Você está na página 1de 14

PONTO DE VISTA

Motrivivência Ano XXII, Nº 34, P. 156-169 Jun./2010


DOI:10.5007/2175-8042.2010n34p156

PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS
EM REDE: um jeito hacker de ser 1

Nelson De Luca Pretto2

Resumo Abstract
O artigo apresenta quem são e como The article presents whom are and
trabalham os hackers e discute mais how work the hackers, discusses
especificamente a sua ética e, com especially their ethic and with that,
isso, aprofunda a perspectiva de goes into the perspective of colla-
colaboração e o papel das tecnologias borating and the paper of the digital
digitais de informação e comunicação. technologies of communication.
A partir disso, faz uma reflexão sobre a From that, makes a reflection about
o papel dos professores universitários the paper of university professors in
na formação dos professores,
the teacher’s education, proposing
propondo a criação de redes de
the creation of communication and
comunicação e aprendizagem. Ao
learning nets. Finally, shows a short
final, apresenta uma breve descrição
sobre a distribuição das instituições description about the distribution of
públicas de ensino superior na Bahia Public High Education Institutions
e as potencialidades da construção in Bahia and the potentialities of
de redes de comunicação e constructing communication and
aprendizagem. learning nets.
Palavras-chaves: Formação de Key-words: Teachers Education;
professores; Universidade; Rede; Ética University; Net; Hacker Ethic; Colla-
hacker; Colaboração. boration.

1 Texto apresentado no Simpósio “Formação de professores e a cibercultura” e publicado no livro n. 3


do XV ENDIPE (Belo Horizonte, 20 a 23.04.2010); disponível em http://www.fae.ufmg.br/endipe
2 Professor da Faculdade de Educação/Universidade Federal da Bahia; Doutor em Comunicação
(USP); Pesquisador do CNPq. Contatos: www.pretto.info; nelson@pretto.info
Ano XXII, n° 34, junho/2010 157

Neste texto parto da com- ética dos hackers e o espírito da era


preensão sobre quem são e como da informação, de 2001.
trabalham os hackers, para discutir Os hackers podem ser defi-
mais especificamente a sua ética nidos a partir do Jargon File3, um espa-
e, com isso, aprofundar a perspec- ço na internet onde os envolvidos com
tiva de colaboração e o papel das a computação definem os principais
tecnologias digitais de informação termos da área, como sendo:
e comunicação, com um especial
foco nos processos de partilhamento 1. Uma pessoa que gosta de apren-
de arquivos na internet – o peer- der os detalhes dos sistemas de
to-peer (p2p)–, para concluir com programação e ampliar as suas capa-
uma reflexão sobre o papel dos pro- cidades, em oposição à maioria dos
fessores universitários na formação usuários que prefere apenas apren-
de professores. Nesta última parte, der o mínimo necessário. 2. Alguém
trago uma breve descrição sobre a que programa entusiasticamente, ou
distribuição das instituições públicas que gosta de programar não apenas
de ensino superior na Bahia e as po- de teorizar sobre programação. 3.
tencialidades da construção de redes Uma pessoa capaz de apreciar o
de comunicação e aprendizagem. valor hacker. 4. Uma pessoa que é
boa e rápida em programação. (...)
Os hackers 5. Um especialista em um determi-
nado programa, ou que frequente-
Pensar nos hackers leva- mente trabalha com um programa
nos, de uma maneira geral, a em particular. (JARGON FILE, s/d)
associá-los com as pessoas que
trabalham com computação. De Mas eles também podem
fato, a expressão foi criada para ser definidos como “6. Um intruso
designar os jovens que atuam com mal-intencionado ou curioso que
grande envolvimento no campo da tenta descobrir informações entran-
programação de computadores. O do nos sistemas (JARGON FILE, s/d),
trabalho desses jovens – profissio- o que terminou sendo a definição
nais ou amadores – possui algumas mais conhecida dos hackers.
importantes características que Pekka Himanen continua a
geraram para o finlandês Pekka caracterização dos hackers como sen-
Himanen os princípios da ética do aqueles que, além de apaixonados
hacker, publicado em seu livro A pela programação de computadores,

