo’, ou sefa, através de exemplos priticos em que no tenha sido contemplado. Os versos que abrem as Epistolas de Horécio sao ilustrativos; neles, um pintor € ironizado ao pretender ligar “a uma cabeca humana um pescoco de cavalo’ Cicero declarou precisar de um extenso volume inteiro apenas para 0 tratamento do tema,” embora ndo o tenha escrito, preferindo traté-lo em varias obras que indicam, comparado a outros como o préprio Hordcio, uma maior intencio sistematica. Uma definicio conclusiva de Antonio Camarero nos proporciona, nesta Génese, a dimensio ¢ a amplitude dos principios envolvidos na consideracio do répon-decorum. Sigamos atentamente sua defini¢io. O decoro, ou conveniéncia, mantém sempre seu significado essencial de “esplendor conveniente’: Baseia-se no axioma fundamental de que cada coisa, acio ou producao, para ser (ou parecer) verdadeiramente bela, possua uma formosura apropriada que agrade e atraia em conveniente conformasio ou atitude conforme sua natureza, sua modalidade particular, sua funcao, finalidade e circunstancias; e que seus elementos constituintes, precisos em quantidade e qualidade, estejam em seu lugar e condicao prépria, adequados em si e em coeréncia harménica entre si e com o todo. E, sem divida, a condicéo mais necessariaegeral, determinante dabelezanaturalefimemeioessencial da beleza artistica. Mas, por esta sua amplitude e importincia, é dificil de precisar, explicar e aplicar, a nao ser com uma intuicao natural, enriquecida com sabia sensibilidade e conhecimentos. Nao fosse sua importincia e atualidade instigantes, a amplitude, a complexidade e as exigéncias do tema a que est exposto 0 pesquisador poderiam “| HORACIO. Arte pottica, § 1-9, p. 55. ® CICERON. El Orador, p. 501 ® CAMARERO, op. cit, p. 106. ade 2 4B desencorajé-lo, Interpretados como desafios, eles se multiplicam e se revigoram no que implica a consideragio da arquitetura e dos conjuntos urbanos no contexto luso-brasileiro do século XVII. Doravante, estaremos analisando esse contexto para procurar identificar ambientes de recuperagio, assimilagao e consideracdo das nodes do decoro na implantagao de novas povoacdes nos territérios ultramarinos portugueses, Particularmente em Minas Gerais. Nossa hipstese ¢ a de que sua consideracao foi decisiva para 0 éxito desse processo. A irrefutvel constituicdo de uma civilizagéo no coragio de ouro da América portuguesa exigiu do reino Portugués nao apenas uma politica pragmatica de posse, dominio e exploracao; as matérias ¢ interesses em jogo na colonizacdo exigiam prudéncias e engenhos mais refinados. Também, e subliminarmente relacionada & propria politica de “Conquista’, esteve a ndo menos estratégica consideracdo as conveniéncias ¢ comodidades nascentes, evidenciada na apreciacao de diversas circunstancias de adequacao, fisicas ¢ humanas, éticas e artisticas, fundamentais & consolidacao da acomodagio dos povos e povoacées em Minas Gerais. Essas diversas sircunstancias de adequacao condicionaram, em sua base, a crescente e desejada Permanéncia das ocupacées locais, bem como a gradativa consolidacio de uma estrutura e de costumes artistico-construtivos a serem desenvolvidos empreendidos pela prépria comunidade em formagio. 1.2 O decoro no contexto luso-brasileiro Muitos dos que inauguraram a produgdo artistica e arquiteténica no Brasil- colénia, inclufda pouco depois a capitania de Minas Gerais, vieram da metrépole; sobretudo equeles que coordenaram a implantagio e a constituicao de povoaces, administradores e oficiais a esses subordinados. A primeira e mais direta fonte difusora das matérias doutrindrias que nos interessam deve estar, entdo, em Portugal, exigindo-nos atengio as suas circunstincias religiosas, politicas e culturals que antecedem e preparam, por assim dizer, o século XVII. A autoridade das matérias poético-retéricas acompanha a propria formacao da cultura portuguesa. Suas origens remontam as primeiras incursées do Império Romano pela peninsula ibérica, quando ocorreram importantes fundagdes e reestruturagdes urbanas,® pasando pela Idade Média até depois do que se convencionou chamar de “Renascimento”. Correspondente a disposicao portuguesa para os “descobrimentos’, 0 humanismo renascentista e seus desdobramentos estimularam nao apenas a mentalidade consoante as navegacées,* como também os engenhos técnicos e artisticos que edificaram, nas costas indicas e atlanticas desde o século XVI, as primeiras fortificagdes ~ construgdes estratégicas destinadas & defesa do territério filiadas aos tratados de arquitetura e engenharia militar.” Concentradas nos primeiros dois séculos no litoral brasileiro, as ocupacdes se assentaram nas Minas Gerais apenas no final do século XVII e inicio do XVIII, garantido o sucesso na procura pelo ouro, Em meados do século XVIII, portanto praticamente meio século depois de iniciadas, as povoacdes mineiras jé constituiam uma verdadeira rede urbana de proporcées e articulagdes territoriais inéditas. Consolidaram, no decorrer do século, um modo de vida eminentemente urbano, com os seus teatros, produgdes musicais ¢ literdrias, representagdes artisticas e “ Cf. BUESCU, Maria Leonor Carvalho. Aspectos da heranga cldssica na cultura portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura portuguesa, 1979, No periodo de César (séc. 12.C.), podemos citar: Beja (Pax Julia), Santarém (Scallabis), Lisboa (Olisipo Felicitas Julia), Evora (Ebora Liberatias Julia), e Mertola (Myrtilis julia). Destacam- se ainda, na passagem para o séc. I d.C., Braga (Bracara Augusta), e, nos tempos de Flévio, ‘Chaves (Aquae Flaviae), Coimbra (Aemtiniuri) e Tomar (Sellium). TEIXEIRA, Manuel Cs VALLA, ‘Margarida. O Urbanismo portugués, Lisboa: Livros Horizonte, 1999. p. 20 * BARRETO, Luis Filipe, Descobrimentos e renascimento: formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI Lisboa: Imprensa Nacional, 1983. Cf. também TEIXEIRA; VALLA, op. cit, p. 215. ® Ainda em meados do século XV, Portugal ja se estabelecera nas ilhas da Madeira e Acores. (Os modelos de cidade utilizados retrocediam todavia 20 medievo. Os novos “modelos” s6 viriam 2 influenciar no final do século XV, 0 De re aedifcatoria de Alberti so estaria impresso em 1485, "Na maior parte dos casos, as estruturas urbanas portuguesas construidas no contexto da expansio ultramarina nfo correspondem a tipos puros de tracados, surgindo-nos padrées urbanos de origem vernécula ou medieval sintetizados com ideais renascentistas. Os diferentes modelos de cidade eram adoptados conforme a sua adequagto ds condicaes politicas e econémicas de cada local e de cada periodo”. Cf. TEIXEIRA; VALLA, op. cit, p. 47-48; 216, (grifo nosso). = 49: = 50. conjuntos arquiteténicos. De que modo esses conjuntos singulares representaram € se acomodaram a esse modo de vida urbano? Como as nogdes do decoro teriam orientado essas ocupagées e representacbes? As abrangéncias e complexidades que envolvem a doutrina do decoro se incrementam nos séculos XVII e XVIII. Varios foram os artistas, tedricos ¢ arquitetos que acrescentaram 4 doutrina novas questoes. Ademais, o decoro nao pode ser pensado como uma entidade conceitual unitéria e fechada, porque depende do pensamento que o sustenta e o acompanha. Por mais isso, precisamos nos concentrar nas circunstancias portuguesas. 1.2.1 Dicionarios portugueses: o decoro dos homens e do “lugar” Raphael Bluteau, em seu importante Vocabuldrio Portuguez, e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico...,* dedicado a El-Rey de Portugal, D. Joao V, nos proporciona o que se poderia entender por “decoro’, em Portugal, no inicio do século XVIIL. DECORO, Deciro, O que é digno de qualquer pessoa, & do lugar que tem, & ta6 proporcionado com o seu estado, que nem exceda as suas forcas, nem seja inferior sua calidade [qualidade]. [...] Em alguns lugares diz condecentia, Com decoro [...] Decenter |...] Condecore & Condecenter. [...] Guardar em todas as cousas 0 Decoro [...] No termo do trato, Guardar 0 Decoro necessario. Vasconcel. Arte militar, 194. Guardar a alguem 0 decoro. Cum aliquo decore agere. Guarda 0 Poeta 0 Decoro as pessoas [...] Utilao augmento, & honroso a0 Decoro, Vieira. Tom. 2 [ BLUTEAU, Raphael. Vocabulério portugues, ¢ latino, aulico, anatomic, architectonico, bellico, botanico... Coimbra: Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712. 10. © BLUTEAU, Raphael. Decoro. op. cit. v. 3, p. 29. Bluteau se refere & obra Arte Militar de Luis Mendes de Vasconcellos, publicada em Lisboa em 1612. © termo decoro nao aparece no Elucidério das palavras, termos e frases usadas antigamente em Portugal e que hoje regularmente se ignoram... (1798/1799), de Joaquim de Santa Rosa de Viterbo.® Um pouco mais tarde, no Dicciondrio da Lingua Portuguesa de Antonio Moraes Silva, publicado em 1813, obra bem menos pretensiosa do que a de Bluteau, o termo aparece com um tratamento mais simples, mantendo, todavia, a relago de “conveniéncia” entre caracteristicas interiores, ages, e aparéncia exterior: “Decéro. s. m. Honra, respeito devido a alguém por seu nascimento, ou dignidade [...]. A conveniéncia das acgGes, e outras exterioridades com o caracter da pessoa. [...] Decéro. adj. Conforme ao decéro, honroso, decente Le © decoro nos diciondrios privilegia as acepges relacionadas & ética e aos costumes, mantendo sempre a designacdo diretamente relacionada ao homem, suas aces, decéncia e dignidade de aparéncia exterior consoante as caracteristicas interiores - condignidade equivalente entre aspectos implicitos e explicitos. significativa, entretanto, a primeira oragao da definicéo de Vocabuldrio de 1712. Bluteau estendeu 0 decoro para o “lugar”, proporcionando-o ~ a exemplo da referéncia ao homem — ao seu estado ¢ atributos, de modo que nao “exceda suas forcas” nem seja inferior sua “qualidade”. O decoro é, portanto, uma propriedade relativa aos homens, mas também aos lugares. Assim como € possivel identificar a consonancia humana entre aces, cariter, dignidade e aparéncia exterior, dos lugares, é possivel identificar o que os tornam “proporcionados” as suas “forcas” e “qualidades” Atentemos, no mesmo Vocabulirio de Bluteau, para os significados da palavra “lugar”, que nos guardam aspectos interessantes: © VITERBO, Joaquim de Santa Rosa. Elucidério de palavras, termos e frases que em Portugal se usaram e que hoje regularmente se ignoram: obra indispensivel para entender sem erro os documentos mais raros. preciosos que entre nos se conservamn (1798/99). Porto/Lisboa: Civilizacio, 1962/66. SILVA, Antonio de Moraes. Decéro. Diccionario da lingua portugueza recopitado dos vocabularios impressos ate agora, c nesta segunda edicdo novamente emendade, e muito accrescentado (1813). Rio de Janeiro: Litho-Typographia Fluminense, 1927. p. 517. *4 2528 LUGAR. Espaco em que se compreende hum corpo natural, ou a superficie que o cerca. [..] Muito pode contribuir & saude, principalmente dos ethicos, &hypocondriacos a mudanga do lugar. A Porphyrio, obsesso de huma tan cruel melancholia, que se queria matar, persuadio Plotino, que pasasse para Sicilia, 0 que elle fez, & sarou. Do mesmo modo ha plantas, que tiradas do lugar em que nad medram, dispostas em outro admiravelmente frutificad. [1 Lugar. Dignidade, Preferencia, Estimacii,[..] Sustentar oseu lugar. Defender sua dignidade, authoridade, &c. Digntatem, ou Auctoritatem suam tuert. Dizet ‘seu parecer conforme o lugar, que se occupa [...] Lagat. Povoagio pequena. Parece q' he menos que villa, & mais que aldea, Pagus, ‘ou vicus.@ ‘Trés definigdes se destacam: 1) Lugar é 0 “espaco em que se compreende um corpo natural ou a superficie que o cerca”; 2) Lugar é a propria posi¢ao que se ocupa conforme a “dignidade” e “autoridade” especificas; 3) Lugar é também uma “povoacao pequena’: Da primeira definicdo, ressaltam-se as propriedades salubres e curativas do lugar, e sua capacidade em ser proveitoso a satide e ao crescimento das plantas. Vitrivio destacara trés modos de se alcancar 0 decoro: seguindo uma “regra” (statione/thematismoi), segundo 0 “costume” (consuetudine), e conforme a “natureza” (natura). Ao discorrer sobre 0 tiltimo desses, também denominado © BLUTEAU. Lugar. op cit,v.5,p. 199-202. © “A conveniéncia [decoro] consiste na perfeigdo formal de uma obra, realizada ao se utilizar com competéncia de elementos justos e apropriados. Realiza-o seguindo uma regra ~ em grego thematismoi ~ ou segundo um costume ou conforme a natureza’. VITRUVIO. De Architectura. ‘Trad. e commento di Antonio Corso ¢ Elisa Romano. Torino: Giulio Einaudi editore, 1997. 2. LI, § 5, p. 29. Gabriele Moroli sintetizou 0 “decor” em Vitrivvio como o “resultado final, 0 aspecto elegante (‘emendatus'), composto segundo a razio, alcancado pela triade formada por “stato, referente a disposiglo do edificio [ornamentagio e implantaco coerentes com o caréter €. destinagao do edificio}, ‘consuetudo, costumes consolidados, tradicéo formal [consondncia entre 0 aspecto do edificio, suas partes e seus habitantes], e ‘naturd; relagées especificas com 0 lugar escalhido [escolha de sitios salubres, com Agua abundante, decisivos & satide dos habitantes; orientaco adequada de cmodos e aberturas]": CE MOROLLI, Gabriele. LArchitettura di Vitrcvio, tuna guida illustrata, Firenze: Alinea, 1988. p. 23, “conveniéncia [ou decoro] natural’s* Vitrivio destacou a consideragio da salubridade dos lugares, suas propriedades curativas, e 0 prejuizo que poderia causar a pestiléncia de seus ares e humores, aspecto que constituiu uma varivel importante na escolha dos sitios para a implantacao de cidades e edificios.