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Leanne Shawler
Inglaterra, 1812
Uma paixão mais antiga que o tempo...
Ramsay está habituado a dividir sua cama com certos fantasmas. No entanto o
mais recente a invadir seu quarto é diferente dos demais. Isso porque com um simples
toque, surge a figura de uma linda e sedutora mulher, revelando mais sedução do que
seria apropriado a uma dama. A adorável Jane habita seu mundo do cair da noite ao
alvorecer, fazendo-o esperar ansiosamente por cada fim de tarde...
Algo estranho acontece toda vez que Jane entra naquele quarto. O que a princípio
parecia ser uma leve bruma, lentamente se transforma no homem mais lindo e intrigante
que ela já viu. Um homem que ela só pode encontrar nas sombras da noite... O problema
é que apaixonar-se por ele é inevitável, deixá-lo é doloroso, e esquecê-lo é impossível...
Copyright © 2005 by Leanne Shawler
Originalmente publicado em 2005 pela
Kensington Publishing Corp.
TÍTULO ORIGINAL: Touched by Time
© 2007 Editora Nova Cultural Ltda.
Digitalização: Néia
Revisão: Cris Paiva – Projeto Revisoras
Capítulo I
Quase dois séculos depois...
Jane Leighton seguia a sra. Marshall, proprietária da pousada Chadwick,
escadaria acima.
Aquilo era tudo de que precisava, Jane afirmou para si mesma, deixando-se
admirar as linhas simples e clássicas do estilo georgiano, à medida que caminhava.
Precisava afastar-se do burburinho de Londres, de seu patético e grudento ex-namorado
e encontrar algum lugar calmo e pacífico. Tinha de fazer novos planos. Que não
incluíssem homens, para variar.
E que local melhor do que Bath? Com sua arquitetura linda e antiga, a cidade era
o cenário adequado para começar de novo. Não passava por sua cabeça abandonar sua
joalheria, mas necessitava de mudanças em sua vida pessoal.
A silhueta enorme da sra. Marshall não lhe permitia enxergar o que havia a sua
frente. Algumas pinturas emolduradas em madeira escura estavam penduradas nas
paredes claras. Elas mostravam cenários de Bath, e Jane prometeu a si mesma,
enquanto lidava com sua bagagem, que depois voltaria para examiná-las melhor.
Chegando ao último degrau, olhou adiante, respirando com certa dificuldade por
causa do esforço. O quadro com que deparou retratava um homem com grande realismo.
Na certa, não se tratava de nenhuma cópia moderna. Avaliou o colete que o cavalheiro
vestia, bem ajustado. A obra era definitivamente do período da Regência. Deveria estar
num museu, em sua opinião.
Mas Jane se sentia atraída por algo mais que as cores muito vividas. O artista era
talentosíssimo. Com suas tintas, demonstrara a vibração controlada do modelo, que tinha
o rosto iluminado pela emoção, embora sério. Seus cabelos eram loiros e pareciam
macios, e sua pele, clara, contrastava com o fundo escurecido de uma biblioteca. Em
uma das mãos segurava um pergaminho; a outra apontava para uma estátua da justiça.
Jane teve a impressão de que aquele homem fora alguém muito imponente.
A sra. Marshall se voltou para ela e sorriu, dizendo:
— Esse é Ramsay Chadwick, um dos primeiros proprietários desta residência.
— Que cavalheiro interessante!
Ramsay não tinha a beleza típica do modelo romântico, mas era, sem dúvida
alguma, muito bonito.
Jane imaginou se seria exagero tentar enxergar a cor de seus olhos, aproximando-
se mais da pintura. Tentou demonstrar alguma dignidade quando baixou as malas por
um momento.
— Sua hospedaria leva o nome de família do sr. Chadwick em homenagem a ele,
sra. Marshall?
— Sim. É uma história muito interessante a desse rapaz. Tem certeza de que não
quer ajuda com essas malas?
Jane ergueu as alças de couro, ajeitando-as nos ombros.
— Tenho, estou bem.
A sra. Marshall começou a subir um novo lance de escadas.
— Foi uma tragédia, é o que lhe digo. Ramsay desapareceu depois que sua noiva
sumiu misteriosamente. Tão jovens e tão belos! Há um retrato dela na sala de jantar, no
primeiro andar. Se o sr. Chadwick a matou ou se tornou também uma vítima, não se sabe.
— A dona da hospedaria respirou fundo, recuperando o fôlego. — Não tem medo de
fantasmas, tem?
Jane tentava acompanhar o ritmo da boa senhora. Planejava passar apenas duas
semanas, mas arrumara bagagem suficiente para um mês.
— Nunca pensei a respeito, sra. Marshall. Por que pergunta?
— Eu a coloquei na suíte principal, no último andar. Tempos atrás, era lá que
ficavam os quartos originais. Todos os cômodos foram convertidos em dormitórios agora.
A suíte maior pertencia a Ramsay, e dizem que seu fantasma aparece ali, de vez em
quando.
— Já o viu?
— Não, mas alguns hóspedes, sim. Entretanto, ele é inofensivo. Prefere outro
aposento?
— Não, tenho certeza de que esse estará bem. — A idéia de arrastar todo aquele
peso para outro lugar não a agradava em nada. — Com ou sem fantasma.
Jane olhou por cima do ombro, avistando de novo o retrato. Talvez fosse efeito da
luz, mas achou que Ramsay a encarava. Sim, sem dúvida voltaria mais tarde para
observar a tela com mais atenção.
Apressou-se para alcançar a sra. Marshall, que já subia o próximo lance.
— Nunca teve vontade de vender a pintura?
— Isso me ocorreu algumas vezes, meu bem. Mas, depois que a obra foi
restaurada, não consegui me desfazer dela. Esteve no museu da região, mas acabou
voltando. Afinal, este é o lar desse quadro, não concorda?
Jane concordou com um leve sinal. Naquele momento, a sra. Marshall abriu uma
porta no terceiro andar.
— Aqui estamos. A mobília não é toda da época de Ramsay, claro, e temos
também algumas facilidades modernas. O televisor está escondido no guarda-roupa, e o
banheiro fica atrás daquela porta. Há uma apostila na cômoda que explica a história do
mobiliário desta suíte. Espero que fique confortável em sua estada. Se precisar de algo,
por favor, me diga. O desjejum é às oito.
Assim que ela se foi, Jane deixou as malas caírem no carpete bordo, soltando o
ar dos pulmões, aliviada. Olhou a seu redor, para as paredes creme e a mobília que
imitava o estilo Chippendale. Enfim, só.
Jogou-se sobre a cama, encarando o dossel sobre sua cabeça. Estava melhor
sozinha. Desse modo, não podia magoar ninguém. Essa era uma lição que demorara a
aprender. Não deixaria seu coração se partir novamente.
Sentiu-se sobrecarregada, como se todas as suas preocupações e toda a culpa
que sentia tivessem um peso físico em seu corpo. Não tinha ânimo algum para se
levantar, arrumar suas coisas e ligar para seu trabalho, para ver se estava tudo bem.
Rolou sobre a colcha macia, curvou-se e chorou como uma criança.
Um calafrio despertou Jane do sono leve. Enfiando-se entre as cobertas, tentou
imaginar onde estava.
Então lembrou-se da viagem apressada de Londres até Bath, seu refúgio.
Terrance se tornara muito carente, e Adam a queria de volta. Dois homens
emocionalmente desequilibrados a sua procura era mais do que podia agüentar.
Terminara com ambos, e quanto mais rápido eles percebessem isso, melhor. Com sorte,
sua fuga da cidade seria uma dica boa o suficiente para que a deixassem em paz.
Que horas seriam? O frio que sentira ainda não fora embora. Sonolenta, procurou
alcançar outro cobertor. O quarto estava escuro, e não conseguia achar a ponta do tecido.
Ao notar que algo branco flutuava perto dela, Jane franziu as sobrancelhas. Não
se lembrava de ter visto algo branco ali antes. Mas também não prestara muita atenção
ao quarto até então. Será que a brisa noturna fazia alguma cortina esvoaçar? Bem,
nenhuma janela ficara aberta. Passou as mãos pelos olhos, tentando afastar o sono e
enxergar com mais clareza.
A forma branca se definia melhor, seu contorno distinguindo-se em tons de cinza.
Estava escuro ali dentro, porém, a figura emitia certa luminosidade.
Jane parou de respirar ao ver que um homem se ajoelhava ao pé de seu leito e
cobria o rosto. Estaria rezando? E emitia aquela luz? Seria um anjo ou um fantasma?
Naquele momento, Jane passou a acreditar em ambos.
Imóvel, ficou a observá-lo em oração. No entanto, se ele tinha tanta fé, por que
assombrava aquele quarto? O que teria acontecido?
Jane se inclinou um pouco para a frente; nunca tinha visto um fantasma! Algo
dentro dela gritava para que saísse de lá rápido. Mas não conseguia. Nunca entendeu
por que as garotas dos filmes de terror não fugiam quando tinham chance. Até então. Era
curiosidade demais para seu próprio bem.
Como membro honorário do clube das idiotas demais para viver, ao qual se
associara desde seu primeiro caso com um homem casado, permaneceu onde estava,
hirta, encarando a figura etérea.
Embora em uma posição submissa, ele era muitíssimo másculo. E estava tenso.
Seus cabelos eram um tanto ondulados. Não notara esse detalhe no quadro. Embora não
visse seu semblante, Jane sabia que se tratava de Ramsay Chadwick. A sra. Marshall a
avisara de que ele assombrava a suíte, não?
De repente, Ramsay balançou a cabeça, e Jane quase gritou. Mordeu o lábio,
tentando manter-se em silêncio. Talvez se não se movesse, nem fizesse nenhum
barulho, tudo ficaria bem. Suas pernas estavam mais do que preparadas para correr.
Ele tirou as mãos de sobre o rosto, e Jane agradeceu aos Céus por não deparar
com nenhuma caveira descarnada ou coisa assim. Ramsay parecia tão vivo quanto no
retrato. A diferença ficava por conta de estar um pouco mais velho, apenas. Algumas
linhas apareciam nos cantos de seus olhos fechados.
Ele franziu a testa, deu um sorriso. Olhou para cima e deu com ela.
O coração de Jane disparou, e mais uma vez foi necessário que se controlasse
para não gritar. Podia jurar que Ramsay tinha olhos azuis. No entanto, cor em aparições
não era algo comum, era? Talvez não passasse de imaginação. Mas uma coisa era óbvia:
Ramsay era muito mais belo do que seu retrato indicava. E a pintura fora feita com
excelência.
Ele a fitava, e Jane viu que todas as suas preocupações desapareciam,
substituídas por uma expressão de choque. Ambos permaneciam estáticos. Ramsay
baixou os cílios e abriu a boca.
Ao olhar para si mesma, Jane constatou que sua camisola fina revelava mais do
que deveria. Estava assustando um fantasma!
Cobriu-se rápido com a colcha. Quando tornou a fitá-lo, Ramsay tinha
desaparecido.
Jane se recostou nos travesseiros, tentando se acalmar. Pelo menos o fantasma
tinha bons modos!
Ramsay Chadwick se sentou sobre os calcanhares, observando sua cama. O
fantasma lhe parecera tão real! Podia ser uma pessoa sentada em seu leito, não fosse
pela ausência de cor. Aquela era a primeira vez que uma das figuras que surgiam em
seu quarto se mostrava tão substancial.
Pelo menos ela era dotada de boa educação, visto que se cobriu quando se deu
conta de que sua camisola a expunha daquela forma.
Esfregou as têmporas. Era tão estranho tudo aquilo. Fantasmas como aquele
costumavam encará-lo com horror e sair gritando. Aquela moça, no entanto, não se
assustara nem mesmo ao perceber que estava exposta.
A ausência de mais roupas nela o impressionara. Que tipo de mulher usava tão
pouco para dormir? Tentou se lembrar da peça. Laços estreitos sustentavam o tecido
fino. Seus ombros e o colo estavam livres. A jovem era perfeita, como que moldada em
mármore. Uma deusa grega, Ramsay diria. Ainda mais com o modo como seus cabelos
lhe caíam por sobre os ombros.
Engoliu em seco. Não devia pensar em outra mulher daquela forma. Estava
compromissado com Lydia Devereaux, e, embora suas atitudes recentes o
incomodassem, não resolveria seus problemas com aquele tipo de atitude.
Não faria com Lydia o que ela fizera com ele. Lydia jamais o fitara da maneira
como olhava para seu amigo de toda a vida, Mark Darby...
Esfregou o rosto. Evidente que imaginara aquele olhar amoroso e conspiratório.
Talvez Lydia e Mark planejassem alguma surpresa para ele, que andava muito ocupado
com seus clientes. Teria de ser mais atencioso com sua noiva.
Ficou de pé. Era tarde. Ajoelhara-se para pedir por uma solução, mas Deus — ou
o diabo —, em vez disso, resolveu presenteá-lo com uma bela aparição.
Ramsay Chadwick assombrava os sonhos de Jane. Sua expressão de pesar e
preocupação voltava a sua mente a todo instante. Será que o problema que o
incomodava tinha algo a ver com seu desaparecimento?
Quando sonhava, Jane o via lutando com outro homem. A manga de sua camisa
se rasgava e em seguida ele mergulhava para a morte dentro do rio Avon. E então as
águas o arrastavam até que o perdesse de vista.
Algumas vezes, sonhava que Ramsay ficava parado diante dela, de braços
abertos, aguardando. Seu espírito tocara seu coração. Mas o que podia fazer para ajudá-
lo?
Quando acordou, mais tarde, e vestiu-se para o desjejum, chegou à conclusão de
que imaginara todo o episódio. Ninguém poderia ver um fantasma tão real. A pintura do
andar de baixo e os avisos da sra. Marshall a impressionaram, fazendo com que visse
coisas que não existiam. Sonhara aquilo tudo. Não havia outra explicação.
Ao chegar à sala de jantar, escolheu uma das três opções de café da manhã,
bastante saudável, decidida a recomeçar sua vida. Tomou um gole da bebida fumegante
e passou a ler a seção financeira de um jornal.
Logo a sra. Marshall a interrompeu, trazendo um pouco de iogurte e frutas.
— Está um pouco abatida, Jane. Sente-se bem? — E lhe serviu um pouco mais
de chá.
Que belo recomeço o seu! Acordar exausta não era bem o que esperava.
— Sim, sem problemas.
— Nada de fantasmas?
— Será que sonhar com um, conta? — Jane sorriu.
— Não, creio que não. Mais torrada, querida?
Jane negou com a cabeça. Não queria comer demais, embora a geléia caseira a
tentasse.
— Vou dar um passeio pela cidade, sra. Marshall. — Ela colocou a louça utilizada
na pia e apanhou a mochila. — Nós nos vemos mais tarde.
— Divirta-se.
Após mais algumas horas de compras frustrantes, Jane decidiu retornar à
pousada. A ladeira íngreme que levava à hospedaria, quase a matou. Arfando, parou por
um instante, esticando as pernas e tentando se livrar das dores nos membros. Iria
demorar até que se acostumasse com aquela inclinação.
Um cartaz em um poste próximo anunciava o Centro Jane Austin. Planejava visitar
todos os museus, e o Centro talvez fosse um bom lugar para começar. No entanto, isso
significava que teria de descer a ladeira, e não tinha a mínima vontade de subi-la de novo
mais tarde.
Como seria um encontro entre Jane Austin e Ramsay Chadwick?
Fez uma careta, indignada com a própria tolice. Eles decerto jamais chegaram a
se conhecer. Pelo que lembrava sobre o que lera a respeito da estada da autora em Bath,
ela não saía muito.
Voltando-se, viu outro pôster colado junto a uma grade, que promovia a noite Beau
Nash no salão de Bath, naquela sexta feira. Jane sorriu, animada. Trouxera consigo seu
traje de dança. Sempre havia a chance remota de encontrar um baile. Nada como danças
elegantes para afastar os problemas de sua mente conturbada.
Retomou seu ritmo, terminando a subida da ladeira, dessa vez sem se cansar
tanto.
— Olá, sra. Marshall — Jane a cumprimentou, ao entrar na sala da pousada.
— Vá lavar as mãos, meu bem. O jantar está pronto.
— Certo. Volto num instante.
Jane comeu peixe com batatas fritas, sentada no gramado em frente ao Royal
Crescent. Viu o sol se pôr, e se demorou por lá até que a grama ficasse muito fria para
suportar.
Planejara uma noite calma em sua suíte, talvez lendo um pouco sobre a história
local. Assim, levantou-se, retirando a terra de seu jeans, entrou na casa, e foi para seu
quarto.
A apostila que a sra. Marshall criara sobre a pousada a entreteve, enquanto
devorava seu chocolate ao leite.
Ao abrir a segunda barra, olhou ao redor. Tinha de admitir que aquele era um
aposento lindo. A sra. Marshall acrescentara alguns toques femininos, como laços e
vasos de flores.
O relógio de parede marcava meia-noite. Jane saiu de baixo das cobertas e foi até
o banheiro, preparar-se para dormir. De volta à cama, apagou a luz e se aconchegou sob
os dois cobertores extras que ali colocara.
Nenhum fantasma gelado iria perturbá-la aquela noite.
Horas mais tarde, Jane acordou. Tinha o rosto muito frio. Cobriu a cabeça com as
cobertas antes que seu cérebro começasse a raciocinar. A fonte daquela corrente de ar
gélido tinha de ser o delicioso Ramsay Chadwick, pois certificara-se de ter fechado todas
as janelas antes de se deitar.
Claro que era ele!
Sorriu. Acabara de dizer a si mesma que um fantasma era delicioso? Devia ter
comido muito chocolate.
Com as mãos trêmulas, puxou a ponta do cobertor para baixo e espiou ao redor.
A princípio, não encontrou nada. Talvez fosse apenas uma massa de ar frio,
conseqüência da chuva.
Em vez de rolar para o outro lado e dormir, sentou-se, puxando uma coberta por
sobre os ombros. Deitada, só conseguira ver uma parte do quarto. E se Ramsay estivesse
ao pé do leito outra vez? Precisava saber.
Respirou fundo e olhou. Avistou-o em uma cadeira, no canto do aposento. Estava
inclinado para a frente, com o rosto afundado nas mãos. Jane sentiu-se extremamente
grata por a cabeça dele permanecer grudada no pescoço.
Passou os braços ao redor das pernas, apoiando o queixo nos joelhos, e o
observou melhor. Seus ombros, embora encurvados, demonstravam um grande potencial
de adorável amplidão. Ramsay não se mexia, em sua posição que denotava angústia.
Era dono de lindas mãos. Um grande anel de magistrado brilhava em seu dedo anular
direito.
Jane queria poder fazer algo por Ramsay. Mas como poderia, vivendo a quase
duzentos anos de distância? De qualquer forma, suas chances de sucesso eram pífias.
Seu dom era partir corações, não consertá-los.
Se ao menos as coisas fossem diferentes...
E seriam, jurou para si mesma. Nada de ir parar nas camas alheias antes de se
apaixonar. Nada de homens casados. Dali em diante teria o cuidado de checar o passado
de seus pretendentes antes de entregar seu coração.
O fantasma de Ramsay se moveu. Jane deixou os problemas de lado e prendeu
a respiração. Ele se endireitou, colocando as palmas sobre as pernas. Seu rosto se
mostrava impassível. Apenas um movimento de seus lábios demonstrou a amargura e o
rancor que o espicaçava.
Quando a viu, Ramsay a encarou como se fosse uma nova atração no zoológico.
Jane retribuiu seu olhar, com ousadia, sem se deixar intimidar. Um pensamento bizarro
lhe ocorreu: será que ele tentava forçá-la a deixar sua existência? Bem, não pretendia ir
a lugar algum. Ele era o fantasma, não ela. Desse modo, cruzou os braços e continuou a
encará-lo.
Quando Ramsay se levantou e veio em sua direção, Jane teve certeza de que
tomara a atitude errada. Ninguém quer deixar um fantasma nervoso.
Afastou-se, escorando-se na parte mais distante da cama. Se Ramsay chegasse
mais perto, conseguiria alcançar a porta. Já bem na beirada do colchão, pronta a iniciar
sua fuga, notou que o fantasma parava. A irritação no semblante dele desapareceu.
Aquele devia ser o momento em que a aparição se transformava em algum
monstro horrendo e as paredes ficavam cobertas de sangue. Um arrepio passou pela
espinha de Jane, que puxou os cobertores, encolhendo-se à cabeceira.
Nunca mais assistiria a filmes de terror depois daquilo.
Mas a temida transformação não ocorreu. Ramsay passou os dedos pelos
cabelos, bagunçando-os, e em seguida ajeitando-os.
Jane decidiu que os preferia desarranjados.
Sem dúvida Ramsay estava confuso, perdido. Assim, em vez de correr para a
porta, Jane deslizou para mais perto. O fantasma parou de se mexer, atento a ela. Jane
deixou as cobertas para trás. Até um cego poderia ver que ele necessitava de conforto.
Onde estaria a noiva do sr. Chadwick?
Ah, sim! Não era de bom-tom, naquela época, estar no mesmo quarto que seu
futuro marido. Talvez fosse uma idéia absurda, mas se pudesse tocá-lo, consolá-lo,
mesmo Ramsay estando morto havia tanto tempo...
Ao tentar alcançá-lo, Jane escorregou para fora do leito, perdendo o equilíbrio e
caindo no chão. O fantasma estendeu a mão na direção dela e desapareceu.
Jane encarava a escuridão onde Ramsay tinha estado.
Talvez fosse melhor assim. Os homens tinham de saber que ela não era boa para
eles.
Quem seria ela? Ramsay não conseguia parar de pensar na mulher-fantasma que
habitava sua suíte. Além de a aparição ser clara como cristal, a atitude que tomara, vindo
até ele, era muito ousada.
De certa forma, esperara encontrá-la naquela noite, e não se decepcionou. Ela foi
mais discreta dessa vez, colocando um cobertor sobre si. Isto é, até que foi em sua
direção. Quando o tecido escorregou, revelando seus ombros, ficou idêntica a uma deusa
grega, surgida das nuvens.
E ele, hipnotizado pela visão, chegara até mesmo a esticar a mão, buscando
alcançá-la. Como se um toque através de sua forma volátil fosse fazer alguma diferença.
Mas tinha a nítida impressão de que ela quisera tocá-lo. Por quê?
Precisava descobrir mais sobre aquela jovem. Quem sabe pudesse ajudar seu
espírito a descansar em paz? Uma mulher tão bela merecia isso. Gostaria de fazer algo
por sua pobre alma; embora não fosse capaz nem mesmo de entender o que acontecia
com sua própria vida.
Quando Jane acordou, pela manhã, tinha apenas uma certeza: tinha de descobrir
mais sobre Ramsay Chadwick. Queria muito colaborar para que seu pobre espírito
descansasse em paz. Um homem que parecia ser tão decente e honrado merecia isso.
E como era lindo!
Pelo menos poderia tentar fazer algo por sua pobre alma; apesar de não ter a
menor idéia do que fazer com a própria vida.
Ao se dirigir ao andar de baixo, para o desjejum, Jane parou nos degraus e
observou de longe o retrato de Ramsay Chadwick. Embora a pintura o representasse
muito bem, não chegava aos pés do fantasma. Como ele teria sido ao vivo e em cores?
— Por que resolveu me assombrar? — ela sussurrou. Desceu mais um pouco e
foi até o patamar onde estava o quadro. — O que posso fazer para ajudá-lo a ter paz?
Uma vontade incontrolável de fazer algo por ele, de tentar fazê-lo feliz, a invadiu.
Na sala de jantar, Jane se acomodou e passou a brincar nervosamente com as
pontas do guardanapo em seu colo.
— Sra. Marshall? — Hesitava em tocar no assunto, mas queria saber mais sobre
o fantasma.
A senhora, que após servi-la levava a bandeja vazia de volta à cozinha, parou no
meio do caminho, voltando-se para ouvir a pergunta.
— O fantasma...
— Você o viu, Jane?!
— Sim.
— Mesmo?!
— Sim, eu o vi.
Ao ver o quanto a sra. Marshall ficara preocupada, apressou-se em tranqüilizá-la:
— Tinha razão, ele é inofensivo.
— Agora que o encontrou uma vez, não tornará a acontecer. — A sra. Marshall
procurava sorrir. — Ramsay nunca volta a aparecer para o mesmo hóspede.
A boa senhora girou nos calcanhares e desapareceu para dentro da cozinha,
deixando Jane bastante perturbada.
Aquela fora a segunda visita de Ramsay. Mas achou melhor não comentar nada
sobre o fato. Quem sabe o que a sra. Marshall faria se soubesse... E queria ter Ramsay
para si por mais tempo.
A sra. Marshall voltou.
— Onde eu poderia obter mais informações sobre ele?
— Sei apenas o que está escrito na apostila da pousada, Jane. Talvez o sr.
Jenkins, que a escreveu, possa saber mais algum detalhe. Tenho o endereço dele em
algum lugar. — Ela saiu da sala tão rápido quanto retornou. — Aqui está. O escritório
dele fica perto da estação ferroviária.