3 http://www.dourish.com/goodies/jargon.html
158

são também apaixonados por tudo campo educacional, o depoimento


o mais que fazem de forma compar- da professora Juvany Viana, líder es-
tilhada. Podemos considerar que, de piritual e professora de escola básica
fato, o hacker pode ser qualquer pro- no Recôncavo Baiano, convidada
fissional que atue de forma entusias- por nós para dar uma aula inaugural
mada na sua profissão. Ainda de acor- de semestre letivo 2001 na Facul-
do com o Jargon File, recuperado por dade de Educação da Universidade
Assis Medeiros em sua dissertação de Federal da Bahia. Perguntada sobre
mestrado sobre o tema, “[..] Alguém o que para ela é ser professor, ela
poderia ser, por exemplo, uma hacker afirmou de forma categórica: “Ser
de astronomia. Alguém que busca o professor é ser bom amigo, ter uma
desafio intelectual de forma criativa boa compreensão, saber amar, ter
e procura, desta forma, superar as uma frequencia de carinho. (...) é ser
limitações impostas”(MEDEIROS, compreensivo, é saber amar” (PRET-
2002, p. 38). TO; SERPA, 2002, p. 90). Com isso,
Pekka Himanen analisou o já deixamos aberto o caminho para
trabalho desses profissionais que, em a aproximação do trabalho dos ha-
última instância, foram os respon- ckers com o trabalho dos formadores
sáveis pelo grande avanço da rede de professores que será retomado ao
internet no mundo e, assim, definiu longo deste texto.
os princípios que caracterizam a O outro aspecto da cha-
chamada ética hacker, merecendo mada ética hacker é o resgate da
destaque o fato de eles considerarem dimensão lúdica do seu trabalho
o compartilhamento a melhor solu- de forma a considerar o jogo, o
ção para a resolução dos problemas. prazer de brincar, como sendo
Ou seja, para eles, o compartilha- elementos constituidores do jeito
mento é a sua crença mais forte. hacker de ser. Por último, e não
Além disso, tudo – conhecimentos, menos importante, é preciso que
máquinas e infraestrutura – tem exista o desejo de explorar e não
que estar acessível, disponível para do simples reproduzir. Resgatar e,
todos e de forma descentralizada. principalmente, fortalecer a curio-
Himanen afirma que para ser um sidade, característica marcante da
hacker é importante gostar daquilo juventude, é algo que não pode
que está fazendo. Mais do que isso, ser esquecido e que precisa estar
ele destaca que uma das importantes presente no nosso trabalho docente.
características do trabalho hacker é a Nas palavras de Steven Levy (1994,
paixão. Permitam-me resgatar aqui, p. 7), o que os hackers querem “é
entrando de forma quase abrupta no essencialmente tomar as máquinas
Ano XXII, n° 34, junho/2010 159

