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A SABINADA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Reitor
Naomar Monteiro de Almeida Filho
Vice-Reitor
Francisco José Gomes Mesquita

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


Diretora
Flávia Goullart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial
Titulares
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Caiuby Alves da Costa
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Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti
José Teixeira Cavalcante Filho
Maria do Carmo Soares Freitas

Suplentes
Alberto Brum Novaes
Antônio Fernando Guerreiro de Freitas
Armindo Jorge de Carvalho Bião
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Cleise Furtado Mendes
Maria Vidal de Negreiros Camargo

Comissão organizadora das comemorações do centenário de Luiz Viana Filho


Edivaldo Boaventura
Roberto Santos
Joacy Góes
Victor Gradin
Consuelo Pondé de Senna
Luiz Ovidio Fisher
Luiz Vianna Neto
Lia Vianna Queiroz

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LUIZ VIANNA FILHO

A SABINADA
(A República bahiana de 1837)

Edição comemorativa ao centenário de nascimento do autor

EDUFBA
Fundação Gregório de Mattos
Salvador, 2008

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Primeira edição: 1938, Liv. José Olympio (Col. Documentos Brasileiros, 8,
dirigida por Gilberto Freyre)

©2008, By Herdeiros de Luiz Vianna Filho.


Direitos de edição cedidos à EDUFBA/Fundação Gregório de Mattos.
Feito o depósito legal.

Revisão
Nídia M. L. Lubisco

Projeto Gráfico
Alana Gonçalves de Carvalho
Angela Dantas Garcia Rosa

Editoração Eletrônica
Alana Gonçalves de Carvalho

Capa
Alana Gonçalves de Carvalho
Imagem - FERREZ, Gilberto. Bahia: velhas fotografias. 1898/1900. Rio de Janeiro:
Kosmos Ed.; Salvador: Banco da Bahia Investimentos S. A., 1988. p. 138.

Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa – UFBA

V614 Viana Filho, Luis, 1908 - 1990.


A Sabinada : (a república bahiana de 1837) / Luiz Vianna Filho. - Salvador :
EDUFBA : Fundação Gregório de Mattos, 2008.
182 p.

Originalmente publicado : Rio de Janeiro, RJ : Livraria José Olympio, 1938.


(Coleção documentos brasileiros / dirigida por Gilberto Freyre ; 8).
Edição comemorativa ao centenário de nascimento do autor.
ISBN 978-85-232-0489-1

1. Brasil - História - Sabinada, 1837-1838. 2. Bahia - História. I. Título.

CDD - 981.04

EDUFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n
Campus de Ondina. Salvador-BA - 40170-290
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SUMÁRIO

07 PREFÁCIO

13 Capítulo I – A SABINADA
19 Capítulo II – A CONVENÇÃO E O AMBIENTE COLONIAL DO BRASIL
27 Capítulo III – A INCONFIDÊNCIA BAIANA
35 Capítulo IV – A TRÉGUA DA INDEPENDÊNCIA
43 Capítulo V – AGITAÇÃO FEDERALISTA
49 Capítulo VI – A REGÊNCIA E O AMBIENTE BAIANO
57 Capítulo VII – A CONSPIRAÇÃO
69 Capítulo VIII – SABINO VIEIRA
83 Capítulo IX – REPÚBLICA!
95 Capítulo X – AS IDÉIAS DO SÉCULO
107 Capítulo XI – O CERCO
123 Capítulo XII – OS ESTRANGEIROS E A REVOLUÇÃO
129 Capítulo XIII – AÇÃO MILITAR
145 Capítulo XIV – ÚLTIMOS DIAS DA REPÚBLICA
157 Capítulo XV – PROCESSO E EXÍLIO

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171 ANEXO A – ATAS MAÇÔNICAS REFERENTES À PERMANÊNCIA DE
BENTO GONÇALVES NA BAHIA
173 ANEXO B – RELAÇÃO DOS LIVROS ENCONTRADOS NA CASA DE
SABINO VIEIRA, E QUE, TALVEZ, SIRVAM PARA O ESTUDO DE SUA
PERSONALIDADE
177 ANEXO C – OFÍCIO DE BERNARDO PEREIRA DE VASCONCELLOS,
EM 17 DE NOVEMBRO DE 1837

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PREFÁCIO

Publicada em 1938, setenta anos depois é reeditada a obra A


Sabinada, como parte das comemorações do centenário de nascimento
do historiador, biógrafo, professor da Faculdade de Direito da Ufba,
membro da Academia Brasileira de Letras e da Bahia e político, Luiz
Vianna Filho.
Há muito ausente das bibliotecas brasileiras, seu pioneiro
trabalho serve como referencial bibliográfico para todos os estudiosos
que se têm dedicado à análise da rebelião baiana de 1837.
Antes de ser lançado, na Coleção Documentos Brasileiros,
dirigida por Gilberto Freyre, obras fundamentais para a historiografia
nacional foram escritas por Caio Prado Junior e pelo mesmo mestre
pernambucano, ambos ideólogos da nossa Cultura.
Uma “elite cultural” difundia idéias para um público reduzido
de pessoas, tendo o crítico brasileiro, Roberto Schwartz assinalado
que, a denominada “cultura brasileira” não alcançava, em 1970,
50.000 mil pessoas num país de população estimada em apenas 90
milhões de habitantes.
De acordo com Francisco Iglesias, algumas obras significativas
do período não foram escritas por historiadores, mas por especialistas
de várias áreas do saber.
Convém mencionar na oportunidade que, segundo Carlos
Guilherme Motta, foi Caio Prado Junior, o mais marcante dentre os
nossos historiadores, aquele que analisou a realidade sociológica
brasileira. Gilberto Freyre fez estudos universitários no exterior, onde
se familiarizou com novos conhecimentos e experiências.
A Sabinada é, assim, um livro escrito numa época em que se
trabalhava sob a ótica factualista, modelo então adotado de apresentar
o fato histórico. Todavia, é um livro inovador, pois, embora escrito