* Bluteau se serviu de Vitrivio, elogiando-o na extensa introdugao de seu Vocabulério, na parte intitulada Summaria Noticia dos Antiguos Autores Latinos,® ressaltando 0 contetido e a importincia do tratado. Da segunda definic4o, um aspecto bastante relevante a ser considerado nas andlises das circunstancias retéricas luso-brasileiras: & 0 lugar como “dignidade’, representacio da “autoridade” e da posicao que se ocupa na escala de hierarquias reconhecidas. Como veremos a seguir, a ética e as priticas artisticas luso- brasileiras se sustentavam através de uma organizacao que estabelecia os lugares e dignidades correspondentes a uma rigida estrutura hierérquica. O “lugar” tanto definia a dignidade das representagdes artisticas, por exemplo, os sitios mais adequados e decentes para a implantagio de capelas, ou a colocacéo de imagens nos altares, quanto a posi¢ao que as pessoas, conforme suas “dignidades’, deveriam ocupar nas celebragées. VITRUVE. De LArchitecture: Livre I. Traduit et commenté par Philippe Fleury. Paris: Les Belles Lettres, 1990. L. I, Il, § 7, p. 18. Agradecemos ao estudioso de Vitrivio, Jilio César Vitorino, (© acesso as importantes edigdes referentes a essas duas itimas notas. © “A conveniéncia serd conforme a natureza se acima de tudo forem escolhidos sitios quanto o mais salubres e adequados, com agua abundante nos lugares destinados a construgao dos santusrios (...]. Quando os enfermos so transportados de um lugar malsdo a outro salubre, e se Ihes so destinadas éguas puras, se restabelecem mais rapidamente [...|”. VITRUVIO. De Architectura, L,I, S7yp.31. © “Vitravio: Marco Vitruvius Pollio [...] compoz hum volume de Architectura, dividido em dez livros. Ludovico Viles, author de boa nota, affirma que nas obras de Vitruvio se acha huma grande abundancia de térmos, puramente latinos, & excellentes, para fallar com propriedade em ‘muitas materias. A este mesmo author devemos 0 cuidado de haver latinizado muitas palavras _gregas, concernentes a Architectura, das quais porem se acham algumas em Cicero, Varro, & outros authores [...). Bluteau também se referiu & entio recente tradugio de “Claudio Perault” para 0 tratado latino, contemplada por “doutas annotacoens, & bellissimas estampas”. BLUTEAU, op. cit, Summaria Noticia dos Antiguos Autores Latinos. a5 Na ultima definigao, o “lugar” & reconhecido como a propria “povoacio” Bluteau hesitou na caracterizagao de seu tamanho, compreendendo-a entre “villa” ¢ “aldea’. Nao importa por ora a medida correta correspondente a designacao. Mais providente é retornarmos com essa leitura e concluirmos, da relago entre (8 termos, que se pode falar de um decoro dos lugares, e também de um decoro das povoagées, condicionado obviamente por suas “qualidade” e “dignidades”, naturais e construidas. Embora seja bastante significativa essa relagio entre decoro, lugares ovoagées, precisamos avangar mais na identificagao do decoro em circunstancias portuguesas ¢ suas relacdes com as artes, com a arquitetura e com a fabrica de povoacdes. Continuemos reconhecendo o regime que dirigia suas préticas artisticas nos séculos XVII e XVIII portugues. Alicergado em preceitos da Retérica e da Poética, estimulou e exigiu uma atengao especial a0 decoro, 1.2.2 O “regime retérico” das artes luso-brasileiras nos séculos XVII XVII © professor Jodo Adolfo Hansen tem se dedicado ao estudo das artes ¢ principalmente das Belas-letras de raiz ibérica. Traz-nos importantes matérias acerca do decoro compreendido nos séculos XVII e XVIII em Portugal, fundamental a0 melhor entendimento do regime segundo 0 qual as artes desses séculos foram concebidas, produzidas e recebidas. Hansen define assim o decoro: DECORO: Grego prépon; latino aptuam; decens; quid decet, accommodatums decorum. O decoro ¢ uma conveniéncia, Pressupbe 0 costume, prescricées andnimas e coletivas que julgam se a obra esté adequada ao assunto, & situagao etc, O decoro pressupée o que é natural (o que ocorre sempre e deve ser repetido); ¢ 0 que é habitual (que ocorre frequentemente e pode ou nio ser representado).” HANSEN, Decoro/Verossimilhaniga p. 1, (grifo nosso). ‘Apés alinhar sinénimos do termo, Hansen reafirma a nogio primordial da “conveniéncia’. Pressupondo o ‘costume’, o “natural” ¢ o “habitual’, Hansen reconhece aparticipacao de “prescrig&es anénimas e coletivas” capazes de julgar e reconhecer os varios niveis de adequacao da obra, assim como de recomendar “o que ocorre sempre e deve ser repetido”; habilitam-se, assim, contribuir com 0 decoro, o costume, a experiéncia jd reconhecida e a autoridade. Hansen também reconhece as duas divisdes, decoro interno edecoro externo, concordando com os antigos: o decoro interno “tefere-se as partes da obra em fangao do seu todo’, matéria ou “assunto principal do género’, em que participam as categorias mais tradicionais da Retérica: inventio (“eleicao” das coisas adequadas a0 assunto e os “lugares comuns”); dispositio (colocagio das partes em ordem adequada 20 assunto, “visando a utilidade’) e elocutio (verba - ornamentos). O decoro externo “considera o tempo, o lugar e as pessoas do publica”, na “aplicagéo adequada [do] decoro interno que produz o destinatério textual e a circunstincia adequada da recepgao” As definigées privilegiam as Letras, muito embora as prescrigées, as categorias e suas implicagdes sejam homélogas e extensiveis as demais artes. A estrutura que orientava e sustentava as artes nao estava aut6noma em relagio & estrutura politica e social, Hansen compreende as materialidades artisticas como representacdes diretas dos valores daquela estrutura, e reconhece a relacao direta entre 0 “decoro dos estilos” e 0 “decoro ético-politico”® Compreendamos melhor a relacdo entre esses valores e estruturas em circunstncias luso-brasileiras, providente também & interpretagao das fontes documentais nos préximos capitulos. © século XVII e a primeira metade do XVIII, principalmente, apresentam uma peculiaridade quanto ao regime de compreensio e produgio artistica. Na col6nia brasileira, Hansen admite estender esse perfodo (que ele entende como um largo século de quase duzentos anos) até o principio do século XIX, justificando-o © HANSEN, Decoro/Verossimithanca, p. 1-2. CE. também HANSEN, Jodo Adolfo. Ut pictura poesis ¢ verossimilhanga na doutrina do conceito no século XVII. In: PARA SEGISMUNDO SPINA: lingua, filologia, literatura, Séo Paulo: USP/luminuras, 1995. p. 205. ‘© HANSEN, Jodo Adolfo, Artes seiscentistas c tcologie politica. In: TIRAPELI, Percival (Org,). Arte sacra colonial: barroco meméria viva. Sao Paulo: UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 2001. p. 189. #55 = 56= através das intervengdes de Aleijadinho e do Mestre Ataide na Capela da Ordem 3: da Peniténcia de So Francisco de Assis, em Vila Rica. Hansen assiste com reservas classificagao “barroca’ apontadaas produgdesdesse periodo, enfatizandoanecessidade de se procurar compreender melhor ~ ou antes - as preceptivas poético-retoricas que compdem o seu regime mimético de invencio, disposicdo e ornamentaco, ‘Tais preceptivas estavam fundamentadas justamente nos costumes e autoridades da Retética e da Poética, junto a afirmacdo da doutrina aristotélica da mimesis. A mimese nesse momento era notadamente modelar. Os artistas recorriam Predominantemente a imitagio de modelos. Artisticas, iconogrificas, poéticas ¢ reldricas, teolégicas ctc., as fontes eram emuladas, reproduzidas ¢ transformadas nas tepresentacdes, reconhecidas e autorizadas por seu valor de decoto, eficdcia ¢ corregio. Nio existia ainda a nogao de pligio,evirias eram as “temporalidades” que Comiviam nas produgbes: do recente século XVI, como olivro de emiblemas leonologia (1598) de Cesare Ripa, até mais antigas, como as de Cicero, Vitrivio, Pinio e Ovidio, Os mistérios e as alegorias estampadas nas edicdes biblicas eram imprescindivels, bem como os tratados modernos de poesia, pintura, escultura e arquitetura.” AS estruturas que sustentavam ¢ literalmente organizavam as “priticas de “Kpresentagio” entendiam as artes como “dispositivos priticos, titeis?, a servigo Principalmente da encenagdo dos valores catdlicas da monarquia. Igreja ¢ Estado Portugués estavam irmanados sob o sistema do Padroado,’ e as implicacées de uma Politica de cunho teolégico manifestar-se-iam de forma decisiva em todas as artes « na configurasio urbana, sobretudo na colonia, onde o poder metropolitano teria grande necessidade de se representar e de se fazer notavel, ® HANSEN, Artes seiscentistas eteologia politica, p. 181-183, " Sistem integrador entre Igrejae Estado, o“Padroado”facultava uma série de regulagdes¢ regalias exlesidsticas 20 Rei - Grao-mestre da Ordem de Cristo. Servira também a dissimulaga sob $iStercicio de veladerepresso religiosa, dos grandes “projetos colonias’ Seu agpecto posite fot incentivar a multiplicagio de “irmandades” religiosas, entidades leigas e assistenciehs seuntdan cm lomo de um orago — definidoras, em considerivel medida, das comunidades coloniais, potadamente em Minas Gerais. © padroado “norteou toda a vida rligiosa das colOniaslesitonas™ BOSCH, Caio César. Os legos e 0 poder. irmandades Ieigas e politica colonizadora em Minas Gerais. Sio Paulo: Atica, 1986. p. 1-4 Asartes eram os vefculos mais eficazes de propagacao da teologia eda politics propagada pelo reino portugués, colocando literalmente “em cena” os valores da doutrina cristé absolutista, subordinados s orientagées contrarreformistas do Concilio de Trento (1545-1563). Hansen reconhece essa teologia politica de encenacio como a definiram os jesuitas a partir do século XVI -Theatrum sacrum -, permanente colocacao em cena dos valores catélicos que deveriam ser difundidos e continuamente confirmados. A persuasio, que servia a essa confirmagio e & reativagio cotidiana desses valores, dependia obviamente dos diversos mbitos de adequacio aos quais estavam submetidas as produgées e representagdes, sendo ela um fim e um meio conveniente e uitil a manutengo da politica e do sistema hierérquico fundamental dos séculos XVII e XVIII. O reino era entendido como um “corpo mistico”, composto de “membros”, “partes” e “ordens”. A hierarquia, por sua vez, 0 sustentava integrando as partes proporcionalmente. Em todas as estruturas, das artisticas as administrativas, as “partes” deveriam estar submetidas a um ‘todo’, em analogia orginica ao “corpo politico” do reino; estavam todas subordinadas ao “caput” (a “cabega”) representado pela figura “publica” do rei. ‘Nesse momento, a politica étambém uma arte, “técnica que garantea seguranga do reino ou da Repiiblica (res publica) contra inimigos externos e internos, langando mao de varios expedientes’; seu fim era “cuidar da concérdia interna do reino, garantindo o ‘bem comum’ e mantendo a paz. apesar das divergéncias e dos conflitos de interesses”’? O objetivo constante era a “coesio do todo”, a coesao do reino e sua conservacio, ¢ tudo se justificava no “amor do bem comum’, compreensio recolhida junto & metéfora aristotélico-estéica da amizade.* A “concérdia’, virtude ainda que HANSEN. Artes seiscentista eteologia politica, p. 181-185, passin, HANSEN. op. cit p. 188. HANSEN. ep. cit, p. 188. Cicero escrevera um tratado sobre a amizade, desenvolvendo passagens nas quais 0s “lacos” da ‘amizade” e da‘concérdia’ & guisa de conveniéncias, terminavam por contribuir justamente na conservaco das casas e das cidades: “E posto que a amizade encerre muitos e muito grandes proveitos, aquele que mais sobressai acima de todos € 0 facto de ela fazer nascer a uma luz de uma boa esperanca no futuro e no consentir que os énimos caiam em desalento e prostracdo. Com efeito, quem olha para um amigo verdadeiro vé nele por assim dizer = Uunifcadora, ndo era suficiente, Por isso, uma “integracao” de cunho “hierdrquico” Participava arregimentando e consolidando outras ‘virtudes” como a “submissio, 2 obediéncia ¢ a manutencao dos privilégios" A hierarquia justficava o pacto de Sujeicdo em que os vassalos se alienavam do poder em favor do que era reconhecido a0 rei. O siidito reconhecia seu lugar na estrutura hierérquica, portanto também o seu lama imagem de si mesmo. E por isso que os amigos, ainda que ausentes,estio presentes [...] Se suprimires da natureza os lacos da estima, nem casa alguma nem urbe podergo sustentar-se de pé, nem sequer a cultura dos campos se aguentard. Se isto néo se compreende bem, poder, através das dissensbes ¢ discordias, perceber-se quanta forga tem a amizade e a concérdia. Qual » com eftito, a casa tio sélida, qual a cidade tio firme, que ndo possa ser radicalmente destruida por ddios e divisdes? Por aqui se pode julgar quanto bem existe na amizade” CICERO, ‘A Amizade, Coimbra: Instituto Nacional de Invstigagio Cientifca, 1993. VIL, 23, p. 34 Para Leon Battista Alberti, a “amizade” colhida em Cicero serviu tanto & convenincia extema de se {er presentes 0s (amigos) ausentes ~ (re)presentados na pintura - quanto ao desenvolvimento de aspectos concernentes és conveniénciasinternas. Assim, como “contém em si a pinturs = tanto quanto se diz da amizade - a forca divina de fazer presentes os ausentes’, entre as cores 5 Lrmamentos” da pintura -, Albert cogitou haver uma espécie de “amizade’, que faz com que algumas entre sise onvenham melhor do que com outras,conferindo justas qualidades de “graca™ ¢ “dignidade” 20 conjunto da composigio:“Existe uma certa amizade entre as cores atl ponto que ‘uma ao lado da outra Ihe dé graca e dignidade. A cor rosa ao lado do verde e do azul celeste di honra e vids. A cor branca ndo apenas 20 lado do cinzento e do amareo, mas colocada junto de quase todas confere alegria: ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. Traducio de AntGnio da Silveira Mendonsa. Campinas: UNICAMB, 1989. LI $25, p. 95; L. Il, § 48, p. 124-125, Especificamente quanto 8 arquitetura, Alberti resaliou 2s qualidades do “decoro” para a preservacio do edificio: i{.