em suas mãos para melhorar as pró- que não estamos mais tratando e tra-
prias máquinas e o mundo”. balhando com bens escassos, e sim
Partindo dessas idéias e com bens imateriais que podem ser
pensando na necessária montagem partilhados sem perda para as par-
de redes de comunicação e apren- tes. Uma frase atribuída a Bernard
dizagem, apresentamos a seguir Shaw e resgatada por Imre Simon
algumas reflexões no campo da no seu capítulo O Rossio não-rival,
formação de professores. do livro Além das Redes de Cola-
boração (PRETTO; SILVEIRA, 2008),
A cultura da liberdade define essa relação entre bem rival
e bem não rivais:
Os princípios da ética ha-
cker anteriormente postos deman- Se você tiver uma maça e eu tiver
dam ações tanto em âmbito indivi- uma maça e nós trocarmos nossas
dual como coletivo e, também, po- maças então cada um continuará
líticas públicas que compreendam tendo uma maça [é o produto físico
e catalisem as ações dos professores maça que está em jogo]. Mas se eu
com vistas a montagens de redes tiver uma ideia e você também e
de comunicação e aprendizagem, trocarmos nossas idéias cada um
especialmente para a formação de terá duas idéias (p. 15).
professores.
Um dos aspectos a se Portanto, o que preside a
aprofundar no âmbito das universi- discussão sobre a cultura da liber-
dades – especialmente as públicas, dade é a generosidade, a colabora-
e esse será exclusivamente o meu ção, a ética, o compartilhamento,
foco neste texto – diz respeito à a capacidade de ouvir para pode
democratização e socialização da interagir mas que, lamentavelmen-
produção acadêmica e as possibi- te, cada vez mais tem ficado longe
lidades trazidas para os processos da educação.
formativos da implantação das re- Necessário se faz, portan-
des. Aqui, o tema copyleft é básico to, pensar a educação articulando-a
e a ele vamos dedicar um espaço. de forma mais intensa com outras
Copie, use, reutilize, remixe toda áreas do conhecimento, tendo a
a produção realizada, e com isso discussão que articula esse con-
trazemos mais uma vez o tema do junto de áreas sido intensificada
compartilhamento. Compartilha- nos últimos anos, justamente pelo
mento esse que está associado à potencial trazido pela presença das
ideia de “rossio não rival”, uma vez tecnologias digitais de informação
160

e comunicação. previsão de tempo, cotação de bolsa


Aqui, todo o cuidado é de valores, entre outros. A ideia nos
pouco porque o que se observa é primeiros momentos era a distribui-
que essas tecnologias que possibili- ção de informações jornalísticas
tam o trabalho em rede são, muitas em tempo real. Nada diferente,
vezes, trazidas para a educação portanto, exceto pela velocidade
como meras ferramentas auxilia- da transmissão e mobilidade, dos
res dos processos. Como temos tradicionais meios de comunicação
insistido, é fundamental afastar de massa (rádio, jornais, tvs).
definitivamente a ideia de que a in- O que aconteceu, todavia,
ternet e os computadores são meras tanto pelo movimento da indústria
ferramentas auxiliares do nosso tra- como também pelo movimento da
balho, pois ao contrário, buscamos juventude, foi que esta, tão logo
compreendê-las enquanto espaços percebeu as possibilidades trazidas
sociais (POSTER, 2001) e como ele- por esses meios móveis de comuni-
mentos estruturantes dos processos cação, apropriou-se das tecnologias
educacionais (PRETTO, 1996). e também a transformou. Os jovens
O exemplo dos aparelhos passaram a usar os celulares como
celulares pode ser ilustrativo de meio de expressão, enviando SMS
um movimento de apropriação das (short message system – sistema de
tecnologias feito pelos usuários, mensagens curtas), colocando fotos
notadamente pela juventude. Os no Orkut, Flicker, Myspace ou Face-
primeiros aparelhos nada mais book, enviando mensagens para o
eram do que simples telefones Twitter, Identi.ca e outros microblogs,
móveis, que possibilitavam fazer ou mesmo alimentando os seus pró-
e receber chamadas. Os primeiros prios blogs pessoais. Esse intensivo
movimentos da indústria no sentido uso possibilitou que essa juventude,
de transformá-lo em um aparelho hoje, interaja com os chamados
de recebimento de informações meios de comunicação de massa
ocorrem no final dos anos 90, com pautando, muitas vezes, a própria
os primeiros projetos utilizando os ação desses meios através do envio
protocolos de aplicações sem fio, de notícias e imagens em tempo real
desenvolvidos para o acesso à in- de todos os cantos do planeta.
ternet através dos telefones móveis. Isso não está mais sendo
Naquele momento, o objetivo era feito somente pela juventude, ten-
transformá-los em receptores mó- do-se que reconhecer o importante
veis de informações que incluíam papel indutor que ela representa no
utilidade pública como trânsito, relacionamento com as tecnologias.
Ano XXII, n° 34, junho/2010 161