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antes da nova concepção da história, não se limitou Luiz Vianna
Filho apenas a narrar os acontecimentos. Antes, cotejou situações
semelhantes ou assemelhadas, que ocorreram no País, a fim de
estabelecer conexões entre as diversas rebeliões observadas no período
regencial, ou mesmo antes dele. Por isso, incluiu no seu trabalho
abreviadas considerações a trégua da Independência e a revolução
baiana de 1798, conhecida como revolução dos Alfaiates. Desse
modo, A Sabinada, escrito antes da divulgação dos estudos franceses,
representou avanço considerável em relação a trabalhos outros
produzidos no mesmo período no Brasil.
Vale enfatizar que os conceitos da história nova, surgidos na
França, que enriqueceram e modificaram os setores tradicionais da
história, só seriam veiculados no País com a vinda de professores
franceses para São Paulo e Rio de Janeiro, que atuaram no campo da
história cultural do Brasil, a exemplo de Émile Coornaet, Fernand
Braudel, Henri Hauser, Éugene Albertini, Jean Gagé. Sob a orientação
deste último mestre as cadeiras de História, em São Paulo, formaram
seus primeiros doutores. Lembre-se um dos aspectos positivos dos
estudos históricos na Universidade de São Paulo, a criação da Revista
de História.
Como já afirmei, a Sabinada aparece, entre nós, muito antes da
divulgação dos princípios da École des Annales, daí inclusive o seu
elevado mérito.
Luiz Vianna Filho começa por explicar o que representou a
Sabinada no conflitante período regencial, em que vários movimentos
eclodiram em distintos pontos do País. O clima de intranqüilidade
sombreava o cenário político do Brasil. Diversas e divergentes
correntes políticas se digladiavam. Publicada em 1938, a obra reedita
as idéias que circulavam no Brasil, entre aqueles que se aferravam aos
princípios da revolução francesa, outros tantos que aspiravam ao
federalismo americano, sem falar nos renitentes monarquistas
desejosos da restauração monárquica da França de 1830.

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Naquela conjuntura, a Bahia oferecia clima propício para
agitações de variada ordem, pois a insatisfação era flagrante entre os
nacionais. Na realidade, de 1831 a 1837 a Província da Bahia viveu
em constante instabilidade. Vale lembrar a revolta de Bernardo
Miguel Guanais Mineiro, em Cachoeira, extinta cinco dias após ter
surgido e ter-se a dispersada pelo sertão. A repressão aos amotinados
não arrefeceu o descontentamento, em razão da depressão econômica.
A Bahia estava mal, com a queda, em 1826, de 24 % da exportação
brasileira.
Comentando a revolta de 1837, Luís Henrique Dias Tavares
acentua o seu aspecto federalista e o anseio de ser efetuada ampla
revisão da Constituição de 1824. Assinala, igualmente, a pretensão
de que ao poder executivo central ficasse vinculada a Bahia, mantida
embora cada província brasileira com a sua própria estrutura política.
Por sua vez, o brasilianista Hendrik Kraay, em artigo publicado em
2002, na Revista do IGHB, refere-se ao declínio econômico e à
instabilidade social da Bahia, aliando a essas circunstâncias o papel
desempenhado pelos radicais, enfatizando: “Pelos idos de 1837,
Salvador, embora fosse ainda a segunda cidade do Império, depois
do Rio de Janeiro, atravessava tempos difíceis. A explosão econômica
das últimas décadas da época colonial e dos inícios de 1820 cedeu a
uma profunda recessão alimentada por diversos fatores.
A turbulência não se observava apenas localizada na Bahia. Por
todo o País o clima de insatisfação era geral. No Recife, em 1831,
ocorreu a Setembrizada, no ano seguinte a Abrilada, seguindo-se a
luta dos Cabanos, em 1832. No Rio, em 1831, as tropas se
sublevaram tanto a 12 de julho quanto a 7 de outubro; na Ilha das
Cobras, em 1832, também se amotinaram a 7 e a 16 de abril.
Luiz Vianna Filho confere à Sabinada, à prisão de Bento
Gonçalves, no Forte do Mar, e à participação da Loja Maçônica
Fidelidade o grande apoio que os conspiradores baianos passaram a
ter a partir de determinado momento.

