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Resumo
Este artigo propõe apresentar a necessidade dos diálogos entre a cultura erudita e a cultura
popular, no âmbito da literatura e da música modernista, bem como os diálogos entre as
artes como fundamentação da proposta artística do Modernismo, que teve seu início na
Semana de Arte Moderna, em 1922. Os intelectuais ligados à literatura, que foram os
principais mentores desse movimento, pautavam as suas renovações na valorização da
cultura brasileira no diálogo com as artes, sendo uma das principais a música.
Palavras-chave: Diálogos culturais; Diálogos artísticos; Modernismo.
Abstract
This article intends to show the necessity of dialogue between classical and popular culture
inside modernist literature and music, and the dialogue between the different arts, which has
as starting mark the Semana de Arte Moderna, in 1922. The main literary intellectuals of this
artistic movement sustained their revolutionary propositions on a great importance for
Brazilian culture and on the dialogue among the arts, with emphasis on music.
Keywords: Cultural dialogues; Artistic dialogues; Modernism.
1
Professor de Língua portuguesa do SESI. Formado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá e
acadêmico de Licenciatura em Música na Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
Anais do VII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba, Embap, 2011 . 211
se trata de um texto representativo, exemplar e, pelo que procurarei mostrar, um texto que contém as
coordenadas básicas da discussão em torno da música na época do movimento modernista. Nele se
apresenta claramente, do ponto de vista de um escritor, em um contexto pré-modernista, uma
concepção de música unida a uma concepção do Brasil, consistindo no esforço principal a união
explícita de uma concepção à outra num só projeto. Temos, portanto, uma tentativa marcadamente
ideológica de fazer a música responder a interesses sociais, de aparelhá-la conceitualmente
(revestindo-a de “literatura”) para que ela desempenhe uma determinada função (WISNIK, 1977, p. 21).
A imagem de Brasil que Coelho Neto propõe em seu programa tem raízes no
Romantismo musical europeu – no que tange ao conceito de música como uma linguagem
universal – e no nacionalismo regionalista representado por Monteiro Lobato. Esse
Romantismo reflete uma concepção de música que os compositores europeus como
Wagner, Liszt e Mendelssohn tinham: de que a música pura reina sobre as outras artes, pois
é uma linguagem superior, fala aos sentidos sem passar pelo crivo da razão: é a “linguagem
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Ela é frequentemente concebida, então, como linguagem original, a linguagem primeira, a forma de
expressão mais “natural” entre todas, oferecendo-se como o canal próprio para a espontânea expansão
da sensibilidade. Essa hierarquização das artes que faz a música reinar sobre todas desenvolve-se, no
entanto, em duas direções: alguns pensadores veem na música pura o ideal de uma expressão não
referencial dos sentimentos, de uma arte conectada ao espírito mas não representativa: em outros
pensadores, e especialmente em alguns compositores, a música é vista como a arte capaz de traduzir o
texto poético e de incluir em si, com vantagem, a capacidade figurativa de outras artes. É o segundo
caso, evidentemente, que conduz à música programática (WISNIK, 1977, p. 26).
procurando, como Coelho Neto, omitir ou amenizar os conflitos e tensões que existiram na
formação do país.
Outra ideia ultrapassada de Brasil presente nos romances de Coelho Neto é a que
separa a condição social do homem do campo da do homem da cidade, privilegiando este
como símbolo da civilização, num retrato ideologicamente convergente com o do Jeca Tatu
de Lobato. Wisnik chama de esquizofrênica a postura do autor do projeto, pois há uma
tentativa de assimilar vozes díspares, uma intelectual narrando e outra dos personagens,
homens rústicos, retratando a sintaxe e o vocabulário do homem do campo, separando-o
como objeto exótico (WISNIK, 1977, p. 27).
Coelho Neto diverge da proposta modernista, pois esta considera a miscigenação
brasileira mais cosmopolita, procurando por em contato a cultura popular e a erudita.
Contrapondo-se ao conceito musical romântico de Coelho Neto, o autor do Prefácio
Interessantíssimo (1922) expõe uma “aproximação entre os processos de simultaneidade na
poesia e os procedimentos harmônicos e polifônicos na música” (WISNIK, 1977, p. 32). Mas
a música não é vista como programática por Mário de Andrade, e sim como parte do
processo de composição poética, suas “alusões musicais passam a constituir o texto
poético, ao fazer parte dele servindo a desenvolvimentos paródicos” (WISNIK, 1977, p. 32).