Isso está sendo feito cotidianamente grande exemplo, repetido em todos


nos movimentos ativistas em defesa os fóruns e textos, é o da enciclopé-
dos direitos humanos, ambientais e dia livre Wikipedia4. Pesquisa publi-
de liberdade de expressão. São ape- cada na revista Nature mostrou que
nas alguns exemplos o caso do Irã, de uma maneira geral a Wikipedia e
quando toda a imprensa não con- a tradicional Enciclopédia Britânica
seguia publicar informações mais são equivalentes em termos de pre-
precisas sobre o que lá acontecia cisão nos seus verbetes (WEINER-
e os jovens começaram a, imedia- GER, 2007, p. 138). O diferencial,
tamente, colocar o Irã no mundo contudo, é que a correção de erros
denunciando as eleições e lutando encontrados nessas enciclopédias,
pelas liberdades democráticas; e da para a Wikipédia pode se dar em
mesma forma os recentes casos de poucos dias.
Honduras, onde, mais uma vez, as Esta perspectiva de cola-
grandes redes de comunicação não boração na produção de conheci-
conseguiam informações precisas mento é importante para a educação
sobre a ocupação da embaixada e isso se dá a partir de um movi-
brasileira pelo deposto presidente mento de constituição de redes de
Zelaya e os twitteiros imediatamen- relacionamento, tecnológicas ou
te começaram a mandar notícias e não. Exemplo de uma rede que não
informações para todo o mundo. necessariamente se estabelece a
Todo esse movimento traz partir das tecnologias, mas que a usa
para os mais velhos, e notadamente de forma intensa, é o movimento da
os professores, um grande descon- Economia Solidária, política pública
forto. Desconforto que vai da pró- do governo federal brasileiro desen-
pria dificuldade de escrever com o volvida pelo Ministério do Trabalho
dedo polegar nos cada vez mais mi- e Emprego através da Secretaria Na-
núsculos teclados desses aparelhos cional de Economia Solidária5, que
móveis, até a não compreensão da vem promovendo a articulação de
potencialidade do uso dessas tec- forma intensa das produções locais
nologias digitais. No entanto, tudo por meio das tecnologias, criando
isso vem possibilitando a criação e um movimento de solidariedade e
o desenvolvimento de projetos que organização das produções locais
têm na colaboração aberta o seu que, com isso, conseguem se arti-
elemento constituidor mais forte. O cular nacionalmente para atingir um

4 http://www.wikipedia.com
5 http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/secretaria_nacional.asp
162

mercado antes distante. Fortalece- da cultura, os movimentos de troca


se, dessa forma, a produção de bens de arquivos através da internet,
locais implantando-se uma rede de conhecido como peer-to-peer, que
solidariedade. Esses movimentos significa troca entre pares, mas que
em torno das cadeias produtivas pode significar, numa tradução mais
locais são suportados por diversos coloquial e interessante, de troca
agregadores como, entre outros, entre amigos, entre parceiros, pos-
o Fórum Brasileiro de Economia sibilitando a dinâmica de produção
Solidária6 e o Cirandas, um espaço colaborativa com uma intensifica-
para que cada empreendimento ção da produção de conhecimentos
de economia solidária no Brasil e culturas.
possa ter “um lugar na internet para Um exemplo significativo
apresentar a história e o trabalho nesse campo é a música. O que se
do seu grupo, ter uma vitrine de tem visto é a produção de músicas
seus produtos ou serviços, fazer que circulam livremente na rede. São
contatos e utilizar esse endereço artistas que se articulam em torno de
virtual inclusive nos seus materiais cooperativas ou em suas próprias
de divulgação e cartão de visitas”7, casas, com computadores usando
além de possibilitar uma maior software livre e criando, produzin-
articulação para compras e vendas do, gravando e distribuindo suas
de produtos e a articulação política músicas em CDs ou pela internet,
em torno do próprio movimento so- já provocando a própria indústria
lidário. Este vem se constituindo em fonográfica que luta de forma intensa
um movimento ativista totalmente para bloquear esse movimento. São
sintonizado com os princípios do exemplos no Brasil o movimento
movimento hacker. Um movimen- Música Para Baixar8 e internacional-
to de pegar as coisas, pôr a mão mente o site Jamendo9. São muitos os
na massa e, simplesmente, fazer a outros exemplos e práticas ativistas
diferença. Em ambos, a lógica do que poderíamos descrever e analisar
compartilhamento está presente de aqui, mas não o faremos por questão
forma intensa. de espaço. É importante, porém,
Podemos também pensar destacar o movimento em torno da
em outros movimentos no campo Cultura Digital no Brasil que vem