E estendeu a Jane um cartão amassado.
— Obrigada. Se descobrir algo, eu a avisarei. — Ela guardou o papel no bolso da
calça jeans.
— Ah, sim, por favor! E uma história muito romântica e triste. Aquela é a noiva
dele, Lydia Devereaux. — A sra. Marshall apontava um pequeno retrato na parede,
enquanto recolhia a xícara de Jane. — Vou buscar mais chá para você.
Jane se aproximou da pintura, que retratava uma bela e doce jovem, cujos cachos
dourados emolduravam o rosto bem desenhado. Uma beleza, sem sombra de dúvida.
O telefone tocou no corredor, e a dona da pensão a chamou:
— Jane? Ligação para você, querida!
Ela foi atender. Tinha de ser de seu trabalho. Algo dera errado, e teria de voltar
para resolver o problema. E assim nunca descobriria nada a respeito de Ramsay
Chadwick.
— Alô? — Levantou a cabeça e avistou a sra. Marshall ainda por perto, a fitá-la,
curiosa. Sorriu. — Patrícia? Está tudo bem?
— Tudo em ordem — sua amiga e sócia afirmou do outro lado da linha. — Isto
aqui ainda não queimou até virar cinzas.
— Boa notícia! Então, o que houve?
— Bem...
— Patrícia... — A hesitação da amiga não era bom sinal.
— Terrance veio procurá-la ontem à tarde, antes de fecharmos. Jane cerrou as
pálpebras. Terrance sempre rondava a rua de sua loja, mas aquela era a primeira vez
que ousava entrar.
— Não lhe disse onde estou, certo? — Não pôde evitar a ponta de desespero em
sua entonação.
Se Terrance aparecesse em Bath, implorando para que voltassem a namorar,
suas férias iriam para o espaço.
— Eu não contei.
— Quem o fez?
— Sarah. Ela teve boa intenção. Mas veja pelo lado positivo,
Jane. Sarah não revelou a Terrance o lugar onde está hospedada, em Bath.
— Ótimo — Jane resmungou. — Olhe, será que pode avisar a todos por aí que,
se mais alguém me procurar, digam que estou em Paris?
— Mais alguém? Tem mais alguém?!
Jane tentou não rir da reação da amiga. Teve vergonha de contar-lhe que estava
saindo com Adam também.
— Digamos que estou pretendendo descomplicar minha vida.
— Sei. — Patrícia fez mais uma pausa longa, e Jane esperou pela segunda
bomba. O que mais podia ter acontecido? — Sei que não quer ouvir sobre isso, mas
sonhei com você esta noite.
— Desde que não seja nada pervertido, pode sonhar com o que quiser comigo.
— Apenas tome cuidado, está bem?
— Combinado.
Sem ter como saber mais sobre a moça-fantasma, Ramsay refugiou-se no clube
que freqüentava, onde o interior escuro e cheio de fumaça o confortava de um dia
frustrante. Passava os olhos por um jornal, sem, no entanto, ler o que vinha escrito
quando ouviu uma pessoa próxima. Ao erguer o rosto, avistou seu amigo Mark Darby
jogado numa poltrona a seu lado.
— Boa noite. — Ramsay disfarçava a duras penas a frieza.
— Dia difícil?
— Não posso reclamar. — Respirou fundo, sentindo na boca o gosto do cigarro.
— Mark, acho que preciso lembrá-lo de que estou noivo de Lydia.
— Lembrar-me? — Se havia amargura em sua risada, Ramsay não pôde detectá-
la. — Você não pára de recordar o fato a todos que encontra pela frente, desde o dia em
que ela aceitou seu pedido. — Fez uma pausa. — Aliás, você tem estado muito quieto
ultimamente. E esse o problema?
Ramsay passava o dedo indicador pelo lábio, pensativo. A resposta do amigo
parecia sincera e inocente.
— Andei vendo... olhares entre você e Lydia. Darby soltou uma gargalhada.
— Silêncio, vocês aí! — um jogador exigiu, de uma mesa próxima.
Darby cobriu a boca com a mão, tentando abafar o riso.
— Está delirando um pouco, não, amigo? Lydia e eu somos amigos, nada mais.
— Passou a girar o copo de uísque entre os dedos. — Devem ser seus nervos. Quantos
dias faltam agora para o casamento?
— Menos de duas semanas.
— Não está tendo dúvidas, não é?
— Evidente que não.
Será que não passava de imaginação sua a ansiedade que vira no semblante do
amigo? Àquela altura, era recomendável que fosse discreto. Não tinha prova nenhuma
além de alguns olhares que, no fim das contas, talvez tivesse imaginado.
— Sinto muito por duvidar de você. Tem razão, deve ser apenas nervosismo.
— O fleumático Ramsay Chadwick está nervoso? Bem, isso merece uma rodada
de bebida! — Sorridente, como se a conversa não o tivesse incomodado nem um pouco,
Darby acenou para o garçom. — O de sempre, por favor.
Horas mais tarde, quando subia, desajeitado, para seu quarto, Ramsay ainda não
se sentia confortável com a situação. E o uísque não fora suficiente para amortecer sua
mente.
Passou as mãos pela parede, agarrando-se ao balaústre para se equilibrar. Lydia
o amava, tinha certeza disso. Ela era tudo o que desejava numa mulher, e mais.
Nenhuma outra podia comparar-se a sua noiva em beleza e elegância.
Abrindo a porta do quarto, chamou seu mordomo e criado de quarto:
— Trenby!
O homem apareceu num instante.
— Bem-vindo, senhor. — Ajudou Ramsay a retirar o casaco, dobrando-o sobre
seu braço.
Ainda recordando a troca de olhares entre sua noiva e seu melhor amigo, Ramsay
amassou sua gravata, até então perfeita, arrancando-a. Uma brisa fria envolveu seu
pescoço.
Trenby soltava-lhe os punhos da camisa, que foi retirada em seguida. Ramsay
sentiu-se enjoado, mas não queria que o criado percebesse. Por isso, voltou-se, fitando
o leito, onde algo chamou-lhe a atenção.
Havia alguém deitado sob as cobertas bordadas. Ramsay franziu a testa, confuso.
— Trenby, o que é aquilo em minha cama?
O homem olhou na direção em que ele apontava.
— Não sei, senhor. Não vejo nada.
Ramsay engoliu em seco. O montinho se moveu, e a cabeça de sua amiga
fantasma apareceu. Ficou tenso. Ela o encarava de olhos arregalados.
— Não está vendo, Trenby?
— O quê, senhor?
— Aquilo. — Seu braço tremia de leve. — Ela.
— Não enxergo nada, senhor.
— Estou bêbado.
Se seu criado não a via, a aparição devia ser fruto de sua imaginação. Nada mais
que isso.
— Vá dormir, Trenby. Eu termino de me vestir sozinho.
— Sim, senhor.
Ramsay ignorou o evidente temor de Trenby e esperou a porta se fechar. Então,
caminhou até o leito.
Jane sentiu o ar gelado antes mesmo que o visse. Ramsay Chadwick estava
parado a sua frente em todo o seu esplendor, seminu. Jane ficou de queixo caído.
Endireitou-se no colchão quando o fantasma veio em sua direção. Mas, dessa vez,
ele não tinha os movimentos contidos da véspera. Andava com um certo balanço, como
um animal selvagem que se acercava. Devia estar bêbado.
Ramsay alcançou a cama, e sua boca se moveu, embora Jane não conseguisse
ouvi-lo. Tentava ler seus lábios, mas se entendesse uma palavra já seria muito.
Saiu de baixo das cobertas, puxando a camisola sobre as pernas. Ramsay passou
a mão sobre o rosto; já não tentava mais se comunicar. Estava bastante nervoso.
Balançou o braço no ar, voltando a mover os lábios.
Jane chegou mais perto, engatinhando sobre a colcha. Ele se mostrou irritado. Ela
tentou ficar mais próxima, mas Ramsay deu um passo atrás. Jane não entendia por que
se comportava daquela forma, que necessidade era aquela de tocar e confortar um
homem morto. Se não tinha sorte nem mesmo com os vivos!
Quando decidiu levantar-se, o fantasma desapareceu. Era esquisitíssimo, mas
teve a clara impressão de que ele estava zangado com ela. Mas por quê?
Ramsay pegou um cobertor do quarto de Trenby, que dormia profundamente, e
dirigiu-se até a sala de estar. Podia dormir no quarto de hóspedes, claro, mas ainda assim
ficaria perto demais de sua suíte e das assombrações que o perseguiam.
Ajeitou-se no sofá e passou a rememorar aquela última aparição. A forma como o
fantasma fora até ele. Que criatura abusada! Talvez tivesse sido uma moça qualquer,
que servira de amante e acabara tendo um fim trágico, deixando seu espírito a vagar pelo
lugar. Estava cansado, precisava parar de pensar nela. Na maneira como quisera se
aproximar dele. Ela fizera seu sangue ferver.
Ridículo. Amava Lydia e mostraria seu amor ao mundo inteiro.
A idéia veio em um segundo. Podia mostrar seu amor a todos oferecendo um baile
em homenagem a sua noiva. Uma demonstração pública de carinho era tudo de que
necessitavam. Ofereceria o evento em sua casa, tornando-o exclusivo, assim como Lydia
gostava.
Um sorriso singelo apareceu em seus lábios. Sim, Lydia ficaria muito agradecida.
Não haveria mais dúvidas ou receios. Seus problemas estariam acabados.
Jane voltou até o escritório do sr. Jenkins. Não o encontrara ali no dia anterior e
esperava ter mais sorte dessa vez.
Johnny, o adolescente cheio de piercings no rosto, que trabalhava como assistente
do pesquisador, abriu a porta do pequeno estabelecimento.
— Olá, srta. Leighton. Teve sorte, hoje. Ele está aqui. — E o rapazinho apontou
para o senhor de cabelos brancos e casaco xadrez, atrás da escrivaninha.
— Ah, sim! — Jenkins a fitava por cima dos óculos de grau.
— Johnny disse que esteve aqui ontem.
— De fato. — Jane procurava algum lugar para se sentar, mas todas as cadeiras
estavam ocupadas com pilhas de livros e revistas.
— Gostaria de saber mais sobre Ramsay Chadwick, o fantasma que assombra a
pousada Chadwick. O senhor escreveu sobre ele para a sra. Marshall.
— Ela a mandou aqui, não? — O homem não pareceu estar muito feliz.
— A sra. Marshall me disse que o senhor poderia me dar mais informações.
— E posso. Que coisa... Ela nunca me procura e agora resolve me mandar turistas.
— Jenkins empurrou os óculos por sobre o nariz. — O que quer saber, senhorita?
— Tudo o que for de seu conhecimento. A princípio, detalhes sobre a morte de
sua noiva e de seu desaparecimento. Sei que Ramsay era magistrado... Havia alguma
conexão entre os casos que Ramsay julgava e seu final trágico? Algum boletim policial?
Reportagem em jornais?
Jane não poderia salvá-lo depois de todos aqueles anos, mas talvez conseguisse
solucionar o crime e fazer justiça. E assim talvez aquela alma pudesse descansar em
paz.
— Não havia polícia em Bath quando do ocorrido, apenas magistrados e seus
assistentes. Tenho um relatório de uma autoridade da época, mas o que ele diz é
bastante desagradável. No documento, o magistrado em questão afirma que o sr.
Chadwick era um homem detestável de várias formas.
— Era!?
— Sim, associado à gentalha de Bath, o pior do pior. Tenho evidências disso em
algum lugar. — O homem desapareceu entre as estantes entulhadas. — Aqui! Este
magistrado não gostava de Chadwick. Ele veio de uma família de burgueses.
— O magistrado ou Chadwick?
— Chadwick, lógico. Johnny! Pegue as Crônicas Semanais de Bath, o volume de
setembro de 1812. — Tornou a encará-la. — Pode ler sobre sua morte no obituário do
jornal aqui mesmo ou tirar uma cópia e levá-la consigo.
— Obrigada, o senhor é muito gentil.
— Jamais seria capaz de desencorajar o interesse na história de nossa cidade.
Pode retirar aqueles papéis da poltrona cinza e se sentar. Sabe fazer chá?
Jane fez que sim.
— Ótimo! Johnny é péssimo nisso.
Capítulo II
Jane fitava suas mãos unidas, aturdida. Podia senti-lo! Como podia um fantasma
se transformar em um homem de carne e osso? Como aquilo acontecera?
Ramsay se afastou de leve, deixando-a sem seu calor. Jane o olhou de soslaio,
receosa de encará-lo.
As íris dele eram muitíssimo azuis. Havia sardas sobre sua pele. Jane não se
recordava de tê-las visto na pintura.
Quando seus olhares se encontraram, ambos estavam chocados.
O fantasma de Ramsay Chadwick respirou fundo. E deu um passo atrás,
apontando um dedo acusador para Jane.
— Vá embora, assombração!
Embora o tom de sua voz grave fosse delicioso, Jane se ofendeu.
— O que disse?!
Ramsay iniciou uma busca frenética pelo quarto. O que estaria procurando? De
repente, formou uma cruz com os indicadores.
— Vá embora, eu ordeno!
Jane se sentou na cama, intrigada com a tentativa de exorcismo.
— Não sabia que fantasmas podiam fazer isso.
Sentou-se na beirada do colchão, olhando para longe, dando tempo ao fantasma
para acalmar sua respiração acelerada. Observou as chamas na lareira. Mas naquela
suíte havia um aquecedor a gás. De onde surgira aquela lareira?
Foi quando começou a entender o medo do fantasma. As belas paredes creme
tinham sido substituídas por uma tonalidade de salmão-escuro, destacada pelas cornijas
e faixas brancas. Todas as tentativas femininas da sra. Marshall no ambiente masculino
tinham desaparecido. O armário em que ficava a tevê não estava mais lá, substituído por
uma cômoda. Uma poltrona de espaldar alto estava junto à janela. Todas as peças de
mobília pareciam novas. Muito masculinas. O oposto das que encontrara na pousada.
Jane levou a mão ao peito, procurando controlar a respiração alterada e o coração
disparado. Não podia desmaiar. Isso assustaria o fantasma e... Não, ele não era um
fantasma. Era real.
— O que... O que aconteceu?! — Jane tremia. Beliscou-se e logo percebeu que
não se tratava de um sonho.
De alguma forma, fora transportada para o tempo de Ramsay.
— Você não é real. — Ramsay deu um passo atrás. — Não está aqui.
Jane riu, sem poder evitar. O que ele tentava fazer? Mandá-la para fora de sua
existência?
Viu-o passar as mãos pelos cabelos e pegar as luvas que ela retirara. Sem mais
uma palavra, saiu dali.
Jane piscou ao ver a porta branca fechada a sua frente.
Ela procurou por seus sapatos, que descalçara para dançar. Onde estariam?
Deviam estar no futuro; do mesmo modo que ela.
O que fazer?
O som de uma valsa vinha do pavimento inferior. Jane franziu as sobrancelhas.
Ramsay Chadwick estava dando uma festa e, no entanto, resolveu se retirar para seus
aposentos para ficar sozinho?
Ficou de pé e ajeitou a colcha de seda, tão macia. Devia esperar até que ele
retornasse? Mirou-se no espelho. Parecia uma dama antiga. Estava presa nessa época.
Portanto, por que não descer e aproveitar a oportunidade? Decerto ninguém notaria que
estava descalça. Agora que estava ali, podia avisar Ramsay do perigo iminente que ele
corria. Quem sabe isso fosse o suficiente para fazê-la voltar para o futuro!
Calçou as luvas, tentando ignorar o frio que sentia no estômago.
Ao abrir a porta, percebeu que a luz vinha do andar de baixo. Apenas um castiçal
iluminava o corredor do pavimento onde se encontrava. Caminhou devagar, sentindo a
friagem do piso. Ao chegar ao fim do corredor, olhou pelo balaústre da escadaria, e
avistou alguns cavalheiros elegantes, com gravatas presas por pérolas ao pescoço,
bebendo e conversando.
Endireitou-se. Cada momento parecia mais surreal. Ouvia o burburinho das
conversas e risadas se sobrepondo ao som de um violino.
Bem, não podia esconder-se ali para sempre. Ramsay voltaria logo, e então ela
lhe daria o aviso.
Voltou-se para o caminho que levava ao quarto de Chadwick, seu porto-seguro.
Mas quanto seguro seria realmente? Ele podia retornar, encontrá-la ali e jogá-la na rua.
Segurando-se no corrimão, desceu. Ao lado de dois senhores alheios a sua
presença, procurou por Ramsay. A maioria dos convidados parecia estar nas salas ao
lado, com poucos grupos de pessoas pelos corredores. Suas cabeças baixas e falas
discretas faziam-na imaginar se conspiravam ou falavam da vida alheia.
Até então, nenhum sinal de Chadwick. Havia mais um andar, ao nível da rua. Será
que deveria procurá-lo ali? Achou melhor não. A festa parecia ser apenas naquele andar.
Um bom anfitrião estaria ali, com seus convivas. Procuraria por ele pelas salas. Se não
o achasse, aí sim avançaria em sua busca.
Jane passou pelos dois cavalheiros, ignorando seus comentários surpresos. Foi
verificar primeiro na sala da esquerda, a mais cheia. As pessoas se enfileiravam para ver
a dança que acontecia no meio do salão. Ao entrar, Jane constatou que era quase mais
alta do que todas as mulheres presentes, com exceção de muito poucas. Pescoços se
voltavam para vê-la. Podia ler o que se passava em suas mentes: quem seria aquela
estranha alta e sem sapatos?
Esperava que fosse apenas isso. Perto dos tecidos coloridos e detalhes
intrincados dos vestidos das damas, sentia-se simples demais. Resistindo à imensa
vontade de agarrar uma daquelas saias e examiná-la com cuidado, continuou se
movimentando por entre os convidados.
De repente, Jane o viu. Ramsay estava do outro lado do salão, rígido, observando
o casal que rodopiava, com uma expressão séria. Por que estaria daquele modo? Jane
olhou para o casal em questão. Aquela era a razão pela qual tão poucos dançavam.
Todos fitavam Chadwick, enquanto ele via os dois dançarinos girando, radiantes,
ignorando o resto do mundo.
Quando o casal se aproximou, Jane reconheceu o rosto da mulher. Era Lydia. A
felicidade da noiva de Ramsay não tinha tamanho. Seus olhos não se afastavam nem
por um segundo dos de seu parceiro.
Pobre Ramsay Chadwick... Primeiro, vê uma mulher materializar-se em seu
quarto. Depois, sua noiva tem toda a atenção voltada para o belo rapaz com quem dança.
Não era de se admirar que estivesse bravo.
Decidida, deu a volta por entre as pessoas, até alcançá-lo. Ramsay ainda não
havia notado sua presença. Por isso, ela colocou a mão em seu braço.
O olhar irritado que ele lhe lançou, deu lugar ao espanto. Ramsay tentava dizer
algo, mas nada saía de sua boca. Seus olhos buscaram quem a seu redor conseguia ver
o que ele via. E então compreendeu: ela não era invisível!
Sem sapatos, a dama chegava-lhe à altura dos ombros. Era uma mulher bastante
alta.
— Dance comigo. — Jane murmurou. Conhecia aquela versão da valsa alemã, e
não o embaraçaria.
— O quê?!
Ela suspirou, parecendo impaciente.
— Ramsay, sou real. Não sou uma aparição. Aceite logo os fatos!—Viu que os
lábios dele se estreitaram, em virtude da zanga. — Lydia está dançando com outro. Você
precisa dançar com outra mulher!
— Você a conhece... — A raiva passou, substituída por uma expressão confusa.
— Como? Por quê?
— Até mesmo um cego conseguiria ver que o fato de os dois estarem juntos o
incomoda muito. Está dando muita importância à dança deles. Se não tomar cuidado,
transformará isso em um escândalo.
— Pode ser tarde demais. — Ele voltou a encarar os dois, e Jane temeu que ele
estivesse certo.
— Ramsay, não discuta comigo, apenas dance.
— Damas não tiram cavalheiros para dançar! — protestou em voz baixa,
disfarçando seus verdadeiros sentimentos. — Quem, afinal, é você? Como sabe quem
sou eu?
Jane sorriu.
— Explicarei da melhor forma possível, mas só se dançar comigo. Pode lidar com
Lydia depois, a sós.
Ele resmungava algo quando tomou sua mão. Sem mais nada dizer, conduziu-a
até o centro da pista. Jane sentiu a madeira polida sob os pés e rezou para não
escorregar.
Ramsay a guiava com segurança. Mas seus olhos desviavam-se sempre para o
outro casal.
— Olhe para mim!
Ele obedeceu, a custo. Seguia os passos da valsa, trazendo-a para junto de si. No
calor daqueles braços, Jane quase se esquecia de respirar, e tentava segui-lo, mas
acabou perdendo um passo.
— Deveríamos parar com isto, senhorita. Não é apropriado. Então ele também
estava sentindo a mesma coisa! No entanto, não fez nada para interromper a dança.
Sorrindo, Jane resolveu fingir que a atração não existia.
— Está tudo bem, não errarei os passos de novo, Ramsay, prometo.
— Não lhe dei permissão para que me chamasse por meu primeiro nome, e, no
entanto, continua a fazê-lo. Quem é a senhorita?!
— Meu nome é Jane Leighton. Posso chamá-lo de sr. Chadwick, se preferir.
— Quero uma explicação para... — Ele se controlou. — O que fazia em meu
quarto?
— Gostaria de poder lhe dizer. O senhor era um fantasma em minha suíte. E então
nos tocamos...
— Tentação. Foi o diabo agindo — ele murmurou por entre os dentes.
Jane achou melhor não mencionar que Ramsay lhe parecera a criatura mais infeliz
da face da Terra, então.
— Li a seu respeito, sr. Chadwick. O senhor está em perigo.
Ele a encarou, perplexo.
— Perigo? Que perigo? Como sabe disso?
— Será difícil para o senhor acreditar. — Assim como era para ela. — Mas venho
do futuro. Quase duzentos anos distante desta época. Em que ano estamos?
— 1812. Mas a senhorita... é um fantasma!
Jane balançou a cabeça, sorrindo, mas tinha vontade de gritar. Fantasmas não
existiam, e ela estava presa no passado.
— Não. Sinto muito. E como o senhor também não é uma aparição, creio que eu
voltei no tempo.
— Isso não faz sentido!
E eu não sei disso?! Jane entendia muito bem o pânico que via no semblante dele.
Fantasmas não deveriam se transformar em pessoas reais, e Ramsay não deveria estar
ali. Ou ela não deveria. Bem, tanto fazia.
— Tem outra explicação, sr. Chadwick? Se tiver, adoraria ouvi-la.
— De que se trata esse tal perigo? O que irá acontecer comigo? Jane decidiu ir
direto ao ponto. Tinha pouco tempo para convencê-lo.
— O senhor vai desaparecer.
— Como um fantasma? — Ramsay sorriu de leve. Então ele tinha senso de
humor...
— Tem assombrado aquele quarto desde então, sr. Chadwick.
Ramsay ponderou.
— Por quê?
— Não sei. Só porque venho do futuro, não significa que tenho todas as respostas.
— Não use esse tom comigo, mocinha!
Jane se conteve para não ser rude.
— Serei gentil se também for, sr. Chadwick. Sou eu que estou presa aqui, não o
senhor.
— Presa!? — Ele empalideceu.
— Sim. E não sei como voltar para minha época. O senhor sabe, por acaso?
Ramsay fez um esgar.
A valsa terminou, e eles ficaram no meio do salão, encarando um ao outro.
Ramsay, horrorizado. Jane, com uma tênue esperança de que talvez não fosse mais
jogada no olho da rua. Talvez Ramsay a tivesse ouvido e fosse um cavalheiro de verdade.
— O que a senhorita veio fazer aqui?
— Ignoro — Jane admitiu.
Lydia e seu parceiro se aproximavam. Jane mordeu o lábio inferior. Conversar com
Ramsay era uma coisa; afinal, ele sabia de seu segredo. Mas aqueles dois, não. E se
dissesse algo errado e estragasse tudo?
— Terei de apresentá-los, srta. Leighton — Ramsay murmurou, discreto,
segurando o cotovelo de Jane. — Alguma sugestão?
— Prima distante do interior numa visita inesperada — disse sem mexer os lábios,
sorridente.
Ramsay piscou para ela, franzindo as sobrancelhas. Jane esperava que ele a
tivesse entendido. Darby foi o primeiro a falar:
— Vejo que não perdeu tempo — dirigia-se a Ramsay, mas olhando Jane dos pés
à cabeça. — Quem é essa bela criatura?
— Mark Darby, está é a srta. Jane Leighton, uma prima distante. Srta. Leighton,
Mark Darby.
Jane fez uma cortesia, enquanto Darby beijava-lhe a mão.
— E um prazer conhecê-la. Veio para o casamento, senhorita? Jane retribuiu o
sorriso largo de Mark, alegre por ele ter lhe entregado a desculpa de bandeja.
— Sim, claro. Queria conhecer aquela que, finalmente, conseguiu conquistar o
coração de meu primo. — E fitou Lydia.