-] nenbuma qualidade, melhor do que 0 decoto e do que a formosura[gradevoleeza formale), é to apta a preservar o edificio do malquerer humano”, Dai que Alberti justiicou os edificios Drecisarem ser tanto tes econfortaveis quanto belose adornados. CL. ALBERTI. LArchtettura (De re aedificatoria). L. 6.2, p. 446. HANSEN. Artes seiscentistas e teologia politica, p. 188. Para “remediar” um desentendimento entre os powos e os vigirios vistadores, que andavam cobrando uma “exorbitancia” pelas Comunhdes ¢ emendas “dos pecados piiblicos’ os procuradores das cimaras das vilas mineires fe referiram 2 um certo “castigo necessirio causado pelo amor da patria’, intercedendo junto a D. Bras Balthazar da Silveira, governador e capitio-general da capitania entre 1713 ¢ 1717, CE. Arquivo Piblico Mineiro ~ APM, Seco Colonial, cédice 06 ~ SC 06, f., 67, 67v (APM SC 06, £. 67, 67+). Doravante, documentos primérios do referido arquivo terio referéncia iniciada pela abreviagdo “APM”, papel na conservacao da cidade e do reino. Esses valores todos estavam representados, especificados e submetidos a [..] uma arte retérica ordenada em preceitos técnicos. Os preceitos sto aplicados com conhecimento das agGes de uso, como arte prudencial que evidencia hébitos do entendimento prético, numa fusio intima de teologia, politica, ética e retérica, Por outres palavras, a técnica éorientada pela prudéncia, de modo que 0 decoro dos estilos evidencia o decoro ético- politico da subordinagéo.* © decoro ético-politico se evidenciava também no decoro artistico que integrava os elementos das obras em analogia as partes componentes do “corpo politico” do reino. Seria um erro dissociar, nesse momento, a “arte (ars, echné, poiein) como um saber fazer, de ética, atividade pradencial ou politica, como um saber agit” {A integracao das partes era, portanto, compositiva e politica, ambas hierarquicas. As produces e representacées deveriam ser guiadas pela prudéncia, virtude retérica capaz de reconhecer e aplicar com juizo (iudicium)” os decoros circunstanciais € especificos, de proporcionar as eleicdes ¢ disposigdes adequadas, atentando finalmente aos efeitos e destinacdes convenientes. O fim era a encenaco dos valores da “Teologia politica’, sendo Deus a “Causa primeira” de todas as coisas. Hansen compreende essas estruturas e seus preceitos, attaando em praticamente todos os ambitos da manifestagao artistica."” No universo portugués, ainda teremos a presenca de nogées do decoro redigidas diretamente para o tratamento da Arquitetura % HANSEN. Artes seiscentistas e teologia politica, p. 189. HANSEN. Decoro/Verossimihana,p. 2, (grfo do autor). Os antigos, como Cicero e Quintiliano, identificavam na diada entre iudicium e consilium (prudentia), “sabedoria’ ou “intuigdo pritics’, a base “determinante” para aplicasio do decoro: iudicium, geralmente relacionado ao decoro interno, capacitacéo para eleger com propriedade os «elementos e ornamentos adequados, “perfeicao expressiva sobre o proprio engenho’¢ consiliu,20 decoro externo: “tino” para aplicar tudo de acordo as caracteristicas circunstancias de recepl0, assuntos, géneros etc. CAMARERO, 0p. cit p. 74-76. » HANSEN. Artes seiscentistas e teologia politica, p. 189. © HANSEN. Artes seiscentistas ¢ teologia politica, p. 181-182. 4 259 cdo Urbanismo ~herdeiras das definigbes e demais preceitos presentes nos tratados de Arquitetura e Engenharia militar -, fundamentais a formacao dos oficiais envolvidos com aimplantagao de povoacoes e edificios concernentes expansio ultramarina. 1.2.3 O decoro nos tratados de arquitetura portugueses Além do regime retérico setecentista propicio 4 consideragdo do decoro em Praticamente todos os ambitos da produsio artistica, os tratados de arquitetura que circularam em Portugal desde o final do século XV constituem referéncias dirctas -vale dizer, imprescindiveis ~ para uma aproximagio das acepgdes do decoro no século XVIII luso-brasileiro, A importancia que lé e cé tiveram esses tratados estimulou xndo apenas sua leitura critica e aplica¢do, como também a prépria producio de novos tratados pelos portugueses, visando inclusive uma melhor adaptacio das doutrinas € procedimentos aos contextos e circunstancias que os acometiam. Muitas das informagées utilizadas a seguir sio frutos da pesquisa realizada por Beatriz Bueno® sobre a formagao dos técnicos militares, arquitetos e engenheiros luso-brasileiros, com destaque para os trechos de importantes tratados escritos por portugueses que fazem referéncia ao decoro e 4 conveniéncia, Desde 0 século XV, pelo menos, Portugal esteve bastante presente nas discusses artisticas europeias. Ofereceu a elas nao apenas um dos centros mais ativos de assimilagao, mas também de reelaboragao e difusio,® se considerarmos &, BUENO, Beatriz Siqueira. Desenho e designio: 0 Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). ® Nos itimos anos, estudiosos da art, da arquitetura e do urbanismo ibérico ~ Portugal, Espanha € coldnias ~,tém se dedicado a compreender melhor esse complexo problema da assimilayioe aifusao de legados tedricos da tradigéo clissica. Sem querer destituir a inevitivel e fundamental influénis italiana, Rafael Moreira (Universidade Livre de Lisboa), por exemplo, importante estudioso do Renascimento portugués, analisando os projetos atribuidos a Andrea Sansovino em Portugal na Passagem pars o século XV1, sustenta que é plenamente possivel, necessrio até, atentarmos para © afloramento de sensibilidades artisticas propicias aos corolérios considerados “renascentistas” 4m solos diversos do italiano, Seria possivel falar, entdo, ao invés de apenas um, italiano, em ‘itios “centros” de difusdo, notadamente neste caso o portugués. MOREIRA, Rafael, Andrea Sansovino ¢ o pleno renascimento, In: SEMINARIO INTERNACIONAL — A CONSTITUICAO DATRADIGAO CLASSICA; PROJETO TEMATICO BIBLIOTECA CICOGNARA, I. Campinas, a pujanga e a universalidade da expansio ultramarina portuguesa. O intercansbae com a Itilia, por exemplo, teria se iniciado ainda no século XIV, reinado de D. Joao I (1385-1433), intensificado durante o de D. Joao Il (1481-1495), ele mesmo educado por humanistas italianos,* culminando mais tarde no abrangente “mecenato” artistico ¢ diplomatico empreendido no reinado de D. Jodo V (1706-1750) ~ periado que nos interessa objetivamente. A promogio e a intensificagio desses didlogos incentivaram 6 intercimbio miituo de arquitetos e engenheiros, entre Portugal e demais cortes europeias, ¢ obviamente a convivéncia com as mais importantes obras ¢ tratados: antigos, como os de Euclides e Vitrivio — este a referéncia primaria da arquitetura -, e modernos, notadamente italianos, e mais tarde franceses e holandeses."* Em meados do século XVI (1541) (e pode-se avaliar com que relevancia), Vitrivio deve ter tido, justamente em Portugal, a sua primeira tradugdo fora da atual Itdlia, dedicada a D. Joao III por Pedro Nunes, destacdvel cosmégrafo ¢ matemitico portugués. Segundo ordens do mesmo monarca, que reinou entre 11 set. 2002. (Informagao verbal). Mério DAgostino (FAUUSP) se ocupou, durante 0 mesmo Seminario, do problema da assimilagio de conceitos no contexto lusitano. Analisou trechos do primeiro livro do tratado de arquitetura naval do portugués Jodo Baptista Lavanha e assinalou, dentre outros aspectos igualmente importantes, a complexa variedade de possiveis entendimentos, em solo portugués, para preceitos como 0 decoro. DAGOSTINO, Mario Henrique Simio. Joio Baptista Lavanha e 0s tratados de arquitetura no renascimento portugués. In: SEMINARIO INTERNACIONAL-A CONSTITUIGAO DA TRADIGAO CLASSICA; PROJETO TEMATICO BIBLIOTECA CICOGNARA, 1. Campinas, 13 set. 2002, (Informagio verbal). ® BUENO, op. cit. p. 88-98. * MANDROUX-FRANGA, Marie-Therese. La Politique Artistique Européenne du Roi Jean V de Portugal en direction de Paris. In: HISTOIRE du Portugal, histoire européenne. Actas du colloque. Paris, 22-23 maio 1986, Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, Paris, 1987. p. 11-144. Demonstrar esse intenso dilogo e abrir um campo considerado na época pouco explorado pela historiogafia foi uma das intengdes da pesquisa de PERICAO, Maria da Graca. Tratadistica da arte dos séculos XVII e XVIII existente na biblioteca da Academia das Belas Artes de Lisboa. Revista Barroco. Belo Horizonte, n. 15, p. 189-218, 1992. Confessando faltar muito ainda a ser revolvido ¢ aflorado, em outras bibliotecas e arquivos portugueses, Pericio enumerou nada menos do que 378 titulos, tratados de arte e na maforia de arquitetura (destaques para as presengas de Vitrivio, Alberti, Palladio, Vignola, Galli da Bibiena, Scamozzi, Andrea Pozzo, Laugier e Blondel) que estariam servindo & formacio dos artistas e arquitetos portugueses nos séculos XVII e XVIII. = 6] 5 =62® 1821 e 1557, Garcia de Rezende traduziu LArchitettura (De re aedificatoria), de Leon Battista Alberti.* Entre 1530 1550, estudiosos diagnosticam um verdadeiro “surto editorial” de tratados em Portugal, contempordneo a consolidaco das “Conquistas ultramarinas” ¢ a.uma “viragem de mentalidade” atestada pela fliacio “incondicional” das encomendas régias portuguesas as influéncias das fortificagSes “a italiana” e da arquitetura “ao modo romano’ Indicios de uma transformacao dos procedimentos nos canteiros de obras, do surgimento e da progressiva afirmacao em Portugal de um novo personagem ~ 0 arquiteto “A Vitrivio’” Do século XV a0 XVIII, esses e outros tratados ~ que envolviam também doutrinas ¢ priticas mavais e militares, Aritmética e Geometria, Cosmografia ¢ Cartografia — serviram fundamentalmente & formagio dos técnicos, arquitetos ¢ engenheiros militares que trabalharam & servigo do reino portugués na metrpole € nas coldnias, ocupago ¢ conservagio®* Os tratados formavam a base doutriné: de suas formagées, reunidos a imprescindivel exigéncia de experiéncia pritica - aspecto que justificou o reconhecimento do cardter “pragmitico” e “aristotélico” dos empreendimentos lusitanos principalmente no ultramar:* Assim, doutrina e pritica moldaram osalicerces que sustentaram as “fébricas” portuguesas, capazes de assegurar “BERGER, Francisco José Gentil. Lishoa eos arquitetos de D. Jodo V: Manuel da Costa Negreiros no estudo sistemético do barroco joanino na regito de Lisboa. Lisboa: Cosmos, 1994, p40, © BUENO, op cit, p. 36-37; 127. © No territsrio mineiro, século XVIII, Bueno identificou os seguintes engenheiros militares: Pedro Gomes Chaves (1709), Padre Diogo Soares (1729), José Rodriguez. de Oliveira (brasileiro, 1731), Gomes Freire de Andrade (1733), José Fernandes Pinto Alpoim (1738), José Matias de Oliveira Rego (1763), Manoel Ribeiro Guimaraes (1782), AntOnio Pires da Silva Pontes (brasileiro, 1791). BUENO, op. cit. Anexo I: Tabela dos engenheitos militares atuantes no Brasil (1500-1822). Beatriz Bueno se concentrou efetivamente na estrutura de formasio dos engenheiros e arquitetos, nas “aules” em Portugal e no Brasil, e destacou a cortespondeéncia entre ambas, subordinadas por um. ‘mesmo regimento. Comentou algumas realizagdes, na metrOpole e na colénia, mas nao se deteve em nenhuma fibrica em Minas Gerais, edificio ou micleo urbano. Comentou obras de Alpoim durante seu periodo no Rio de Janeiro: 0 projeto da Casa de Relacio ea reforma da Casa de Camara © Cadeia, Cf BUENO, op. cit, p. 590-592, BUENO, op cit, p. 104-106, Bueno faz referéncta ao pesquisador Helder Carita. € proporcionar, durante esse periodo, como identificou Bueno, um crescente desenvolvimento dos conceitos e procedimentos utilizados nos levantamentos de sitios, desenho e execucio de edificios e cidades. Doutrina e pratica sintetizavam 0 programa das importantes “aulas” de arquitetura e engenharia militar, na metropole e mais tarde na colonia,” séculos XVII e XVIII, difundindo os preceitos e postulados que desde o século XV circulavam em Portugal. Os bastidores histéricos desse processo compdem percurso bastante