6 http://www.fbes.org.br/
7 http://cirandas.net/
8 http://softwarelivre.org/musica-para-baixar
9 http://www.jamendo.com/en/
Ano XXII, n° 34, junho/2010 163

sendo articulado pelo Ministério para o português pelo IBICT e im-


da Cultura com diversos ativistas plantado em diversas instituições.
e organizações que atuam na área. O crescimento do sistema no Brasil
O Fórum de Cultura Digital10, que demonstra um ainda tímido, mas
acontece na internet, vem discutin- promissor, avanço em direção à
do vários aspectos dessa temática, democratização do conhecimento
contribuindo para a implantação de acadêmico produzido no país: em
políticas públicas catalisadoras des- 2004, quando o sistema foi dispo-
sas ações culturais, com forte reflexo nibilizado, eram 22 revistas. Em
no campo da educação. 2008 eram 315 em acesso aberto,12
Esse crescimento da cul- criando, dessa forma, novas possibi-
tura do partilhamento está também lidades para a ampliação do acesso
presente nas universidades. Cres- para toda a população dos países
cem dois grandes movimentos que falantes da língua portuguesa da
são importantes para o estabeleci- produção científica nacional e in-
mento das redes a que estamos nos ternacional. Com isso viabiliza-se,
referindo. Um desses movimentos cada vez mais, que os resultados
é a adoção por diversas instituições das pesquisas, principalmente as
ligadas à educação, ciência e cultu- financiadas com recursos públicos,
ra das revistas abertas, livres para o possam ser oferecidos sem custos à
acesso de todos. Esse movimento sociedade que, em última instância,
no Brasil vem sendo liderado pelo já pagou por eles.
Instituto Brasileiro de Informação Uma segunda vertente é a
em Ciência e Tecnologia (IBICT), produção de recursos educacionais
vinculado ao Ministério da Ciência abertos, licenciados em formatos
e Tecnologia (MCT), que adotou a livres que possibilitam o seu intenso
política de arquivos abertos (open uso nas universidades para os seus
archives), associando-se ao Projeto processos formativos. Esse é um tema
de Conhecimento Público (Public candente na pesquisa educacional em
Knowledge Project). O PKP desen- todo o mundo, mas não será objeto
volveu um sistema livre para admi- de nossa análise neste momento.
nistrar publicações e indexações O crescimento da cultura
de revistas acadêmicas, o Open do compartilhamento associado com
Journal System, que foi traduzido os movimentos que mencionamos