Ramsay terminou as apresentações com uma expressão de desagrado.
A voz graciosa e gélida de Lydia indicou tal possibilidade:
— Srta. Leighton, quando chegou? Não estava aqui durante o jantar.
— Decidi prosseguir viajem até Bath, em vez de parar para o pernoite. Não
agüentaria dormir em mais uma pousada desconhecida. — Jane mantinha as respostas
simples e fáceis. Recusava-se a ser intimidada por aquela mulher bela e fria. — E sua
dança com o sr. Darby, senhorita, foi agradável? Atitude gentil a do sr. Chadwick,
permitindo que valsasse com outro...
Darby deu risada.
— Estamos na cidade, srta. Leighton. O sr. Chadwick não me negaria uma dança
ou mais, não é mesmo, amigo? — Mark deu tapinhas nas costas de Ramsay. — Onde
mais ela estaria a salvo?
— Pois é. — Formaram-se linhas de tensão ao redor da boca de Ramsay.
Era como assistir a um acidente tomando forma. A qualquer momento aqueles
dois se engalfinhariam, desferindo socos um no outro.
Lydia soltou o braço de Darby e se colocou entre Ramsay e Jane.
— Não pode estar zangado comigo. Sabe que adoro valsar, e Mark foi elegante o
suficiente para se oferecer em sua ausência.
Jane piscou, fascinada com o charme de Lydia. A tensão do momento passou.
— Devo perguntar, srta. Leighton... — Lydia a mediu de cima a baixo. — Onde
estão seus sapatos?
Uma onda de calor a fez enrubesceu e Jane ficou muito embaraçada.
— Um deles se desmanchou, então eu... os tirei.
Jane sabia que não era uma boa desculpa. Deixara subentendido que tinha
sapatos baratos e, ainda pior, que tinha de Usá-los repetidamente.
— Pois lhe daremos licença enquanto calça outro par. — O sorriso de Lydia a fez
corar ainda mais, sobretudo quando ela encarou Ramsay.
Jane o olhou, desesperada. Não tinha calçados para usar. Eles tinham ficado no
futuro. Mas não conseguiu ajuda de Ramsay, que deu de ombros, num gesto discreto.
— Eu bem que gostaria, srta. Devereaux, mas não tenho outro par de sapatos
para dança.
O silêncio caiu sobre o grupo. À exceção de Ramsay, que parecia um tanto
embaraçado, os outros dois a fitavam com uma mistura de confusão e estranhamento.
— Srta. Leighton. — A voz de Ramsay soou tão fria quanto a de Lydia. — Agora
que já conheceu minha noiva, talvez devesse recolher-se. O dia foi longo, e tenho certeza
de que precisará de suas forças para ir às compras amanhã.
Ele a estava dispensando? Jane ia começar a discutir, mas achou melhor se
conter. Podia saber dançar de acordo com as regras daquela época, mas não entendia
nada do que era considerado como bons modos na Regência e, sem dúvida, devia ter
envergonhado Ramsay e seus amigos.
— Ela está hospedada aqui, sr. Chadwick? — Lydia arregalou os olhos.
— Por enquanto — Ramsay admitiu.
Feliz com a resposta, Jane deu boa-noite a todos e se encaminhou para o andar
de cima, notando, envergonhada, que os convidados não perdiam um só de seus
movimentos.
Sem ter um quarto reservado como "prima" do anfitrião, Jane não sabia o que
fazer, a não ser ir para a suíte dele. Encolheu-se na poltrona junto à lareira e pôs-se a
observar as chamas. Como agir dali em diante? Será que conseguiriam fazer funcionar
aquela história estranha que ela inventara?
Horas mais tarde, Ramsay entrou em seu quarto, retirando as luvas, e encontrou
Jane curvada em sua poltrona, dormindo, com os pés enfiados sob a saia.
Fechando a porta com cuidado, ele a observou dormindo. A vivacidade e o fogo
que encontrara nela antes, tinham se transformado em uma doce vulnerabilidade. O que
faria com aquela jovem?
Tocou seu ombro, pois, de alguma forma, sabia que a srta. Leighton gostaria de
participar da decisão.
Viu-a acordar com um sobressalto, encarando-o com os olhos bem abertos, que
variavam do castanho ao verde. Cor de mel. Ela esfregou o rosto.
— Ah, é o senhor...
— Sim. Minhas desculpas por tê-la mandado embora daquele modo. — Ramsay
puxou uma cadeira e se sentou. — Sua história me pareceu fantasiosa demais para
suportar muito escrutínio.
— Dizem que a vida é mais estranha que a ficção.
Ramsay pensava sobre a calma aparente de Jane. Qualquer dama normal estaria
exaltada, mas ela se mostrava tão confortável na presença dele quanto estivera lá
embaixo; talvez mais ainda.
— Temos um problema, senhorita: não tenho nenhum parente com o sobrenome
Leighton.
— Devia ter dito algo a respeito disso antes. Além do mais, teve chance de inventar
coisa melhor.
— Receio que não estava raciocinando muito bem naquele momento, senhorita.
Você é bastante... inquietante.
— Obrigada. — Jane riu.
Ramsay rezara para não encontrá-la quando voltasse a sua suíte, mas não fora
atendido.
— Suponho que possa ser uma parenta distante por parte de casamento. Mas por
que teria vindo até aqui?
— Porque esperava que meu primo distante e muito influente me arrumasse um
emprego. Que tal? — Jane arqueou a sobrancelha de um modo que seria sedutor se
Ramsay estivesse bem-disposto.
— Uma posição? Vou ajudá-la a encontrar colocação. Que habilidades tem? Pode
ser que ache uma vaga para governanta ou acompanhante.
Jane estremeceu.
— Não, obrigada. Em meu tempo, sou dona de uma joalheria. Sei como
administrar um negócio, mas creio que não posso esperar que me coloque em um cargo
semelhante. Qualquer emprego de vendedora servirá.
Ele a encarou, sentindo um nó no estômago. De fato, Jane podia ser uma parenta
com uma forte relação mercantil, mas isso era algo do qual gostaria de escapar.
Precisava arranjar-lhe uma posição mais elegante.
— Veremos. — Ramsay lhe sorriu.
— Devo lhe parecer muito comum. Eu só queria ajudar. O senhor me parecia tão
triste!
Ramsay ficou vermelho. Quanto será que ela vira?
— Está quase amanhecendo, a senhorita deve estar cansada. Mandei preparar-
lhe um quarto do outro lado do corredor. Conversaremos mais pela manhã. — Levantou-
se, estendendo a mão.
Jane a aceitou, erguendo-se também. Podiam sentir o calor um do outro. Ramsay
engoliu em seco. Ela era real, não havia dúvidas.
— Obrigada por sua gentileza. — Jane olhou pela janela, avistando os primeiros
sinais do sol nascente.
Ramsay sentiu um arrepio passar por seu corpo. Imaginou-se beijando-lhe a mão
e puxando-a em sua direção para um beijo mais íntimo...
Devia levá-la para fora da suíte naquele momento, e colocá-la a uma distância
segura de si mesmo. Aquela intimidade deveria acabar. Sabia pouco sobre Jane
Leighton, mas o fato de percebê-la confortável em sua companhia em um ambiente tão
íntimo não era desculpa para que agisse de maneira imprópria.
Jane notou que suas mãos estavam ficando geladas. Precisava se sentar antes
que desmaiasse. Seus lábios se moviam, mas nenhum som saía deles.
— Srta. Leighton? — Ramsay foi em sua direção, vendo, tarde demais, que ela
fazia o mesmo. Preparou-se para o choque, mas uma brisa muito fria o trespassou.
A srta. Leighton passara por ele. Através de seu corpo!
Ramsay se voltou, vendo a silhueta fantasmagórica se desvanecer. Passou a mão
pelos cabelos, descansando-a na nuca. Encarava o lugar onde Jane estivera antes. A
adorável e muito estranha srta. Jane Leighton desaparecera como a noite, junto ao
amanhecer.
Ramsay se deixou cair na poltrona próxima à lareira, inalando o perfume que ficara
no ar. Era delicado, diferente e exótico, não como os perfumes simples que a maioria das
mulheres usava.
Ela afirmara ter vindo do futuro. Será que voltara de vez para lá? Ramsay fechou
os olhos e gemeu. Como iria explicar sua ausência?
Inalou o que restava daquela suave fragrância mais uma vez, tentando identificar
a essência. Ficou de pé. Não tinha nada que ficar cheirando o perfume da srta. Leighton.
Estava noivo da mais bela mulher de Bath!
Quanto às explicações, se alguém perguntasse, diria apenas que ela fora embora
depois de embaraçá-lo em sua festa.
Checou toda a suíte, apenas para garantir que estava sozinho, antes que
começasse a se despir.
Em seguida, escorregou para debaixo dos lençóis de linho, passando um braço
sobre o rosto, para bloquear a luz matinal. Tinha de dormir algumas horas antes de sua
reunião com o Conselho de Bath. Sua garota-fantasma lhe dera a mensagem que viera
trazer. Tomara que o deixasse em paz agora...
Capítulo III
Jane tremia, embora a luz da manhã aquecesse o ambiente. Ao se sentar na
poltrona, caiu no chão, pois estava de volta ao quarto da pousada, com todos os móveis
em seus lugares atuais. A não ser pelo leito, que continuava na mesma posição de
antigamente.
Levantou-se, procurando por Ramsay Chadwick. Será que ele teria ficado para
trás?
Sentiu seu estômago revirar.
Ramsay parecia mais frio que o fantasma, mas algo o tornava vulnerável, triste. E
esse algo era Lydia.
Jane suspirou e se deitou sobre a colcha. Pelo menos, ele não teria de se
preocupar em explicar sua presença. Apesar de ter de dar explicação de sua súbita
ausência, claro.
Enrolou-se em posição fetal, fechando os olhos. Pobre Ramsay... O que iria dizer?
Jane acordou de seu sono profundo algumas horas depois. Com a visão ainda
embaçada, tentava enxergar o relógio. Perdera o almoço.
Esticando-se, pegou a apostila que falava da história da pousada, que deixara no
criado-mudo. Deu uma folheada rápida pelas páginas e constatou que a narrativa
permanecia a mesma. Então... por que voltara no tempo para encontrar Ramsay e sua
futura noiva, se nada mudara? Não compreendia.
Desceu a escadaria, determinada a achar uma cafeteria onde pudesse aplacar a
fome. Com o estômago forrado, poderia pensar no que fazer durante o restante do dia.
— Você está bem, querida?—perguntou a sra. Marshall, vindo da sala de jantar.
— A noite foi boa ontem? Jane sorriu, sem-graça.
— Sim, sra. Marshall. Sinto muito por ter perdido o desjejum.
— Sem problemas, minha cara. Não é nada de mais. Pouco depois, Jane
escapava para a luz do dia.
Seguindo a cerca alta que acompanhava a grama, foi em frente, descendo a colina
que levava ao centro de Bath.
Sim, sem dúvida precisava comer algo. Mas esse era o menor de seus problemas.
Deixara Ramsay Chadwick na mão. Causara ainda mais problemas a ele, na tentativa de
ajudá-lo. Assim, ignorando as nuvens que se juntavam no firmamento, continuou sua
caminhada, chegando ao Centro.
Era estranho... Nada parecia fazer sentido. Por que retornara? Qual era a graça
de viajar no tempo por poucas horas apenas? Será que esse tipo de coisa não devia ter
um propósito?
Parou em uma pequena lanchonete, pediu chá e um sanduíche. Enxergue o óbvio,
garota. Você sonhou aquilo tudo. Mas fora tão real!
Triste, Jane decidiu esquecer o que houvera. Terminou logo sua refeição e voltou
a andar aleatoriamente pela cidade.
De repente, um sentimento de desconforto a tomou, como se seu amigo fantasma
estivesse por perto. Olhou ao redor, mas não avistou nada estranho.
Atravessou a ponte Pultney. O barulho das águas do rio Avon não aliviava suas
preocupações. Por fim, decidiu retornar para a pousada.
O que Ramsay mais queria era poder dormir. Passara o dia ouvindo discussões
mesquinhas em seu escritório. Pelo menos, conseguira um resultado positivo no último
caso que julgara: um menino que fora flagrado por um dos conselheiros quando roubava
a carteira de um senhor de meia-idade.
— Por favor, senhor — o garoto implorara. — Sou culpado pelo roubo, mas tenho
dois irmãos para alimentar. Eu tinha de fazer alguma coisa!
— E seus pais?
— Estão mortos, senhor.
Ramsay consultara seus papéis, tentando analisar a personalidade do menino. Ele
lhe pareceu honesto.
— Muito bem. Como esta é sua primeira passagem diante desta corte, sua pena
será leve.
E ofereceu a ele um emprego em seu haras, permitindo também que seus irmãos
menores ficassem em sua companhia. Mas com a condição de que se apresentassem,
todos os três, naquela mesma noite. Sorrindo, o rapazinho aceitou tudo de imediato e
saiu em desabalada carreira.
— Nunca mais o verá — dissera seu assistente.
— Se o garoto recusar a oportunidade e vier a cometer outro crime, é provável que
o veja, sim.
Ramsay sorriu ao se lembrar do cinismo de seu empregado. O garoto, Billy, e seus
dois irmãos, um ainda de colo, se apresentaram em seu escritório momentos depois. E a
chegada deles o fez se atrasar para o jantar na casa dos Devereaux. Lydia não ficaria
nada contente. Assim que terminou de se vestir, dispensou seu criado.
Mirou-se no espelho sobre a cômoda e ajeitou a gravata. Piscou. Piscou mais uma
vez.
De novo, não! Mas não havia como escapar ao que via. O fantasma da srta. Jane
Leighton estava ali, deitado em sua cama.
Cerrou as pálpebras e aguardou alguns segundos antes de abri-las. Não, ela não
fizera a gentileza de desaparecer. Na verdade, estava adormecida.
Ramsay caminhou até o leito. Julgava indecente e inadequado ficar daquele jeito,
olhando para ela em um momento de tanta vulnerabilidade. Mas notava que linhas de
preocupação marcavam-lhe a testa cor de mármore e os cantos de sua boca. O que
estaria deixando a srta. Leighton tão preocupada? Seria por esse motivo que tinham uma
conexão?
Poderia tocá-la, trazê-la para seu tempo e descobrir. Mas, como intrometer-se em
suas questões sem ser convidado? Além do mais, o que poderia fazer para ajudá-la?
Fitou a figura branca, com um sombreado cinza, e imaginou suas cores em vida:
o castanho-vivo de seus cabelos, o calor de seus olhos cor de mel, o rosado de seu rosto
quando ficava nervosa ou embaraçada. Lembrava-se de tudo isso como se a noite
anterior continuasse viva em sua memória.
Sacudiu-se de leve. Olhava para ela como um adolescente apaixonado. Que
ridículo! Não que a apreciasse. De modo algum. Estava apenas fascinado com o fato de
a senhorita continuar a aparecer em sua cama.
Se a tocasse daquela vez, será que Jane viria para sua época? Ou ele seria
transportado para o tempo dela?
Deu um passo atrás. Não podia ficar parado ali. Tinha um jantar ao qual devia
comparecer, na residência de sua noiva.
Capítulo IV
Como não podia voltar para o futuro antes do amanhecer, Jane se enrolou na
colcha e se acomodou melhor. Ramsay se ajeitou na poltrona junto à lareira e passou a
educá-la na etiqueta vigente. Mostrava-se contente por Jane ter uma boa noção do
assunto. E, antes que a luz matinal a levasse embora, deu-lhe um voto de confiança:
— Muito bem, srta. Leighton. A senhorita melhorou muito.
— Estou pronta para a sociedade?
— Quase.
Jane mostrou-lhe a língua.
— Vê? É a prova de que estou certo. Terá de controlar sua natureza
temperamental se pretende freqüentar a aristocracia de Bath.
— Não estamos em sociedade, sr. Chadwick, mas a sós.
Ramsay baixou o olhar.
— Este é um outro assunto do qual devemos tratar. Não pode ficar em meu quarto
durante a madrugada. Os empregados vão notar. Pela manhã, terei um quarto reservado
para a senhorita.
A princípio, Jane aceitou a sugestão. Até que se lembrou do amanhecer. Então,
sorriu.
— Se fizer isso, ao retornar ao futuro eu aparecerei na suíte de outra pessoa, que
vai levar um susto tremendo.
— Tenho certeza de que pensará em algo.
— Não. Destrancar uma porta faz muito barulho, e eu seria expulsa da pousada.
— Do quê!?
— Da pousada. — Jane vacilou, imaginando a reação dele ao ficar sabendo no
que a propriedade se tornara. — Sua mansão é uma pousada agora. Quero dizer, no
futuro.
— Uma pousada?! Nesta região?!
— E não é a única. Os tempos mudaram, e essas casas são muito caras para uso
particular. Apenas algumas não foram divididas em apartamentos.
— Entendo.
— Bem, posso dormir aqui e o senhor dorme em outros aposentos?
— Mas este é meu quarto!
— E devia oferecê-lo a sua hóspede, não acha? Se me expulsarem da pousada,
não poderei voltar e ajudá-lo a salvar Lydia.
— Agora que sei do perigo, eu mesmo poderei salvá-la.
— Está disposto a arriscar?
Ramsay se pôs a fitá-la, avaliando suas opções, os diversos caminhos que poderia
tomar.
— Não. Não posso correr riscos. Ter uma aliada seria muito útil.
— Negócio fechado, então.
Ramsay mirava os dedos estendidos de Jane, confuso.
— Aperte minha mão, sr. Chadwick. Fizemos um acordo.
— É?
— Eu fico com o quarto, e o senhor fica comigo. Para ajudá-lo a salvar Lydia.
— Foi esse o acordo? — Impressionado, ele selou o pacto. — Damas não apertam
as mãos, aliás.
— Sei disso, mas isso é...
— ... entre nós dois. Esta será sua perdição um dia, srta. Leighton. Precisa tomar
cuidado.
— Tomarei, prometo. — Jane olhou para a janela. Amanhecia. — Não queria ter
de ir embora.
Ramsay foi até uma mesinha e pegou uma fita métrica.
— Antes, precisarei tirar suas medidas. Verei o que posso providenciar em relação
a roupas para a senhorita, amanhã.
— Apenas anote, sr. Chadwick. Sei minhas medidas de cor. Assim que terminou
de dar as informações a Ramsay, Jane se despediu:
— Vejo-o amanhã.
Jane decidiu não dormir para aproveitar o tempo que tinha e analisar as peças de
roupa em sua mala. Trouxera apenas um vestido à moda Regência, aquele mesmo que
usara na festa de Ramsay. Será que conseguiria ir até Londres e buscar seus demais
trajes de época? Possuía vários; sua paixão era aquele período da História, com seus
bailes elegantes, o clima de romantismo no ar... E se encontrasse Terrance no caminho?
Bem, seria melhor pensar em outras opções.
Com certeza, conseguiria arranjar algo em Bath. Desse modo, decidiu fazer uma
lista de tudo o que iria necessitar. Se mandasse fazer um vestido, levaria décadas para
que ficasse pronto, mas podia conseguir algumas fitas para adornar seus cabelos, meias
finas e talvez até uma bolsinha de festa. Afinal, estava em Bath!
Desceu para o desjejum algumas horas mais tarde, com a lista em mãos. A sra.
Marshall a recebeu sorrindo.
— Bom dia, Jane. O fantasma a atrapalhou esta noite?
Jane achou melhor abrir o jogo:
— Para falar a verdade, sim.
— Que estranho! Ramsay nunca volta uma segunda vez para o mesmo hóspede.
Bem, minha oferta continua valendo, querida. Posso colocá-la em outro quarto.
— Ah, não, não quero me mudar! Ele não me faz mal. Nem parece notar que estou
lá. É muito interessante observá-lo.
— Se prefere assim... — A dona da pousada desapareceu para dentro da cozinha.
— Sim. — Jane a seguiu. — Talvez a senhora possa me ajudar. Lembra que lhe
contei que faço parte de um grupo de dança do século XIX?
— Claro.
— Pois é. Vamos fazer uma apresentação pública em breve, e para isso precisarei
de roupas daquela época. Tenho algumas em Londres, e até trouxe um vestido comigo,
mas gostaria de ter mais opções. Há algum lugar por aqui em que eu poderia adquirir
material para vestidos do tempo da Regência? Ou até mesmo um xale? Gostaria de levar
algo novo comigo.
— Deixe-me dar uma olhada nas páginas amarelas. Teria de ser algo autêntico?
Porque reparei que há muitas lojas de vestidos de noiva, no Centro.
Jane pensou a respeito.
— Ótima idéia, sra. Marshall. Os mais sóbrios poderão servir. Bastarão algumas
modificações. — E Jane adicionou um kit de costura a sua lista.
Horas mais tarde, Jane retornou à pousada, carregada de sacolas. Encontrara
alguns trajes que, com uma grande fita amarrada sobre o colo, ficariam perfeitos.
Comprara também alguns xales e luvas compridas, para a noite.
A sra. Marshall a viu quando ela tentava passar com as compras pela porta de
entrada.
— Achou o que queria, meu anjo?
— Sim, tive muita sorte.
Depois de um longo cochilo e um bom banho, Jane se sentou sobre a cama,
usando um vestido de época novo, pronta para passar a noite em outro período da
História.
Brincando com as fitas do laço preso abaixo de seu busto, perguntava-se se
Ramsay apareceria ou teria mudado de idéia.
Logo o entardecer se transformou em noite. Jane não acendera nenhuma luz.
Tudo o que via era o brilho do despertador. Queria notar a presença de Ramsay tão logo
ele chegasse.
Sua silhueta branca passou pela porta fechada, segurando uma maçaneta
invisível. Ramsay se aproximou do leito, sua imagem se tornando mais nítida a cada
passo. Estendeu a mão, que Jane aceitou, sentindo o frio de seu contato se tornar quente
e a pele branca de Ramsay ganhar cor.
— Por que está sentada como um índio selvagem? — Ele a soltou.
— Porque é confortável. E então, passei na inspeção?
— Exceto por isso. — Ramsay apontava seu relógio de pulso. Jane o retirou,
colocando-o sobre o criado-mudo.
— Não me deixe esquecê-lo ao partir.
Ramsay pegou o objeto e o examinou, com curiosidade.
— Isto conta as horas? Mas por que é tão pequeno? — Colocou-o junto do ouvido.
— Não faz barulho?
— Não. A tecnologia moderna é maravilhosa.
— De fato. — Ramsay o pôs de volta sobre o móvel, impressionado. — Vamos?
Está usando sapatos desta vez?
— Sr. Chadwick! — Jane deu risada. — O senhor resolveu brincar comigo?
O rosto mostrou tensão.
— De modo algum, srta. Leighton.
— Aonde iremos?
— À nova casa de bailes.
Jane permitiu que o cocheiro a ajudasse a subir, o que não foi muito fácil,
considerando as saias longas do vestido que usava. Ela as ergueu até os joelhos para
conseguir embarcar e ouviu uma imprecação abafada atrás de si. Ao sentar-se, passou
a ajeitar-se.
— Minhas lições de dança não incluíram carruagens, sr. Chadwick.
Ramsay desviou o olhar da roupa dela.
Os cavalos puseram-se a trotar. Jane tentava se manter parada, segurando-se
nas alças de couro que pendiam do teto. Assim que se acostumou ao sacolejar, decidiu
voltar a suas obrigações ali.
— Lydia estará lá?
— É claro.
A carruagem parou, e Ramsay a auxiliou a descer. Dessa vez, Jane procurou
segurar as saias em uma altura mais adequada. Em seguida, os dois deram-se os braços
e foram até a grande construção.
Jane conseguiria se comportar bem?, Ramsay se indagava. Sabia o risco que
corria trazendo-a a público.
Assim que passaram pela porta principal, o sorriso nervoso de Jane desapareceu.
Tudo estava tão diferente do museu calmo de seus dias!
Deixou que Ramsay a guiasse até a sala octogonal, onde todos se reuniam. Ele a
observava.
— Sente-se bem?
— Estou maravilhada! — Abriu o leque e começou a abanar-se. — Nunca, nunca
tinha visto este salão deste jeito antes.
Os lustres de cristal brilhavam à luz das velas, refletindo as jóias e os vestidos das
damas. Jane se entreteve a observar tudo em minúcias, à medida que adentravam o
salão. Não conseguia acreditar na complexidade e originalidade dos bordados e enfeites
dos trajes.
— Pare de encarar as pessoas! — Ramsay murmurou. — Como é a Assembléia
de Bailes em sua época?
—Foi bombardeada na Segunda Guerra Mundial. — Jane agora preferiu ignorar a
expressão espantada dele. Não era hora de discutirem sobre História. — Mas foi
restaurada, e se tornou um museu de moda e cultura.
Naquele momento, toda a sua atenção se voltava para um belo vestido de veludo
verde-escuro, adornado com uma faixa de seda em tom semelhante.
— Há gente que seria capaz de matar por uma roupa assim, em meu tempo. É tão
bom ver esses cômodos cheios de vida. Sempre os achei vazios e melancólicos.