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A 11 de setembro o revolucionário gaúcho consegue escapar da
prisão e abrigar-se em Manguinhos, na ilha de Itaparica. Poucos dias
depois, espírito irrequieto e beligerante, volta a esta capital para nela
desenvolver a sua atividade revolucionária.
Por seu turno, Sabino Vieira havia fundado o jornal Novo Diário
da Bahia, veículo dos revoltosos, no qual difundia a sua insubmissão,
os clamores do seu libertário temperamento.
Acautelava-se o presidente Souza Paraíso, avisando a Montezuma
que “tem aparecido boatos desorganizadores, os quais, posto que
diferentes, contudo parecem estar de acordo quanto à separação da
Província”. Ainda assim, aquele governante não levou na devida conta
as ameaças. Considerava meras notícias da imprensa para demonstrar
“o poder de fogo” dos rebelados. Todavia, Sabino, cada vez mais
agitado, lançava o seu grito de clamor: “Poder-se–há dispensar a
revolução no Brasil”.
Entretanto, com a queda do regente, a Sabinada poderia ter
perdido a razão de ser, não fossem bem claras as idéias de República
e o sonho separatista.
A mudança do governo não alterou o propósito dos
revolucionários que, em novembro, deflagraram o movimento baiano.
Da conspiração, faziam parte revolucionários derrotados de 1832
e 1833, tais como: Daniel Gomes de Freitas, Sérgio José Veloso,
José Joaquim Leite, Alexandre Sucupira, o Cel. Bahiense e outros
menos conhecidos. Muitos deles eram homens experimentados nas
pelejas, veteranos das guerras da independência e do Sul.
Sabino destacava-se entre todos os revoltosos. Encarnava os
ideais libertários da sua época, além de ser um líder nato. Muitas
reuniões republicanas ocorreram em sua casa, às Portas do Carmo,
que quase não habitava. Em outras ocasiões, tinham lugar na residência
do ourives Manoel Gomes, situada na Piedade. Reuniões freqüentes,
para a quais convergiam sempre novos adeptos. Tal afluência deixou
transpirar o que estava sendo tramado. Tendo comparecido a uma

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delas, Luiz Antonio Barbosa de Almeida, o denunciante da trama,
afirmou ter encontrado diversas pessoas das primeiras classes sociais.
Luiz Vianna Filho pesquisou o assunto com minudência, por
isso estende-se em seus detalhes sobre o movimento. Trata
especificamente da Conspiração de 1837. Analisa detidamente a
agitação federalista que o precedeu. Detém-se em comentários sobre
a Bahia no período regencial, a acendrada odiosidade em relação aos
portugueses. Comenta as insurreições negras, assinalando que somente
em 1828 haviam ocorrido oito delas.
Destaca a atuação de Sabino Vieira, homem de palavra fácil e
vibrante, capaz, portanto de conduzir aquela revolta. Dele disse o
Barão de Cotejipe com conhecimento de causa: “o mais notável de
todos os revolucionários”.
O perfil de Sabino é magistralmente traçado por Luiz Vianna
Filho, sua alma de revolucionário, sua reputação como médico e
professor de medicina, sua atuação como jornalista e fundador do
Novo Diário da Bahia. Graças a tudo isso e a sua incontestável liderança
deu nome à insurreição que comandou. Ademais, o prestígio da sua
inteligência, as luzes do seu conhecimento e o seu inegável destemor
conferiram-lhe o lugar de destaque que ocupa nas páginas das nossas
lutas libertárias.
Comentando os livros de Braz do Amaral e Luiz Vianna Filho,
Paulo Cezar Souza, autor de A Sabinada – a revolta separatista da
Bahia (1837), editado em 1987 escreve: Em relação a Braz do Amaral,
a obra de Luiz Vianna Filho representa um passo adiante. Ele não se
contenta em desfiar os fatos: procura comentar e descobrir nexos e
sentidos. Coloca a Sabinada na perspectiva da história recente da
província da Bahia ao fazer um retrospecto da inquietação reinante
desde a Inconfidência dos Alfaiates (1798).
Como concepção e elaboração de um trabalho de um jovem,
que contava apenas 30 anos, A Sabinada de Luiz Vianna Filho é um
livro surpreendente.

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Redigido no mais elegante sabor literário, A Sabinada é, hoje
ainda, um trabalho apreciável, seja pelo conteúdo, seja pela forma.
Isso sem falar no perfeito encadeamento das idéias e conceitos.
Ademais, contém pesquisas documentais de real significação, sem
falar nas notas e depoimentos pessoais, condições que a convertem
numa obra de valor inquestionável.
Estranha que não houvesse sido reeditada até a presente data,
por tudo quanto contém de substancial para o conhecimento e a
compreensão daquele rumoroso e palpitante episódio revolucionário
baiano.
O empenho de hoje redime a omissão do passado.
Salvador, 28 de março de 2008.
CONSUELO PONDÉ DE SENA

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Capítulo I

A SABINADA

O panorama brasileiro, em 1837, era de angústia. A luta entre a


Regência e o Parlamento fazia perigar o equilíbrio constitucional do
país. O mal-estar financeiro, tanto a nação sentia enfraquecidas as
suas reservas metálicas, aterrava o comércio. O deperecimento
econômico, diminuída a nossa capacidade produtora, inquietava a
sociedade. As revoluções do Rio Grande e do Pará ameaçavam a
integridade do Império. A nacionalidade, toda ela mergulhada numa
atmosfera de incerteza, de dúvida, tinha a fisionomia assustada de
quem se sente arrastado para o desconhecido. Tudo concorria para a
intranqüilidade. E as revoluções haviam caído num círculo vicioso:
mais elas se faziam para restaurar a normalidade, mais elas atiravam o
país na desorganização, agravando todos os males.
A sociedade, ainda batida por doutrinas mal assimiladas, mal
compreendidas e mal interpretadas, extremava-se em partidos, em
facções, em grupos. Mesmo em torno das idéias da Revolução Francesa
e do federalismo americano, formavam-se matrizes que separavam os