extenso. Acreditando ter sintetizado o essencial que nos valha consciéncia panorimica do processo, passamos a analisar diretamente as referéncias e assimilagdes do decoro nos tratados. Ao leitor interessado em se aprofundar nesses meandros, aconselhamos consultar as pesquisas referenciadas. Nosso objetivo agora ¢ tentar identificar as acepgdes do decoro nos tratadistas portugueses, do final do século XVIa0 XVIII Seus escritos ora convergem e chegama coincidir em alguns pontos, ora indicam ponderagées particulares que os distinguem, entre si e diante das “fontes”. As principais sao recorrentes (principalmente Vitrivio), © 0s objetivos das “aulas” em que se ministravam e se “liam” esses e outros tratados permaneceram como diretrizes durante varias geracdes. Tentaremos identificar ‘A primeira instituicao dedicada ao ensino da arquitetara militar em Portugal foi a “Escola Particular de Mogos Fidalgos do Pago da Ribeira’, em 1572. No Brasil, tivemos “aulas” oficiais a partir dessas datas: Salvador/Bahia (1696), Rio de Janeiro (1698), Recife/Pernambuco (1701), S20 Luis! Maranhao (1699), Belém/Gtio Paré (1752). Cf. BUENO, op. cit, p. 277; 498-559. Minas Gerais nao possuiu dessas instituigdes oficiais, mas existem referéncias interessantes sobre “licdes praticas de arquitetura que interessam a muita gente”, que Manuel Francisco Lisboa teria “continuado” na “casa forte” (Palicio dos Governadores) de Vila Rica (ca. 1740). Foram assim declaradas essas “liges” em 1790 pelo 2" vereador do senado da cimara da cidade de Mariana, SILVA, José Joaquim a, apud BRETAS, Rodrigo José Ferreira. Tracos biogrificos relativos ao finado Anténio Francisco Lisboa: distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho. In: ANTONIO Francisco Lishoa, 0 Aleijadinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educagio e Saide, 1951. (Publicagies da Diretoria do Patriménio Histérico e Artistico Nacional, n. 15). p. 30, (grifo nosso). Veremos, no préximo capitulo, a importante presenca do sargento-mor e engenheiro Pedro Gomes Chaves na capitania de Minas Gerais a partir, pelo menos, do significativo ano de 1711 (ano de eregio das primeiras vilas), tendo sido enviado de Portugal & “praca” da Bahia, em 1709, para ensinar na ‘aula publica aos que quiserem aprender’ = 63° = 64s algumas dessas convergéncias ¢ distingSes referentes ao decoro ¢ A conveniéncia, privilegiando as constribuigées para a anilise das implantacées de Ppovoacées. 1.2.3.1 O decoro e a conveniéncia: conceitos e definigdes Os tratadistas portugueses herdaram de Vitritvio a definicdo basica na qual 0 arquiteto necessita simultaneamente de doutrina e pritica construtiva. Na definicéo do “arquitecto régio” Anténio Rodrigues, - nos manuscritos de 1576 e de 1579 atribuidos por Rafael Moreira -, além da “Fabrica’, que “sam haquelas couzas que sio nesessarias pera se fazer ho edefisyo”, “Descurso” & [..] hemtemder as propiedades de todas estas couzas ¢ emtemder ho tempo que Ihe (é] nesessario para se por em hobra, e emtemder ho laurar ¢ asemtar delas pera emtemder se estam em sua débita [devida] rezao lavradas ehasemtadas; pera o qual dis Vetruvio que pera hii om@ [homem] emtemder ysto que a mester largo tempo para ser aversado nelas, e portamto dis “descurso’ ho qual descurso nao he outra couza senao tempo [...]°" © Discurso & portanto, um cabedal assimilado com o tempo, com o qual © arquiteto se prepara para o entendimento da “devida razdo” das coisas, das suas “propriedades” e do “tempo necessério’, que é2 melhor oportunidade para lavré-las, colocé-las em obra e assenté-las.” Nos capitulos com os quais Rodrigues dividiu suas ligGes, reencontramos essa “conveniéncia” de se conhecer bem a matéria da arquitetura, suas “condicées” e “propriedades’, bem como a oportunidade melhor de se obrar: como naquelesem que * RODRIGUES, Anténio. [Prélogo]. £5, Sv. In: MOREIRA, Rafael. Um tratado portugués de arquitectura do séeulo XVI. Lisboa. Dissertagao (Mestrado em Hist6ria da Arte)-Faculdade de ‘Ciencias Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1982. Citado também por BUENO, op. cit. p.312. ® Interessante comparar essa definicdo do “descurso” para o arquiteto com a definigéo conclusiva de Camarero para o decoro, destacando-se a “conveniente conformacio” ea “modalidade particular’; a “precisio” em “quantidade e qualidade’, em “lugar e condigio prépria’;a necessidade de tempo para assimilagao e aplicago,“intuigao natural” enriquecida de “sabia sensiblidade” e “conhecimentos? tratou “Wareia e de sua cOdisam’, “da propriadade do baro [barro] pera teyolo [tijolo]”, “do tempo em que sea de fazer o edefisio’, “do tempo covenyemte para se poder fabricar de terd {terra)”, “do tempo conveniente para se cortar a madeira’, “da propiadade das aruores e quais sam boas pera os edefisios”” ~ capitulos orientados para a devida aplicago dos materiais, adaptados & construgéo e A melhor oportunidade que oferecem as caracteristicas da regio e do clima. Entendemos que Antonio Rodrigues reafirmou nesses capitulos a proximidade e a interdependéncia entre os preceitos vitruvianos de decoro e distribui¢do. Esta orientava a otimizacao dos recursos proprios da regido da construgao, devendo redundar também em conveniéncias econdmicas, atentando sempre para a melhor e mais apropriada adequago as pessoas ¢ suas dignidades.* Um pouco mais tarde (ca. 1580), Jodo Baptista Lavanha, professor de ‘Matematica e substituto de Pedro Nunes (tradutor de Vitraivio) na Escola Particular de Mogos Fidalgos do Pago da Ribeira (Lisboa), reconheceu que a arquitetura “nasce” da “Fabrica” e do “Discurso’, “pello q conve [convém], q tenha noticia da materia ¢ seja muy Especulativo, o q quiser merecer, com justo titolo o nome de Architecto”* Continuando a definigdo, Lavanha reconheceu do arquiteto uma certa “Authoridade” orientada & acomodagao e & conveniéncia, onde nao identificamos senao o decoro: “E assi o sera, Quem com maravilhosa Authoridade, A qual se alcanga quando se faze[m] as fabricas convenientes, e accomodadas ao tempo, a0 lugar, e as pessoas pa [para] q haé de servir’* ® RODRIGUES, Anténio. f 18v-24. In: MOREIRA, Rafael. Um tratado portugués de arquitectura do século XV % “A distrbuicao consiste no devido e equilibrado uso dos recursos e do espago, ¢, durante a realizacio das obras, na prudente repartigio dos custos de acordo com um céleulo. [...] Um segundo nivel de distribuigdo consistira em projetar segundo critérios diversos os edificios, segundo suas diversas destinacies e recursos disponiveis e adequados is dignidades das pessoas que neles hio de habitar. [oe] Resumindo, convém realizar ume adequada distribuicao interna dos edificios conforme a3 necessidades e as diferentes condigdes de todos os destinatérios” Cf. VITRUVIO. De Architectura. L. 1,$8,9,p.31-33. ® LAVANHA. Livro Primeiro de Architectura Naval, apud BUENO, op. ci. p. 343 ® LAVANHA. Livro Primeiro de Architectura Naval, apud BUENO, op. ct. p. 344. = 65 = 66s Apesar de esses tratadistas terem se servido do tratado latino, o primeiro, segundo Beatriz, Bueno, a vincular em seus escritos os principios vitruvianos a arquitetura militar foi o Padre jesuita Luiz Gonzaga, professor durante a primeira década dos setecentos na Aula de Esfera do Colégio de Santo Antio, e “mestre”” do futuro rei D. Jodo V - este o qual veremos participar ativamente das resolugées ¢ determinagdes referentes as intervengSes urbanas ¢ ao povoamento na capitania de Minas Gerais durante a primeira metade do século XVIII. Nas passagens em que comentou os principios com os quais Vitrivio dividiu a arquitetura ~ “Ordem, Disposica6, Eurithmie, Symmetria, Apparencia (Decoro) e Distribuicad™* -, Gonzaga se esforgou em tentar deixé-los 0 mais claro possivel, utilizando-se de comentarios € exemplos de partes e elementos construtivos de sua época, principalmente da arquitetura militar. Outro aspecto que merece destaque nas definigées de Gonzaga é a presenca dos preceitos de conveniéncia ¢ adequacio como reguladores dos demais preceitos, sem 0s quais ~ ousamos dizer - seria praticamente impossivel defini-los. Essa imprescindibilidade levou Camarero a reconhecer a conveniéncia, ainda em Vitrivio, como “principal critério artistico’; “Tudo na arquitetura é ciéncia de proporgdes, ritmo € apropriado juizo de conveniéncia ou decoro”? Entao vejamos: a Ordem, segundo Gonzaga, hhe a que dé as partes de huma praca seg.d* a melhor medida q the compete em sua grandeza sirva de exemplo fago huma praca quadrada cujo lado do poligono interior tem 600 pes. {...] A Cortina 400. A face 255 [...]. Esta diversid.de de grandezas, sendo as que covem a cada parte p* toda a fabrica sait boa se chama ordem da fortificagaé, e absolum.te ordem da Arch.'® A Disposigéo, por sua vez, adianta 0 que ficara definido pela Ordem (relativa & conveniéncia de “medidas” e “grandezas” das ‘partes”), para saber de suas colocagbes ‘BUENO, op. cit, p. 405-407, passim. * GONZAGA, Luiz, Examte militar [Tratado de Archietura riscado], apud BUENO, op. ci ® CAMARERO, op. cit, p.81. *° GONZAGA, Luiz. Exame militar, apad BUENO, op. cit, p. 408, (grifo nosso) “nos lugares que mais lhe convém’, onde as partes “competem. Disposigio “he por as suas partes nos lugares, q mais Ihe conver; porg nad basta saber 0 engenheyro grandeza, q ham de ter as partes de huma praca quadrada (...] mas tambem saber aonde essas partes compete." A Disposicdo ainda recolhe em si as espécies de desenho (ichnographia, orthographia e sciographia, ou scenographia) Adiante, a Eurithmia guarda semellrangas com a Disposigéo, diferenciando-se desta no resultado “vistoso” e “engracado” (contemplado por graca) proporcionado pelo conjunto da obra. Para explicitar as matérias do preceito, Gonzaga recorreu a vetusta comparacao da arquitetura com 0 corpo humano, preclaro modelo natural de conveniéncia e beleza: Eurithmia (...] he a ordem (2) [sic] ¢ a engracada disposigas das partes q sendo entre si desiguais na prefeyca®, postas porem em suas devidas estancias, e lugares fazem a obra vistosa, e boa; como na fabrica do homer (...] qna6 0 ficaria assim se os olhos estivessem nos pes, ¢ os pes na cabeca da mesma sorte se pode fazer exemplo nas partes de huma praga(...]! Por sua vez, a Symmetria, “nome grego, ao qual 20 vulgar corresponde o de proporca6, definio Vetruvio no Liu. 1. C. 1 [sic] dizendo ser a coherencia das partes entre si, a correspondencia conveniente per ordem 20 todo”. Gonzaga penetrou a dificuldade de se diferenciar a Eurithmia da Symmetria, “pois ambas sam disposicad ¢ proporgad das partes na obra q faz’, recorrendo a exemplos para melhor identificé-las, naquela supradita intengio de esclarecer bem os conceitos: Que © homem tenha os olhios na cabera e nad nos pes pertence a Eurithnia, ‘mas q 0s pes tenhad esta grandeza por ficarem em baxo, e os olhos por estarem em sima tenhad outra grandeza diversa, pertence a Symmetria; pello qual dizendo que o polygono interior tem 600 pés, ¢ q a cortina tem 400 you tirando a planta segundo as proporgoens dividas as outras partes, e acho ter o I? flanco 90, e 0 2° 20 e feyta ella venha a conhecer ser esta figura de 2% GONZAGA, Luiz, Exame militar, apud BUENO, op. cit, p. 408, (grifo nosso). ¥ GONZAGA, Luiz, Exame militar, apud BUENO, op. cit, p. 409, (grifo nosso). = 6] ® Fhuma praga quadrilatera; a qual planta se diz Symometrica, q nab so poem as artes em seos lugares como a Eurithmia, mas tambem the da a sua devida Proporgao.