Ao encontrarem o mestre-de-cerimônias, Jane fez uma pequena reverência, e eles
trocaram algumas palavras. Era preciso assinar o livro da sociedade de Bath. Desse
modo, Jane tirou sua luva branca, e, com certa dificuldade ao manusear a pena, imprimiu
ali seu nome.
— Vamos procurar por Lydia?
Voltaram a andar pelo salão. Ramsay queria muito encontrar sua noiva. Devia tê-
la avistado assim que pôs os pés na assembléia. Afinal, era a mulher que ele amava.
Pararam diante de Lydia e uma outra dama. A noiva de Ramsay era uma perfeita
visão, em seu vestido branco adornado com uma faixa cor de pêssego. Ramsay a
cumprimentou e indicou Jane.
— Srta. Devereaux, lembra-se de minha prima, a srta. Leighton?
— Sem dúvida. Achei que tinha deixado a cidade, senhorita.
— E deixei. Mas voltei, como pode ver.
Ramsay, então, apresentou-a à mãe de Lydia, uma senhora corpulenta que usava
um vestido azul-escuro. Em seguida, pediu:
— Se me derem licença, senhoras, preciso falar com um cavalheiro. — Olhou para
Lydia, esperançoso. — Dançará a valsa comigo?
— É claro! — Ela esboçou um sorriso forçado. Jane não perdia um só movimento
de Lydia.
— Pelos Céus, quando foi que o primo Ramsay passou a ser tão arrogante? —
comentou, assim que ele se foi.
Lydia apenas suspirou, movendo o leque em um ritmo lento.
— Ele sempre foi assim, autoritário.
— Até mesmo ao cortejá-la?
Um cavalheiro se aproximou, interrompendo a conversa:
— Srta. Devereaux, está mais encantadora que nunca, esta noite. Seria muito
presunçoso de minha parte esperar que reservasse uma dança para mim?
Lydia consultou a parte de trás de seu leque.
— O terceiro número será seu, sr. Wetherby. O que acha?
— Sou o mais feliz dos homens! Permite-me levá-la até a sala de jantar?
Lydia sorriu, retribuindo o flerte.
— Sr. Wetherby, comporte-se. Sou uma moça comprometida.
Ele se inclinou, numa reverência.
— Acabei me esquecendo desse fato, na presença de uma beleza tão radiante.
Até a terceira dança, senhorita.
Uma grande quantidade de cavalheiros se aproximou de Lydia depois disso,
flertando com ela, implorando por danças e indo embora em seguida. Jane não conteve
a curiosidade:
— Meu primo não se incomoda com toda a atenção masculina que recebe?
— Nem um pouco. Ramsay se orgulha de ter conseguido a mais bela mulher de
Bath.
A modéstia definitivamente não era uma das qualidades de Lydia.
— E como ele a conquistou? Seus modos distantes são o segredo?
— Deus, não! Ramsay me cortejou tanto quanto estes rapazes. — Piscou para
Jane. — Tenho certeza de que não preciso lhe dizer como ele me conquistou.
— Conte-me. — O sorriso de Jane se alargou.
Lydia a fazia lembrar-se das garotas mais populares de sua escola, sempre tão
cheias de si.
— Ele é um homem rico... e não é feio ou velho. Bem, agora com licença. Acredito
que me esperam para esta dança.
Lydia não era esperada por Ramsay Chadwick, que lhe pedira apenas uma valsa,
mas por Mark Darby, que rodopiou com ela em mais de um número, antes de
acompanhá-la para o jantar, deixando Jane com a sra. Devereaux.
— Pobre querida... — A mulher dava tapinhas leves nas costas de Jane. — O sr.
Chadwick devia ter dançado com você, e então não faltariam jovens desejando sua
companhia. Se pudéssemos ao menos atrair-lhe a atenção!
— Não tem problema, sra. Devereaux. Fico feliz em apenas observar. Isso é muito
mais do que já sonhei um dia. É muito gentil de sua parte ficar a meu lado.
Jane notara os olhares de Ramsay, procurando ver se ela o embaraçava de
alguma forma. Mas grande parte de sua atenção era dedicada a Lydia e aos cavalheiros
a seu redor.
Gostaria de poder caminhar pela multidão e tentar descobrir algo sobre o sumiço
de Ramsay. Mas ao que tudo indicava não conseguiria, visto que a sra. Devereaux
deixara claro que não seria apropriado que ficasse desacompanhada.
— Perdoe-me por perguntar, meu bem, mas você tem uma dama de companhia
na mansão do sr. Chadwick?
Jane arregalou os olhos. Por que não pensara nisso antes?
— Lógico que sim! A srta. Dovetail não está se sentindo bem esta noite. Nossas
aventuras recentes a puseram exausta. Ela costumava ser minha governanta, e já está
com uma certa idade, entende?
— Fico feliz que tenha uma acompanhante, querida. Sei que no interior as coisas
não são diferentes. Não seria apropriado que ficasse na casa de seu primo sozinha.
— De modo algum. Até mesmo a idéia de algo assim já é ultrajante. — Jane fazia
um esforço imenso para não rir.
— Qualquer prima do sr. Chadwick é bem-vinda em nossa casa. Deve vir nos
visitar amanhã de manhã!
— É muito gentil. — Jane sabia que a visita seria impossível, mas não conseguia
pensar em mais uma desculpa.
Respirou fundo. Queria conversar com Lydia e descobrir quais eram seus
sentimentos por Ramsay. Mas a garota parecia mais contente dançando com homens
que não eram seu noivo. O problema parecia ser a arrogância de Ramsay. Mas já
descobrira sua vulnerabilidade. O que faria para que ele demonstrasse essa outra faceta
de sua personalidade para a noiva?
Ramsay veio resgatá-la depois do jantar.
— Não a vi dançando — comentou, depois de cumprimentar a sra. Devereaux.
Sua futura sogra bateu-lhe com o leque.
— Sim, rapaz. E a culpa é sua, porque a abandonou. Dance com sua prima agora.
Talvez não seja tarde demais.
— Que negligência de minha parte... — A voz dele parecia demonstrar tudo,
menos arrependimento. — Srta. Leighton?
Jane reconhecia a música e sabia os passos, por isso aceitou o braço dele,
destemida, e o casal se juntou aos demais.
— A senhorita dança bem.
— Obrigada. Dança do século XIX é meu hobby.
— Não é uma grande sorte? Jane sorriu.
A expressão de Ramsay permanecia imutável.
— Fez algum progresso em sua... investigação, senhorita?
— Agora, sim, parece o magistrado que é! — Mas o sorriso de Jane desapareceu
ao notar o olhar vago de Ramsay. Será que ele não tinha senso de humor? — Não
consegui descobrir tanto quanto gostaria, mas este não é o lugar para discutirmos isso.
— Por que não?
— Sr. Chadwick, sou uma pessoa muito sincera. Suspeito que o senhor possa
reagir de maneira descortês quando ouvir o que tenho a lhe dizer.
— Nesse caso, é melhor esperarmos mesmo até estarmos a sós na carruagem.
Isso os fez se calar.
Logo a dança terminou, e os dois voltaram para perto da sra. Devereaux e sua
filha. Ramsay, sem perder a oportunidade, tomou a mão de Lydia e a levou até a pista,
para sua valsa.
Jane os observava, espicaçada por uma ponta de ciúme. Eram um belo casal, e
se moviam com muita graça. Chegou a desejar que um homem a olhasse da mesma
forma como Ramsay olhava para a futura esposa: com amor, desejo e intensidade.
No entanto, estava ali para ajudar, não para babar pelos cantos. Com isso em
mente, continuou a observá-los. Estavam em silêncio. Ramsay conversara com ela,
embora pouco. Todavia, não trocava nenhuma palavra com Lydia, que, por sua vez, não
demonstrava prazer algum em estar nos braços dele, mantendo um sorriso apenas
educado nos lábios.
Ramsay trouxe Lydia de volta, ao fim do número, fazendo-lhe uma cortesia e
beijando o ar sobre sua mão. Aturdida, Jane a viu ignorar a gentileza. Foi difícil, mas
conseguiu se impedir de fazer algum comentário. Precisava de mais fatos. Talvez Lydia
não estivesse bem, nessa noite.
Outro cavalheiro se aproximou dela, que se encheu de sorrisos. Não, não estava
indisposta. Jane olhou, preocupada, para Ramsay, que não ficou nada feliz com a
situação. Será que sua relação contida fora a causa do desaparecimento de ambos?
Ramsay a flagrou a analisá-lo.
— Deve estar cansada, srta. Leighton. Talvez devêssemos nos retirar.
— É uma boa idéia. — Quanto mais cedo saíssem de lá, mais cedo poderiam
conversar. Despediu-se da sra. Devereaux: — Foi um prazer conhecê-la.
Ramsay a acompanhou para fora da assembléia e a ajudou a subir no veículo. Mal
tinham se sentado, e ele começou:
— Diga: o que descobriu?
— Muito pouco. Lydia dançou com metade dos homens de Bath, todos belos e
jovens, e com o senhor uma vez.
— Não é costume dançar apenas com um cavalheiro, mesmo se estão noivos, e
Lydia adora valsar.
— Vocês brigaram?
— Não, é claro que não. Estamos muito bem. Lydia está contente com a data do
casamento, que se aproxima, posso garantir.
— Se o senhor diz...
Chegaram à mansão de Chadwick, e ambos tornaram a se falar apenas quando
entraram no escritório. Jane tinha de saber mais sobre o relacionamento dos dois.
— Não conversaram durante a valsa. Por quê?
— Não precisamos conversar. Estávamos desfrutando do prazer da companhia
um do outro.
— Acho que precisa continuar a cortejá-la, sr. Chadwick. Lydia adora a atenção
que recebe dos demais cavalheiros. Atenção essa que não recebe mais do senhor.
— Srta. Leighton, isso é um disparate! Lydia sabe o que sinto!
Jane se sentou numa poltrona, recusando-se a se deixar intimidar pelo tom irritado
dele. Aquela era sua chance de consertar um homem que, pela primeira vez, não estava
envolvido com ela. Assim, falou com calma e paciência:
— Sr. Chadwick, aquela jovem gosta que lhe digam que é amada. Se pensa que
colocar um anel em seu dedo acabará com essa necessidade, está redondamente
enganado.
Ramsay se acomodou atrás da escrivaninha.
— Não me dê um sermão, senhorita! Deve descobrir por que minha noiva vai
sumir, e não se intrometer em nosso amor. Jane gargalhou.
— É assim que chama o que vocês têm? Ramsay, seu "amor" está em apuros, e
eu estou disposta a apostar que isso tem ligação com o desaparecimento de Lydia.
— Pois não acreditarei nisso até que tenha provas. E não me chame de Ramsay!
Jane respirou fundo.
— Farei o possível para descobrir por que Lydia está em perigo. Mas meu
conselho foi sincero, Ramsay. Você tem de dar mais atenção a ela.
— Já mandei parar de me chamar de Ramsay! — Ele baixou o rosto e meneou a
cabeça. — Sinto muito, estou sendo grosseiro. A senhorita testa minha paciência. Mas
aprecio muito sua oferta de auxílio.
Jane tentou sorrir.
— Vê? É esse tipo de comportamento que Lydia precisa testemunhar.
Ramsay lhe endereçou um olhar profundo e se levantou, caminhando para longe.
— É tarde. Tenho certeza de que deseja descansar um pouco antes do
amanhecer.
Ramsay cuidou para que Jane chegasse a seu quarto sem ser vista e foi para o
aposento do outro lado do corredor.
— Boa noite, sr. Chadwick.
— Boa noite, srta. Leighton.
Capítulo V
O assistente de Ramsay apareceu na sala de jantar, trazendo consigo um
punhado de notas bancárias. Ramsay depositou a faca e o garfo sobre o prato e brincou:
— Ganhei alguma aposta?
— Não, senhor. Foram entregues esta manhã. São falsas.
— Falsificações? — Ramsay as examinou. — São boas, mas não o suficiente.
Onde as conseguiu?
— Jamison, o alfaiate. Ele estava fazendo cobranças ontem, pela cidade. Podem
ter vindo de qualquer lugar.
Ramsay notou o cinismo de Allsop. As notas provinham de alguém que fazia parte
da elite de Bath. Ramsay as devolveu ao assistente.
— Sabe o que precisa ser feito. Faça uma lista de todos os pagamentos de ontem
e investigue. Veja onde mais esse dinheiro aparece. Encontraremos o falsário.
Jane vestira mais um de seus novos trajes em estilo antigo. Puxava as luvas sobre
os braços quando ouviu as batidas na porta.
— Sou eu, querida.
— Entre, sra. Marshall.
A dona da pousada girou a maçaneta, dizendo:
— Alguém ao telefone quer lhe falar. Nossa! Você está linda!
— Obrigada.
Descendo até o primeiro andar, Jane atendeu a ligação. Parecia estranho usar o
aparelho vestida daquele jeito.
— Alô?
— Jane? É Patrícia. O que faz aí ainda?
Que pergunta estranha, minha amiga...
— Como assim? Não entendi.
— Sonhei com você de novo, esta noite.
— Patrícia...
— E, já que Terrance apareceu na loja outro dia, achei melhor fazer seu mapa
astral.
Suspirando, Jane aceitou sua derrota.
— Mesmo? E o que dizem as estrelas?
— É esse o problema! Nunca vi um mapa tão confuso quanto o seu. Eu o mostrei
a Briget...
Briget era a mentora de Patrícia nas artes da nova era.
— ...e ela ficou tão confusa quanto eu. E como se metade do tempo você não
estivesse aqui, e o resto é como uma grande onda de atividades.
— Bem, andei fazendo uma pesquisa sobre um antigo morador desta propriedade.
Você me conhece, tenho de me manter ocupada. — Encostou-se na parede. Como era
possível que o mapa da amiga mostrasse suas viagens pelo tempo?
— No entanto, a maioria dos astros se encontra em sua casa de relacionamentos.
É tão esquisito, Jane! Verifiquei todos os cálculos, e estão corretos, mas não fazem
sentido algum. Porém, há algo bastante claro, por isso telefonei.
— O que é?
— Se não resolver essa confusão emocional, e acredito que isso se refira a
Terrance, embora os astros sugiram alguém novo... Bem, se não resolver isso, alguém
pode morrer.
Jane sentiu as pernas fracas, e apertou o aparelho com força.
— Como!?
— Está mesmo uma grande confusão. Alguém vai morrer, ou já morreu. —
Silêncio. — Jane, tenha cuidado.
Jane mordeu o lábio inferior. A amiga não teria ligado se não fosse algo importante.
E o fato de que Ramsay já tinha morrido decerto o tirava da equação.
— Sou eu?
A amiga demorou a falar:
— Ainda que eu pudesse responder a uma pergunta como essa... Não sei, não
tenho certeza. Cuide-se. Ou melhor ainda: volte para casa.
— Ficarei bem.
Jane tentava acalmar a amiga, mesmo que calma fosse a última coisa que sentisse
no momento. Desligou o telefone e retornou a seu quarto. Esperaria pelo pôr-do-sol, sem
se preocupar com as previsões de Patrícia.
Nunca parará para pensar naquilo: Quanto tempo ainda ela teria para salvá-lo?
Capítulo VII
Ramsay se dirigia para seus aposentos temporários. Desalinhara os cabelos,
desesperado, perguntando-se o que dera errado.
Recostando-se à parede do corredor, olhou para a porta de seu quarto, onde o
fantasma da srta. Leighton deveria estar dormindo. Com certeza não estaria acordada.
Talvez as pessoas não necessitassem de tanto sono assim no futuro.
Esperançoso, abriu a porta devagar. Encontrou-a adormecida, de costas.
Devagar, aproximou-se do leito. Queria contar-lhe da noite catastrófica, mas, ao mesmo
tempo, não queria incomodá-la.
— Vim assombrar a senhorita. Acorde.
Jane se mexeu. Em seguida, virou-se e ficou de frente para ele.
Ramsay sentiu o coração quase saltar pela boca. Um grande hematoma marcava-
lhe o antebraço. Não estava ali algumas noites atrás. Sentiu a raiva tomar conta de si. O
que acontecera? Quem a machucara?!
Com cuidado, sentou-se no colchão, inclinando-se para ver se encontrava algum
outro ferimento. Jane tinha olheiras, mas não havia nenhum outro machucado visível.
Queria consolá-la, mantê-la segura.
A idéia era absurda, concluiu. Um pequeno contratempo com sua noiva não era
motivo para correr para os braços de outra mulher. O que sentia era piedade, e não...
não uma necessidade maior. Isso, presumindo-se que Jane o quisesse.
Observou seu braço machucado. Se tivesse a oportunidade, mataria o bastardo
que a ferira.
Respirou fundo, controlando-se. Concentrou-se na bela silhueta adormecida. Jane
parecia inocente, bastante diferente da garota travessa que o provocava até vê-lo furioso
e depois o fazia rir de novo.
Dormia. Na certa não acordaria.
Tocou-lhe o hematoma, passando os dedos pelo comprimento de seu braço. O ar
gelado tornou-se quente sob sua pele. Ela tomava cor. E surgiu ali, como nas outras
ocasiões; Ramsay afastou a mão, mas não conseguiu deixá-la.
Jane ergueu as pálpebras e o olhou.
— Olá — murmurou, ainda meio adormecida. — Como foi o jantar?
— Nada bom.
Isso a fez despertar. Jane se sentou, puxando os cabelos para trás das orelhas.
Ramsay teve uma vontade imensa de fazer isso por ela, de tocar os fios macios...
— Por quê?
— Derrubei queijo no vestido dela. Lydia ficou nervosíssima e exigiu que eu a
levasse para casa. — Preferiu omitir a parte dos gritos histéricos e dos pratos
arremessados contra as paredes.
— Acho que as manchas devem ser mais difíceis de serem retiradas aqui do que
em minha época.
— Não tinha pensado nisso.
Ramsay sabia que soava frio, mas não ousava mostrar nenhuma outra emoção.
Não devia demonstrar a profundidade de seu desapontamento com Lydia ou os
sentimentos inexplicáveis que passara a nutrir por Jane.
Queria protegê-la, apenas isso. Mas, sem que se desse conta, seus dedos
acariciaram-lhe o braço ferido.
— O que aconteceu?
Jane meneou a cabeça, mas não conseguiu manter a máscara de indiferença.
— Droga! Pensei que já tinha chorado o suficiente. As palavras o atingiram em
cheio.
— Jane?
Uma lágrima escorreu pelo rosto dela. Sem pensar, Ramsay a secou com o dedo.
Ela se jogou nos braços dele, desconcertando-o.
— Foi horrível! — Soluçou.
Ramsay se sentia estranho, consolando a jovem seminua junto a si. Afagou seus
cabelos. Aquela era a única parte dela que achava seguro tocar. Por que ela insistia em
usar aqueles pedaços insignificantes de roupa para dormir?
O aroma da pele de Jane o envolvia. Sentia-lhe os seios contra o peito. Engoliu
em seco.
— Desculpe-me, sr. Chadwick. Não foi minha intenção me descontrolar desse
jeito. Olhe, não quero falar sobre isso. Não há nada que possa fazer.
Ramsay cerrou os punhos. Não precisava ser lembrado sobre sua impotência no
assunto.
— Posso ser seu amigo, assim como tem sido comigo.
— E que amiga! Meu azar nos relacionamentos parece ter se estendido para o
senhor.
Ramsay viu que ela pensava em algo e esperou, aliviado por ver que sua dor se
amenizara. Jane disse o que lhe passou pela cabeça, como sempre:
— Talvez se comprasse um tecido bem caro para Lydia fazer um novo vestido...
— Nunca desiste, não é? — Ramsay sorriu.
— Acho que desistir não faz parte de mim.
— Quem fez isso? — Ele apontou para o hematoma. O rosto dela se encheu de
dor.
— Um homem fez isto.
Os punhos dele se fecharam de novo, mas Ramsay disfarçou bem, como sempre.
— Quem foi? Está a salvo dele agora?
— Terrance se recusa a me deixar, mesmo tendo uma esposa. Se estou segura?
Duvido muito. De todo modo, não há muito que as autoridades possam fazer a respeito.
Vendo o desconforto dela, Ramsay deixou o assunto morrer.
Jane, então, quis saber como progrediam os casos dele e se algo de novo
acontecera. Nunca antes Ramsay conversara com uma mulher tão inteligente e
interessada em seu trabalho.
Aliás, jamais falara com uma mulher por tanto tempo sem que um dos dois ficasse
entediado. Incrível. Mas um bocejar indesejado o tomou.
Jane colocou a mão no joelho dele.
Será que ela não sabe que tal toque é íntimo demais? Ramsay procurou se
concentrar em suas palavras.
— Você não dormiu. Devia repousar um pouco.
Ele não queria que a noite acabasse, e se entristeceu por ela não pensar da
mesma forma.
— Amanhã haverá um baile, srta. Leighton. Terá de se vestir de forma adequada
e cobrir essa mancha roxa. Não quero que ninguém pense que estou batendo na
senhorita.
— Como se alguém fosse pensar tal coisa, sr. Chadwick. Sorrindo, Jane se
inclinou para a frente e o beijou no rosto.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Por ter vindo me ver, hoje. Por ter me escutado.
— Não me disse muito sobre seus problemas.
— E verdade, mas tê-lo aqui ajudou bastante.
Ramsay beijou-lhe a testa. Era o local mais seguro. Um pouco mais para baixo e
estaria em perigo de alcançar sua boca.
—Não agradeça, srta. Leighton. Adoraria poder fazer mais para retribuir tudo o
que tem feito por mim.
— Dará tudo certo, Ramsay. Você vai ver.
Ele ia dizer-lhe, pela milésima vez, que não o tratasse pelo nome, mas desistiu.
— É, eu sei.
As palavras dela o fizeram se lembrar de uma Lydia enfurecida, berrando,
descontrolada, por isso sua afirmação soou falsa até para ele mesmo. De alguma forma,
perdera sua noiva antes que percebesse.
Quando seu desejo por Lydia desaparecera?
Desejando boa-noite a Jane, Ramsay se foi, fechando a porta.
Passou a mão sobre o rosto. Estava exausto. Amanhecia, e ele passara a
madrugada toda conversando com Jane.
Se não reconquistasse Lydia, poderia perdê-la para sempre. E, se Jane estivesse
certa, perderia também sua vida.
Para surpresa de Ramsay, Lydia o visitou na manhã seguinte, no escritório da
magistratura.
— Srta. Devereaux, o que faz aqui? — Ramsay se deu conta, porém, de que não
se tratava de uma visita social, pois ela vinha com seu assistente. — O que significa isso?
— A srta. Devereaux estava com isto, magistrado. — Allsop jogou um punhado de
notas bancárias sobre a mesa. — E não quer dizer onde as conseguiu.
— Não direi! — Os olhos azuis de Lydia cintilavam. Ramsay analisou os papéis.
Falsos, todos eles. Tentou persuadi-la:
— Mas precisa dizer, querida. É ilegal possuir notas fraudulentas. Pode ser
aprisionada ou, até mesmo, enforcada por isso!
— Fraudulentas? Presa? — O semblante dela não mostrava mais raiva, e sim
medo. — Não me chame de "querida". Não conseguirá respostas me seduzindo. Como
se fosse capaz disso...
A punhalada o atingiu fundo. O que Lydia estava querendo dizer? Que ele nunca
fora desejável para ela?
Lydia estava irritada e temerosa. Decerto não tivera intenção de falar aquilo.
— Tem de me contar tudo. Como serei capaz de ajudá-la se não cooperar?
Ramsay observou seu rosto delicado, enquanto ela ponderava sobre a oferta. A
teimosia que Lydia demonstrava transformou-se em insegurança.
— Promete que não ficará zangado?
— Prometo.
— Eu as ganhei na noite passada.
— Ganhou?! Antes ou depois... — Não queria lembrá-la de seu jantar desastroso.
— Depois. Fui para casa e troquei o vestido sujo por outro.
— Falando nisso... — Ramsay pegou um pacote marrom. — Tome, é para você,
para me redimir de minhas ações.
Lydia rasgou o papel.
— Oh, sr. Chadwick! É lindo! Ficará ótimo em mim, não acha?
— Maravilhoso!
O sr. Allsop deu uma tossidela discreta.
— Voltando aos acontecimentos de ontem...
— Bem, eu não quis ficar em minha residência, então compareci a uma festa na
mansão da sra. Westchester. Foi lá que as ganhei.
— De quem?
— Não sei dizer. Jogávamos em grupo.
O sr. Allsop olhou para os documentos e comentou:
— Algo estranho para se apostar em um jogo de cartas... Lydia encarou o homem
com desdém. Ramsay apenas analisou a mudança na expressão da noiva quando ela
tornou a encará-lo, agora bastante suave. Tamanha hipocrisia o deixava enjoado. Era
uma repulsa que o surpreendia.
— Quem estava jogando?
— Eu, a sra. Westchester, o sr. Wetherbourn e o sr. Darby.
Darby de novo. Ramsay tentou se concentrar no tema em questão. Eram todas
pessoas de reputação impecável, aquelas a quem Lydia se referia.