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homens. E os monarquistas se voltavam para a restauração monárquica
da França de 1830.
Todas as idéias cabiam nesse ambiente inquieto. Por mais absurda,
cada um tinha os seus prosélitos, os seus defensores, o seu club e o seu
jornal, todos a acreditarem e a repetirem que na revolução estava o
remédio necessário: o próprio governo conspirava. Sentimentos
recalcados durante largo tempo encontravam na Regência o meio
propício para se expandirem. A política, apesar dos debates parlamentares,
tinha ares misteriosos, embuçava-se para conspirar nas “Sociedades”,
espécie de contravenção maçônica, em que se reuniam os partidos. Criara-
se um ambiente de suspeição, de temor generalizado. Ainda em 1840, a
versão brasileira do Federalista não mencionava o nome do tradutor,
talvez receoso de ser apontado como inimigo da ordem...
Nessa situação, a Bahia seria presa fácil do ideal revolucionário.
De 1831 a 1837 não conhecera a Província um instante de
tranqüilidade. Convulsionara-se em agitações demagógicas, debatera-
se com insurreições de negros, perturbara-se com revoluções federalistas.
E mais lhe acenavam com a paz, mais dominava a intranqüilidade,
inquietando os espíritos. Uma elite intelectual, quase toda ela
contaminada pelas idéias liberais da época, procurava os próprios
contornos, ainda imprecisos e discutidos. No ensino, na imprensa, na
Assembléia Provincial, abrigava-se um grande número de homens de
pensamento, cada qual apaixonado pela sua idéia, e que buscavam
numa fórmula nova o sedativo para os males que afligiam o país e a
Província. No magistério, a Faculdade de Medicina, a Escola Normal
— fundada em 32 — e o Liceu Provincial — criado em 36 — eram os
centros mais importantes. Na Assembléia, além de outros, tinham
assento Miguel Calmon, Antonio Rebouças, Pires e Albuquerque, o
Barão de São Francisco, João Carneiro, Querino Gomes e o Arcebispo
D. Romualdo Seixas, que a presidia. Na imprensa, principalmente na
imprensa, estavam os combatentes mais bravos. Cipriano Barata dirigira
a Nova Sentinela da Liberdade e a Sentinela da Liberdade. Gonçalves

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Martins, o futuro Visconde de São Lourenço, orientava o Diário da
Bahia. Guedes Cabral, como jornalista, “valia por vinte” (1). Sabino
Vieira lançara o Novo Diário da Bahia. João Carneiro Filho editava a A
Luz Bahiana. A imprensa era o campo largo, livre, onde as idéias se
debatiam em busca de novos adeptos. Refletia as múltiplas divisões
do pensamento nacional. Traduzia o estado de insatisfação, de
inconstância, em que se encontrava a sociedade. Somente na Bahia, de
31 a 37, sessenta jornais se editaram. No entre-choque das doutrinas,
os periódicos pululavam. Mas, como as idéias, que não se fixavam, os
jornais nasciam e morriam em pouco tempo. Todos tinham, porém, a
consciência de que na imprensa estava o grande veículo do pensamento.
Os próprios revolucionários baianos de 37, ao editarem, em plena
refrega, um órgão que lhes defendesse os princípios republicanos — o
Novo Sete de Novembro — faziam-no distribuir gratuitamente “para que
em um tempo, dizia-se no número inaugural, em que as idéias
populares se fermentam, as boas doutrinas se difundam e cruzem em
todas as inteligências” (2).
Contudo, contrastando com essa multiplicidade de doutrinas,
havia um ponto comum de convergência: a revolução. Exaltados
apopléticos diante da reação conservadora, federalistas batidos em
32 e 33 e desiludidos do Ato Adicional, republicanos desenganados
em face da Independência com Pedro I e do 7 de Abril com Pedro II,
separatistas animados pelo exemplo gaúcho, todos tinham a convicção
de que para enfrentar os grandes tormentos da época o meio único
era o movimento armado. Não podia haver cenário mais favorável
ao preparo de uma insurreição. E, mais uma vez, um punhado de
homens ia apelar para a solução violenta como um remédio extremo
para cauterizar as feridas abertas no organismo da Província, por um
período de lutas constantes e repetidas. A revolução foi pregada no
jornalismo, tramada nos clubes, protegida na maçonaria. Restava
apenas escolher o sentido que deveria ter. A idéia federalista fracassara
inteiramente, vencidas as suas revoluções e sofismado o Ato Adicional.

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O pensamento dos liberais Exaltados malogrará com a renúncia de
Feijó. Apenas a República e a Separação, neste século, ainda não
haviam sido tentadas na Bahia.
A fuga de Bento Gonçalves, na Bahia, foi a pedra de toque. Em
torno do seu pensamento republicano e separatista, congregaram-se
os revolucionários baianos, vindos de vários acampamentos
ideológicos. Eram “pessoas das primeiras classes sociais” a se reunirem
para a revolução. Dos militares, aí estavam Daniel Gomes de Freitas,
Sérgio Velloso, Alexandre Sucupira, José Joaquim Leite, José Nunes
Bahiense, Inocêncio Eustáquio Ferreira de Araújo e Ignácio Pitombo.
Eram soldados afeitos às guerras e às revoluções. Muitos vinham das
lutas da Independência e das guerras do Sul. E cada qual já trazia na
sua fé de ofício algum feito revolucionário que ostentava com o
mesmo garbo com que mostrava no peito as medalhas militares. Entre
os civis, formavam João Carneiro da Silva Rego, Silva Freire, Luiz
Antonio Barbosa de Almeida e João Carneiro Filho, todos os homens
qualificados na sociedade pela posição ou pela inteligência; e Sabino
Vieira, o de maior autoridade e uma das mais interessantes figuras
brasileiras de revolucionário. Estes eram os que apareciam,
conspiravam, puxavam a revolução. Atrás deles, porém, se movia
um grande número de intelectuais, apenas simpatizantes da rebelião,
mais tarde perseguidos pela Regência, e que melhor do que aqueles
explicam o ambiente baiano. Sem estarem diretamente ligados ao
movimento, por isso mesmo representavam a receptividade favorável
do meio em face da rebelião. Exprimem essa média de opiniões
anônimas, dispersas, desconhecidas e sem as quais são impossíveis os
ambientes revolucionários. É o caldo de cultura sem o qual não
poderia germinar o movimento subversivo. E que as insurreições,
além das idéias e das paixões dos seus agentes ativos, daqueles que
lhes dão impulso e consistência, revelam as tendências, senão da
maioria, pelo menos de um grande número, que forma a massa passiva,
inerte e da qual aqueles são uma conseqüência.