* Segundo Gonzage, a Symmetria se condiciona & Dispasigdo e & Burithmia, Porque depende da correta disposicio de cada parte em seu devido lugar. Mas acrescentou 2 esse disposicao das partes a medida conveniente de cada uma delas em correspondéncia ao seu devido lugar e ao todo, a “devida proporcig’* Na sequéncia, Gonzaga definiu 0 quinto principio, o Decoro, encarrilhando lés termos em si mesmos bastantes significativos: Apparencia, Decora, e Fermosura da planta, ou praga, se equivoca tambem m.t* com Eurithmia, tem porem sua differenca; porg a Eurithmia so trata do decoro da boa destribuigad das suas partes, em o lugar qham de ter no risco. ‘mas 0 Decoro he a propriede [propriedade] das partes da praca por ordem ao sitio, 38 tem escolhido, por ordem ao costume com q se dispoem, e per ondem @ natureza do com q se faz. Sirva de exemplo huma praca q se manda fazer, © engenheiro, busca este sitio ou lugar da fortficaad a onde possa ser Conveniente. Busca este sitio mais apto p* o fim q se pertende, dispoem as Partes da praca segundo hum costume, ou methodo de fortifcar, segundo este vay dando a cada huma das partes, o que estas per sua natureza pedem como escarpa 20 muro, contraescarpa ao fosso ¢ a planta, q representa tudo ‘isto se diz decoroza. Irrecusivel comentar a desenvoltura com que Gonzaga acostou ao decoro © termo “fermosura: Pode-se aproximar melhor de seu sentido neste inicio do to; GONZAGA, Lui, Exame militar, apud BUENO, op. cit, p. 410, (grfo nosso) " Interessante a interpretacdo de Camarero para os principiosvitruvianos Susenta que a eurithmia e agate cortespondem ao decoro interno, o decor ‘conveniéncia estera’A“proporgao” sera 6 qiutode teenies a“symmetria’ a “tora correspondents” CAMARERO, op. dit, p.81 “GONZAGA, Luiz, Exame militar, apud BUENO, op. cit, p. 410, (gfe nose) “Pracas” sio Ae lls ¢ Cidades’ segundo comentirio de Bueno (p. 440) sobre a terminclogs apresentada no = 68s século XVIII recolhendo-o em Bluteau: “Fermosura, ou Formosura, Belleza. He uma excellencia, que resulta da Symmetria, ou bem ordenada proporgad das partes, as quaes realmente sad, ou mentalmente se suppoem ser, o cistitutivo de huma cousa, na esphera da sua propria natureza’ Adiante, Bluteau desenvolveu minuciosamente cada parte da definigao, com destaque para uma certa “excellencia’, “Dom de Deos” ¢ “esplendor, celeste, privilegio da natureza, attractivo dos olhos, prisio dos sentidos’, recordando- nos do decoro como “esplendor conveniente’, graca que resplende pelos sentidos. A “fermosura’, adiantou Bluteau, ¢ uma “perfeicao” que resulta da symmetria vitruviana como harmonia e correspondéncia de proporcdes; embora o proprio Bluteau jé tivesse inserido no seu vocdbulo “synnetria” a “symmetrie” francesa, especular proporcao equivalente de medidas, por exemplo, do lado direito do edificio com 0 seu esquerdo"”-, como consagrada na tradugio “corrigida’ de Perrault ao tratado de Vitrivio. Continuando sua explicacio, Bluteau defendeu a “fermosura” para compre- ender tanto as coisas corpéreas como as incorpéreas, porque [..] até a virtude, que he toda espiritual tambem tem proporcdo, comparagad, & comensuragaé. [...] Finalmente consiste a excellencia da fermosura na proporcad das partes, que realmente, ou mentalmente COstituem huma cousa na esphera de sua propria natureza, porque 0 que num objecto he deformidade, em outro objecto he fermosura [...] & assi a tromba do Elephante, que no rosto humano seria monstruosidade, no focinho do Elephante he formosura, porque he parte conveniente, propria, & cdstitutiva do corpo do ditto animal [..] com que o Author das armonias da natureza os quiz distinguir dos nossos."™ Além do ‘esplendor celeste” que “aprisiona’ os “sentidos’, a “fermosura” em Bluteau guarda ainda a conveniéncia de proporgées e as propriedades distintivas, estimulando justamente aquele duplo sentido de conveniéncia e distincéo que radicaram 0 prépon-decorum em sua constituigfo antiga. Sublinhe-se, ainda, BLUTEAU. Fermosura. op. cit v.4,p. 82-83, (grifo nosso). ‘© BLUTEAU, Symmettia, op. cit,¥.7,p. 812-813. ‘st BLUTBAU, Fermosura. op. civ. 4, p. 82-88, (grifo nosso). = 69 = =70. teafirmando a complementaridade e a interdependéncia dos preceitos desde a génese das doutrinas do belo, subordinados, evidentemente, as ligdes exemplares da Natureza, Tanto, assim, que a “tromba” do elefante articipa nele “distinta” e “convenientemente” formosa. Ademais, como vimos, Camarero também definiu o decoro como uma certa conforme sua natureza” Fermosura edecoro poder, ois, se acostar com propriedade. Retomando a definigéo do Pade Luiz Gonzaga, o decoro ¢ reconhecido junto 08 costumes e tradicées, inclusive os costumes e materiais construtivos, e ao sitio de implantagdo que se deve escolher “onde possa ser conveniente’ “mais apto para a esses fatores, condicionada a “natureza” de cada uma delos individualmente e em relacio ao conjunto e & finalidade da obra, A interdependéncia e a complementatidade entre 0s principios foi somprovada pelo proprio Gonzaga, quando advert sobre a Eurithmia tratar cee ge tit “sou? is “ha derided das Garten ie planta. A “planta” por Ao definir a Distribuigdo, Gonzaga exigi que o engenheito se‘acommede? as “patticularidades do Sitios “suprindo humas cousas, com outras, qd nao ache as melhores p* o q intenta’ refetindo-se nitidamente 20s materiais. Definindo finalmente, 0 “engenheiro” Gonzaga ressaltou as virtudes da prudénci cxaltando anecessidade de “intelligencia, Breas cubdado’elbailid de% been conus dese Chahsearecn 08 termos que hese nua em suas fébricas - matéra, forma e fim. “Materia? sio-os ‘materiais, “Forma he aquella qo engenheiro Ihe da naquella figura, [atente-se] q melhor se ajusta ao sitio |... Fim he aquelle q o principe lhe manda fazer L...]. © Universal fim das pracas hhe a observagad da liberd.e,e vida de seos deffensores*™ nna °° GONZAGA, Lui, Exame militar apud BUENO, OP. cit. p.A10-411, a respeito desses sitios ¢ lugares “onde possa ser conveniente’, escolhides os aptos” sobre 0s quais haveria de “melhor se ajustar” a “forma’; “por orem? aos quais se haveria de “distribuir” e “dispor” segundo um ‘costume’. Vejamos o que nos dizem os tratadistas a respeito das propriedades dos sitios, naturais e construidas, acaso preexistam estruturas arquiteténicas e urbanas. Indicagées da relevancia dessa doutrina que estamos estudando, de um importante processo de ajuizamento, levantamentos e praticas que deveria culminar na melhor adequagao da obra ao sitio apropriado as condigées e necessidades da “fibrica’, povoagao ou edificacdo, e na concorrente satisfacio de suas finalidades essenciais, como a defesa ea comodidade dos usos pitblicos 1.2.3.2 A “eleig&o” do sitio conveniente Como quer que os 6mes no principio do mido quado comesario a ter congregacio hiis cd os outros nao erdo tao espertos en seu saber como depois fordo, né fizerdo suas abitacois em sitios comvinientes a seu viuer, donde vierdo a padeser grandes trabalhos, detreminardo dalj por diante de nio viuerem em sityo que Ihes fose perjudicioso en nada [..| Déde comessaram a buscar sytio comveniemte pera seu viuer sobre ho qual fizero gramde emleissio haqueles que emtederam hos emcovynyentes pacados, domde comeluyréo que ho ydefisyo hou povoasio se avia de fazer por nesesidade e nio ha cazo c6 tal comdisio que lhe nao faltase has partes comvenyemtes hao seu viuer [..] e daly em dyate fizerdo suas habitassois por melhor hordem que damtes tinhao feyto. Anténio Rodrigues O tema da eleicao ou da escolha do sitio de implantagio de povoacées, ou edificios era amplamente desenvolvido nos tratados, necessitando amitide da dedicacéo de capitulos ou mesmo livros inteiros. Apesar de nao comportar todos os problemas envolvidos na implantacio, a “eleicao do sitio” era considerada um passo decisivo, condicionante das demais etapas como a disposigao ¢ a distribuicao, Essa =7is "78 sua condigdo inicial e decisiva, instauradora do processo de implantacdo, desde jé logicamente subordinada ao carter e & destinacéo do conjunto da obra ¢ suas partes, remete-nos 4 categoria retorica da invengao (inventio) ~ cuja tradicio latina nos permite traduzi-la também como eleicdo, escolha, Apos relevar, no “Prélogo’, a conveniéncia dos sitios ao viver dos homens, Principalmente quanto implantacio de cidadese “melhor orden” das habitacées, 0 Primeiro capitulo do manuscrito de Anténio Rodrigues (1576) tratou da “emleyssam do sytio’. Rafael Moreira identificou neste capitulo de Rodrigues uma filiago “quase literal” ao capitulo II do tratado de Pietro Cataneo: “I quattro primi libri di architttura?, de 1554." Eram nove, segundo Rodrigues, as “razdes” a serem consideradas na escolha do sitio para a construgio de povoagées ou edificagoes: boa regio, “sem sospeita do quemte nem do frio”; bons ares para se evitar enfermidades: boas ‘Aguas Para “galhardia” e boa disposico dos homens; terras aptas para a producio de mantimentos; boas pastagens separadas para os animais; matas para lenha; evitar edificar entre serras ¢ vales, porque os homens que nestes sitios nascessem “nao serido de claro engenho’; sitio a ser visto de longe, por questdes de defesa; e acessivel com carros.! Em nao sendoas razdes acima “de todo perfeitas” Rodrigues aceitava que as fossem pelo menos em parte, buscando-se remediar as faltas!!2 Nisso consistia 0 primeiro capitulo, mas os trés seguintes ainda subsidiavam. “eleicao” do sitio. O segundo denominou-se “Capitolo em que se trata que couza € a Regyam e de sua bondade”. Dependendo das qualidades do sitio, haveria Fecomendagdes préprias para 0 modo de “compartir” a habitacio, e também para se definir as propor¢des das ruas ~ estreitas nas regiGes quentes, mais largas nas frias. "" MOREIRA, Rafael. Unt iratado portugues de arquitectura do século XVI, p. 167, n. 18;cf também BUENO, op. cit. p.313. RODRIGUES, Anténio.[1.] Capitolo da enleissam do sytio, £5v, 6, 6, 7. In: MOREIRA, Rafael Um tratado portugues de arquitectura do século XVI. " Destaca-se, diante do nosso problema da implantacio de povoagies eedificios em Minas Gerais, 3 recomendacéo de se nao edificar “entre serras e vales”, ou guardar ficil acesso, contlitos analisados nos préximos capitulos. O terceiro e 0 quarto tratavam respectivamente das “propriedades” do ar e da égua (preferencialmente inodoras, sem sabor e transparentes), buscando proteger o edificio ea povoagio de ventos extremados, frios ou quentes, recomendando orientar bem as ruas, as elevagbes e as aberturas dos edificios. Meio século depois, Matheus do Couto, em seu “‘Tractado de Architectura” (1631), dedicou o capitulo 5 do livro I a caracterizacao do sitio adequado para se edificar “Cidade, Villa ou Lugar”, Assemelha-se ao primeiro “Capitolo” das licdes de Rodrigues, destacando-se os indicios pelos quais se conheceria dos sitios - aqui novamente - a “bondade” O sitio adequado para se edificar deve ser “sadio” sem extremos de frio ou “quentura’, “o lugar mais eminente’, porventura “o mais vistoso do sitio que elegemos’, acessivel “com carro sem dificuldades, e a cavallo’, onde animais e vegetacio sejam igualmente sadios; “desassombrado, alegre, e descarregado de Nevoas” (“sinaes [...] de boa calidade de terra’), com “boas aguas” (“principal Ponto nos sitios”), bons ares e frutos, um lugar finalmente “onde se crido homes bem dispostos” e as mulheres procriem criancas sadias."*> ‘Na primeira metade do século XVIII, portanto quase um século depois, os escritos do engenheiro portugués Manoel de Azevedo Fortes trouxeram para o tema da eleigio do sitio praticamente os mesmos pressupostos que os predecessores, com destaque para o temperamento do ar ¢ a bondade das aguas, e a necessidade de atenta consideragao do clima e dos ventos. Azevedo ressaltou a saide dos ares montanhosos, mas advertiu-os sobre a possivel escassez de agua, rechacou os terrenos pantanosos e finalmente exclamou a aptidao dos terrenos planos em receber fortificagdes regulares e uniformes, sobretudo se proximos a providéncia de rios navegiveis, malgrado fossem esses terrenos os mais vulnerdveis aos ataques inimigos.* A eleicao do sitio ainda envolvia uma andlise dependente de levantamentos topograficos mais especificos, a fim de propiciar uma melhor acomodagio das 33 COUTO, Matheus do, Tractado de architectura que leo 0 mestre, & architecto Matheus do Couto 0 velho (1631), 1, Cap. 5, apud BUENO, op. cit, p. 366, (grifo nosso). 8 CE BUENO, op. cit p. 485-486. =2* estruturas sobre os terrenos escolhidos. Beatriz Bueno identificou um notavel aprimoramento nos procedimentos correspondentes aos levantamentos de sitios, auxiliados pelo cabedal portugués gerado no desempenho das técnicas de orientagao e navegagao. Além da experiéncia, estavam a ciéncia ea geometria, aptas orientar como “tirar hu{m] sitio” na sua “devida forma’, e “desenhar” “coforme a Proporgao do sitio’""*Subordinada 4 questao mais abrangente da bondade da regio, estava esse juizo sobre a “aptidao” ou a “capacidade” dos sitios, qualidades que demandavam uma circunspeccdo mais avancada, proporcionada pela “experiéncia dos sitios e pelo exame de suas propriedades em relacio as condicdes requeridas pela povoacao, fortificacao ou edificio a ser implantado. Essa questo, evidenciada na declarada aptidio dos terrenos planos em receber fortificagées regulares, nos remete ao problema da efetiva implantagao da povoacio ou do edificio ¢ suas Partes sobre o sitio “onde possa ser conveniente’, mais apto e capaz de recebé-los, devendo resultar na melhor adequasao das estruturas sobre as suas condigdes. “Tirar o sitio” era um dos fatores iniciais e decisivos para uma correta adaptacao da fabrica ao sitio, recomendando-se atingir, diante do melhor convénio da obra com a irregularidade dos terrenos, a maior “regularidade possivel’” Retornemos & definigao do “Decoro” no tratado do Padre Luiz Gonzaga: [...] mas 0 Decoro he a propriede [propriedade] das partes da praca por ordem 40 sitio, qse tem escolhido, por ordem ao costume com q se dispoen, e per ordem @ natureza do com q se faz. Sirva de exemplo huma praga q se manda fazer, o engenheiro, busca este sitio ou lugar da fortficagaé a onde possa ser conveniente, Busca este sitio mais apto p*o fim q se pertende, dispoem as partes da praca segundo hum costume, ou methodo de fortificar, ¥ RODRIGUES, Anténio, apud BUENO, op. cit, p. 316; 335. 6A “experiencia dos sitios” era um fator indispensével, evidenciando uma nitida e dedarada redisposigo dos técnicos em conhecer bem o lugar onde se havia de implantar uma edificacio ou cidade. Cf. SOUSA VITERBO. Santa Colomba, Pedro de. Diccionario historico e documental dos architectos, engenheiros e constructores portuguezes ou a servigo de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/ Academia das Sciencias de Lisboa, 1922. v.3, p. 13, “” Cf BUENO, op. cit, p. 363; 452. € segundo este vay dando a cada huma das partes, o que estas per sua natureza pedem como escarpa 20 muro, contraescarpa a0 fosso ea planta, qrepresenta tudo isto se diz decoroza.