— Talvez tenham recebido as notas bancárias de outro alguém, sem desconfiar
de que eram falsas.
— Sim, deve ser isso! — Lydia logo se apegou à sugestão. — Eu não sabia!
— Nós resolveremos isso, srta. Devereaux.
— O que fará?
Ramsay já não se sentia tocado por sua insegurança. Talvez tudo não passasse
de mero fingimento.
— Interrogaremos seus parceiros e descobriremos onde conseguiram os papéis.
Vejo-a esta noite?
—Sim, sim. É claro. — Lydia apanhou seu presente, murmurou um "adeus" e foi
embora.
Capítulo VIII
Quando Ramsay e Jane chegaram à mansão de lady Bartholomew, foram
recebidos com efusividade pela anfitriã, que elogiou a beleza de Jane e a elegância de
Chadwick.
— Sejam bem-vindos e estejam à vontade.
Jane teve pouca chance de admirar os belos trajes das damas e a exuberante
decoração, pois Ramsay a conduziu sem demora pela escadaria até o salão de bailes.
Uma vez lá, dirigiram-se para junto da sra. Devereaux e sua filha.
O sorriso forçado de Lydia foi bastante constrangedor, mas sua mãe se desdobrou
em gentilezas ao cumprimentar Ramsay. Antes que Ramsay tivesse chance de dizer
algo, Lydia pediu que fosse buscar-lhe uma taça de champanhe.
Jane observou Lydia. A jovem analisava os convidados, trocando comentários
maldosos com a mãe. Parecia muito despreocupada e feliz.
— Lamento que seu encontro com o sr. Chadwick ontem não tenha sido muito
agradável.
Lydia abriu a boca para responder, mas sua mãe foi mais rápida:
— Srta. Leighton, estranhei não encontrá-la em casa na noite passada. Onde
esteve?
Jane sentiu o coração saltar. Ramsay não explicara?
— O sr. Chadwick não disse?
— Bem, o sr. Chadwick estava muito envolvido com a presença de minha filha
para se importar com minhas perguntas. Nenhum dos empregados respondeu-me,
tampouco.
— Meu primo se orgulha da discrição de seus criados. Em sua linha de trabalho,
isso é imprescindível.
— Trabalho! — A sra. Devereaux demonstrou todo o seu desprezo. — O sr.
Chadwick é um cavalheiro, senhorita. Ser magistrado não é um trabalho. Só os pobres
trabalham.
— Sim, claro, tem razão.
— Por que os empregados têm de ser discretos a seu respeito, srta. Leighton? —
A mulher abanava o leque com força. — Espero que me diga onde esteve ontem!
Jane esboçou um sorriso brejeiro e buscou na memória todo o seu repertório
referente aos romances de Austin.
— Fui até os edifícios Westwood. Tenho uma querida amiga que reside lá. Levei-
lhe uma cesta de frutas e aproveitamos horas bastante agradáveis e calmas.
A senhora relaxou.
— Entendo. A senhorita é uma moça gentil. Perdoe minhas suspeitas.
— Suspeitas!? — Jane forçou uma expressão de espanto, congratulando-se por
ter escolhido a desculpa adequada. — Bem, suponho que minhas dores de cabeça
constantes tenham me feito parecer um tanto estranha. É a luminosidade, sabe? Às
vezes sinto como se fossem agulhadas em meus olhos.
— Que remédio coloca nas vistas, querida? — A sra. Devereaux mostrava-se
solícita agora.
— Nada funciona além de descanso e escuridão. — Jane suspirou.
— Mandarei meu médico preparar-lhe algo. Tive enxaquecas terríveis quando
Lydia era pequena. Era um verdadeiro horror. Logo estará boa e disposta, a senhorita
verá.
— Obrigada, sra. Devereaux.
— E Lydia até que se saiu bem de seu pequeno contratempo com o noivo. Ela
trouxe para casa o melhor corte de tecido que já vi em minha vida. Mandamos para a
costureira, para fazer um vestido, não é, meu anjo?
— Sim, do mais belo tom esmeralda. E tão macio também! Mal posso esperar para
usá-lo.
— Espero vê-la usando-o logo, srta. Devereaux. Fico feliz que tudo tenha acabado
bem.
— Ramsay é um homem. Não pode evitar ser desastrado, suponho. Mas existem
cavalheiros muito cuidadosos, por outro lado. — Lydia desviou o olhar para longe.
Jane acompanhou-a e não acreditou no que viu: "Darby!".
Instantes depois, ele se aproximou, e antes que alguém pudesse contestar seu
pedido, levou Lydia para uma valsa.
O olhar de felicidade da jovem, o modo como os dois se fitavam... Estavam muito
próximos também. Tudo sugeria um desastre. Jane queria apenas que a dança acabasse
antes do retorno de Ramsay.
Mas lá estava ele, paralisado, entre os convidados, segurando duas taças de
champanhe. Nada se movia em seu corpo, exceto seus olhos, que acompanhavam o
casal.
De soslaio, avistou Jane, dizendo muito com seu silêncio. Será que mais alguém
via e compreendia aquele olhar de raiva e ressentimento?
Ramsay deu meia-volta e desapareceu por entre as pessoas. Logo em seguida, o
número acabou, e Darby trouxe Lydia de volta. Assentiu para as três mulheres e se foi.
— Lydia, uma valsa? — a sra. Devereaux reprimia a filha, em tom baixo. — Tem
idéia do escândalo?!
Lydia abriu o leque e se abanou, com toda a calma.
— Já dançamos antes, mamãe. O sr. Darby estará no altar, ao lado do sr.
Chadwick, durante o casamento. Aliás, onde está ele?
— O sr. Chadwick? — Jane deu de ombros, como se não se importasse. — Talvez
devesse ir procurá-lo.
— Que idéia fantástica! — exclamou a sra. Devereaux, feliz com a sugestão. —
Irei junto. Importa-se em ficar sozinha, srta. Leighton?
— De modo algum.
Pelo visto, a sra. Devereaux não confiava em deixar a filha sozinha.
Quem poderia culpá-la? Jane pôs-se a circular pelo salão. Gostaria de aproveitar
sua estada no período regencial e dançar com algum cavalheiro, mas a ausência de
Ramsay a incomodava. Será que tinha ido embora?
Através de uma porta entreaberta, que levava à sala de jantar, avistou Darby se
despedindo de Ramsay. Pela expressão de Ramsay, ele acabara de questionar o amigo
por seu comportamento.
Ao ver Jane, Mark Darby se aproximou dela. Ramsay desapareceu na direção
oposta sem olhar para trás.
— Srta. Leighton. — Cumprimentou-a, nem um pouco afetado pela conversa com
Ramsay. — Vejo que está perdida. Onde se encontra a bela Lydia?
— Saiu à procura do noivo.
— Que pena... Srta. Leighton, posso perguntar quais são seus interesses neste
pequeno caso?
— Ao que se refere, sr. Darby?
Ele arqueou uma sobrancelha, e Jane, sem querer que alguém mais os ouvisse,
passando mais uma vez por cima das convenções, convidou-o:
— Sr. Darby, quer dançar?
O queixo dele caiu.
— Srta. Leighton, uma jovem dama não...
— Ao indagar se eu estava "perdida" o senhor já sugeriu que não sou uma dama.
Portanto, o que isso lhe importa? De todo modo, não vejo motivo para me submeter ao
capricho de um homem. — Estendeu a mão. — Vamos?
Um sorriso devastador tomou conta dos lábios de Darby, ao conduzi-la para a
pista.
— O sr. Chadwick sabe disso?
— Disso o que, sr. Darby?
— De que tem uma mulher leviana e sem moral sob seu teto?
— Realmente, sr. Darby, o senhor tem o dom de ser bastante grosseiro.
Ele a fez girar.
— Perdoe-me, mas achei que seríamos francos um com o outro. — Baixou os
olhos para seu decote.
— Muito bem, sejamos sinceros, então. — Jane o encarava, com altivez. — Quais
são suas intenções com a srta. Devereaux?
— Intenções? Deveria ter alguma?
Os olhos de Jane se estreitaram. Os demais casais não estavam tão próximos ou
interessados em conversar quanto eles.
— Sr. Darby, não acabamos de concordar em usar de sinceridade?
— Mas não concordamos em revelar nossos segredos.
— Não tenho segredos...
— Não? Sendo assim, talvez possa explicar por que o quarto do sr. Chadwick,
aquele que tomou para si, está vazio.
Jane tentou disfarçar o nervosismo.
— Por que estou aqui, dançando com o senhor. — Sorriu. Ele ignorou sua resposta
infantil.
— Soube, por fontes confiáveis, que a suíte é habitada apenas por fantasmas.
Acredito que a questão aqui seja: que tipo de jogo a senhorita e Chadwick estão fazendo?
— Fantasmas!? — Jane riu.
Como ele soubera daquilo? A informação só podia ter vindo dos criados. E
Chadwick ainda achava que os empregados da mansão eram discretos...
— Não vai responder, senhorita?
A dança os fez se aproximar, passando os braços ao redor um do outro. Darby se
inclinou; Jane podia sentir-lhe a respiração no rosto.
— Devemos jurar manter os segredos um do outro, então? Alarmada, Jane
pensava no que responder. Darby propunha mais do que uma simples promessa de
silêncio. Não que a pudesse dar, de qualquer forma. Isso significaria trair Ramsay, algo
que jamais faria.
Graças aos Céus, o próximo passo da dança os afastou.
Preciso beber algo, Ramsay disse a si mesmo, após sua conversa com Mark.
Embora o amigo o tivesse convencido de sua inocência no caso das notas bancárias
falsas, Ramsay ainda sentia que algo não se encaixava.
Mal conseguiu conter a vontade de questioná-lo de novo, dessa vez sobre suas
danças com Lydia, tão íntimas. A simples visão dos dois juntos o enlouquecia. Ramsay
sabia que Darby riria muito de suas dúvidas, fazendo-o sentir-se pior ainda. Portanto, era
melhor deixar tudo como estava.
Pegou um copo de uísque de um garçom que passava. O álcool aqueceria sua
garganta, acalmando-o.
Com discrição, interrogara todos os parceiros de jogo de Lydia, exceto um.
Nenhum deles sabia nada sobre as notas. Ramsay preferia não se adiantar, mas as
coisas não iam bem para a quarta pessoa em sua lista. Entretanto, esperaria até ter
provas.
Subiu a escadaria, voltando ao salão de bailes. Tinha de pensar. Se Jane
estivesse certa, aquele poderia ser o caso que iria salvar sua vida e a de Lydia. Mas se
sua noiva o estivesse traindo, aquela seria uma existência de mágoas, e sua Jane não
teria como ajudá-lo.
Minha Jane!?
De onde saíra aquilo? Jane Leighton não podia ser sua, nem ele dela. O que
esperar para eles dois se o pior acontecesse a Lydia? Noites ocasionais de paixão e
longos e entediantes dias separados?
Engoliu em seco, voltando a ponderar sobre assuntos reais.
Quase passou por Lydia, mas a voz da mãe dela o alertou de sua presença. As
duas estavam no hall, em frente ao salão. Lá dentro, os casais dançavam. Ramsay se
dirigiu à noiva e à futura sogra:
— Minhas desculpas, sra. Devereaux, srta. Devereaux... Não as vi.
Estaria Lydia aborrecida com sua falta de atenção? Ramsay sentiu as esperanças
renascerem. Quem sabe Jane estivesse certa e Lydia flertasse apenas para deixá-lo com
ciúme? Estava cansado de fazer suposições. Tinha de ter certeza, mas... como?
Onde estava Jane? Por que as duas a deixaram sozinha? Ramsay esticou o
pescoço para tentar vê-la no salão, mas não teve sucesso.
— Estivemos a sua procura.
Ramsay ignorou a mãe de sua noiva, fixando o olhar em Lydia. Procuraria Jane
depois. Esperava apenas que não tivesse cometido nenhum desatino naquele meio
tempo.
— Srta. Devereaux, posso falar-lhe em particular?
— É claro.
Tomando o braço dela, Ramsay a levou para o andar de cima. Entraram em um
corredor longo. Todas as portas estavam fechadas, assim ele apontou um assento junto
à janela. Preferia um cômodo fechado, mas aquele, pelo visto, seria o único local onde
não seriam interrompidos.
— Sabe muito bem se esconder, sr. Chadwick.
Ramsay não gostou do comentário. Lydia deveria ficar feliz com sua presença,
isso sim.
Sentou-se ao lado dela e respirou fundo. Naquele momento em que a tinha só
para si, não sabia direito o que fazer.
— Lydia...
Ela devia ter visto algo estranho em sua expressão, pois arregalou os olhos e
inclinou-se para longe. Por que teria tanto medo dele?
— Lydia, há algo que preciso saber.
— Já lhe disse que não sei de onde vieram aquelas notas falsas.
— Esqueça as benditas notas! — Ramsay tentava ser paciente; não era nada fácil.
— Lydia, é sobre nosso noivado. A senhorita não tem se mostrado nada contente. Se há
uma chance de que seja feliz longe de mim, não irei impor impedimento algum.
A expressão esperançosa no semblante dela fez o estômago dele embrulhar. Sua
noiva não o amava.
Lydia se recompôs rápido e falou, com doçura:
— Achei que me amava.
— Bem, eu... A senhorita é a dama mais bela de Bath, e ficaria muito honrado em
tê-la como esposa. Entretanto, se acha que será infeliz comigo, então não se sinta
obrigada a nada. Não tenho certeza de que me ama.
Afastá-la doía. E doía ainda mais vê-la se afastando por vontade própria.
— Oh... — A voz dela soou mais gelada que o vento do inverno. — Sr. Chadwick,
nós dois fizemos um acordo de compromisso, e iremos nos unir por ele. Serei honesta.
Não o amo e jamais poderei amá-lo. Mas me casarei com o senhor.
Ramsay mal conseguia digerir a informação.
— Ainda assim deseja se tornar minha esposa?
— É uma boa união. Casamentos arranjados funcionaram para nossos pais.
Podem muito bem funcionar para nós.
Os pais de Ramsay tinham se casado por amor, não porque o matrimônio fora
arranjado.
Ramsay observou Lydia. Ela parecia vazia, sem vida. Evidente que não o amava.
E, mesmo assim, queria casar-se com ele.
Até mesmo o mero ato de respirar lhe causava sofrimento. Assim, fechou os olhos,
querendo afastar-se do mundo. Tinha de perguntar, mesmo sabendo a resposta. Encarou
sua noiva.
— Ama outro alguém?
A risada animada de Lydia o fez estremecer.
— Amor! Por que toda essa conversa sobre amor? O amor é conquistar e ganhar.
É um jogo. Não serve para a vida.
Sem se mexer, Ramsay a viu se levantar e afastar-se.
— Poderia acabar com nosso noivado. Por que deveria se deixar prender por um
casamento em que nem teria esperança de amor?
Lydia endireitou a coluna, muito altiva, seus olhos azuis cheios de ira.
— Com nosso casamento a apenas quatro dias? Eu o processaria por quebrar sua
promessa. Esta união vai acontecer. Se me deixar agora, estarei arruinada para o resto
de meus dias.
— Acredito que esteja superestimando isso. — Ramsay se sentia aturdido pelas
palavras cruéis. Não era nenhuma manha de criança o que via nela, mas raiva pura.
— Não. Está feito, sr. Chadwick. Poderemos nos divertir se esse amor a que se
refere não vier com o tempo.
As declarações degeneradas de Lydia o enjoaram. Entretanto, estava aprisionado.
Não poderia acabar com o compromisso àquela altura sem uma boa desculpa. Tinha de
raciocinar.
Ramsay ficou de pé e fez uma cortesia para Lydia. Como sempre, o perfeito
cavalheiro. Por dentro, porém, sentia-se dilacerado.
— Boa noite então, srta. Devereaux. Ramsay se apressou a descer as escadas.
Seus passos eram pesados ao caminhar em direção ao salão.
A beleza de Lydia tinha sido suficiente para Ramsay. Acreditava que ela poderia
vir a amá-lo com o tempo, pois estivera atraída por ele. Pelo menos até ter aceitado seu
pedido de casamento.
Mas fora pelo dinheiro. Compreendia isso agora. Com sua grande fortuna,
comprara o pedigree da família Devereaux. Um homem de passado obscuro devia se
contentar com tal união.
As palavras soaram familiares. Onde as ouvira antes?
Entrou no salão, procurando por Jane com um estranho desespero a lhe apertar o
peito. Com ela, poderia conversar. Jane o entenderia.
Onde estaria? Será que se metera em alguma encrenca? Viu-a na pista de dança.
Tinha o braço passado pela cintura de Mark Darby. Sua cabeça estava junto à dele, que
se inclinava, dizendo algo a seu ouvido. E ela sorria, sorria, para ele.
Ramsay sentiu-se prestes a explodir. Mark planejava roubar-lhe tudo o que
amava? Os comentários afiados de Jane de algumas horas antes voltaram-lhe à
memória.
Não toleraria aquilo.
Ainda envolvidos em seu abraço íntimo, Jane e Mark passaram por Ramsay,
dançando. Nem sequer o viram.
Sem parar para pensar, ele estendeu a mão e agarrou o pulso de Jane, puxando-
a de onde estava. Ela gritou. Ramsay a encarou.
— Estamos indo. Agora!
Bastou um olhar ao semblante enraivecido de Ramsay para que Jane soubesse
que algo dera errado. O que Lydia teria feito?
Sem protestar, deixou-se conduzir para fora do salão, pelas escadas, até a
carruagem.
Quando o veículo começou a se movimentar, ela o encarou, reparando em seus
punhos cerrados.
— O que houve, Ramsay?
— Ainda pergunta?! — Virou-se e a agarrou pelos antebraços, sacudindo-a. —
Por que não me diz você o que aconteceu? Vamos, diga! Diga!
— Solte-me! Pelo amor de Deus, está apertando meu machucado! — Os olhos de
Jane se encheram de lágrimas.
Ramsay era como todos os homens que conhecera, e ela se recusava a tolerar tal
violência.
De repente, ele a largou, afastando-se.
Os soluços assustados de Jane se tornaram incontroláveis, mas ela não se
importava. Faria suas malas e voltaria para Londres. Impôs ainda mais distância entre
eles, afundando o rosto contra a lateral da carruagem.
— Eu... eu... Jane... ! Sinto muito!
Ela sentiu o toque leve dos dedos dele sobre seu ombro, mas se manteve rígida.
Ramsay a acariciou, sem jeito.
— Jane?
Ramsay parecia arrependido, mas ela já ouvira muitas desculpas antes.
— Olhe, não foi minha intenção feri-la. Sabe que eu jamais machucaria alguém.
Não, não sabia. Jane ergueu a cabeça apenas para enxugar as lágrimas que
escorriam por suas faces. Ainda não queria fitá-lo. Ramsay afastou a mão do ombro dela.
— Jane, eu não me descontrolava dessa maneira havia muitos anos, juro. Perdoe-
me. Perdoe-me, por favor!
Ela resfolegou.
— Você me deixou muito assustada — admitiu, passando a mão pelo braço.
— Seu hematoma. Eu esqueci, Jane, juro. Por favor, me desculpe!
Jane o abraçou, e Ramsay a prendeu junto a si. As lágrimas retornaram, fazendo-
a soluçar junto ao peito largo.
— Depois de Terrance, não agüentaria se você...
Ele a deixou desabafar.
Jane sentia-se tão bem abraçada a Ramsay! Depois de certo tempo, afastaram-
se um pouco.
— Jane, eu não sou assim. — Ele afagava seus cabelos. — Sou um tolo, um idiota,
mas não um valentão. Tenho temperamento forte, mas jamais perdi as estribeiras desse
jeito. Me perdoa?
Jane acreditava nele; na agonia que via em seu semblante, na preocupação em
seu olhar. Ramsay estava tomado pelo remorso e pela culpa.
— Ramsay...
— Nunca mais, Jane. Juro. Sei que não posso fazer nada para convencê-la...
— Você me sacudiu, só isso. Depois de Terrance... Até mesmo o menor ato de
força me assustaria. Reagi mal.
— Eu também. — Ramsay acariciou-lhe o rosto.
Jane sorriu de leve, certa de que devia estar horrível depois de todo aquele pranto.
O espaço entre os dois se reduziu a nada de repente, e os lábios de Ramsay tocaram os
dela. Ela retribuiu o beijo. Mas, quando abriu os lábios, Ramsay se afastou. Tinha a
respiração acelerada como a dela.
— Isto não devia ter acontecido.
Jane jurou para si mesma que não voltaria a chorar.
— Foi apenas um beijo entre amigos, Ramsay. — Sorriu. — Acontece sempre em
meu tempo, quando alguém precisa de consolo e aceitação.
— Um beijo como este? Jane tinha de ser honesta:
— Não. Nem todos os beijos entre amigos são assim. Nenhum era, na verdade.
Era hora de mudar de assunto:
— O que eu fiz para que ficasse tão bravo?
— Você e Darby...
— Dancei com ele apenas para buscar informações — interrompeu-o, tentando
ignorar o salto de felicidade em seu coração.
Ramsay estava com ciúme? Seu beijo significara algo, então? Mas não podia.
Não.
— Tudo o que consegui, no entanto, foi conversa fiada regada a muito charme.
Darby gosta de evitar perguntas.
Ramsay franziu as sobrancelhas.
— Pensando bem, creio que ele andou evitando algumas questões minhas
também.
— Não me surpreende. — Jane se endireitou no assento, afastando-se um pouco.
Poderia beijá-lo de novo se ele apenas a olhasse. Mas Ramsay parecia longe,
divagando sobre outro tema.
— Por que não a surpreende?
— Se Mark não quiser que descubramos sobre a profundidade de seu
relacionamento com Lydia, jamais se abrirá. A não ser que o torturemos.
Os dois se calaram.
Foi Jane quem voltou a falar, instantes depois:
— Ramsay, essa não pode ter sido a única razão para ter ficado tão zangado
comigo. O que foi?
Ele fitou o piso.
— Mais nada, ora. Somos amigos, afinal. Uma dança com Darby... — Parou de
falar e mirou as próprias mãos. — Falei com Lydia.
— E?
Ramsay se fechou, erguendo uma barreira entre ambos. Aquilo não era nada bom.
Capítulo IX
Ramsay balançou a cabeça, tentando colocar os pensamentos em ordem. Ainda
não conseguia acreditar que se comportara de forma tão infantil e grosseira. O que
pensara, afinal? A maneira como retirou Jane da mansão dos Bartholomew causaria
comentários, se não escândalo.
E tudo por ter ido a sua procura para falar de Lydia, e não conseguira dizer nada.
Jane o confundia, e suas ações em relação a ela o confundiam ainda mais.
Não, não poderia conversar com Jane sobre Lydia. Pelo menos, não aquela noite.
Queria contar-lhe tudo e receber uma opinião feminina, mas não naquele momento. Não
depois de tê-la beijado.
Passou a mão pelos lábios, olhando pela janelinha na porta da carruagem.
Estavam quase chegando. Logo ela estaria de volta a sua época, e então ele poderia
raciocinar com clareza e decidir o que fazer. Vivera muito bem antes de Jane. Conseguiria
pensar nisso sozinho também.
— Foi tão ruim assim? — Jane tinha se sentado do lado oposto.
— O quê?
— Sua conversa com Lydia.
— Ela ainda quer se casar comigo.
Jane respirou fundo e tentou disfarçar sua reação com um sorriso, mas Ramsay
se tornara surpreendentemente hábil em entender as mulheres nos últimos dias. Gostaria
de ter tal habilidade antes.
— Não parece tão ruim.
— Ela não me ama, Jane. — Não pretendia contar-lhe isso, mas lá estavam as
palavras, escapando de sua boca. Via-se destinado a um casamento sem amor, e não
podia fazer nada sobre isso.
— Ramsay... Não sei o que dizer.
O silêncio caiu entre ambos, sendo interrompido apenas quando chegaram.
Ramsay a acompanhou até o escritório. Devia levá-la para a suíte e despedir-se.
No entanto, controlava-se melhor ali. E precisaria de cada gota de autocontrole que
possuía se quisesse acabar a noite como um homem honrado.
Manteve-se de pé, atrás do espaldar alto de sua poltrona, tendo também a
escrivaninha entre eles. Melhor assim.
— Srta. Leighton, creio que, seja lá qual venha a ser o motivo de meu
desaparecimento, não terá relação com meu futuro enlace com Lydia. E se tiver... então
nossos destinos estão selados.
— Não é verdade, seus destinos não estão selados, Ramsay. Não podem estar.
Por que eu teria vindo parar aqui se fosse assim? — Jane encarou-o, os olhos cheios de
uma esperança aflita. — Seu noivado estava quase desmoronando. Agora está em
ordem outra vez...
— A senhorita não entende — interrompeu-a. — O casamento nunca foi
cancelado. Nada mudou, exceto pelo fato de eu saber agora que não passa de um mero
acordo. Eu teria ido ao altar cheio de ilusões, acreditando ser amado, se não fosse pela
senhorita.
Jane se afastou, como se ele a tivesse atingido.
— Sinto muito.