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Nessa plêiade intelectual que simpatizou com as idéias liberais
da revolução bahiana de 37 e lhe preparou o terreno, estavam o Cons.
Vicente Ferreira de Magalhães e João Francisco de Almeida, professores
da faculdade de Medicina. Augusto Teixeira de Freitas, o grande
civilista americano. Ladislau dos Santos Titara, o poeta da
Independência. João José Barbosa de Oliveira, jornalista, orador e
pai de Ruy Barbosa. João Querino Gomes, Fonseca Galvão, Antonio
Joaquim das Mercês, Manoel Estrella Junior e Antonio Gomes de
Amorim, todos professores do Liceu Provincial (3). Guedes Cabral,
jornalista. Manoel Joaquim da Silva Guimarães, professor das
primeiras letras. E, para não faltar o ardor feminino, também uma
mulher, a professora Cândida Mendes de Souza. Cada um destes,
vencida a rebelião, teve a sua pena, pagou à Regência o tributo da
sua simpatia pela Sabinada.
A 7 de novembro deflagrou o movimento. Não era um desses
motins, uma dessas quarteladas sem diretrizes ideológicas em que foi
tão fértil o Brasil nos anos tuebulentos da Regência. A revolução
baiana de 1837 era alguma coisa mais. Tinha os seus marcos
doutrinários. Sabia o que queria. Era republicana e separatista.
O domínio da cidade pelos revolucionários foi fácil. O governo
legal retirou-se para o Recôncavo, onde se reorganizou, aliciando
tropas para debelar o movimento que duraria quatro meses. Foram
quatro meses de luta áspera, cruenta, em que a Regência e o Império
estiveram em cheque, ameaçados pela vitória da revolução, que se
sabia conjugada com outros pontos da Província e do Norte do país,
principalmente de Pernambuco, sempre pronto para os movimentos
liberais. Quatro meses, que marcariam uma das mais sangrentas e
dramáticas revoluções brasileiras.
A guerra, para o Governo, se desdobrou em duas fases. Primeiro
foi a tática do cerco, ditada por Bernardo de Vasconcellos, Miguel
Calmon e Sebastião do Rego Barros, que pensaram em vencer pela
fome, graças a um rigoroso bloqueio por terra e por mar, aliás, pouco

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respeitado pela esquadra inglesa. Depois foi a impaciência, o desejo de
uma vitoria rápida, imediata, que reabilitasse o Governo enfraquecido
diante da opinião pública. Surgem aí as desinteligências entre o
Governo civil da Província e as autoridades militares, tanto era aquele
cioso das suas prerrogativas. E a luta entre o Presidente Pedroso e o
General João Chrisóstomo Callado, encanecido no serviço das Armas,
e o Comandante Theodoro Beaurepaire, chefe da Divisão Naval.
Do outro lado, são os esforços desesperados, heróicos, dos
revolucionários para romperem o sítio que os estrangulava dentro
da capital da Bahia onde, em plena tormenta, se instalava um governo
republicano, com a sua Câmara Municipal, o seu Ministério, a sua
burocracia e até com as suas eleições... (4) e, ao par disso, as
dificuldades para a improvisação de um exército e o abastecimento
da cidade. As dissensões íntimas na organização do governo rebelde,
as conspirações, as intrigas e traições, dentro das próprias fileiras
revolucionárias. A bravura e a covardia a viverem na cidade sitiada,
onde se lutava por um pedaço de pão e se morria por um ideal.
E, depois de tanto sacrifício, a derrota. A capital invadida por um
exército cheio de ódio, de rancor, de crueldade, e que lançava dentro
das casas incendiadas, ainda vivos, os rebeldes que aprisionava. Vencidos
e vencedores a atearem fogo às edificações. A velha capital, a arder
numa grande fogueira, pagou caro o seu crime. As tropas imperiais
foram inclementes. Saciaram em sangue a sua avidez de vindita. E
novamente a bandeira do Império alçou-se nos mastros das fortalezas
baianas. Era a paz. A república bahiana de 1837 findava tragicamente.

NOTAS
(1) Sylvio Romero. História da literatura brasileira, p. 1013
(2) Aloysio de Carvalho. A imprensa da Bahia em 100 anos. Diário Oficial, edição
especial do Centenário, p. 220.
(3) Atos do Governo da Bahia, 1838. Arquivo Público da Bahia.
(4) Arquivo Municipal de Salvador, livro 107.