** ‘A aptidao do sitio estava subordinada ao juizo relativo as “propriedades” das partes da praga, que Gonzaga denominou também “natureza” das partes. © decoro era uma propriedade adquirida, dessas partes em boa relagéo (ou adequacdo) com o sitio “que se tem escolhido”; em relacdo a um “costume” de disposigio (que os tratados honravam e autorizavam), em conformidade e conveniéncia de lugar, natureza e necessidade, sobre o “sitio mais apto para o fim que se pretende” Na propria definicéo de “sitio, que se pode colher em Bluteau, encontramos essa propriedade de aptidio, e a heranca vitruviana: “Sitio. Espaco de terra descoberto. chaé, em que se pode levantar edificio. [...] Area [...] Cic. Vitruy, [...] Sitio, Lugar. Disposigao. Aptidao, &c. Vid. nos seus lugares [...] & aptiddo para receber [...]°"" Diante da definicdo de Bluteau, afirmar, pois, a “aptidao” de um sitio poderia soar redundante, necessério certamente ao discurso enfitico e pritico dos tratados, assim como no dos documentos setecentistas, como veremos adiante. Alem daconsagracdoreconhecidaaotermodecorum, aptum/accommodatum sao também sinénimos latinos para o prépon grego. Aptum quer dizer adequado, acomodado, apto, capaz, disposto, o que podemos confirmar ainda pertinente em Bluteau, contemporineo de Gonzaga, para quem “apto” é “o que tem aptidad, ou disposicad para alguma cousa’ Encontra-se também o termo “capacidade” a designar essa aptidao do sitio conveniente, guardando também virtudes de adequacao. Com certa frequéncia, 0 termo apresenta uma satisfagio quantitativa, o que nao deixa de ser também uma qualidade: a capacidade do sitio em acomodar uma edificagao proporcionada a um certo niimero de pessoas." 8 GONZAGA, Luiz. Exame militar, apud BUENO, op. cit, p.410, (grifo nosso). 2 BLUTEAU. Sitio. op cits v7, p. 665. 9 BLUTEAU. Apto. op. cits v1, p. 454. ™ “Capacidade de hum lugar. Amplitudo, inis (..]. CAPAZ, Capa [...] hum lugar, em que cabem muitas couzas, ou muita géte. [..] Capaz. Suffciente, digno, apto, bom, proprio para fazer alguma 1.2.3.3 A “regularidade” primordial da adequagao O resultado da adequacao ou adaptagao da obra ao sitio iria desembocar logicamente nos niveis de adequagao externa da obra, consequéncia daquela interdependéncia entre decoro interno ¢ decoro externo, sinalizada quando discutiamos as virtudes da adequagio. A regularidade geométrica era um objetivo declarado, relacionada ao “ornate” e 4 “comodidade dos usos civis’; mas estava antes subordinada, todavia, a uma necessidade de adequagéo aos contextos que continuamente se constroem. E 0 que indica este trecho do tratado de Serrio Pimentel (1680): Nas cidades, villas, ou lugares antigos, que de novo se fortificad, senaé Podem dispor as partes interiores com a perfeigio que nas que de novo Se fabricaé; mas conve que nos cheguemos quanto puder set 4 mayor Tegularidade, que assim para ornato, como para a cémodidade dos usos civis, & principalmente dos militares se costuma dar no cépartimento das Tuas, prayas, edificios publicos, & particulares naquellas Fortalezas, ou Povoacoens que de novo se fundaé com melhor repartimento, & ordem do que faziao os antigos."? coisa, [...] Nao he capaz para este edificio. ...] Dizer cousas a hum povo capar de as entender” A “capacidade’, evidente neste ultimo trecho, designa também a virtude da inteliggncia e do entendimento humano, acomodada & condigéo que apresenta. Cf. BLUTEAU. Capacidade; Capaz. &. Gite ¥ 2, p. 118-120. Sempre presentes as analogias entre obras, lugares e homens: dignidade, decoro, bondade, beleza, proporgies etc, ‘* PIMENTEL, Luis Serrio. Methodo lusitanico de desenhar as fortifcagoens das pracas regulares inregulares.., Pate I, Secgad Il, Cap. XI. In: BUENO, op. cit, Anexo II: Documentagéo primiria ¢ secundiéria de interesse, Subjaz, no final desta passagem, uma arremetida & disputa (querele) entre antigosemodernos. Um dos fulcros que embalaram essas discusses residiu nas interpretagdes que dedicaram notadamente os franceses a doutrinas ¢ conceitos como 0 decoro. Em sua traducao_ “corrigida” de Vitrivio, Perrault reportou bienséance (traducio francesa para 6 decoro) aos usos « destinagdes, & decoragao e & implantagio dos edificios. No momento em que traduzia 0 cap. 2 do livzo I, justamente na parte em que Vitrivio houvera definido o “decor” Perrault inseria natas doravante decisivas, cunhando a diada entre beleza positiva e beleza arbitriria - argumentos para {que junto & invariabilidade da perfeigdo, da grandeza, da magnitficéncia edo apuro delicado e afinado =]be das proporcoes (beleza positiva) se destacasse a variabilidade igualmente acorde dos costumes ¢ Aludindo ao exemplo de Palmanova, cidade militar italiana do final do século XVI, de rigorosa regularidade geométrica, Serréo Pimentel sugeriu algumas ‘medidas para pragas, rues principais, secundérias ¢ casas, mas terminou convocando engenheiro de “juizo ¢ boa consideracio” a dispor conforme a “capacidade da povoagio’ e a “accémodar as mais particularidades com bom discurso”" Pimentel privilegiou nitidamente uma acomodagéo adequada ao conjunto de varidveis apresentadas pelo contexto e As condigdes necessérias e aptas & povoacao. Escusou-se de anexar mais “figuras” em seu tratado ~ que mostrassem disposig6es prefiguradas de ruas e pracas -, porque nem sempre, advertiu, seria possivel dispor da forma regular que se representa nelas, “quando quasi todas as que de novo se fortificao sto cidades, & villas antigas, onde sena6 podem accomodar as cousas com tanta regularidade [...] pois ndo se devem arruinar as povoages mais que no que for muito preciso’. Jana terceira década dos setecentos, Manoel de Azevedo Fortes também aludiu a Palmanova, concluindo, como Pimentel, que era devido “ajustar-se as imposicdes do meio”: “Ajustar’, segundo Bluteau, remete & nocdo de adequar, no sentido de tornar uma coisa “semelhante” & outra: “Igualar uma cousa fazendo a semelhante & outra, ou em tudo, ou em parte. Zquare, adzequare”; remete também as nogdes de preparagio, correcio e conveniéncia; colocar “em ordem” ~ em “boa ordem das cousas entre si” -, em condico apta, consertada, conveniente: “Ajustar. Preparar. Por em ordem. Aptare, Cic. Ajustar. Concertar huma cousa, & convir nella’, “Ajustado” é 0 que apresenta “conformidade’, assim como 0 “Ajustamento. Conformidade, & boa ‘habitos, usos e circunstincias (beleza arbitréria). Tema tratado na comunicagio de AZEVEDO, Ricardo Marques. A querelle des anciens et des modernes ¢ a teoria da arquitetura no século XVIIL. In: SEMINARIO INTERNACIONAL-A CONSTITUIGAO DA TRADICAO CLASSICA; PROJETO TEMATICO BIBLIOTECA CICOGNARA. Campinas, 12 set. 2002. ((nformagio verbal). CE. também SZAMBIEN, Symmétrie, goat, caractére, obra incisiva sobre as ‘compreensies francesas das teorias e terminologias da arquitetura cléssica. Quanto ao que nos interessa, ca importincia do termo “convenance’, sobretudo no séc. XVI francés. SZAMBIEN, op. cit, Bienséance, p. 92-98; Convenance, p. 167-173. + PIMENTEL, Luis Serrio. Methodo Lusitanico, apud BUENO, op. cit, p. 450-451. ™ PIMENTEL, Luis Serréo. Methodo Lusitanico, apud BUENO, op. cit. p. 451 "8 Cf, BUENO, op. cit, p. 486. ordem das cousas entre si’, referindo-se explicitamente & nocio de composigio, apta € conveniente disposigao das coisas (rerum): “Conveniens, aptaque rerum compositio, ou dispositio”* Azevedo Fortes reconheceu, assim, século XVII adentro, as disposigdes convenientes de adequacao, concluindo que [..] pelos preceitos, e regras de huma fortificagio regular deve obrar os engenheiros na irregularidade dos terrenos, aproximando-se quanto for possivel @ regularidade, isto he, a oservancia das regras da fortificagio regular [..].2" Azevedo Fortes indicia, aqui, um entendimento coevo mais abrangente para a nogdo de “regularidade”; se ndo um outro entendimento, menos atentado em comparagio 4 regularidade geométrica de racionalidade mais evidente— predominante nos estudos das povoacdes e cidades coloniais. Essa nocdo mais abrangente de “regularidade” ~ como “observancia” das “regras” e“preceitos” -, esta também presente no Vocabuldrio de Raphael Bluteau: “regularidade” como “disciplina regular [...], [de] regras bem guardadas”. “Regular” era adjetivo de “cousa segundo as regras da Arte’ Bluteau ainda enunciou a regularidade geométrica das fortificagdes, quando “faces, & angulos sa6 iguaes’, reconhecendo nelas as leis da geometria.” Devia dominar mais abrangente, todavia, como indicam as recomendagoes dos tratados e também 0 vocabulério setecentista, a nocio de regularidade como aquela “disciplina regular” ~ regularidade como “observancia” das regras e preceitos (legibus) reconhecidos. Dentre estes, precisamos destacar a presenca do decoro ‘ BLUTEAU, Ajustado; Ajustamento; Ajustar. op. cit, v1, p. 201-2, (grifo do autor). ” FORTES, Manoel de Azevedo. O engenheiro portuguez (1728/29), apud BUENO, op. cit p. 486, (grifo nosso). '% BLUTEAU. Regular; Regularidade. op. cit, v.7,p.206. '® Analisando o tratado de Fortes, Bueno destacou como a “distribuicao regular [geométrica] de ruas, atendia a uma necessidade militar” - liberdade e “desembaraco” de “comunicacio”. BUENO, op. =. cits p. 484. nos tratados e costumes, sua “retidac” e “legitimidade”” - preceito “regular” de ‘adequagio e conveniéncia, compositiva e destinatéria, aos contextos, sitios, costumes fe pessoas. Assim como a lei suprema da conveniéncia definira, segundo Camarero, & “hiperonimia’ do decoro, quanto aefetiva implantagio das estruturas: sobre os terrenos (geralmente irregulares) e preexisténcias construidas que “no se devem arruinar [...] mais que no que for muito preciso 0 decoro € seu preceito da adequacio apontam para uma regularidade anterior primordial - “boa ordem’” das coisas “gjustadas? e “convenientes” entre si~» sob a regéncia da qual estaria condicionado 0 alcance de uma regularidade geométrica possivel. 4.3 Decéncia e dignidade Enquanto 0s tratadistas desenvolviam seus tratados, os arquitetos engenbeiros militares se preparavem ¢ ja atuavam Sm Portugal e nas colénias, consolidando 0 preceito do decoro como adequagio ¢ conveniéncia de meios e fins, outro proceso envolvia também fandamentalmente a compreenso ea aplicacio de suas recomendagoes, acompanhando as discusses, doutrinas ¢ produgdes da arte e da arquitetura religiosa.”" Estamos falando do processo deflagrado pelo Concilio de ‘Trento (1545-1563), cujos pressupostos e canones procuraram definir regulagbes para a artereligiosa em sua batalha contra a Reforma, Wa discuss sobre a Arte pottia de Horicio, Camarero concliiy poder-se falar de uma lei (lex) By fecoro gezal da poesia ~ que para os retdricos seria da eloanéni da linguagem artistica om ger “Alex, entendida em principio como Virtus, natin, TOs tanto da prépria natureza como fe qualquer atvidade humana (téchr), implica aretitude ov ¢ perfeigao exigivel em uma obra € 0 sidequado procedimento de sua producto de acordo com st finalidade e caracteristicas essenciais particulars, ...] Lex € 0 rectum, legiimum, 0 que est obrigado a uma finalidade ou fungao por isto, equivale a decorum, geral e particular de cada obra’. CAMARERO, op. cit p. 104, (grifo nosso). guitetoseengenheirosenvelvidos com aquele processo de formacio doutrinaria e priticae com 1 ocupacao territorial das cl6nias participaram da concepra9 ¢ construgio de edificios religiosos, 2 ocr de Mesquit, Azevedo Fores eo sargento-mor Jost FP ‘Alpoim. BUENO, oP. it P. 562-577. = 80s © Luteranismo ou qualquer tipo de representacio que remetesse ao profano ou a0 impudico. O processo vigorou a consideracio do decoro pela alcunha da decéncia ~ dignidade apropriada ao que era situado, concebido e representado sob o signo do sagrado. Precisamos tentar identificar mais claramente esse processo, sobretudo diante de suas repercussdes no contexto luso-brasileiro em que Igreja ¢ Estado se encontravam irmanados pelo Padroado, Precisamos ultrapassar também a sinonimia radical entre decoro e decéncia, evidente nos diciondrios desde a etimologia latina: decorum, quid deceat, decens etc. Recorramos inicialmente, entéo, a Bluteau. Para definir a decéncia; o filélogo recorreu ao tratado Da Natureza dos Deuses, de Cicero, concordando 20 vocébulo uma predisposigao de escripulos: DECENCIA. Honestidade exterior, propria de certas pessoas, &lugares. Decorum, i, Neut. Cicero, que tambem diz. Decentia, «. Fem. Parece, que usa desta palavra com escrupulo no livro 2. Da Nat. dos D. [Da Natureza dos Deuses].[...] O sufficiente, para passar com Decencia[...). DECENTE. Cousa, segundo a honestidade exterior. Decorus, a, um, Cic. Set decente. Decere (decet, decuit).* A sinonimia é evidente. Assim como vimos anteriormente em sua definicao Para o decoro, a decéncia ¢ essa propriedade exterior (no sentido duplo de possuir e de se manifestar apropriadamente), atribuivel a “pessoas, & lugares”; “honestidade exterior’, conformidade entrea manifestagao aparente eas condicdes e padrdes éticos © morais. Curiosa 6 a hesitacéo de Bluteau diante do contetido “escrupuloso” uma vez que se tratava, na obra de Cicero, embora pagios, “da natureza dos deuses”!