— O que sugere agora? — Precisava saber que não havia mais nada ali para ela,
nenhum motivo para que Jane voltasse. A não ser amá-lo; mas isso estava fora de
questão.
— Sugiro, sr. Chadwick, que vá para muito longe, até que a data de seu
desaparecimento tenha passado.
— E deixar Lydia no altar?!
A simples menção a abandonar sua honra daquela forma o horrorizava. Como
Jane poderia sugerir tal coisa?
— Talvez possa alegar que um negócio qualquer exigiu sua presença num lugar
distante, inesperadamente. Diga a sua noiva, antes de partir, que o compromisso não
está cancelado, apenas adiado. Quer que sua união seja feliz, não?
Ramsay a encarou, notando seu sarcasmo.
— É só isso o que me resta? Fugir?
Jane se calou.
— Não. — Ele contornou a escrivaninha. — Não fugirei. Não sou nenhum covarde.
Sem conseguir se deter, Ramsay se aproximou dela e deslizou os dedos pela face
de Jane.
— Estarei armado e preparado para quem quer que seja que resolva nos atacar.
O que quer que venha a acontecer, acontecerá.
— Não precisa ser assim.
— Não será — murmurou.
Ramsay deu-lhe as costas. Era hora de mandá-la de volta para o futuro. Mas,
quando se voltou para dizer-lhe isso, Jane não estava mais lá.
Jane, deitada em sua cama, ou melhor, na cama de Ramsay, mantinha os olhos
fechados. Não queria ver mais nada do período regencial de Bath. Não queria ter diante
de si nada que lhe lembrasse Ramsay. Pequenos toques dele se achavam por todos os
lados: o espelho de barbear e a bacia de louça, os livros de direito no criado-mudo.
Vira a mágoa no rosto dele, ouvira-a em sua voz. Chegara e acabara com a vida
dele como se fosse a sua.
Depois daquele beijo estúpido, idiota e desconcertante, sentira que a desconfiança
erguera uma barreira entre os dois. Com um ato simples e impensado, pusera fim à
camaradagem entre eles. Até mesmo uma simples amizade com um homem estava fora
de seu alcance.
Por que tinha aquele horrível dom de levar a destruição a todos aqueles com quem
se importava?
Gemeu, ao recordar tudo o que fizera. O jantar íntimo, os momentos a sós. Cada
atitude daria a entender que queria apenas afastar Ramsay de Lydia, como se fosse uma
rival ciumenta.
No entanto, não planejara nada daquilo. Até decidira ignorar sua atração por ele.
Uma relação de amor com um homem morto duzentos anos atrás não tinha futuro algum
— sem trocadilho. Tentara fazer o que seria melhor para Ramsay, para deixá-lo feliz com
a parceira que escolhera.
A tristeza dele, que acabara de testemunhar, fora a gota d'água.
Cobrindo o rosto com o braço, deixou escapar um soluço sentido, rezando para
que o dia chegasse logo para buscá-la.
Ramsay parou do lado de fora da suíte, com a mão hesitante sobre a maçaneta.
Estranhara ver que Jane deixara o escritório.
Nunca a imaginou como alguém que fugia, mas sim como uma lutadora. Como
alguém poderia ter medo se tinha a coragem e a bravura de viver em uma época
totalmente diferente da sua?
Será que seu beijo a perturbara mais do que Jane admitira? Afastara-a, impondo
barreiras que nunca se preocupara em erguer antes. Rejeitara-a, reduzira seu valor.
Estava ligado a outra, e não podia esquecer-se disso.
Colou a orelha na porta. Não ouviu nada, a princípio. Talvez a madeira fosse muito
grossa para permitir que passasse o som. Então, escutou o soluço abafado, logo seguido
de outro.
Conseguira magoá-la. Apertou a maçaneta, mas conteve-se. Não podia seguir
seus instintos e ir até ela. Isso seria uma contradição para tudo o que lhe dissera;
derrubaria cada muro que construíra desde que descobrira a terrível verdade de Lydia.
Não deveria haver amor para ele. Não era certo estar a procurá-lo na srta. Leighton.
Respirou fundo. Deu um passo e abriu a porta.
Deparou com Jane deitada, chorando. A luminosidade matinal entrava pela janela,
e ela desaparecia aos poucos, como fumaça. E se foi antes que ele pudesse sequer lhe
dizer que sentia muito; antes de poder consolá-la.
Talvez fosse melhor assim.
Ramsay contava as horas e os minutos até o pôr-do-sol. Queria desculpar-se.
Praticara seu discurso durante a tarde toda, entre um caso e outro.
Iria se desculpar por ter sido tão duro com Jane. Por ter lhe dado um beijo que
nunca deveria ter acontecido. Ela era uma moça prática e entenderia. E assim que seus
melindres femininos fossem aplacados, veria que ele era sincero e tinha razão. Ele
cometera um erro no modo como falara com ela, mas jamais quisera ferir seus
sentimentos.
Destrancou a porta da suíte, entrando nela assim que a noite caiu. Acendeu um
lampião e observou, preocupado, sua cama ainda intacta. Onde estaria Jane?
Sentou-se junto à lareira. Talvez tivesse vindo muito cedo.
Pegou um livro de uma estante próxima e acomodou-se na poltrona. Esperaria por
ela.
Jane entrou na pousada Chadwick. Jantara no Frade de Ouro, um restaurante
elegante, no Centro. Suas férias estavam acabando com o limite de seu cartão de crédito,
mas até a véspera tinha valido a pena.
Destrancou a porta de seu novo quarto. Havia pedido para a sra. Marshall trocá-
la de aposento. Uma vez que Ramsay não precisava mais dela, não tinha por que
continuar lá, onde poderia vê-lo todas as noites. Logo notou a ironia. Duzentos anos atrás,
Ramsay estaria dormindo ali porque ela se apossara de seus aposentos. Era melhor que
ele não estivesse por perto aquela noite, para levá-la de volta a sua época.
Todos os fatos históricos permaneciam iguais. Ramsay e Lydia desapareceriam e
morreriam em menos de três dias.
Tudo fora em vão. As palavras de Ramsay ainda a perseguiam, sua expressão
magoada continuava diante de seus olhos. Ele se resignara a seu destino. Isso ficara
bem claro para Jane.
Apanhou as cópias dos registros que tirara na biblioteca e se ajeitou entre as
cobertas, na cama. Como tinha certeza de que o sono demoraria a chegar, decidiu
terminar com a decifração.
Era preciso admitir: aquela seria uma noite muito longa sem ele.
Ramsay fechou o livro com força. Onde estaria Jane? Estava esperando por ela
havia horas.
Jogou o volume no chão. Olhou para ele e tornou a apanhá-lo. Encarou a estante
por alguns minutos, sem vê-la de fato. Não queria nem pensar no pior: que talvez Jane
não quisesse voltar; que aceitara suas palavras e o deixara para cuidar de seus
problemas.
Agora, então, teria o primeiro gosto das noites que estavam por vir. Sozinho; e
sem ela.
O mordomo veio ter com ele.
— Senhor, o sr. Darby o aguarda na sala de estar. Ramsay franziu as
sobrancelhas.
— A esta hora? — Levantou-se, indo até o espelho para arrumar a gravata. —
Descerei num instante. Leve-o para o escritório.
— Pois não, senhor.
— O que quer, Darby? — Ramsay se dirigiu a sua escrivaninha, analisando sua
superfície. Nada tinha sido mexido ou trocado de lugar.
Quando será que perdi a confiança em meu amigo?
— De mau humor, meu caro?—Darby comentou, muito alegre. — Interrompi algo?
— Apenas minha leitura.
— E onde está a deliciosa srta. Leighton?
Ramsay não gostou do modo como ele usou a palavra "deliciosa" ou como
pronunciou "senhorita", como se ela fosse exatamente o contrário.
— Peço-lhe que não se refira a ela dessa forma.
Darby se sentou em uma poltrona.
— De que forma? Quando me refiro à srta. Leighton como deliciosa ou como
senhorita?
— Minha prima não está. Foi... visitar um amigo.
— Ela tem mais de um "amigo", então? Muito generoso de sua parte!
Ramsay permaneceu imóvel, certo de que se fizesse algum movimento Darby
acabaria com o queixo quebrado.
— Achei que éramos amigos, mas você está falando por meio de charadas. O que
quer dizer?
— O que metade da cidade está se perguntando. A srta. Jane é sua amante?
Ramsay arregalou os olhos, mas Darby apenas sorriu.
— Não. Achei mesmo que não. A jovem não me parece ser do tipo que faria algo
assim. É uma lástima, no entanto. A srta. Leighton é uma doçura, e leal demais a sua
pessoa, também. Mas suponho que você seja o parente rico.
Ramsay tentava se acalmar.
— Claro que ela é muito desinibida para uma moça do campo. Se não acreditasse
em você, meu caro, pensaria que ela tem mais do que um toque urbano em si; muito
mais.
— Tenho certeza de que não veio aqui hoje para me falar de minha prima.
— Engano seu. Eu tinha de avisar ao feliz noivo sobre os mexericos. Isso dá uma
boa desculpa para Lydia cancelar tudo.
— Ela não o fará. Agradeço pelo aviso, Mark, mas não tenho dúvida de que fará
com que todos saibam que a reputação da srta. Leighton é impecável.
— E que a veremos no casamento, como representante da família? — O sorriso
de Darby se alargou. — Deveria confiar em sua palavra, Ramsay, mas tenho certeza de
que compreenderá se eu lhe pedir uma recompensa por passar tal história adiante. Pois
sei que ela não é sua prima distante tanto quanto tenho consciência de estar aqui, diante
de você.
Ramsay mal o ouviu, tamanha a fúria que o dominou.
— Quer que eu o pague!?
Darby ficou de pé, com as mãos a sua frente.
— Deixe para lá. Impressionante como você não entende brincadeiras. Não se
preocupe, seu segredo está a salvo comigo. — E saiu antes que Ramsay pudesse achar
uma resposta coerente.
Tinha de deter os rumores, ou a sra. Devereaux pensaria duas vezes antes de
permitir que se casasse com sua filha. Ramsay sentou outra vez. Talvez essa não fosse
uma idéia tão ruim assim...
Tremendo de raiva pelo que descobriu nos registros, Jane se sentou na cama,
esperando por ele. Ainda bem que tivera uma noite de folga. Foi o que bastou para se
dar conta de que Ramsay não a ajudara em nada.
A porta se abriu, e Ramsay apareceu, com a camisa aberta e os pés descalços.
Estacou, surpreso, ao vê-la.
Jane o encarava. Sentia-se ridícula usando o vestido regencial, mas não o deixaria
se matar sem antes dizer-lhe algumas verdades.
Ramsay fez um gesto para alguém invisível atrás de si e então foi até ela. Será
que não via o quanto estava zangada?
— Como ousa?! Como ousa?! — Ela queria dar-lhe uns tapas. Ramsay arregalou
os olhos.
— Como ouso o quê? Sinto muito pelas coisas que lhe disse. Sei que eu a
aborreci, mas...
— Aborreceu-me?! — Jane se ergueu na ponta dos pés e apontou o dedo
indicador para o peito largo. — Por que não me disse o que descobriu sobre Lydia?!
— Você não tinha de saber disso. — Ramsay franziu as sobrancelhas. — Eu
estava investigando o caso e...
— E eu não tinha de saber?! Temos essa maldita conexão...
— Olhe como fala!
— Essa maldita conexão — repetiu, alterada —, e você tem a coragem de me
dizer que eu não tinha de saber?! Podia ter me colocado para investigar o caso, para
descobrir se as notas falsas que encontrou com sua noiva tinham algo a ver com seu
destino, mas não!
Jane esperava que ele gritasse também. Uma boa discussão aos berros era tudo
de que precisavam, em sua opinião. Onde estava o temperamento dele agora?
— Terminou?—Ramsay passou a sussurrar. — Seja se cansou de gritar, esta
conversa acabou.
E afastou-se, dirigindo-se até um espelho na parede, onde passou a abotoar a
camisa. Estava tenso.
— E se eu ainda não me cansei?!
Ele continuou de costas, cuidando da indumentária.
— Não vai ajudá-la a se sentir melhor. Em minha experiência, descobri que essa
atitude só piora as coisas. — Algo caiu de suas mãos sobre as tábuas do assoalho. —
Droga!
— Eu pego. — Jane se abaixou e apanhou a abotoadura. Entregou-lhe o objeto
sem fitá-lo. Pensou nas palavras duras que proferira. Não ganhara nada além de
satisfação cármica temporária. Nada mais. — Lamento. Sei que não quer que eu o ajude
mais, mas fiquei aborrecida com a oportunidade perdida. Passou a auxiliá-lo com a outra
manga. — Poderia ter significado a diferença entre sua vida e sua morte.
— Descobriu algo?
— Ainda não. A escrita à mão livre é difícil de entender. Não vi nada que indicasse
que as notas falsas fossem a causa de...
Ramsay se sentou na mesma poltrona onde ela dormira, algumas noites antes, e
passou a calçar as meias.
— Vou contar-lhe o que descobri até agora, durante o trajeto.
— Para onde?
Ramsay se ergueu, pegou a casaca de sobre uma cadeira e a vestiu.
— Aos Jardins Sydney. Haverá fogos de artifício, hoje.
— Quer que eu vá junto? — Depois de tudo o que fizera? Por quê? Jane não
conseguia acreditar.
Ramsay se aproximou dela e tomou-lhe as mãos. Ambos estavam sem luvas, e
Jane sentiu o calor de sua pele.
—É claro. Jane, eu estava zangado e... e magoado. Disse coisas que não deveria
ter dito.
— E era tudo a verdade, mas nunca quis...
— Silêncio. — Ramsay a calou com a ponta dos dedos. — Precisamos ir.
Encontraremos as Devereaux para o jantar.
Jane sorriu, e se surpreendeu ao ver que Ramsay fazia o mesmo. Mas nada
comentou. O que poderia dizer que não demonstrasse que o queria junto a si e longe de
Lydia? Pois era isso o que queria fazer para mantê-lo a salvo.
— Embora já não haja prazer nisso, eu me casarei com Lydia, Jane. Sei que isso
deve soar muito fora de moda para você, mas nem sempre se casa por amor.
— Isso é horrível!
— Nem tanto. Nada será muito diferente para mim do que é agora. Pronta?
— Não trouxe luvas... Ramsay retirou um par da gaveta.
— Deixou estas para trás na primeira noite.
Jane as calçou à medida que desciam as escadas, tentando não pensar no fato
de que ele as guardara.
— Por que disse que nada será muito diferente do que é agora? Ramsay a
amparou para que subisse na carruagem.
— Não quebrarei o voto que fiz a Lydia. Não haverá nenhuma amante, nem
deixarei que nenhuma outra mulher roube meu coração. Pelo visto, meu coração não
vale a pena.
Na escuridão do veículo, Jane distinguia apenas o perfil e a luz dos olhos dele.
— Jane, tenho tanta sorte em poder falar-lhe sobre tudo isso! Não ouso me abrir
assim com qualquer um. Lamento que não possa ficar neste tempo. Seria uma ótima
companheira.
— Você não me conhece. Será que já não provei que sou um desastre? Virei seu
mundo de pernas para o ar. Estraguei qualquer possibilidade de que pudesse ser feliz,
Ramsay.
— Sim, mas é melhor saber do que ignorar. E, pelo menos, tem sido divertido, de
um modo geral.
— O quê? Você aprecia meus erros? — Jane o viu sorrir.
— Não. Gosto de ver tudo através de seu olhar.
— Bem... então agora conte-me sobre as notas falsas. Discutiram o pequeno
avanço que Ramsay fizera no caso, as pistas que encontrara.
— Vou falar com Lydia, Ramsay. Talvez ela me confidencie algo que tenha tido
vergonha de lhe dizer.
— Isso será complicado, a não ser que revele como soube do caso.
— Pensarei em algo.
— Tenha cuidado.
— Não sou eu quem está em perigo.
Capítulo X
Ramsay ajudou-a a sair da carruagem. Estavam na entrada dos bem iluminados
Jardins Sydney. Jane a tudo observava. Cabines estavam alinhadas lado a lado, cada
uma com uma mesa para seis ou oito pessoas; quase todas ocupadas. Ela ouviu o som
distante de música, e imaginou onde estaria escondido o quarteto de cordas que tocava.
As Devereaux tinham tomado uma cabine para si, e nenhuma das duas se
levantou quando Jane e Ramsay se aproximaram.
— Sr. Chadwick, está atrasado—Lydia o reprovou, encarando-os.
— A culpa é minha — os dois falaram ao mesmo tempo e se olharam, surpresos.
Jane fez um gesto, deixando que Ramsay continuasse:
— Meu dia na corte foi muito desgastante, em um caso que lhe é bastante familiar.
— Ao olhar para Lydia, ele a viu corar.
— Não vamos falar de negócios. — Jane se sentou e não deixou de notar os
olhares venenosos que recebia de mãe e filha. Ramsay também os notou, e recolheu-se
ao mais profundo silêncio.
Até quando seria tratada daquela forma? Já tivera o suficiente.
— Sou uma mulher simples e sem graça, do interior. Podem me dizer o que lhes
passa pela cabeça?
— Não me surpreende que uma moça de seu tipo seja sem graça. — Lydia olhou
para a mãe, antes de encará-la novamente.
— De meu tipo?
A sra. Devereaux bebericou seu vinho.
— Srta. Leighton, não deixamos de notar que é uma criatura peculiar. Suas dores
de cabeça a atingem com freqüência e duram muito pouco. E só a vemos à noite.
Lydia agora se dirigia a Ramsay:
— Nunca imaginei que atiraria sua amante assim, em minha face!
— Amante!? — Jane franziu a testa para Ramsay. Ele estava pálido, e seus lábios,
entreabertos.
— Eu sabia! E veio falar de amor para mim! — Lydia se levantou e desapareceu
na escuridão.
Ramsay quis ir atrás dela, mas foi impedido pela sra. Devereaux.
— Deixe-a! Já fez o bastante, sr. Chadwick.
— O que está havendo aqui? Jane tentava consertar a situação. Não queria
destruir a vida de Ramsay ainda mais. — Sou prima dele, não sua amante.
— Não é, não. Ouvi rumores e decidi investigá-la. Tive simpatia pela senhorita a
princípio, mas quando descobri que partilha o quarto do sr. Chadwick...
— Maldito Darby!
Apenas Jane, que estava ao lado de Ramsay, ouviu o que ele sussurrou.
— Não o partilho, sra. Devereaux. Meu primo o cedeu a mim. Aquela suíte é muito
mais calma e silenciosa que as demais. É um ótimo lugar para fazer passarem minhas
enxaquecas. — Jane não gostava de ter de se explicar, mas não queria estragar o
noivado de Ramsay.
— O que a srta. Leighton diz é verdade, e sua honra não deveria ser questionada.
— Advertiu Ramsay.
— Se desejar, posso prosseguir minha viagem. — Jane ouviu Ramsay respirar
fundo.
A sra. Devereaux sorria, pouco incomodada com a idéia de Jane partir.
— Minha Lydia está magoada, claro, mas compreende a vida matrimonial, e sabe
que terá de ser fiel ao senhor apenas, até que tenham produzido um herdeiro.
Ramsay cerrou o punho.
— Se decidiu usar a srta. Leighton para se livrar do compromisso, não conseguirá
— a mulher prosseguia. — O matrimônio ocorrerá conforme combinado. Não somos tão
ricos assim, e investimos muito no enxoval de Lydia para que estivesse a sua altura.
Acredito que poderia acusá-lo por quebra de promessa...
— Senhora! — Ramsay estava furioso. — Já disse o suficiente. Estou ciente de
meus deveres. Nada pode acabar com nosso acordo a não ser que Lydia o quebre por
palavra ou ação.
Jane se ergueu, sentindo as pernas um tanto fracas.
— Devíamos procurá-la. Não é bom que ande pelo parque sozinha.
— Foi assim que se "perdeu", srta. Leighton?
Avaliando que sua "perda" acontecera havia anos em um hotel de luxo londrino,
depois de muito champanhe, Jane apenas deu as costas à sra. Devereaux e seguiu pelo
caminho que Lydia tomara. Atrás de si, ouviu os passos apressados de Ramsay.
— O labirinto — disse, ao alcançá-la.
— Labirinto?
— Não se preocupe. Sei o caminho de cor, já o atravessei diversas vezes. Sinto
muito pelas acusações que ouviu. Devia ter feito algo, protegido você disso tudo.
— Sossegue. Já ouvi coisas bem piores.
— O que não faz com que doa menos. — Ramsay ofereceu-lhe o braço, que ela
apertou de leve, em agradecimento.
Adentraram pelas paredes vivas do labirinto, que tinha muito pouca iluminação.
Os dois se apressaram, e Ramsay apertou a mão de Jane, talvez temendo que
ela ficasse para trás, como a sra. Devereaux.
— O que Lydia quis dizer ao afirmar que você lhe falou de amor, Ramsay?
— Ela lhe pareceu magoada?
— Pareceu fingir, isso sim. Desculpe-me, não quis insultá-la.
— Perguntei a Lydia se me amava, no baile da sra. Bartholomew.
— Ah... compreendo.
Passaram por um casal que caminhava tranqüilo.
— Com licença. Viram a srta. Devereaux?
O cavalheiro assentiu e apontou para a frente.
Jane pensou que tinham sorte por Lydia ser tão conhecida em Bath, pois cada
pessoa com quem encontravam lhes indicava por onde a dama tinha ido.
— Lydia conhece isto aqui?
— Claro, Jane. Ela viveu aqui por quase toda a vida, como eu.
— Mas se sua noiva não quer ser encontrada, não dever ter tomado uma das
trilhas erradas?
— Uma mulher solteira jamais se aventuraria por um dos caminhos errados
sozinha.
— Posso não entender muito de etiqueta, Ramsay, mas acredito que Lydia não
deveria nem mesmo ter fugido para cá.
— E por que acha que estamos aqui?
Jane se calou. Mil coisas lhe ocorreram, mas decidiu não verbalizá-las.
Chegaram ao centro do labirinto, onde casais andavam de braços dados. Nenhum
deles vira Lydia. Jane olhou para trás.
— Ela na certa fez alguma curva que não devia.
— Sim. Deve estar atrás de nós. Agora, ou voltou por onde veio.
A sra. Devereaux surgiu, então, saída do caminho estreito.
— Não podem estar desistindo de minha filha!
A presença dos três atraía a atenção dos demais, aliada ao fato de que tinham
indagado sobre Lydia. Retornaram, assim como meia dúzia de casais curiosos. A medida
que seguiam, muitos outros se juntaram ao grupo.
Jane ouvia os sussurros e comentários. Perguntava-se se algum deles achava
estranho o fato de que a suposta amante de Chadwick o ajudava a procurar por sua
noiva.
Vasculharam cada beco sem saída, com a multidão aguardando para ver se
descobririam algo.
Ramsay parou em uma entrada à direita.
— Este caminho quase leva ao centro do labirinto.
— Seria uma entrada fácil de errar. — Jane se aproximou mais dele.
Não gostava de ter tanta gente atrás de si. Adoraria que desistissem de segui-los,
mas sabia que isso não aconteceria.
Assim, entraram por aquela vereda; sempre acompanhados dos curiosos.
— Esta é a ultima curva antes do fim deste caminho — Ramsay sussurrou.
Jane voltou a atenção para seu lado direito. O barulho de folhas esmagadas e
gemidos suaves os alertavam de que um casal se encontrava mais à frente.
De fato, avistaram duas pessoas abraçadas, na grama. O homem estava com a
calça arriada, na altura dos joelhos, e a mulher o prendia com as pernas, tendo o vestido
erguido. Um vestido que Jane tinha visto um pouco antes.
— Não! — Deu um passo atrás e colocou as mãos no peito de Ramsay. Não queria
que ele visse aquilo.
— Vamos para casa! — Segurou-o pelo braço, querendo poupá-lo da mágoa que
estava a apenas a alguns metros de distância.
— Para casa?!
— Por favor, Ramsay...
Ele passou por Jane e entrou no beco.
— Lydia!
Jane ainda tentou, também em vão, impedir que os demais testemunhassem a
cena. E mais uma vez fracassou em sua intenção.
— Maldita seja você, Lydia Devereaux! — Ramsay gritou.
Aquilo fez com que ainda mais gente se aglomerasse no beco.
A sra. Devereaux, pouco atrás, permaneceu em silêncio, exasperada. Não havia
palavras para os atos de sua filha. Lydia estava arruinada.
Ela os encarava, e apertou a cabeça de seu amante contra o peito, para que
ninguém o visse. Dirigiu-se a Ramsay:
— Se pode se divertir com seu rabo-de-saia, por que não posso fazer o mesmo?
O homem se soltou de seus braços, endireitando-se.
— Perdão, meu caro. — Mark Darby sorria. — Sabe como é... Que homem poderia
recusar tal oferta?
A gargalhada de Lydia era tudo o que se escutava em meio ao silêncio
circundante.
— Não haverá mais casamento. — Ramsay tremia de raiva. — Vocês dois estão
mortos para mim de hoje em diante.