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Capítulo II

A CONVENÇÃO E O
AMBIENTE COLONIAL DO BRASIL

A Sabinada, como os demais movimentos componentes da cadeia


de revoluções de 1831 a 1840, tinham raízes profundas. As suas
causas eram remotas. Vinham de meio século atrás, esse meio século
que vai dos fins do século XVIII até perto dos meados do século
XIX, e em que vemos o Brasil à procura do seu destino, através das
inconfidências e das sedições. Meio século e até mais, dada à
impossibilidade em que estiveram Espanha e Portugal de implantar
nas colônias de América os privilégios, a aristocracia e as desigualdades
sociais (5).
E, que a Revolução Francesa, por muitos aceita como causa das
nossas agitações do último decênio do século XVIII, teve a sua maior
atuação, não em criar aqui um ambiente de revolta, mas em dar um
sentido novo e vigoroso ao sentimento de insatisfação, que minara o
organismo da Colônia. Para isso concorriam fatores diversos, que
variavam de classe a classe e de região a região, e cuja soma dava ao

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Brasil uma fisionomia de descontentamento e de insubordinação.
Daí a multiplicidade dos argumentos em prol da mesma idéia
republicana e a variabilidade da esperança, que encarnou para cada
qual o lema da liberdade, igualdade, fraternidade.
A Revolução, na época, foi uma espécie de salsaparrilha política,
servindo para todos os males. Tanto servia ao mulato revoltado contra
os preconceitos de cor, como ao branco nativista, que odiava o
português. E, se o mal estava no antagonismo entre a tendência
econômica do Brasil e a preocupação de Portugal com os problemas
da luta extrema e da diplomacia, onde Azevedo Amaral situa o
nascimento da “Idéia da independência, que se foi infiltrando pelas
diferentes camadas da população colonial” (6), não variava o remédio.
Em Minas, para combater a derrama, usava-se a Revolução, que, na
Bahia também servia contra a falta de navios para a metrópole. E, do
mesmo modo, o ourives cuja tenda havia sido fechada para evitar a
evasão do ouro (7) ou o homem do tabuleiro que já não podia
concorrer com o negociante de casa aberta (8). Ninguém mais esperava
do bispo: — recorria à Revolução.
Como na medicina antiga, onde tudo se resumia em “purgare,
sangrare et clistonare”, a medicina política da época tinha apenas
uma fórmula — a Revolução.
As enfermidades, porém, que, no Brasil a Revolução se propunha
a curar eram anteriores ao seu aparecimento. Nativismo — o nosso
velho nativismo —, questão racial, angústia econômica, tudo
preexistiu ao jacobinismo. O nativismo, por exemplo, andava em
tudo. É de 1780 uma representação da Câmara da Bahia à Rainha,
reclamando contra os padres da Ordem de São Francisco, que,
buscando irmãos na cidade do Porto, “desprezam e aniquilam os
Brasileiros nacionais, seus filhos e parentes” (9). A questão racial
também não concorria menos para o ambiente de inquietação. Os
representantes da Coroa, na América, eram mais realistas do que o
rei. Ao Dr. Antônio Ferreira Castro, em 1730, Duarte Sodré Pereira

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negou posse do ofício de Procurador da Coroa “por ser pardo” (10).
Replicou-lhe, porém, o Rei que a cor não importava.
Também D. Fernando Portugal, enumerando as causas da
Inconfidência Baiana de 1798, salientava “o demasiado favor que
tem conseguido nessa Corte (Lisboa) a classe dos homens pardos
desta Capitania (Bahia), obtendo alguns mercês de hábitos e outras
distinções, o que não contribui pouco para argumentar mais a vaidade
e presunção que constitui o seu caráter, fazê-los mais atrevidos” (11).
Na Colônia, ser pardo equivalia a carregar por toda a vida uma
humilhação irremissível. Principalmente na Bahi, “onde a ínfima plebe
era de mulatos insolentes e perniciosos”, segundo se mandava dizer a
Pombal (12).
Era a época dos “monopolistas insolentes que calculam a miséria
pública para conceberem planos de opulência que obstruem todos
os canais honestos de adquirirem os pobres a sua subsistência”, dizia
Cayru (13).
O mal-estar, porém, não morava apenas nas casas pobres. Tinha
subido. Estava também na Casa Grande, nos sobrados, entre os ricos.
Vivia entre lavradores e negociantes rebelados contra a incipiente
economia dirigida, que lhes impunha a Coroa. Aqueles eram obrigados
a planta 500 covas de mandioca por escravo (14) e a esperar a época
determinada para venda do fumo (15), estes ficavam sujeitos à Mesa
de Inspeção e ambos eram vítimas de juros baixos, que afugentavam o
capital, e dos preços fixos, que tolhiam a liberdade do comércio. Acrescia
a isso, ainda, a falta de transporte “porquanto, dizia Agostinho José
Barreto, de anos a esta parte não tem chegado a Bahia todos os navios
de Portugal para ela, assim como não chegaram a Portugal todos os
que sairam da Bahia, servindo de prova que a safra de açúcar é de um
ano por outro de 16 a 20 mil caixas, e ainda abatidos 200 que consome
a população e anexos ficam para Portugal muito maior número do
que as que se mostram exportadas no mapa junto, ficando retidas mais
de 6 mil caixas pela falta de saída de Navios” (16).