™ "© BLUTEAU. Decencia; Decente. op. cit, v. 3, p. 23-24, (grifo nosso). ™ Dignos de nota alguns aspectos da obra de Cicero, presentes no citado livro segundo: a divina “providéncia} a “prudéncia’ a “formosura’: A infinita conveniéncia da providéncia divina para ‘com a natureza ¢ com a humanidade; a prudéncia (virtude humana ainda maior nos deuses): 2210 dlvino que rege “as forgas que residem em todo o mundo para utilidade e comodidade do género ;humano”; ¢ a formosura” como caracteristica evidente no que provém dos divinos, como intima Propriedade dessa providéncia. Cicero comparou a “formosura do mundo” a formosura de Por essa afinidade divina, o termo decéncia, além da condignidade essencial, parece indicar uma aproximacao bastante adequada a0 considerado sagrado, como se pudesse designar e permitir guardar de forma mais apropriada e justa o seu decoro. Desenvolvendo as influéncias resultantes do Concilio de Trento sobre a arte a arquitetura religiosa, Anthony Blunt" primeiramente constatou a relevancia da nogio de “decéncia’, sinalizando que ela nao teria sido, até entéo, um grande problema para a Igreja. As motivagées do Concilio tridentino vigoraram-na, A decéncia acabou se tornando, entao, mais uma estratégia contrarreformista, um aspecto imprescindivel a ser verificado, principalmente nas pinturas. Guardar o decoro se tornou um argumento a mais em nome da decéncia, Comparada a sua aplicagao no “Alto Renascimento’, por exemplo, em Leonardo — para quem, segundo Blunt, o decoro se responsabilizava pelo “realismo” na tepresentacao da cena (seria mais adequado falar em verossimilhanca, endo em “realismo”)"-, no século XVI o decoro era considerado de modo mais complexo, exigindo que tudo numa pintura seja adequado tanto para a cena representada quanto para o local onde é pintada [..), as figuras devem estar vestidas de maneira adequada a sua posi¢io e cardter, seus gestos devem ser apropriados, 0 cenatio deve ser escolhido corretamente ¢ o artista deve sempre considerar se est ‘uma casa, € no livro terceiro concluiu no apenas que “o mundo é animado e sabio”, mas também “tocador de flauta e de lira, porque dele se engendram os artfices destas artes” Adiant “O mundo nao € Deus [embora seja sua “habitacao"], mas nao hé nada melhor que ele, nada mais formoso, nada mais saudivel para nés, nada mais decoroso em seu aspecto, e nada mais constante em seu movimento”. CICERON, Marco Tulio. De la naturaleza de los dioses (4 Marco Bruto). In: Obras completas de Marco Tulio Cicerén: vida y discursos. Tradugio de Marcelino Menéndez y Pelayo. Buenos Aires: Anaconda, 1946, p. 598-632, passim. © BLUNT, Anthony. Teoria artistica na Itilia 1450-1600. Trad. de Jodo Moura Jr. Sio Paulo: Cosac & Naif; 2001. O Concilio de Trento e arte religiosa, p.142-181. 5 Destacarfamos, junto ao comentério de Blunt, recordando ainda Leonardo, o decoro como aquela. correspondéncia que havia sido também fundamental pouco antes a Alberti, ressaltante nos “Tratados de pintura’: a correspondéncia entre os movimentos do corpo ¢ as expresses da alma. Cf, ALBERTI, Leon Battista, Da pintura. L. 2, § 41-43, p. 114-118 DA VINCI, Leonardo. Tratado de la pintura. Tredugio de Mario Pittaluga. Buenos Aires: Losada, 1954. De los diversos .gestos e movimientos del hombre y de la proporcién de los miembros, § 259-416, p. 109-194 = 8) = 82s executando uma obra para uma igreja ou um paldcio, para um aposento oficial ow um gabinete particular." A doutrina foi utilizada pelos criticos para discutir a conveniéncia das representacdes, principalmente das pinturas, ao lugar em que se pretendia disp6- las, Para a Igreja, a decéncia e a pudicicia eram aspectos irrevogaveis. Qualquer elemento ou tema que incitasse ao profano ow ao lascivo, que se desviasse da decéncia digna dos lugares sagrados, poderia ser rechacado sob 0 argumento critico de nao haver guardado decoro do lugar ~ acusacio sofrida por Michelangelo em nome dos afrescos de figuras nuas da Capela Sistina, mesmo quando as motivacoes das diatribes provinham de relagbes pessoais.” Decerto que guardar o decoro do lugar nao seria uma novidade, concernente desde a antiguidade até o periodo em tela. Guarde-se, por exemplo, a Santa Ceia do proprio Leonardo, adequadamente acrescentada ao refeitério de Santa Maria delle Grazie em Milo ~ nada mais apropriado ao lugar. O que est em jogo, no entanto, € a evidéncia com que o decoro do lugar tinha se tornado uma preocupagao mais eminente para a Igreja e para os criticos, servindo-se da restri¢o moral da decéncia para fazer valer o respeito ¢ a reveréncia digna dos lugares pios e sagrados. Sao Carlos Borromeu teria sido 0 “nico autor’, segundo Blunt, a “aplicar” diretamente as recomendagoes do Concilio de Trento a arquitetura (Instructionum Fabricae et supellectis ecclesiasticae, 1577). Suas Instrugées se fundamentaram na ideia tipica da Contra-Reforma, em que a “propria Igreja e os cultos realizados nela devem ser tio majestosos e impressionantes quanto possivel, de modo a © BLUNT, op. cit. p. 163. ' Blunt comentou as criticas de Aretino 20 Jufzo Final de Michelangelo, motivadas antes pela indiferenga do artista em relagdo & sua admiragdo por ele. Blunt comentou criticas mais sérias, como a de Gilio da Fabriano, para quem, apesar dos méritos reconhecidos, Michelangelo havia se deleitado “mais com a arte, com mostrar de que tipo ela era e 0 quanto era grande, do que com a verdade do tema’: Para ultimar sua critica, Gilio da Fabriano recorreu a argumentos nitidamente de adequago ou decoro, considerando “um artista que adapta sua arte & verdade do tema bem mais sibio do que aquele que adapta a pureza do tema & beleza da arte’: EABRIANO, Gilio da, apud BLUNT, op. cit, p. 161-168, passim. que seu esplendor e seu cardter religioso possam se imprimir até no espectador casual” Borromeu argumentou que suas prescricdes seriam as “mais oportunas eadequadas para o decoro ¢ 0 uso das igrejas” pelo que respeitava “i construgio das prdprias igrejas, das capelas, dos altares, dos oratérios, dos batistérios e de qualquer outro edificio sagrado’, e aos “paramentos” e “utensilios sacros’” Algumas recomendagdes de Borromeu merecem destaque: a presenca necesséria do Bispo ou de um arquiteto designado por ele para a escolha do sitios a igreja sempre elevada em relagao As construgdes adjacentes, se possivel acessivel por escadas; destacada e livre das demais construgdes “conforme o costume antigo owa razdo mesma”; sua “amplitude’, ou capacidade, deve acomodar nao apenas “a totalidade da populaco do lugar, mas também os figis que a ela acorrem em ocasiaio das festas solenes’; 2 fachada frontal deve estar ornada com “imagens sagradas ou pinturas que representem fatos da histéria sagrada’, dotando-a assim de um “aspecto mais decente ¢ majestoso”, “espléndida quanto possivel e conveniente & santidade do lugar’; acompanhar os antigos costumes e 0s habitos construtivos da regio; se necessdrio construir mais altares, que sejam feitos no transepto e nas paredes laterais da nave, bem proporcionados, ¢ com aberturas que os iluminems “na construcio e decoragao da igreja, das capelas, dos altares e qualquer outra parte que tenha relagéo com o uso e decoro da Igreja, nao se deve expressar nem representar nenhuma coisa que seja alheia & piedade ou a religiao, nem profana, disforme, torpe ou obscena”!” ©* BLUNT, op. cit, p. 168. Blunt ressaltou o elogio de Borromen & tradigo do “esplendor [conveniente] eclesiistico’, consciente do “efeito emocional que uma grande ceriménia religiosa pode exercer numa congregacio’, razio pela qual arquitetos e padres deveriam se unir para conservi-la.Ibidem, p. 171 ' BORROMEO, San Carlos. Intrucciones para la construccién de las iglesias (1577). In: PATETTA, uuciano, Historia dela arquitecturat antologia critica. Madrid: Hermann Blume, 1984. p. 157. “© BORROMEO. Intrucciones para la construccién de las iglesias, p. 157-158. = 840 As determinacdes do Concilio de Trento incidiram perpendicularmente sobre as estruturas politicas eartisticas nos ambientes onde o Estado estava irmanado a Igreja, como Espanha ¢ Portugal. E é mais do que provivel que as Instrugdes de Borromeu tenham agido sobre essas estruturas, contribuindo na constituigao dos tratados'e das regulagses eclesidsticas especificas a arte religiosa. A ética,a arte ea arquitetura religiosa produzidas na colénia foram contempladas com regulagdes especificas, confessadamente subordinadas aos pressupostos tridentinos. Celebradas oficialmente em 1707, as Constituigdes Primeiras do Arcebispado da Bahia foram ordenadas pelo reverendo e Bispo Sebastido Monteiro da Vide, quinto Arcebispo da Bahia a partir de 1702. '* Beatriz Bueno identificou a “conformidade” dos escritos do tratadista Matheus do Couto com as diretrizesdifundidas nas Instrugdes de Sao Carlos Borromeu, destacando-se a “opeao” de se implantar templos em sitios elevados e “vistozos’, demonstrando “mais majestade’s a preferéncia por “planta retangular ¢ nave tinica” [com altareslaterais “Sem embaraco algunt” de vé-los}, “ndmero impar de aberturas no frontispicio, ¢ capelas mores profundas, bem iluminadas no interior ¢ ormamentadas de forma correta e elegante’: Ct. BUENO, op. cit, p. 394-395. Segundo Matheus do Couto, “a mayor hhonra, antoridade e, grandeza, e omato, q hum lugar, Villa, ou Cidade tem he os templos’; COUTO, ‘apud BUENO, op. cit, p. 385, Matheus também especulou sobre o cariter dos edificios, vinculando (0 “género” das ordens a destinago e orago das jgrejas, usufruindo da “nao proibigao” de Borromeu ‘quanto is ordens clissicas: “Colina Toscana [...| a mais humilde de moldura |...) [género} 0 mais firme e forte [..] para se acomodar nas Fortalezas, mralhas, Portas da cidade e nas fabricas nobres’; “ordem Dorica, otrora dedicada a "Deidades robustas (Jupiter, Marte, Hercules) [..], Selio quer q esta obra depois q N. Sor veyo a0 Mundo se dedique aquelles Santos que padecerio pela sua Fs “ordem Jonica’,“[..] quando se houver de edificar Templo, havendo de ser Santo, que Seja aquelle q Patticipe de vida robusta e branda, E havendo de ser Santa, q seja aquella que o veyo a ser depois de Matrona [“mulheres respeitivets pela idade, estado e procedimento; mae de familia’; BUENO, 4p. cit, p. 374}; “ordem Corinthia’ She mais rica e omada q as outras,e as colunas mais sahidas, ¢ «striadas [...] quer Serlio, e com muita razdo, q pois o Capitelfoy dirivado de hia Virgem [...] q se edifique & Virgem N Src havendo de ser @ Santos, ou Santas, q seja aquelles q guardardo,etiverio vida virginal. E havendo de set em Edifcios,seja em Mostr*s [mosteiros] q guardem esta virtude. E sendo em edificios de particulares, sea aquellas pessoas de vida honesta ecasta”. COUTO, Matheus do, Tractado de Architectura (1631). In: BUENO, op. cit, Anexo TI: Documentos primdtios e secundatios de intersse, Além de Serio, nessas passagens slo citados Paladio, Vitrivio e Bramante. ‘© FERREIRA, Ildefonso Xavier, Prologo. In: CONSTITUIGOES primeiras do arcebispado da Bahia, feitas e ordenadas pelo illustrissimo, ¢ reverendissimo senhor Sebastido Monteiro da Vide, Bispo do dito arcebispado, e do conselho de sua magestade: propostas e aceitas em o synodo Podemos notar nas Gonstituigées os temas fundamentais postulados por Borromeu com relacdo a arquitetura, com destaque para: a necessidade do Bispo ou de alguém por ele determinado para dar licenga & igreja, construcao e primeiras celebragdes;a elevacio eo isolamento da igreja em relagao as construgdes adjacentes, permitindo deambular-se em torno delas;"* a “capacidade” da igreja em acomodar a populacéo comunitiria e também a excedente que a ela acorresse em dias de festa; a orientacao do edificio; quanto construgdo e a ornamentacao de altares, “limpeza” e“decéncia” para méveis e ornamentos; a conformidade das imagens ~ expressdes € ornatos ~ com os mistérios, vida e texto das sagradas escrituras. Embora nao seja impossivel, é arriscado supor que as Instrugdes de Borromeu tenham constituido fontes diretas para as Constituigdes. A matriz contrarreformista é evidente. Em alguns trechos, as Constituigdes seguem curiosamente a sequéncia daquelas, guardando claramente as adaptagbes locais e temporais, terminolégicas, materiais e éticas (referentes estas aos hdbitos e costumes, desde os eclesidsticos até os que envolviam também fiéis, como as procissGes, mas também aos costumes construtivos, procurando manter elementos e disposigdes tradicionais, como adros, torres sineiras etc.). Logo no pardgrafo de abertura, Sebastido Monteiro destacou a conveniéncia da obra, advogando a importancia da redagao de constituigdes que fossem préprias ao “Estado do Brasil”, porquanto as de Lisboa “se néo podiam em muitas cousas accommodar a esta tdo diversa Regiao."