Deu-lhes as costas e abriu caminho entre a multidão. Jane o seguiu, desejando
que não fossem o divertimento da noite. Assim que saíram do beco, ele se virou.
— Quanto a você, srta. Leighton... Tudo é culpa sua!
— Minha?! Como pode dizer isso? Não obriguei ninguém á fazer sexo em lugar
público!
Ramsay, indignado, prosseguiu, pisando duro. Jane o acompanhava, temendo se
perder pelos corredores escuros.
— Não está sendo racional, Ramsay. Não tive nada a ver com isso, e você sabe!
Continuaram andando, agora calados. Por isso ouviam com nitidez os comentários
atrás deles, a música suave do quarteto e os gritos irados de Lydia.
— Ramsay, eu lamento. Se pudesse ter evitado isso...
— Você a levou para os braços dele!
— Eu!?
— Esta noite você praticamente confessou ser minha amante, e por causa disso
Lydia correu para Darby! Aposto que aquele cretino só estava esperando por uma
oportunidade.
— Ramsay, foram Lydia e a mãe dela que...
— Sem desculpas!
Saíram do labirinto, e ele foi na direção dos portões do parque.
— Ramsay!
— Não! Já fez o bastante, srta. Leighton. Não quero vê-la nunca mais. A senhorita
me arruinou! E não me importo que minha vida se acabe agora!
Sem conseguir se mexer, Jane o viu sair. Queria cuidar de seu coração partido,
mas se tornara indesejada.
Atrás de si, os fogos de artifício tomaram conta do céu.
Tudo chegara ao fim.
Tremendo e chorando, Jane bateu na porta da pousada. Passar a noite toda fora
não foi nada agradável. Tudo o que queria era um bom e demorado banho.
A sra. Marshall veio atender.
— Jane?!
— Esqueci-me de levar minha chave — mentiu, sorrindo de leve.
— Entre, entre, querida! Deve estar morrendo de frio! Vou colocar a chaleira no
fogo.
Jane se sentiu aliviada. Tivera medo de Terrance encontrá-la diante da pousada
antes que a sra. Marshall viesse. Mas ele nunca fora de acordar cedo...
Olhou pelo corredor estreito e entrou na sala de jantar. Algo estava diferente, mas
não conseguia atinar com o quê.
Quando a sra. Marshall veio com o chá, perguntou-lhe:
— Pintou a sala?
— Não, meu bem. Beba isto, vai se sentir melhor.
Jane aceitou a xícara e continuou observando o cômodo. Algo mudara, tinha
certeza. Teria modificado o futuro e salvado Ramsay e Lydia? Na parede a sua frente,
uma natureza-morta estava retratada num quadro. Onde fora parar o retrato de Lydia?
Olhou para as demais paredes. Controlou-se para não sair correndo e analisar o
resto da casa. Não avistou o pequeno quadro? O que acontecera? Não agüentaria
esperar para ler a história da apostila em sua suíte.
Tentando conter o pânico que ameaçava dominá-la, tomou um gole da bebida
quente antes de indagar:
— Tenho certeza de que já deve ter me contado sobre isso, sra. Marshall, mas o
que houve com o antigo dono desta mansão, o sr. Chadwick?
— Bateu a cabeça em algum lugar, minha menina? Como pôde esquecer uma
história como essa?
— Ouvi tantas narrativas interessantes desde que cheguei a Bath, que acabei por
misturá-las. Diga-me de novo, por favor.
— O sr. Chadwick era um rico magistrado. Seu pai foi um comerciante de fortuna,
e sua mãe, uma aristocrata. Ele foi assassinado em 1812, depois de romper o noivado.
Jane engoliu em seco. Não conseguira salvá-lo. Apenas piorara tudo.
— Assassinado? Mas por quê?
— Pois é, nunca encontraram o culpado. Ele está enterrado no cemitério da
abadia, em Abbey. Já viu seu túmulo?
— Não. — Jane encheu sua xícara mais uma vez. Precisava de algo mais forte,
mas teria de se contentar com o chá. — E Lydia?
Tentava se controlar. Não podia se desesperar por um homem morto duzentos
anos atrás.
— A noiva de Chadwick? Ah, ela se casou com um homem de idade, muito mais
rico que Ramsay. Passou a vida fazendo o que queria depois que ele morreu; de prazer,
alguns dizem. Uma criatura interessantíssima. Foi dona desta casa por algum tempo,
também.
Tonta, Jane terminou seu chá. Sem demora, subiu para seu quarto, para retirar as
roupas antigas. Ramsay fora morto... As palavras ecoavam em seu coração.
Tomou um banho, deixando a água quente escorrer por seu corpo, sem querer
pensar em mais nada.
Instantes depois, vestiu seu velho jeans e uma blusa branca de mangas
compridas, e desceu para o desjejum.
Jane deixou a pousada. Tinha de ver com os próprios olhos. Não choraria até que
o visse. Sentia a garganta apertada, mal conseguia respirar.
Chegou ao cemitério da abadia. Entrou pela porta lateral, e ficou no vestíbulo
pequeno e repleto de fiéis, separado da igreja por uma parede de madeira entalhada.
Apressada, caminhou por entre os turistas pagando o ingresso para visitar a abadia.
Parou no meio do corredor central, observando os enormes vitrais. As paredes estavam
repletas de placas e epitáfios. Como o encontraria?
Sentiu aflorarem lágrimas de frustração.
Mirou o teto abobadado, recusando-se a chorar. Então ouviu uma voz sonora, que
explicava a todos sobre a história e os detalhes daquela abadia.
Jane viu o homem de meia-idade usando um uniforme azul. Devia ser o guia
turístico. Ao aproximar-se, ele a cumprimentou com um sorriso.
— Posso ajudá-la, senhorita? Jane sorriu-lhe também.
— Procuro pelo túmulo de Ramsay Chadwick.
— Ah, o magistrado assassinado! Meu tataravô trabalhou na mansão dele. Está
hospedada na pousada Chadwick?
— Sim. — Jane o seguiu pelos corredores, desviando-se das pessoas.
— Aqui está. — O guia apontava para a placa de mármore na parede.
Jane viu a pedra oval, onde se lia:
Ramsay Goodwin Chadwick, nascido em 5 de outubro de 1780, falecido em 5 de
setembro de 1812.
— É amanhã...
Assim que o guia se afastou, Jane passou os dedos por sobre o nome incrustado
na pedra.
— Não me culpe — sussurrou, sentindo o peito apertado. Deu alguns passos atrás
e se sentou num banco de madeira. Encarou o epitáfio até sua vista ficar embaçada.
Morto...
Sua razão tentava assumir o controle. Era óbvio que Ramsay estava morto, e havia
quase dois séculos.
Jane, sem mais se conter, chorou. Seu coração estava em pedaços.
Ramsay, por que não me ouviu? Por que não se preparou para isso? Por que tinha
que morrer?!
As lágrimas cobriam seu rosto, e seus soluços eram baixos, pois não queria que
todos a vissem daquele jeito. Ninguém mais choraria por pessoas mortas duzentos anos
atrás.
Mas eu, sim. Porque o amo, e não pude salvá-lo.
Seu último pensamento a espantou. Que tola tinha sido! Ela o amava do fundo da
alma!
Jane piscou, retornando do devaneio em que se encontrava, e enxugou o rosto
com um lenço. O som do órgão preenchia o ambiente. Ainda tinha uma noite para salvá-
lo. Avisaria Ramsay sobre seu assassinato e, com sorte, evitaria o desastre.
Mudei a história uma vez, posso fazê-lo de novo.
Decidida, deixou a abadia e foi até o escritório do sr. Jenkins.
Capítulo XI
Com o auxílio do pesquisador, Jane conseguiu o relatório do legista. O corpo de
Ramsay fora encontrado no rio Avon, mas ele morrera antes de cair na água. Jamais
descobriram quem foi o assassino.
— Obrigada, sr. Jenkins.
— Passe bem, senhorita.
Quando Jane saiu do escritório, já havia anoitecido. Ela se apressou para a
pousada, rezando muito para que Ramsay não deixasse de vir buscá-la.
Quinze minutos depois, saltava de dois em dois os degraus que davam para a
varanda. Entrou na sala, fez um aceno rápido para a sra. Marshall e seguiu em frente até
sua suíte, sem parar sequer para respirar.
Fechou-se lá dentro e trancou a porta.
Deus, permita que ele venha!
Jane aguardou no quarto, usando seu vestido regencial mais simples, por mais de
uma hora.
Recostou-se à cabeceira e apanhou a apostila com a história da pousada. Passou
a lê-la e descobriu que apenas alguns fatos corriqueiros tinham mudado. Qualquer coisa
que tivesse acontecido após a morte de Ramsay não a interessava. As letras ficaram
embaçadas diante de seus olhos.
Por que ele não vinha?!
Ela acordou de repente, assustada. A luz da manhã iluminava a suíte. Tudo
permanecia igual. Ramsay não viera. Claro que não. Ele disse que não queria mais vê-
la. Que não precisava mais de sua ajuda. Pelo jeito, não voltara atrás.
O que poderia fazer? Ramsay estava fora de seu alcance, e morreria dentro das
próximas vinte e quatro horas.
Ramsay encerrou cedo seu trabalho na corte, mas em vez de retornar à mansão,
foi até Abbey. Os rostos sorridentes das pessoas que faziam compras o recepcionaram.
Virou em uma das ruas perpendiculares, subiu a escadaria de um prédio de três
andares e foi até o escritório do pastor. Parou à soleira da porta aberta, sentindo-se um
tolo.
O sacerdote o encarou.
— Sr. Chadwick, é um prazer vê-lo! Sente-se. Em que posso ajudá-lo? Fiquei
sabendo que seu casamento foi cancelado.
— Sim. — Ramsay adentrou o recinto e se acomodou diante dele. — Vim para
encomendar um epitáfio.
O pastor arregalou os olhos.
— Gostaria de aconselhá-lo, meu filho, de que deve tentar superar esse infortúnio,
e que suicidas não são aceitos dentro destas paredes.
— Sei disso. Mas, como não tenho parentes, nem uma esposa ou filhos para me
sucederem, gostaria de cuidar do assunto já. Asseguro-lhe de que não tenho intenção
alguma de morrer tão cedo.
Entretanto, fora sua necessidade de deixar tudo acertado o que o trouxera até ali.
E se não pudesse evitar seu desaparecimento? Precisava deixar algo para ela; para
Jane.
— O senhor é jovem, sr. Chadwick. Encontrará outra dama adequada para
desposar.
Não, não encontraria. Mas não iria discutir aquilo. Levantou-se.
— Bem, se acha que não é necessário, então não comprarei um.
Os olhos do pastor dessa vez se estreitaram, pela oportunidade perdida.
— Tinha pensado em pagar por algo simples agora, e talvez incrementar a
encomenda com o passar dos anos.
O sacerdote sorriu.
— Muito bem, sr. Chadwick, que nunca se diga que recusei o pedido de um bom
cristão. — Puxou um livro preto e o abriu.
Ramsay tomou a se sentar.
— O que gostaria de escrever na pedra? Não fazia diferença.
— O comum, acho.
— Alguma frase ou verso em particular, sr. Chadwick?
— Não me parece certo criar meu próprio epitáfio. A data e meu nome serão
suficientes.
Ramsay desejava sair logo dali. O que estava fazendo? Desistindo de viver? O
futuro era incerto. E tinha tempo ainda.
Ficou de pé e se despediu do pastor, antes que ele pudesse querer impedi-lo de
sair.
Ramsay não conseguia encontrar uma conexão entre o caso das notas falsas e
seu destino. Mas sentia que não era apenas o caso que tinha uma ligação, mas Lydia
também.
Exausto, passou os dedos pelos cabelos. Precisava de mais evidências. No
entanto, não as conseguiria sem Jane. Fora grosseiro com ela. Impedira-a de consolá-lo.
Mas sentira-se tão frustrado naquele momento! A traição de Lydia o destruíra.
Seu mordomo veio ter com ele.
— A sra. Devereaux está aqui para vê-lo, senhor.
— Diga que não estou em casa. Não tenho mais nada a falar com essa senhora.
— Tem, sim! — A mulher empurrou o mordomo para o lado. — O que fez com
minha filha?!
Ramsay fechou a pasta que segurava, mas não se levantou para recebê-la, como
mandava a etiqueta. Será que as premonições de Jane começavam a dar certo?
— Como assim, senhora? Não a vejo desde ontem à noite.
— E a srta. Leighton?
— Ela se foi.
A sra. Devereaux apontou o guarda-chuva em sua direção.
— Duas mulheres solteiras desaparecidas! O senhor é um assassino!
Então, a hora chegou!
— Sra. Devereaux, está dizendo sandices. — Ramsay olhou para o mordomo,
fazendo um gesto para que a segurasse. — Se me der licença, voltarei em um minuto.
Ramsay saiu dali, ouvindo os gritos enfurecidos da sra. Devereaux, à medida que
subia as escadas.
Sabia que a sra. Devereaux tinha razão. Lydia devia estar morta, ou a caminho
disso. E ele seria o próximo. Não a abandonaria a seu destino, não importava o tamanho
da traição de sua noiva. Simplesmente não podia fazê-lo.
Não queria ver Jane nunca mais, mas, embora detestasse ter de admiti-lo,
precisava dela. Se sua presença o ajudasse a reverter a tragédia que o rondava,
aproveitaria tal vantagem.
Abriu a porta do quarto e teve um sobressalto.
Duas silhuetas fantasmagóricas se entrelaçavam em sua cama.
Sentiu seu corpo gelado; seu raciocínio embotou.
Ela trouxe um amante?! Fechou os olhos com força, bloqueando a visão. Está
fazendo isso para me provocar? Deus!
Ergueu as pálpebras, sentindo-se horrorizado com a cena de amor a sua frente.
O amante estava sobre ela, que tinha as pernas entrelaçadas em suas costas. Ele
tapava-lhe a boca com a mão, e os olhos dela estavam cheios de... terror?!
Ramsay, sem pensar duas vezes, arremessou o sujeito para longe. O homem se
levantou, pronto para atingi-lo de volta.
Mas Ramsay não pretendia dar-lhe uma chance. Agarrou-o pela jaqueta e o jogou
contra a parede, esmurrando-o. Ainda não tivera a oportunidade de fazer o mesmo com
Darby, mas, pelo menos, podia punir aquele miserável pelo que fizera a Jane.
Depois de alguns golpes, o outro parou de resistir, deixando-se escorregar até o
chão. Ramsay parou de socá-lo, procurando recuperar as forças. Tremendo, deu um
passo atrás. Respirou fundo. Olhou para sua mão dolorida e ensangüentada. Sua raiva
diminuía. No leito, Jane, que se encolhera junto a uma das colunas, chorava.
Ela o alcançou, trêmula. E então seus soluços tornaram-se audíveis, cheios de
dor.
— Você está bem? — Jane perguntou, por entre as lágrimas.
— Sim.
— Graças a Deus está vivo! — E abriu os braços, jogando-se contra ele.
Confuso com sua estranha afirmação, Ramsay aceitou seu carinho.
— Obrigada, Ramsay. Não sei o que teria feito se... se você não tivesse aparecido.
— Ela voltava a soluçar, cada vez mais alto.
Ramsay a enlaçou também, confortando-a. Jane estivera em perigo, e ele a
salvara de um destino pavoroso.
Quando ela se acalmou um pouco, Ramsay se afastou.
— Você está bem, Jane? Ele a machucou?
Havia um hematoma em seu rosto. Ramsay cerrou os dentes, desejando socar o
patife mais um pouco. O cretino rasgara a blusa de Jane, também.
Ela puxou o que restou do tecido por sobre a estranha peça de vestuário que
cobria seus seios e esfregou a face dolorida.
— Poderia ter sido pior... — Jane se sentou no colchão, observando o homem
inconsciente no piso.
— Quem é ele?
— Terrance. Aquele que não queria me deixar em paz. A mulher dele o expulsou
de casa. Ele ficou escondido aqui, em meu quarto. Ou melhor, seu quarto. Nem tive a
oportunidade de gritar.
Jane recomeçou a chorar. Ramsay ia se aproximar, mas ela o deteve com um
sinal.
— Não, não. Ficarei bem. O que faremos com Terrance?
Magoadíssimo com a rejeição, Ramsay tocou o sino junto à lareira.
— Trenby e eu cuidaremos dele. Vamos mantê-lo amarrado até que amanheça.
Como explicará o fato de ele estar na suíte?
— Direi que ele me atacou, eu o derrubei e o amarrei antes de chamar a polícia.
— Jane cruzou as pernas. Não estava nua, mas usava uma calça de um tecido pesado
e justo.
— Polícia? — Ramsay não conseguira parar de olhar para as pernas ainda. Eram
lindas, sensuais e...
— Ramsay, você está estranho... o que há com você?
Ele ergueu a cabeça, pondo-se a fitar o desenho da colcha. Não devia olhá-la
daquele jeito. E até esqueceu a razão pela qual viera até ali.
— Não pode sair vestindo isso.
— É jeans, um tecido muito confortável. Tenho de descer?
— Sim. A sra. Devereaux acha que assassinei Lydia... e você.
— Oh, Céus!
— Tenho um vestido para você. Está em algum lugar no sótão.
Trenby apareceu, arregalando os olhos ao ver os trajes de Jane.
Ramsay não o culpava. Também tinha dificuldade em não fixar a curva de seus
seios sob a camisa rasgada e as formas bem torneadas de suas coxas.
— Trenby, traga algo para amarrarmos esse cretino. E quero o vestido que está
no sótão.
— Sim, senhor. — E se foi.
Ramsay se agachou para checar o pulso de Terrance.
— Vai sobreviver. Lamento muito se a assustei quando... — Apontou para
Terrance.
— Ramsay! O que você fez foi a melhor coisa que já me aconteceu! Mesmo porque
não achei que fosse...
— ...me ver vivo novamente? Jane assentiu.
— Como sabia?
— Porque Lydia sumiu.
— Mas ela está viva. Viva! Nós mudamos a história, Ramsay. Mas você...
— Eu morro. — O que mais tinha a perder além de sua vida? — Então teremos de
mudar a história mais uma vez, não é?
Ao ver Trenby de volta, Jane se levantou e abriu caminho para que Ramsay e seu
criado arrastassem Terrance e o amarrassem ao pé da cama. Uma criada veio em
seguida, carregando o vestido de Jane.
— Desça quando estiver pronta. Temo que meu pobre mordomo tenha sido
obrigado a amarrar a sra. Devereaux também.
Ramsay a deixou com a criada, voltando ao andar de baixo para tentar acalmar a
ex-futura sogra. Afinal de contas, a filha dela continuava viva.
O que fora aquilo que sentira pouco antes. Por que se sentira tão traído ao achar
que Jane tinha um amante? Beijaram-se uma vez, mas ela jamais seria sua. Estavam em
mundos diferentes. Jane devia continuar a ser a moça livre que sempre fora. Ele aceitava
o fato, visto que não tinha escolha. Mas... como gostaria que a situação fosse diferente!
A sra. Devereaux caminhava de lá para cá, muito agitada, por seu escritório.
— Ouvi ruídos estranhos lá em cima! O que estava fazendo? Ramsay escondeu a
mão ferida atrás de si.
— Nada que tenha a ver com Lydia, garanto. Tenho quase certeza de que ela está
bem. Checou a criadagem de sua casa para saber de seu paradeiro?
— Eles não sabem de nada!
— E por que eu saberia?
— Lydia o usou de forma terrível, sr. Chadwick, e o senhor foi embora ontem,
nervosíssimo. Qualquer mãe temeria pela integridade física de sua filha em tais
circunstâncias.
— Devo lembrá-la, sra. Devereaux, de que sou um cavalheiro. Não importa o que
ela tenha feito, eu jamais tocaria em um fio de cabelo de Lydia.
Ouviram-se passos no corredor. Trenby entrou, trazendo uma carta. Jane chegou
logo em seguida.
— Lydia mandou um bilhete — afirmou, enquanto o criado entregava o papel a
Ramsay.
Ele abriu o selo.
— Seria melhor que lêssemos juntos.
Jane se inclinou sobre o braço dele, espiando a folha. Ignorando a impaciência da
sra. Devereaux e aproveitando a proximidade de Jane, Ramsay leu a mensagem curta.
— Sra. Devereaux, sua intuição materna acertou. Pelo visto, Lydia está com
problemas.
— Devo chamar os guardas? — ofereceu-se o mordomo.
— Não é necessário, Trenby. Preciso de uma mala pequena. O mordomo assentiu
e os deixou. Ramsay se aproximou da sra.
Devereaux, entregando-lhe o bilhete.
— Lydia foi feita prisioneira. Mas eu a trarei de volta.
— O quê!? Não temos dinheiro, sr. Chadwick...
— É por isso que ela me pediu ajuda. Irei...
— Nós iremos — Jane o interrompeu, olhando-o com determinação.
Ramsay não tinha coragem de contrariá-la. Talvez ela fosse seu amuleto da sorte.
— Oh, sr. Chadwick, como poderei lhe agradecer? Perdoe-me por minhas
palavras duras. Se eu soubesse que minha menina...
Ramsay fez um sinal para que se calasse.
— Se não voltarmos...
— Não diga nada. — Jane tocou-lhe o cotovelo.
— Vamos logo. Quem sabe quanto tempo esse vilão a manterá viva? Sra.
Devereaux, ficará aqui ou irá para em sua casa?
— Irei para casa.
— Muito bem.
Ramsay tomou Jane pela mão, e eles saíram do escritório.
De novo na suíte, foram até o cofre. Jane o viu encher a maleta, que Trenby pusera
sobre o leito, com maços de notas e moedas.
Ramsay sorriu, contente por ver que ela não tentava dissuadi-lo do que pretendia
fazer. Se aquelas eram suas últimas horas neste mundo, ficava feliz por passá-las em
sua companhia.
— Pronta?
— Para onde estamos indo? — Jane agarrava-se à alça de couro no teto da
carruagem, que sacolejava pelo caminho sinuoso.
— Para minha casa de campo.
— Por que acha que a levaram para lá?
— Não faço a mínima idéia.
— E quem será que está com Lydia?
— Logo descobriremos. Suponho que isso tenha algo a ver com as notas
bancárias falsas, mas não poderemos ter certeza até chegarmos lá.
— Como pode estar tão calmo?
Jane estava morrendo de medo, aterrorizada. E Ramsay não demonstrava
preocupação alguma com o que iriam enfrentar. Talvez morresse naquele dia; a data não
deixava margem a erro.
— Venha aqui — ele chamou, baixinho.
Jane esticou a mão e encontrou a dele, que a puxou de leve em sua direção.
Aconchegada ao peito largo, ela respirou fundo, tentando se acalmar. Queria guardar
cada detalhe de Ramsay na memória, até mesmo seu perfume. Sentiu-lhe os lábios
tocando-lhe sua testa.
— Se eu morrer esta noite, pretendo que seja com dignidade e calma, e não
brigando com Deus e o mundo por não me permitirem ter o que quero. — Ramsay lhe
beijou os cabelos.
Uma lágrima escorreu pelo rosto de Jane.
— Creio que depois de você, Ramsay Chadwick, vou desistir dos homens.
— Você? — Ele deu risada. Ela se afastou, ultrajada.
— Sim, eu. Nenhum relacionamento meu dá certo, nem mesmo este.
Devia ter ficado quieta. O que tinha em mente para revelar daquele jeito que seus
sentimentos iam além da amizade?
— De fato, srta. Leighton, suponho que devesse ficar lisonjeado, embora seus
companheiros do futuro não sejam do tipo a quem gostaria de ser comparado.
Jane sorriu de leve. Se ele soubesse o quanto era diferente dos outros!
Jane observava a fachada da casa de campo de Ramsay. Restavam apenas
algumas horas antes do amanhecer, e o céu estava muito escuro. Ramsay dava
instruções ao cocheiro para que os esperasse ali.
Receosa, Jane segurou-lhe o braço, aceitando o lampião que ele lhe entregava.
— Tem certeza de que devemos fazer isso?
— Não quero chamar a atenção do seqüestrador. E estou armado. —Ele apontou
para uma das janelas. — Olhe! Alguém acendeu uma vela. Venha.
Caminharam até a entrada da frente. Galhos e folhas secas denunciavam sua
presença a cada passo. Se não tivessem ouvido a carruagem chegar, com certeza
notavam sua presença naquele instante.
Ramsay girou a maçaneta e a porta se abriu. Lá dentro, móveis cobertos com
lençóis brancos mostravam que o imóvel não era habitado.
Foram até a sala iluminada. Ramsay parou, mantendo, Jane atrás de si.
Avistaram Lydia sentada em uma cadeira, amordaçada, e seus longos cabelos
loiros lhe caíam, desalinhados, pelos ombros. Tinha as mãos amarradas às costas.
— Você! — Ramsay exclamou, ao ver o outro ocupante da sala, e mergulhou a
mão direita no bolso da casaca.
— Nada disso, meu caro. — Sorrindo, Darby apontou a pistola para Lydia. — Não
quer que ela se machuque, quer?