10 http://culturadigital.br/
11 http://seer.ibict.br/index.php?option=com_content&task=view&id=395&Itemid=120
164

anteriormente traz para o debate dos países com menor grau de for-
outro importante tema, com forte mação de seus docentes. Os dados
vínculo com a educação: o software do estudo indicaram que a maioria
livre ou software de código aberto. dos professores brasileiros de 1ª a
Uma vez que o software livre é 4ª série (92%) tem apenas o ensino
produzido essencialmente de ma- médio com mais um ano ou dois
neira colaborativa, sua relação com a de formação específica (ESTADÃO,
educação é quase que direta quando 2006). Segundo o referido estudo,
consideramos que não existe possibi- até o ano de 2015 o Brasil precisará
lidade de implantação de processos de mais 396 mil professores para
formativos, especialmente se nos manter o atendimento nas escolas
referimos à formação de professores, de ensino básico. Mesmo com todos
se não pensarmos no coletivo, em os investimentos que o governo
colaboração e, portanto, em rede. vem fazendo na ampliação da rede
Afinal, não deveriam ser esses os de formação de professores através
princípios fundamentais da educa- da modalidade à distância, os nú-
ção? Lamentavelmente não o são. meros apontam para a necessidade
No entanto, podemos pensar no res- de uma verdadeira revolução nas
gate destes princípios a partir de uma ações de formação de professores se
apropriação das tecnologias digitais pensamos em sair desse fosso.
com um fortalecimento da rede que, Tomando como caso de
com elas, pode se estabelecer. estudo a distribuição das Institui-
ções Públicas de Ensino Superior
As redes no Estado da Bahia no ano de
2006, percebemos o papel que
A montagem de uma re- essas universidades públicas po-
dede formação de professores en- deriam representar no esforço da
volvendo as instituições públicas formação dos licenciados para as
de ensino superior do país é uma diversas áreas no Estado. Essas
condição básica para que possa- ações, articuladas com o mesmo
mos superar o grande desafio da espírito hacker que anteriormente
formação de professores. Dados descrevemos, necessitariam ser
do relatório “Educação para Todos desenhadas pensando para além
2006 - Professores e Educação de dos muros de cada universidade
Qualidade”, da Organização das e de cada campus universitário.
Nações Unidas para Educação, Mais do que isso, a articulação
Ciência e Cultura, mostram que com as culturas locais passaria
o Brasil é, na América Latina, um ser a mola mestra de todas as
Ano XXII, n° 34, junho/2010 165

ações formativas se pensarmos perspectiva de vida e, também, de


em uma formação de educadores universidade. A universidade está
comprometidos com as necessá- sem capacidade de contemplar!
rias transformações da sociedade Viraram máquinas ou peças de um
brasileira, que vive em profundas sistema que necessita produzir de
desigualdades. forma quase alucinada. Universi-
Pensamos cultura como dade shopping centerou, como
força motriz, compreendida, ao um supermercado onde se entra,
mesmo tempo, como elemento pega-se um produto - uma aula?!
galvanizador e direcionador do - e paga-se na saída. O violento
desenvolvimento científico e tecno- processo de privatização do en-
lógico e como fonte inspiradora de sino superior nas últimas décadas
um sistema educacional integrado tem nos trazido esta lamentável
desde a pré-escola, sendo esse o experiência de forma contun-
nosso propósito teórico e político. dente. Essa lógica tem levado as
Uma cultura cujos pilares são a universidades a olharem muito
língua, a geografia, a fauna, a flora, mais para o mercado do que para
e que se firma sobretudo através da a formação geral dos cidadãos,
educação e no desenvolvimento das não lhes possibilitando, inclusive,
artes, da ciência e da tecnologia. estabelecer uma crítica ao próprio
Uma cultura assim consolidada tem mercado. O responsável pelas uni-
diálogo histórico e soberano com versidades parisienses, Maurice
culturas de outros países e, mais re- Quénet, foi categórico ao afirmar
centemente, com a chamada cultura em uma entrevista que o papel de
global que insiste em, justamente, uma universidade não deve ser o
destruir as culturas locais pela sua de preparar para o mercado de tra-
força homogeneizante. Imaginamos balho, mas o de dar uma formação
ser importante um outro olhar sobre geral aos jovens (FOLHA, 2006).
as nossas universidades, voltando-se Perdeu-se o espaço para
para o passado para resgatá-lo de os embates políticos, acadêmicos e
forma radical, sem saudosismo, ou ideológicos nas universidades. A dis-
apesar dele, de tal forma a recuperar cussão política esvaziou-se porque
a perspectiva pública, aberta a todos tudo tem que ser rápido. Na prática,
os segmentos da sociedade e social- aderimos à lógica da Organização
mente referenciada, que caracteriza Mundial do Comércio e de todas as
o ethosuniversitário. demais políticas planetárias: viramos
Perdemos muito de tudo commodities. Impera a lógica do
isso porque perdemos muito desta ranking e, com isso, estimula-se a
166