* As Constituigées possuiam regulacées diretas quanto 4 ornamentagao e quanto 2o sitio de implantagio de capelas. O titulo XVI do Livro IV tratava da necessidade de licenca do Arcebispado paraaedificagao de igrejas, capelas emosteiros, “conforme o direito Canonico, e 0 Sagrado Concilio Tridentino”. Apés erguida a edificagao, nova licenca era necessdria, a fim de verificar “se esto acabadas, ¢ os iocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. Sao Paulo: Tipographia 2 de Dezembro/Antonio Louzada Antunes, 1853. p. XV-XV1 ‘© Murillo Mars admirou a notével permanéncia desse tipo de isolamento nas igrejas setecentistas de Minas Gerais. MARX, Murillo. Cidade no Brasil, terra de quem? Sio Paulo: Nobel: Edusp, 1991. p. 23. CONSTITUIGOES primeires do arcebispado da Bahia, p. XXL Se as Ordenagées filipinas serviram indistintamente tanto & metrépole quanto & coldnia, as consttuigbes eclesidsticas foram espectfcas. = 85 = 68 altares em forma conveniente, ¢ se tem 0 necessario para se poder dizer Missa neles"?* ‘As “visitas parochiais” de que resultavam as licengas se mantinham frequentes a partir de entio, destinadas a verificagéo constante da decéncia e do asseio das igrejas, adros, lugares e “ornatos delas’ préximo titulo, XVII, tratava especificamente da “Edificagio, e reparacio das Igrejas Parochiaes’, no qual encontramos as importantes orientagdes para implantagio das igrejas e capel Conforme 0 direito Canonico, as Igrejas se devern fundar, e edificar em lugares decentes, e acommodadas, pelo que mandamos, que havendo-se de edificar de novo alguma Igreja Parochial em nosso Arcebispado, se edifique em sito alto, e lugar decente, livre da humidade, e desviado, quanto for possivel, de lugares immundos, e sordidos, e de casas particulares, e de outras paredes, em distancia que possdo andar as Procissoes ao redor dellas, e que se faga em tal proporgio, que ndo sémente seja capaz dos freguezes todos, mas ainda de ‘mais gente de fora, quando concorrer ds festas ¢ se edifique em lugar povoado, onde estiver 0 maior numero de freguezes. E quando se houver de fazer, ser com licenga nossa: ¢feita vistoria, iremos primeiro, ou outra pessoa de nosso mando, levantar Cruz no lugar, onde houver de estar a Capella mayor, ¢ demarcaré o ambito da Igreja,e adro della."* Aquela “aptidao” do sitio ~ propriedade irrefutavel para escolha do lugar de implantagao de qualquer edificio laico ou povoacao - era compreendida, diante do edificio religioso, como uma decéncia, Sea edificagao da igreja acabaria dignificando o lugar como sagrado, a decéncia era uma condigao anterior requerida para o lugar de implantagao. O edificio e seu ambito instaurariam o sagrado, desde que 0 lugar jd se apresentasse, antes, decente e acomodado. A elevagao do terreno e da edificacao, como vimos em Borromeu, obedecia a.uma intengdo de “majestade” e destaque visual. Mas, nas Constituigdes, para além “5 CONSTITUIGOES primeiras do arcebispado da Bahia, L. 4, XVI: “Das Igrejas, Capellas, Mosteitos. Que neste Arcebispado se ndo edifique Igreja, Capel, ou Mosteiro sem licenga nossa’ § (683-686, p. 251-252. © CONSTITUIGOES primeiras do arcebispado da Bahia, L. 4, XVII, “Da Edificaclo, e reparacio das Igrejas Parochiaes’, § 687-689, p. 252-253, (grifo nosso). destes, a elevacio era uma garantia de que a igreja nao fosse implantada em lugares ‘imidos” e “s6rdidos’, arriscada a sofrer “indecéncias” Dever-se-ia guardar 0 decoro, a decéncia do lugar onde havia de se implantar a casa de Deus.” A “clevagio” era uma propriedade condigna, estendida aos elementos sagrados e ornatos mais eloquentes, Nenhuma imagem ou cruz poderia ser colocada “no chao, aonde [sic] se Ihe possao por os pés, nem também debaixo de alguma janela, nem aos pés das paredes em lugares immundos, e indecentes”* A capacidade do sitio reafirmava aquela propriedade quantitativa, satisfazendo ao ntimero de figis que se pretendia acomodar, acrescidos em tempos de festa. As exigencias de “lugar povoado” e de muitos “freguezes” repousavam principalmente, segundo Murillo Marx," na necessidade de conservacdo do “patriménio religioso” O mesmo titulo XVII ainda recomendava a orientacio do edificio ~ o altar- mor de preferéncia correspondendo ao “Oriente”, quando nao ao sul, evitando-se 0 Norte eo Ocidente -, ea construgo de elementos como pias batismais, pilpitos, sinos, confessionarios e sacristia; ainda no “Ambito”™ da igreja, a construgio de “cemitérios capazes” A “demarcacac” da igreja ~ momento importante da implantacao — envolvia Ignicio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, definira nos Exercicios as propriedades do “lugar” digno de Cristo: “humildade’, “formosura” e “graciosidade’. LOYOLA, San Ignacio de Exercicios Espirituales. In; Obras completas de San Ignacio de Loyola, Madrid: La Editorial Catolica, 1952. p, 113-2525 § 144, p. 187. Em nota as Obras completas (n 36, p. 187), Padre Candido de Dalmases recordou, com interesse, que estas qualidades: “formosura” “graciosidade’, além de consonantes a Jesus Cristo, sio também aplicadas ao “lugar” Sobre a “fermosura” como “esplendor” € providéncia divinos, Cf. BLUTEAU. Fermosura. op. it, v4, p. 82; a “graciosidade” nos estimula a recordar da intervencio da “graga” e do mistério da Conceicio ~ da Virgem ter concebido Cristo sem pecado -, aspecto ressaltado nos Exercicios. ‘© CONSTITUIGOES primeitas do arcebispado da Bahia, L. 4, XXI, “Que a Imagem da Cruz se no pinte, nem levante em lugares indecentes; e que as imagens envelhecidas se reformer’, § 702, p. 257. + MARX, Murillo. Cidade no Brasil terra de quem?, p. 31-50. 4 delimitagio do “ambitc” pio ou sagrado, composto também pelo adro, casts parochiais e pelo cemitério, era de importincia fundamental. Representava implicacées signficaivas, sob albergue do qual se poderia gozar de imunidade oa reversio de punigées delituosas, Dantes civis, poderiam recair mais brandas sob o direito candnico. Cf: CODIGO philippino ou ordenagdes ¢ leis do reino de Portugal. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. LI, V, p. 424-426. CE. (CONSTITUIGOES primeiras do arcebispado da Bahia, L 4, XXXIF-XXXVI, § 747-773, p.270-277. = 97 = B® necessariamente pessoas eclesiisticas, 0 Provisor ou Vigério geral, ¢ seus “autos” deveriam ser guardados nos cartérios do Arcebispado e das Igrejas. © titulo XIX do mesmo Livro 4 vigorava a estratégia proselitista da Igreja, recomendando, ainda, materiais nobres e de melhor solidez: [.... louvavel edificarem-se capellas em honra, ¢ louvor de Deos nosso Senhor, da Virgem Senhora Nossa, ¢ dos Santos, porque com isso se exercita,eaffervora a devogio dos fidis, ¢ se segue a utilidade de haver nas grandes ¢ dilitadas Parochias lugares decentes, em que commodamente se possa celebrar; como convém muito que se edifiquem com tal consideracio [...] e que se obrigio a fazcl-a [sic] de pedra,e ca, e no somente de madeira, ou de barro." Os parégrafos seguintes recomendavam a fibrica e a colocagio das “santas imagens’: “Christo Senhor nosso, a sagrada Cruz, a Virgem Maria e os outros santos” Concentravam aquele objetivo primordial tridentino de remeter a recordacao dos mistérios narrados nas Escrituras, recomendando a decéncia e as conformidades caracteristicas e tematicas com os textos sagrados. Que “se pintem retabolos, ou se ponhio figuras dos mysterios, que obrou Christo nosso Senhor em nossa Redempsao”, trazendo a meméria do povo os beneficios da fidelidade e gracas, e que em tudo “sejam decentes, e se conformem com os mysterios, vida ¢ originaes que representio”;* € que em cada uma das igrejas haja “precisamente ornamentos, e moveis para se celebrar com decencia, e impesa’ Sobre reveréncia devida aos lugares sagrados, “tanto convem que haja nella [igreja] toda a reveréncia, humildade e devocio [...] guardando a modestia, e compostura, que se deve a lugares sagrados”* ** CONSTITUIQOES primeiras do arcebispado da Bahia, L. 4, XIX, “Da Edificagio das Capellas, ou Ermidas, e 0 que se faré com as que estiverem damnificadas”, § 692, p. 254 8 CONSTITUICOES primeiras do arcebispado da Bahia, L. 4, XX, “Das Santas Imagens”; § 696-701, . 256-257. “® CONSTITUICOES primeiras do arcebispado da Bahia, L. 4, XXII, “Dos ornamentos das Tgrejas, € moveis dellas’, § 706, p, 258, Borzomeu dedicou atengio especial 4 “limpeza da decoragio e dos maéveis da igreja’ Cf. BLUNT, op. cit, p. 170. '* CONSTITUICOES primeiras do arcebispado da Bahia, L. 4, XXVIL, “Da Reverencia devida és Igrejas,e lugares sagrados’, § 730, p. 265. A humildade e devocao nos remetem as qualidades de (Cristo e da condignidade de seu “lugar’, segundo Santo Ignacio de Loyola AS requisigdes de decéncia foram recorrentes nos documentos recolhidos em Minas Gerais ~ nos ambitos aqui discutidos de decoro e condignidade - principalmente devido & condigao sacralizada do lugar e dos ritos a serem nele celebrados. Como alertou Hansen, a arte religiosa produzida nesse tempo era uma necessidade, “dispositivos préticos” que serviam ao ritualismo e a representacao baseada em preceitos retéricos e proporcionada hierarquia, encenacéo dos valores catdlicos da monarquia absolutista. As regulagées de dectncia operaram na ornamentagio, na realizagao de festas religiosas e, notadamente, como vimos, na escolha dos sitios para implantaco das igrejas e capelas. Oportuno relembrar a constatacao de Blunt: a “decéncia” se tornou uma designacao bastante relevante apés 0 Concilio de Trento, o que estimula uma hipotese bastante provavel para que ela se destaque frequentemente nas condigées, cartas, peticdes e provisoes setecentistas, enquanto o termo decoro curiosamente menos. Pelo modo com que foi desenvolvido nos documentos e regulagdes oficiais, o termo decéncia indica ter denotado, paraa Igreja, contetidos mais eloquentes a representacio e a preservacao da dignidade requerida pelas regulacdes eclesidsticas, mais apropriada a guardar e fazer guardar 0 decoro do sagrado. Particularmente em Minas Gerais, destacar-se-ia 0 cardter religioso das povoagées setecentistas, exaltado pela quantidade e principalmente pela qualidade dascapelas sobre elas erguidas pelasirmandadese ordenstterceiras. Masnaosepense que a decéncia se restringia ao ambito estritamente religioso. Compreendendo o decoro, a decéncia abrangia uma requisi¢ao geral de condignidade - conformidade entre a manifestacdo aparente e os padrdes éticos e morais -, intensificada pela uniao entre o Estado e a Igreja no contexto luso-brasileiro, Um étimo exemplo estd na carta régia em que foi comentada uma reclamacao dos oficiais publicos da Camara da Vila de Sao Joao del Rei. Com a consciéncia de Sua Majestade e do Conselho Ultramarino, os vereadores solicitavam ajuda da Fazenda Real para a construgio da Casa de Camara e Cadeia, argumentando que “a Villa se hia augmentando Muito, e que na6 era decente, que havendo muitos particullares Nella com cazas nobres, andagem 0s officiaiz publicos, pedindo por emprestimo hua Logea em q’ fizessem os seus actos, alem de estar porhibido, a fazeremse = 8 = 908 na dita Villa Cazas de palha, ¢ so a sua Cadea se achar nesta forma, estando as maiz cazas todas feitas de telha (...- Oportuno recordar os principais assuntos tratados até aqui. Estivemos, durante este primeiro capitulo, procurando desenvolver a imprescindivel consideragio do preceito do decoro nas doutrinas da arte e da arquitetura, particularmente no ambiente luso-brasileiro, com destaques para a sua imanéncia ético-retérica € para a relevincia de sua consideracao nos processos de implantagdo de povoagées ¢ edificios. Os preceitos gerais da doutrina constituiram referéncias constantes para 0 pensamento € as priticas artisticas, resultado da extensa e abrangente autoridade da Retérica e da Poética antigas. Nestas, o decoro teve seus principais agentes de disseminacio, estendido ainda na antiguidade a praticamente todas as manifestacoes técnicas e artisticas humanas, Motivados pela inquiri¢ao do belo, os antigos se aperceberam de que cada ser, objeto ou fenémeno possui uma beleza ¢ esplendor préprios, a se manifestar através de seu aspecto exterior, modos de expressdo, proporcées, qualidades ¢ atributos caracteristicos. Responsabilizado pela determinagio da beleza natural e pela consecucao da beleza artistica, prépon-decorum terminou assumindo, assim, a orientagdo primordial dirigida ao alcance e & efetivagao dessa beleza como “esplendor conveniente” - grata aparéncia e “formosura apropriada” -, em conformidade com sua natureza, finalidade, destinagdo e circunstancias. Ainda na antiguidade, a diviséo didatica entre decoro interno e decoro externo reafirmou a doutrina do decoro como preceito regular de adequacio conveniéncia de meios e fins: composi¢ao das partes melhor adequadas entre sie em relagao & conjungao do todo, convenientes em quantidade, proporgao, grandezae qualidade, ajustadas em tempo, modo e lugar mais aproptiado & manutengdo de suas APM SC 18, £1134. Carta négia enviada ao governador D, Pedro de Almeyda. Lisboa, 31/01/1721 Este documento, assim como todos os demais documentos primarios adiante contidos no trabalho, foram transcrtos pelo autor. Preservamos as grafias originais nascitagdes, estejam estas destacadas ‘ou néo do texto, Ao comentar e desenvolver 0 contetido dos documentos, todavia, antes ou aps as

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