Jane tomou lugar ao lado de Ramsay. Não se esconderia.
— Ah, e trouxe a bela amantezinha também! Posso me deliciar com ela antes que
a noite termine.
Ramsay deu um passo à frente, mas parou ao ouvir Mark engatilhar a arma.
— Não estou brincando, Chadwick. Matarei Lydia, você e sua amante agora
mesmo. Trouxe o dinheiro?
— Está aqui, mas não entendo... Para que precisa dele?
— Estou falido. — O sorriso de Darby contrastava com sua má sorte.
— Eu poderia ter lhe feito um empréstimo. Não tinha de ter chegado a este ponto.
— Ah, mas, se emprestasse, eu teria de lhe pagar! E não tenho intenção alguma
de fazer isso. Nem mesmo forjando notas bancárias consegui quitar minhas dívidas. Fui
eu que as passei a ela, sabia?
— Não teria pedido que me pagasse até que pudesse, Darby.
— Mesmo? — O outro gargalhou. — Isso exigiria que fizesse negócios, transações
comerciais — disse a última palavra com desdém. — E o tempo todo agüentando sua
maldita atitude superior. Agora, dê-me o montante!
Devagar, Ramsay pegou a sacola de couro.
— Solte Lydia.
— Evidente, meu caro. — Rindo, Darby desatava o nó que a prendia. — Diga para
ele, Lyd.
Jane sentia o estômago revirar. Nunca estivera em uma situação parecida, mas
vira muitos filmes de ação na tevê. O vilão revelara seu motivo. Agora ele e o mocinho
lutavam pela donzela em perigo... Mas aquilo não era ficção.
— Dizer-me o quê? Lydia sorriu.
— Com seu dinheiro e meu dote, teremos o suficiente para ir para a América.
Mas você não foi... Jane pensou. Lydia ficara em Bath. Por quê?
— Começaremos de novo, sem dívidas. — Lydia tomou a mão de Darby nas suas.
Jane compreendeu que as mãos de Lydia nunca estiveram atadas.
— Já tenho o dote. — O sorriso de Darby não podia ser mais cafajeste. — Para
falar a verdade, não preciso mais dela.
Soltou-se de Lydia e deu-lhe um empurrão. Ela caiu no solo, e se virou, admirada
com a traição.
Ramsay se inclinou, oferecendo-lhe apoio para que se erguesse.
— Aliás... — Darby tornava a fazer mira. — ...não preciso de nenhum de vocês
vivos. Estarei longe quando seus cadáveres forem encontrados no rio.
— Não! — Jane deu um passo à frente, colocando-se diante de Ramsay no exato
momento do tiro.
Algo a atingiu, deixando-a sem ar. Jane escorregou devagar até o chão. A dor em
seu peito era insuportável. Por que não conseguia respirar?
Houve um segundo disparo. Jane tentou gritar. Será que Darby trouxera uma
segunda pistola? Será que Ramsay estava a seu lado, morrendo? Nenhum som saía de
seus lábios.
Alguém levantava sua cabeça. Jane tentou focalizar a imagem borrada a sua
frente, sem sucesso. Por que não conseguia enxergar?
— Jane! Jane! Oh, Deus, Jane!
Ramsay... Ela sorriu. Não se importava mais com a dor. Ramsay vivia. Estava
salvo!
Jane sentiu um peso em seu ombro, o que intensificou ainda mais seu sofrimento.
Estava nos braços dele, sem dúvida. Manchando toda a sua roupa de sangue.
E estava morrendo.
Tudo ficou escuro. Chamou-o:
— Ramsay, meu querido...
— Não fale, não fale! — ele pedia, desesperado, mas ela não o ouvia direito. —
Jane, fique comigo! Fique comigo, pelo amor de Deus!
Ela piscou, sentindo as lágrimas e enxergando o rosto amado por um segundo.
Ramsay também chorava. Teve a impressão de que o lugar se iluminava. E então não
sentiu mais nada.
Jane piscou, ofuscada pela luz fluorescente. Sentia-se entorpecida. E então
lembrou. Ramsay, a pistola de Darby disparando, e Ramsay novamente...
Sua mão estava pesada, mas esforçou-se, levando-a ao rosto. Tentava se
acostumar à claridade. Havia um tubo de plástico preso a sua mão.
Plástico? Estava em casa?
Devagar, virou a cabeça; a seu lado, avistou um saco de soro pendurado no
suporte. Estava viva.
Quando voltou à posição original, encarando o teto, sentiu alguém a seu lado. Um
policial.
— Srta. Jane Leighton?
— Sim. — Sua boca estava seca.
— Recorda o que houve?
Evidente que sim. Mas nem em um milhão de anos lhe contaria.
— Não muito.
— Pode explicar por que o sr. Terrance Rayce foi encontrado amarrado em seu
quarto na pousada Chadwick?
Então ainda era uma pousada? Falhara outra vez? E Ramsay?
— Srta. Leighton?
Cerrou as pálpebras, tentando situar-se no presente.
— Terrance invadiu meu quarto e me atacou quando voltei do jantar.
Fora o que dissera a Ramsay. As lágrimas encheram seus olhos. O que
acontecera a ele?
— E depois?
Não sabia dizer. Esforçou-se um pouco.
— Acho... que o derrubei e o amarrei. Depois saí.
— Não chamou a polícia?
— Desculpe-me. Resolvi que ele merecia uma lição, ficando amarrado a noite
toda. Ia chamá-los de manhã. Estava muito tarde, e não quis perturbar a sra. Marshall e
os demais hóspedes.
— Como o derrubou?
Jane tentou dar de ombros, mas a dor era demasiada.
— Como vim parar aqui, policial?
— A senhorita foi encontrada sangrando no meio da estrada. Um caminhão quase
a atropelou. Como derrubou o sr. Rayce, srta. Leighton?
— Não lembro. Ficarei bem?
— Isso é com o médico. Mas já que as visitas são permitidas, creio que sim. —
Ele virou a página de seu caderninho de anotações. — Está visitando Bath, não?
Jane assentiu.
— Há algum tipo de gangue agindo entre o grupo dos amantes do período
regencial?
Jane o encarou.
— Como disse?
— A senhorita foi atingida por uma bala de chumbo do século XIX e estava usando
um traje daquele período.
Ela deu uma risada tensa, e aquilo fez com que o policial chamasse uma
enfermeira.
O calmante que lhe foi aplicado a fez relaxar e, pouco depois, dormir.
Jane, ainda internada no hospital, enviou um bilhete ao sr. Jenkins, mas ele
demorou alguns dias para responder. Nesse meio tempo, a nítida impressão de que
Ramsay sobrevivera àquela noite acompanhou Jane, mas ainda tinha dúvidas. Lydia teria
se casado?
Pensar causava-lhe dores de cabeça terríveis. Quando, por fim, o sr. Jenkins
apareceu, já estava indo à loucura.
— Não costumo atender em domicílio — o homem reclamou.
— Sinto pelo incômodo, mas tenho de saber o que houve com Ramsay Chadwick.
Por algum motivo, isso fez com que o sr. Jenkins se sentasse, interessado.
— O estranho é que vim justo por isso. Sei que tem pesquisado sobre esse tal
Chadwick, mas não posso imaginar por quê. Ele teve uma vida mais ou menos longa,
calma e sem graça.
Jane respirou fundo, sentindo a tensão desaparecer de seu corpo. Ramsay vivera!
— Ele se casou?
— Não. Permaneceu solteiro a vida toda. Agora, há algo que eu gostaria de saber.
Quando me chamou e pediu informações sobre o que lhe aconteceu depois de 1812, fiz
uma pesquisa a respeito. Esse ano parece ter sido um dos mais agitados da existência
de Chadwick. Ele noivou, rompeu o noivado, foi alvejado e indiciou um cidadão nobre por
fraude bancária.
— Indiciou?
— Sim. O sujeito deixou o país, o que surpreendeu a população local, já que
Chadwick o acusara.
— E sobreviveu?
— Não pesquisei sobre isso. — O homem a olhava agora com extremo interesse
e suspeita. — Encontrei algo muito mais interessante na correspondência da sra.
Devereaux. Ela escreveu muitas cartas durante o período próximo ao rompimento do
noivado de sua filha. Ao que tudo indica, uma das razões para o término do noivado, além
da humilhação pública de Lydia, foi o fato de que o sr. Chadwick tinha uma amante. Uma
tal srta. Jane Leighton. Pode me explicar? Ela é alguma ancestral sua, da qual herdou o
nome?
Maravilhoso! Brilhante! Ele lhe dera a resposta de que necessitava.
— Sim, sim. É isso!
— Tendo encontrado seu nome, fui adiante em minhas pesquisas e a investiguei.
Mas acho que deve saber mais sobre ela do que eu. Tem alguma carta ou diário dessa
sua parenta?
Jane resolveu nada dizer.
— Se pudesse dividi-los comigo... Eles podem ter algum indício sobre um pequeno
e interessante escândalo.
— Sr. Jenkins, não há nada além de suspeitas sobre isso. É esse o motivo que
me trouxe até Bath; queria descobrir mais.
— Acha que isso tem alguma relação com o fato de ter sido atingida, senhorita?
Jane franziu as sobrancelhas.
— Deus, não me venha com a teoria da gangue regencial de novo!
Jenkins sorriu.
— O Jornal de Bath daquela ocasião foi bastante detalhista a respeito dos eventos
ocorridos. Chadwick e sua amante foram resgatar a noiva dele. Muito gentil da parte de
sua antecessora, devo dizer. E o ato heróico acabou com a amante levando um tiro e
fugindo com o homem que atirou nela. Acredita?
— Darby?!
Por que Ramsay publicaria uma história daquelas? Será que achou que estava
morta? Mas não estava. Tinha de encontrá-lo.
— Esse é o nome do homem. Jane Leighton foi atingida no ombro direito, aliás. A
srta. Devereaux testemunhou sobre o incidente e se retirou para o campo.
— E voltou?
— Sim, casou-se com um homem rico, que morreu logo. De exaustão, dizem. O
pobrezinho tinha oitenta anos... Não acha interessantíssimo que a senhorita e sua
parenta tenham exatamente o mesmo ferimento?
— O meu não foi fatal!
— Em 1812 teria sido.
— Então tenho muita sorte.
Ele a analisou por minutos. Era um homem inteligente. Bem, ao menos não era do
tipo que acreditaria em histórias de fantasmas e viagens no tempo.
— Vejo que não me dirá nada. — Jenkins se ergueu. — Se mudar de idéia, porém,
gostaria de saber a história toda. Suponho que o fantasma de Chadwick tenha algo a ver
com isso, mas o que sei eu?
O discurso a alarmou e alegrou ao mesmo tempo. Ramsay continuava a
assombrar a pousada? Mas por quê?
— Sugiro que aceite a coincidência dos fatos, sr. Jenkins. Obrigada por ter vindo.
— Não esqueça: se mudar de idéia... — E saiu, deixando-a sozinha.
Um mês depois
Cheia de dores, Jane desceu do táxi. A sua frente, estava a fachada da pousada
Chadwick. Viera para despedir-se. Enfim, recebera alta, e tinha de voltar a Londres.
Poderia ter pedido que lhe enviassem as malas, mas queria vir pessoalmente para
observar as mudanças no lugar, depois da alteração no passado.
A sra. Marshall abriu a porta, deu-lhe um abraço apertado e a fez entrar e se
sentar.
— Querida! Que gentileza a sua voltar e ficar aqui depois de tudo que aconteceu!
Estou preparando um chá. Ficará pronto em um minuto.
— Meu quarto continua vago?
— Ora, por que quer ficar lá?
— Bem, foi onde fiquei da última vez.
— Não terá um segundo de descanso! Não deixo aquela suíte para os hóspedes,
agora. Nem sei por que permiti que ficasse lá. O fantasma é muito assustador.
— É? Mas...
Por que Ramsay ainda assombrava seu antigo quarto? E por que mudara? Será
que era uma assombração de verdade agora? Voltou a atenção para a sra. Marshall.
— Foi muito gentil de sua parte não comentar antes, Jane, mas devia ter me
avisado de que ele era assustador. Tentei passar a noite lá. Queria mandar exorcizarem
o aposento. Mas de acordo com meu contrato, não posso fazer isso.
— Sra. Marshall... o que Ramsay faz?
— Aparece, vem bem perto de seu rosto e começa a mexer os braços como louco
e gritar, embora não se ouça nada.
Jane estava confusa. Por que Ramsay se mostrava tão nervoso todas as noites?
A não ser que procurasse por ela. Só havia um jeito de descobrir.
— Por isso o único quarto que tenho vazio fica no sótão.
— Terei de enfrentar todas aquelas escadas? — Fez uma careta. — Por favor,
sra. Marshall, não me agrada a idéia de subir toda a minha bagagem até lá e depois
trazê-la de volta.
A mulher a encarou por instantes.
— Certo. Nunca reclamou antes mesmo... O quarto Chadwick é seu.
Jane sorriu, levantando-se e tornando a abraçá-la.
— Obrigada, sra. Marshall!
— Não agradeça. Aqui está a chave. Depois que tomarmos nosso chá, levarei
suas malas, e nem pense em trazê-las para baixo sozinha amanhã!
— Muito bem, serei obediente.
Jane já fazia planos para mais tarde. Descansaria um pouco e então poderia se
despedir de Ramsay. Descobriria por que ele insistia em assustar os hóspedes e lhe diria
para ir viver sua vida em paz.
Ramsay entrou em seu quarto, observando a cama. Avistou outra silhueta
fantasmagórica deitada lá. Por que não o deixavam em paz? Intrusos idiotas!
Jane morrera; já aceitara o fato. A vida dela lhe escapara enquanto a segurava em
seus braços, seu corpo desaparecendo com a manhã. Tentara estancar o sangramento
e levá-la a um cirurgião a tempo. Em vão.
Passou a mão pelos cabelos, aflito. Seu dia fora cansativo. Gostaria que sua vida
voltasse ao normal, mas isso não acontecia, e já começava a duvidar de que seus
pensamentos confusos se ordenassem algum dia.
Preparou-se para olhar o rosto da criatura. Tinha de olhar. Jane ainda respirava
quando fora embora. Havia uma chance remota de que alguém a tivesse encontrado e
salvado.
Cada vez que encontrava outra pessoa em seu leito, desesperava-se. A tristeza
de não encontrá-la era horrível. Já se passara um mês. Talvez devesse se mudar, vender
a...
Seu coração parou. A mulher a sua frente estava acordada e o encarava, com
cautela.
Jane!
Mas por que a desconfiança?
Foi até ela, tomando-lhe a mão trêmula. Sentiu o calor sob sua pele. Ela estava
viva!
— Jane! Minha querida, doce Jane! — Ramsay a abraçou, tomando cuidado com
seu ferimento, e encheu seu rosto de beijos.
Seus lábios se encontraram, então. Jane o beijava com paixão.
Ramsay voltou a si. Não podia beijá-la daquele jeito, embora se sentisse radiante
por encontrá-la viva. Afastou-se, respirando com dificuldade. Percebeu que também ela
estava alterada. E tocava o ombro de leve. Machucara-a de novo?
— Dói muito? — Não conseguiu controlar-se, mesmo sabendo que devia, e
acariciou-lhe o rosto.
— Não. Tive sorte, considerando a quantidade de sangue que perdi.
Ramsay impôs mais distância, sentindo-se culpado.
— Fiz tudo o que podia, Jane.
— Ficarei bem. Só preciso de tempo para os músculos se regenerarem, e um
pouco de exercício em seguida.
Ele baixou a cabeça, apoiando-a no calor suave de sua mão. Estava viva, era real.
Mas sentiu-a tensa.
— Você não me parece bem, Ramsay.
— Eu me preocupei muito com você. Pode ficar, se quiser. — Ele não a encarava,
pensando nas possibilidades, nas conseqüências. Seu coração estava cheio de
esperança, pois ela lhe sorria como antes, sem preocupações.
— Você anda assustando os hóspedes. Não fazia isso antes.
— Não posso dormir na mesma cama com estranhos. Tinha de espantá-los para
que se fossem. — Tentou sorrir. — Gostaria que você estivesse aqui todas as noites.
— Ramsay... — Ela desviou o olhar.
— Jane, olhe, sei que dissemos algumas coisas naquela noite...
Mas foi apenas nosso medo falando mais alto. Nossas mágoas eram muito
recentes. Desde que a perdi naquela manhã, passei a desejar que pudesse ficar para
sempre.
— Mas, Ramsay...
— Quero você, Jane. Não apenas em minha cama, mas em minha vida. Chorei
por você todos os dias desde que se foi, certo de que tinha morrido. — Beijou-a de novo,
mas com suavidade, e sentiu que era correspondido.
Então ela sentia algo também! Jane se desvencilhou.
— Ramsay, voltei porque preciso dizer adeus.
— Adeus!?
— Você está livre agora. Terá uma vida longa e calma, mas deve ser feliz também.
Não sirvo para você. Sou a garota errada, no tempo errado. Jamais daria certo.
— E claro que daria! Se as noites que passo a seu lado são tudo o que podemos
ter...
— Não posso. — Jane tentava controlar as emoções. — Não voltarei para você
todas as noites. Tenho um negócio para cuidar, uma casa em Londres, e não tenho
dinheiro para continuar na pousada. Se eu ao menos pudesse comprá-la...
— Quanto custa?
— Dois, talvez três milhões. Nem se eu fizesse um financiamento, Ramsay. É
impossível.
A quantidade de dinheiro o surpreendeu. Era o suficiente para comprar uma
fazenda, até duas.
— Entendo... — Era horrível ter de concordar, mas não havia outro jeito.
— Entende?
— Merece mais do que posso lhe oferecer, Jane. É verdade que não sou casado
ou comprometido, sou dono de uma boa fortuna e um passado impecável no que diz
respeito a mulheres. Tenho um temperamento forte, que quase sempre está sob controle.
Mas a única coisa que não posso lhe dar é tempo, que é tudo de que precisa. Você
necessita de alguém com quem partilhar as noites e os dias. — Sentiu a garganta se
apertar. Tinha-a em seus braços e a estava perdendo de novo.
— Assim como você. Mesmo que embarcássemos em tal loucura, eu jamais
suportaria se outra mulher se aproximasse de você.
É melhor rompermos agora. — As lágrimas escorriam por suas faces.
— Eu sei. — Ramsay beijou-lhe com suavidade a testa; não ousava tocá-la além
disso.
Ela o amava. Ramsay sentia-se feliz. Jane continuava viva e o amava. Não quisera
reconhecer o fato, mas chorar por sua suposta morte o fizera ver o que vinha tentando
esconder de si mesmo.
— Nesse caso, temos apenas uma noite juntos. Diga-me, se pudesse ficar, você
ficaria?
— Sim.
— Eu te amo, Jane. — Não devia ter dito isso, não devia tentar prendê-la, mas
precisava que ela soubesse. Sentiu-lhe os lábios em seu rosto.
— Também amo você, Ramsay.
Ele tornou a beijá-la, fazendo com que se deitasse. Procurava não machucar-lhe
o ombro. Ela sabia o que pedia com seu corpo?
— Se temos apenas uma noite... que seja perfeita. — E Jane afundou os dedos
nos cabelos dele.
Ramsay a desejava com cada partícula de seu ser. Amava-a demais, e teve de
fazer um esforço sobre-humano para não prosseguir.
— Não.
— Por que não, Ramsay?
— Porque tornaria a vida sem você ainda mais difícil.
— Voltarei para visitá-lo. Sabe, há um filme em que um casal se encontra uma vez
por ano e...
Nem perguntarei o que é um filme.
— Seria lhe pedir muito.
— Isso quem decide sou eu. Nós nos amamos, Ramsay. Por que negar? Qualquer
tempo que puder passar com você... Sabe, a história diz que você nunca se casará.
Ele sabia que não o faria mesmo.
— Quero que compre a pousada! Explique seu sistema bancário moderno, talvez
haja alguma maneira de...
— Não posso aceitar seu dinheiro.
— Minha querida e independente Jane, você me deu tanto! Deixe-me lhe dar algo
em troca. E se isso significa passarmos mais tempo juntos...
Ele explicou seu plano. Deixaria para ela uma herança, que se rendesse durante
os anos seria suficiente para que comprasse a mansão. E então poderia adquirir uma loja
na cidade.
— Há uma área comercial bem no Centro — Jane se animou, passando os braços
pelo pescoço de Ramsay.
Um beijo ardente veio selar a espécie de pacto que estavam fazendo, e sem
demora seguiram para o escritório, conversando sem parar.
O amanhecer os tomou de assalto. Ramsay se recostou em sua cadeira,
observando sua amada desaparecer aos poucos, com uma pontada de dor no peito.
Aquelas despedidas constantes seriam difíceis. Apenas rezava para que seu plano desse
certo.
Não fora nada fácil. O banco, sem querer abrir mão de tamanha quantia em
dinheiro, exigira provas e atestados, mas, por fim, Jane pôde comprar a propriedade da
sra. Marshall. Para seu espanto, essa parte foi bem simples.
— Estou cansada de viver com um fantasma, mesmo que ele esteja mais calmo
agora. Apenas me dê um tempo para eu achar outro lugar.
Com dois milhões de libras em mãos, não seria muito difícil...
Jane se sentiu obrigada a escrever um testamento. Quase morrera no passado e,
sem a medicina moderna, não teria tido chance. Deixou a casa para a sra. Marshall, que
saberia cuidar do lugar como ninguém, e a loja nova em Bath para Patrícia, que adquirira
sua parte do negócio em Londres e para quem revelou toda a história.
— Querida — Patrícia comentou, estupefata, na ocasião. — Ele pode estar morto
há duzentos anos, mas pelo menos a faz feliz.
Era sua primeira noite sozinha na casa de Chadwick; sua casa agora. Sentou-se
na cama, impaciente, sem conseguir esperar para vê-lo. Tinham se passado quase três
meses desde que o vira. A noite caiu, e Ramsay apareceu.
Segurando sua mão, ele a abraçou.
— Há quanto tempo, Jane! Quase pensei...
— Foi mais complicado do que imaginamos, mas a mansão é minha. E eu sou
sua.
— E eu sou seu. Para sempre.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Parecia que se comprometiam, trocando
votos de amor.
— Para sempre... — Jane murmurou.
Impaciente, Ramsay beijou-lhe os lábios e o pescoço, percorrendo a pele macia
que lhe fora proibida por tanto tempo. Tinham estado tão perto de perderem um ao outro!
Estarem daquele jeito, um nos braços do outro, era tudo o que mais podiam
desejar. O tempo já não existia. De palpável havia apenas a paixão que os invadia e os
arrastava para sua primeira noite de amor.
Amanheceu.
Jane sentia o ombro dolorido. Esforçara-se muito naquela noite. O que tinha na
cabeça para dormir com Ramsay antes de estar plenamente curada?
Não era necessário que abrisse os olhos para saber que Ramsay desaparecera.
Sabia que tinha de se levantar e seguir em frente com sua vida na Bath moderna.
Tudo bem vê-lo apenas à noite. Depois do que vivenciaram, seria uma tola se não
tentasse estar junto de Ramsay para sempre.
Certo, hora de começar o dia, garota.
Piscou, olhando para o lugar vazio em seu leito, onde Ramsay deveria estar. Mas...
ele lhe sorria! Seus olhos azuis estavam maravilhados!
— Como! ? Já é dia! — O coração de Jane pulava, enlouquecido.
— Sim. Você ficou aqui.
Ela o encarou. Como podia estar tão calmo? Ainda estavam juntos!
— Por que não me acordou?
— E interromper este milagre? — A voz dele soava plena de alegria. Acariciou-lhe
o braço, fazendo com que tremesse. — Está aqui, comigo, Jane.
— Tem certeza de que não é você que está aqui, comigo? — Jane olhou para o
criado-mudo e gemeu. Nenhum despertador ali. — Oh, meu Deus!
Tentou se acalmar, contendo seu pavor. Uma coisa era brincar de aparecer no
passado. Outra muito diferente era viver nele.
— Estamos em 1812!
— Sentirá falta das comodidades que tinha, não é? Mas estarei aqui para ajudá-
la a se adaptar. Temos todo o tempo do mundo, não é mesmo? — Ele sorriu largo.
Jane ainda não conseguia acreditar nos fatos.
— Como isso aconteceu? Por que não antes?
— Pensei a respeito. — Ramsay se virou de lado, deixando o peito nu à mostra.
Jane poderia olhar para aquele peito por toda a eternidade.
— E...?
— Creio que estivemos lutando contra o destino até agora. Você sempre esteve
predestinada a voltar para mim para ficar, só que tínhamos que querer isso demais.
— E ontem o fizemos... Oh, Ramsay, não queria acordar esta manhã! Não queria
ter de deixá-lo.
— Estamos juntos agora.—Ele voltou a beijá-la, como na noite anterior.
Só que dessa vez, a angústia de terem de se separar assim que o dia
amanhecesse não existia mais. Aquele era um beijo que trazia a doce promessa de um
futuro juntos.
Jane sentiria falta de absorventes, batatinhas fritas e barras de chocolate. Mas
valeria a pena.
* * *