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Não era de desafogo a situação da Bahia nesse fim de século.
“Com a mudança da Capital para o Rio de Janeiro, mantidos os duros
encargos fiscais que oneravam a Capitania da Bahia, ia terminar o século
XVIII sobre uma atmosfera acabrunhadora, conseqüência fatal do
desequilíbrio social e financeiro que aqui se havia produzido” (17).
Foi tudo isso que a Revolução coordenou, dando um sentido
novo, uma forma. Não apenas uma coordenação intelectual, mas
efetiva, através o seu órgão, a Convenção. Todos esses pequenos
descontentamentos, todo esse mal-estar, a principio informe,
orientaram-se então em direção ao pensamento francês, convergindo
para um ponto comum, onde se fortaleceu. As parcelas insignificantes
reuniam-se para formar um todo que inquietava a Coroa.
Nesse momento, a política brasileira deslocou-se inteiramente.
O Brasil deixou de ser uma terra a colonizar para ser um país a libertar.
Assim, viam-no os inimigos da Coroa portuguesa, que já não
pretendiam mais retirá-lo da influência bragantina por intermédio
da conquista, e sim da independência. Essa foi para nós a grande
conseqüência da Revolução. Os brasileiros, até então sem nenhum
apoio externo para os desígnios de liberdade, pois a alternativa que
se lhes deparava era optarem entre a tutela de Portugal ou da Espanha,
da Holanda ou da França, encontraram na “Convenção” o seu aliado
natural.
O Brasil passou a ser o campo onde se esboçavam as atividades
se duas forças internacionais: a internacional absolutista, representada
por Portugal — entrado na liga da Espanha e da Inglaterra, depois da
morte de Luiz XVI — e a internacional liberal, apoiada na França. O
passado e o futuro se defrontavam na América Portuguesa. Cada qual
lutava com mais ardor. Se um queria evitar a perda da colônia rica
donde lhe vinha o ouro, o outro sabia que o meio mais seguro de
vencer na Europa era triunfar na América.
A luta armada era insignificante. Pouco valia que os corsários
da França ameaçassem o comércio português (18). O dissídio era,

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sobretudo, de idéias, e nesse campo se teria que resolver o conflito.
Por iss, Portugal fechava os portos da América tanto aos mercadores
franceses como aos pensadores jacobinos. E, se Martinho de Mello e
Castro mandava que se recebesse na Bahia a Mr. D’Entrecasteaux não
se esquecia de recomendar o maior cuidado a fim de “evitar nesta
Província [Bahia] a introdução dos princípios revolucionários que
se tinham desenvolvido em França” (19). Não se enganava, aliás, o
ministro da Coroa. Um interessante documento da época revela a
influência da Convenção no Brasil. Diz o documento, verdadeiro
comunicado da espionagem portuguesa na França, que o club
denominado Cercele Social mandaria uma expedição ao mar do sul,
sob o pretexto de procurar Mr. de La Perouse, mas cuja missão real
era “introduzir nas colônias estrangeiras o mesmo espírito de liberdade
que reina neste país e dividir as forças dos soberanos do Novo Mundo”
(20). E continuava: “É certo que este navio (Le Deligent) deve tocar
no Rio de Janeiro e na Bahia, que a Constituição [francesa] está
traduzida em português e espanhol e que várias pessoas que se
embarcam como Naturalistas (21) se aplicam ao estudo destas línguas,
tendo comprado, para este efeito, os livros necessários. Diz-se, ainda,
que além das instruções da Sociedade levam outras relativas ao local
e recomendações particulares. O navio chama-se Le Deligent, Capitão
Du Petit Thouars. Vai em companhia de outro que ainda não
nomeiam e de que é capitão Mr. Brune, ambos oficiais de marinha e
grandes anti-realistas”. Era a Convenção, com os seus clubes,
transbordando para a América. À ação da Revolução, porém, se
opunha a espionagem portuguesa.
Não ficaram aí os agentes da França liberal. Em 1796, tentaram
um desembarque em Santa Cruz. Malograda a tentativa, deixaram
em terra José Avelino, mestre da galera Andorinha, que traziam
prisioneiro. Este, depondo na Bahia sobre quanto soubera durante a
sua convivência com os marinheiros franceses, declarou que os
atacantes de Santa Cruz eram três navios de guerra “saídos de Rochefort

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por ordem da Convenção”: Le Bombarde, L’Espoir e outro cujo nome
não mencionou. (22)
A vigilância de Portugal não impedia que a idéia nova penetrasse
na Colônia. Embuçada entre ardis, disfarçada, a Revolução esgueirava-
se portos a dentro, conquistando prosélitos. Já em 1794, D. Fernando
Portugal era obrigado a expulsar para Lisboa a Frei José de Bolonha,
cujo pensamento “se se propagasse e abraçasse, inquietaria certamente
a consciência dos habitantes desta Cidade (Bahia)” (23). Mas, expulsar
os indesejáveis não era bastante. Era mister contra-atacar no próprio
terreno das idéias e, por isso, Portugal fez distribuir na Colônia livros
“em que energicamente se manifestam os errados princípios e péssimas
vistas do atual Governo da França” (24).
Em ambiente tão propício, só faltava ao liberalismo, para vencer
na América portuguesa, e particularmente na Bahia, lançar a semente
da maçonaria, do club, onde em segredo, tão próprio às conspirações,
a idéia ganharia em profundidade e em extensão. Foi o que fez. Na
Inconfidência mineira já está presente a loja maçônica. Na Bahia,
nove anos mais tarde, era flagrante a sua atuação. O templo maçônico
reuniria todas as aspirações. Nele caberiam republicanos,
monarquistas, federalistas, nativistas e mesmo os simples descontentes
sem nenhuma idéia, mas que se associavam para empreitada comum:
contra a Metrópole.
Foi desse meio, cada vez mais heterogêneo, que nasceram os
grandes movimentos brasileiros. Daí o paradoxo da Independência,
com Pedro I, e do 7 de Abril, com Pedro II. Enquanto as três mais
expressivas rebeliões anteriores à emancipação — 1789, 1798 e 1817
— são caracteristicamente republicanas, a Independência se fez com
a Monarquia, que conseguiu sobreviver à Abdicação, decepcionando
os republicanos, muitos dos quais vinham da República baiense. Os
republicanos haviam preparado a Independência. D. João VI, no
entanto, a retardaria e D. Pedro I, seguindo o conselho paterno, a
proclamou sem perder a Coroa.