ideia de sermos os primeiros, os da Conquista); Universidade Fede-


melhores, os mais rápidos. ral do Recôncavo Baiano (Campus
Como o dinheiro público de Cruz das Almas, Campus de
para o financiamento das univer- Santo Antônio de Jesus, Campus
sidades públicas continua escasso de Cachoeira e Campus de Amar-
mesmo com todos os investimentos gosa); Universidade do Vale do
realizados pelo governo federal São Francisco (Campus Juazeiro
nos últimos anos, as instituições – BA); Universidade do Estado da
e os professores correm atrás de Bahia (Salvador, Alagoinhas, Jua-
financiamento com uma busca alu- zeiro, Jacobina, Santo Antonio de
cinada pela captação de recursos, Jesus, Caetité, Senhor do Bonfim,
impondo uma lógica de compe- Paulo Afonso, Barreiras, Teixeira
tição entre as próprias universi- de Freitas, Serrinha, Guanambi,
dades. No ano de 2006 fizemos Itaberaba, Conceição do Coité,
um levantamento do número de Valença, Irecê, Bom Jesus da Lapa,
universidades públicas na Bahia Eunápolis, Camaçari, Brumado,
e da localização de todos os seus Ipiaú, Euclides da Cunha, Seabra
campi universitários espalhados e Xique-Xique); Universidade Esta-
pelo Estado, principalmente por dual de Feira de Santana (Feira de
conta da Universidade do Estado Santana, Lençóis e Santo Amaro);
da Bahia (Uneb), uma universidade Universidade Estadual de Santa
criada de forma multicampi. Cruz; Universidade Estadual do
Com a colaboração da Sudoeste da Bahia (Vitória da
Companhia de Desenvolvimento Conquista, Jequié e Itapetinga);
Urbano do Estado da Bahia (CON- CEFET-BA (Barreiras, Eunápolis,
DER) plotaram-se todos esses cam- Vitória da Conquista, Valença,
pi no mapa do Estado, e a partir Salvador, Simões Filho, Santo
deles traçou-se um círculo com Amaro, Porto Seguro, Camaçari) e
um raio máximo de 100 km para as Escolas Agrotécnicas Federais na
podermos visualizar a amplitude da Bahia (Catu, Guanambi, Santa Inês
cobertura das IES públicas baianas e Senhor do Bonfim).
no Estado. O gráfico a seguir mostra
Foram as seguintes as a cobertura do sistema universitário
unidades consideradas no ano de baiano em termos geográficos.
2006: Universidade Federal da
Bahia (Salvador, Barreiras e Vitória
Ano XXII, n° 34, junho/2010 167

1 Elaboração: Conder, 2006.

Observa-se claramente ção, sejam as próprias Faculdades


que se pensarmos em termos esta- ou Centros ou então os departamen-
duais, praticamente todo o Estado tos de Educação. Elas constituem-se,
está coberto por pelo menos um portanto, num potencial incomen-
campus de uma universidade pú- surável de transformação já que ali
blica, numa distância máxima de estão os profissionais que pensam a
100 km. Tanto nas sedes como nos educação em nosso país. Não resta
campi universitários encontramos a menor dúvida que elas sofrem
as unidades voltadas para a educa- de todas as conhecidas mazelas do
168