Assim, as renovações estéticas musicais, que tiveram entre seus representantes Claude
Debussy e Igor Stravinsky, ecoam na literatura modernista na conceituação de uma nova
poética, que sugere uma reestruturação formal espelhada em conceitos musicais que, por
sua vez, também passam por uma renovação.
já incorporava em suas obras elementos estranhos, devidos ao gosto pelas estridências e fortíssimos,
violências veristas suportadas frequentemente por uma estrutura tonal, permeada, no entanto, por
influências colhidas em Debussy, que afetam mais profundamente a estrutura harmônica tradicional
(WISNIK,1977, p. 36).
Da maneira pela qual se definirão as relações entre a técnica erudita e a técnica inerente ao material
popular, dependerá a meu ver, o alcance da estilização, mais efetiva quando elementos técnicos da
música popular afetam realmente a matriz construtiva da obra, e não quando servem de mero material
(WISNIK, 1977, p. 50).
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Tendo em vista o quanto a cultura popular auxiliou nos eixos estéticos e temáticos do
pensamento modernista, localizaremos o contexto da música popular no início do século XX,
no qual a dinâmica da modernidade se manifesta tanto na elite artística, quanto nos artistas
populares da época. Ambos tinham contatos diretos e indiretos entre si, em críticas de
periódicos e encontros na boemia. O ambiente da modernidade, com o funcionamento de
fábricas, o ritmo da cidade, a reconfiguração da população – pela imigração e pelo êxodo
rural – e o surgimento de novas tecnologias, são fatores comuns a todos que vivem nos
grandes centros urbanos, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro do início do século XX.
Esse amálgama propicia a construção de uma ideia de identidade brasileira, pautada na
nova organização social e nas intersecções entre a cultura popular e a cultura erudita.
Em O mistério do samba (2007), o antropólogo Hermano Vianna procura localizar a
consolidação do samba como símbolo da identidade brasileira ou da “brasilidade”, pois o
ritmo que é um cadinho do lundu africano e da polca europeia propicia um ponto de contato
entre pessoas de classes diferentes. Vianna inicia seu livro com um encontro entre
intelectuais modernistas e músicos populares relatado por Gilberto Freyre, uma reunião
boêmia na qual estão presentes o próprio Freyre, antropólogo, o historiador Sérgio Buarque
de Hollanda, o poeta Prudente de Morais Neto e os músicos Villa-Lobos, Luciano Gallet,
Pixinguinha e Donga.
Gilberto Freyre é uma das referências de Vianna para a construção de um
pensamento de brasilidade. Na época do encontro com Pixinguinha, Freyre estava
elaborando Casa-grande e senzala (1933). O primeiro encontro entre o músico e o
antropólogo foi quando este viu o outro tocar. Esse primeiro contato foi mediado por Sérgio
Buarque, que conhecia Donga, um dos integrantes dos Oito Batutas, que entre outras
companhias de boemia, teve ao seu lado os referidos modernistas cariocas do círculo de
Bandeira. Outro importante encontro propiciado pelo historiador foi o de Blaise Cendrars
com Pixinguinha, que levou o grupo de samba desse chorão a uma turnê internacional.
Nos anos que se seguem à Semana de Arte Moderna, muitas crônicas de Gilberto
Freyre tomam como exemplo de brasilidade a cultura negra nascente no Rio de Janeiro,
conseguintemente, a de sua música popular. A definição de identidade brasileira e de
brasilidade é discutida por Freyre a partir do contraponto entre “dois brasis”, como as outras
dualidades do modernismo: um que está pautado pelo modelo europeu, e outro mais
autêntico, que é exemplificado por Vianna com o surgimento do samba:
Quando falo, talvez um tanto forçadamente, em grande mistério, não me refiro aos problemas que
muitos pesquisadores da música popular brasileira gostam de debater: a origem etimológica da palavra
samba; o local de nascimento do samba; a identidade dos primeiros sambistas; ou mesmo a lista
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completa dos compositores de Pelo Telefone, tido como o “primeiro” samba. Penso especificamente na
transformação do samba em ritmo nacional brasileiro, em elemento central para a definição da
identidade nacional, da “brasilidade” (VIANNA, 2007, p. 28).