sistema público de ensino supe- vêm arrancar territórios ‘virgens’ de


rior. No entanto, no conjunto das sua letargia, mas se instalam sobre
FACED, encontramos experiências uma realidade complexa que elas
muito ricas que podem ser estimu- vão certamente transformar, mas
ladas e articuladas se implantamos onde elas vão igualmente receber
redes de comunicação e formação a marca”.
conectando todas essas experiên- Dentro das regiões, no-
cias e expertise. Esse é seguramente vamente a rede se estabelece,
um enorme potencial e poderia articulando as universidades com
incluir o fortalecimento de redes as demais unidades do sistema
de bibliotecas, de produção de público de ensino. Implanta-se po-
materiais culturais (e educacionais), tencialmente um processo contínuo
de um sistema de comunicação e permanente de troca, de forma-
pública, entre tantos outros. O esta- ção continuada em serviço com a
belecimento de uma rede horizontal rede desenvolvendo programas de
é de fundamental importância para formação em rede, para as diversas
que seja possível adotar uma outra áreas do conhecimento, onde a pro-
perspectiva para as universidades e dução de conhecimentos e culturas
o sistema educacional. São novas seja priorizada. Para tal, é importan-
possibilidades que se instalam e que te salientar que se torna necessário
modificam os tradicionais vetores o envolvimento da escola como
de desenvolvimento que sempre um todo e não o professor isola-
apontam da capital para o interior, damente, enquanto indivíduo. Ob-
como se o interior fosse constituído viamente, pensamos que toda essa
de espaços virgens que as redes produção precisa estar licenciada de
iriam resgatar e tirar da sua pureza forma livre, possibilitando que, na
e da sua ingenuidade. Dessa forma, rede, novos produtos derivados dos
pensar a conexão de um campus produtos originais possam surgir.
universitário pode e deve corres- Essa produção inserida nas redes
ponder à conexão da região onde a de comunicação e aprendizagem,
universidade está inserida na própria através da internet, ganha o mundo
rede. E ao conectar mais uma região e com ele interage. Assim, os princí-
à rede, ela própria se transforma, pios da ética hacker passam a fazer
mas também a rede sofre transfor- parte do cotidiano dos processos de
mação com a sua presença. Como formação dos professores.
afirma Leila Dias (1995, p. 148), Nesse momento esse pro-
pesquisadora da Universidade Fede- fessor hacker vai ampliar a sua rede
ral de Santa Catarina, “as redes não colaborativa e é exatamente isso
Ano XXII, n° 34, junho/2010 169

que a educação demanda. Nós não JARGON FILE, The Original Hacker’s
podemos parar nossa formação, ela Dictionary, http://www.dourish.
precisa ser contínua, permanente; com/goodies/jargon.html, acesso
é isso que fortalece nossas escolas em 18.10.2009.
além de equipamentos e outras con- LEVY, Steven. Hackers: heroes of
dições de trabalho adequadas. the computer revolution. New
York, Penguin Books, 1994.
MEDEIROS, Assis. Hackers: entre
Referências a ética e a criminalização. Visual
Books, 2002, 182.
CUNHA, Luis Antonio. A O Estado de S. Paulo. Brasil precisará
universidade reformada. Rio de de mais 396 mil professores até
Janeiro: Francisco Alves, 1988. 2015, de 28/4/2006, acesso
DIAS, Leila Christina. Redes: 22.2.2010.
emergência e organização. In: POSTER, Mark. What’s the matter
CASTRO, Iná Elias; GOMES, with the Internet. Minneapolis:
Paulo Cesar da Costa; CORRÊA, University of Minnesota Press,
Roberto Lobato (Orgs.). 2001.
Geografia: conceitos e temas. WEINBERGER, David. Everything is
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, miscellaneous: The power of the
1995. p. 141-162. new digital disorder, Macmillan,
Folha de S. Paulo. Universidade 2007.
não deve focar mercado, afirma
responsável pela Sorbonne.
Caderno Cotidiano, edição de Recebido: julho/2010.
1º/5/2006. Aprovado: outubro/2010.

Você também pode gostar