Sem um projeto de renovação, como o dos modernistas, mas inserido num contexto
em que a construção de uma identidade brasileira era a preocupação de intelectuais e
políticos, o samba começa a tomar forma e, assim como o movimento modernista, teve um
momento de recusa social, por ser proveniente dos terreiros e de uma cultura de classe
baixa, e outro de aceitação e exaltação, chegando a símbolo nacional da identidade
brasileira. Os motivos de recusa e de aceitação do samba e do modernismo têm diferentes
repercussões. Ambos revolucionam e chocam a sociedade em diferentes instâncias. O
modernismo desestrutura o pensamento acadêmico que, por sua vez, se abre à
transposição e à difusão da cultura popular a outras classes sociais, não a restringindo num
espaço marginalizado. O primeiro é negado intelectualmente e o segundo socialmente. E
ambos são negados pelo pensamento burguês novecentista e conservador de uma
ideologia ligada aos modelos estéticos europeus do século XIX. A inovação do samba
através do sincretismo rítmico permite o contato da classe popular com a classe intelectual,
e a renovação intelectual valoriza esse contato porque enriquece as proposições de
renovação dos modernistas.
A música popular foi bastante utilizada pelos intelectuais em debates sobre o que é a
cultura brasileira. Mário de Andrade e Gilberto Freyre a viam como forte característica do
Brasil e do espírito nacional, pois ela possibilita a interação social. Partindo do pensamento de
Antônio Candido, que valoriza na música a sua possibilidade de transpor barreiras sociais,
Hermano Vianna conclui que ela serve “de elemento unificador ou de canal de comunicação
para grupos bastante diversos na sociedade brasileira” (VIANNA, 2007, p. 33-34).
A relação entre a classe intelectual brasileira e a música popular aparece em vários
momentos da história do Brasil, como por exemplo, no século XVIII, quando o compositor
brasileiro Domingos Caldas Barbosa faz sucesso nos salões aristocráticos de Lisboa com as
modinhas brasileiras. No final do século XIX, a fama da canção popular brasileira
acompanha Catulo da Paixão Cearense, que reivindica seu espaço na literatura acadêmica
e na música popular sertaneja. Esse modinheiro e poeta, depois de trabalhar como
estivador, está presente em salões e saraus lítero-musicais frequentados pela alta
sociedade. Catulo desenvolve suas canções com temas sertanejos e nortistas. Seu
reconhecimento musical o leva ao Instituto Nacional de Música, onde tem contato com
músicos como Alberto Nepomuceno. Influente no meio intelectual e empenhado na música
popular, Catulo auxilia na divulgação de músicos como Donga, Pixinguinha e Heitor dos
Prazeres, que até então restringiam suas criações ao âmbito da casa da Tia Ciata, na
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década de 1910, que era frequentada, entre outros, pelo “poeta do sertão” (VIANNA, 2007,
p. 51).
Essa casa era um refúgio dos músicos populares e, portanto, um dos agentes
culturais que propiciaram a união de ritmos presentes na cultura brasileira. Em O século da
canção (2004), o estudioso Luiz Tatit diz ser a canção um “território livre, muito frequentado
por artistas híbridos que não se consideravam nem músicos, nem poetas, nem cantores,
mas um pouco de tudo isso e mais alguma coisa” (TATIT, 2004, p. 12). Esse território livre é
onde se encontram os cancionistas e de onde se origina uma das mais ricas criações da
modernidade: a canção, considerada no fim do século XX como um gênero autônomo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante desses fatos, podemos inferir que há muitos diálogos entre a música erudita,
a música popular e a literatura na formação do pensamento modernista que, por sua vez,
propunha o diálogo entre as artes e o diálogo entre as culturas popular e erudita,
consolidando ambas. Assim, podemos observar a formação de uma arte genuinamente
brasileira, no âmbito erudito ou popular, estabelecendo seus próprios padrões mediante
esses diálogos. Vê-se, ao longo do século XX, o desdobramento dessas propostas
modernistas, que se manifestam na poesia concreta, no movimento tropicalista, na poesia
marginal, na música de protesto, no Quarteto Novo, no Baião, no Mangue Beat entre outras
tantas manifestações e diálogos que reforçam a cultura brasileira e suas facetas.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Manuel. In: GUIMARÃES, Júlio Castañon (Org.). Seleta de Prosa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
______.; ANDRADE, Mário. Correspondência. (org. Marcos Antônio Moraes) São Paulo:
Edusp, 2001.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5. ed. São
Paulo: Nacional, 1976.
NAVES, Santuza Cambraia. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro,
Fundação Getúlio Vargas, 1998.
TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
VIANA, Hermano. O mistério do samba. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
WISNIK, José Miguel. O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22. São
Paulo: Duas Cidades, 1977.