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NOTAS
(5) Bartolomé Mitre. Ensayos históricos, p. 108.
(6) Azevedo Amaral. A aventura política do Brasil, p. 154.
(7) Anais da Biblioteca Nacional, v. 32, p. 175. A proibição datava de 1766.
(8) op. cit. p. 512.
(9) op. cit. p. 476.
(10) Correspondência do Conselho Ultramarino. Biblioteca Nacional.
(11) Braz do Amaral. A conspiração republicana da Bahia em 1798.
(12) Anais da Biblioteca Nacional, v. 32, p. 97.
(13) Carta de Cayru a Domingos Vandelli sobre a Bahia. Anais da Biblioteca Nacional,
v. 32, p. 494.
(14) Rodrigues de Brito. Cartas econômico-políticas, p. 3.
(15) op. cit. p. 22.
(16) Ignácio Accioli. Memórias históricas e políticas da Bahia, v. 3, p. 200. Edição
anotada por Braz do Amaral.
(17) Góes Calmon. Vida econômico-financeira da Bahia, p. 3.
(18) Para maiores esclarecimentos sobre o assunto, convém consultar a coleção de
Cartas régias, Arquivo Público da Bahia.
(19) Ofício de 21 de fevereiro de 1792. Arquivo Público da Bahia.
(20) Cartas régias, 1793. Arquivo Público da Bahia.
(21) Domingos Lisboa, preso em 1798, declarou que os papéis encontrados em sua
casa pertenciam a Manuel Henriques, naturalista, poliglota e que estivera na
Bahia em 1796. Vide documentos sobre a Inconfidência de 1798, no Arquivo
Público da Bahia.
(22) Cartas a Sua Majestade, 1796. Arquivo Público da Bahia.
(23) Cartas a Sua Majestade, 21.06.1796.
(24) Cartas a Sua Majestade, 17.12.1796.

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Capítulo III

A INCONFIDÊNCIA BAIANA

A pesar de mais ou menos esquecida da História, a Inconfidência


Baiana, dentre os movimentos que antecederam a Independência e a
República, pode ser colocada no mesmo nível da Inconfidência
Mineira e da Revolução de 1817. Distingue-a destas tão somente o
fato, aliás, raro na nossa vida política, de ser um movimentos “de
baixo para cima”, enquanto os dois outros vêm “de cima para baixo”.
A nação se comoveu mais com o sacrifício dos intelectuais mineiros
e pernambucanos do que com o enforcamento dos humildes baianos
de 1798, e, por isso, depressa esqueceu a estes.
Raramente, porém, nos movimentos da época colonial, o
historiador poderá recolher material mais precioso para o estudo do
nosso fenômeno social do que na República Baiense. São vários fatos,
desde a influência da França até a questão racial, a se congregarem
para uma finalidade comum: a República.
Na articulação do movimento, o primeiro fato a registrar é a
permanência, na Bahia, entre 1796 e 1797, de Mr. Larcher, antigo

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comandante da La Preneuse, fragata famosa, terror dos embarcadiços
portugueses.
Mr. Larcher aqui chegou a 30 de novembro de 1796, no navio
espanhol Boa Viagem, de que era mestre Eleutério Tavares. Vinham,
com ele, a mulher, duas filhas de tenra idade, o comissário da La Preneuse,
quatro marinheiros franceses e Mme. Entremeuse, viúva do Tenente
Rey Alicante, e que se hospedou em casa de Antonio da Silva Lisboa
(25). Durante a sua permanência, como medida de precaução, D.
Fernando Portugal, a fim de que pudesse o capitão francês espairecer
em terra, descansando da monotonia da viagem, impôs uma condição:
— seria sempre acompanhado por oficiais que lhe vigiariam os passos.
Aproximou-se, assim, de Hermógenes Francisco de Aguillar e José
Gomes de Oliveira Borges, oficiais do Segundo Regimento. A estes,
em pouco tempo, converteu aos “principios franceses”. Aproximou-se
do Padre Agostinho Gomes (26). E, em breve, Mr. Larcher tornou-se
um centro. No largo círculo intelectual, agrupado em torno do
aventureiro francês, lavrou o espírito da irreligião, cada qual fazendo
praça do seu desprezo pelos princípios católicos. Não faltaram, sequer,
para estarrecer a velha capital do Brasil, os banquetes de carne em dias
de abstinência (27). E, por fim, como cúpula da obra de catequese,
que realizara sob os olhos complacentes do Governo, Mr. Larcher
induziu os amigos à fundação de uma loja maçônica que, a 14 de
julho de 1797, data talvez escolhida em homenagem à tomada da
Bastilha, se instalou no sítio da Barra, sob a denominação de Cavaleiros
da Luz (28). Aí reunidos, pelos compromissos de honra e de segredo,
encontravam-se os partidários da Revolução (29). A idéia avançou
rápida. Do segredo de um grupo de intelectuais passou às classes
humildes, deserdadas de fortuna e que na República passaram a ver a
redenção. Os livros da Revolução foram lidos com avidez. Homens
pobres copiavam-nos em cadernos que circulavam de mão em mão
(30). Fizeram-se hinos à liberdade. Recitava-se Rousseau e Boissy
d’Anglas (31).

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O segredo desapareceu. Era mais um meeting do que uma
conspiração. Encolheram-se, então, os que haviam soprado o incêndio
(32). Nada mais, no entanto, o deteria. Os mulatos, os pardos, como
se dizia na época, lobrigaram a desforra na República.
Poucos, como João de Deus, pensavam que, com a revolta, “este
porto [Bahia] seria franco a todas as nações estrangeiras para nele
virem negociar, trazendo fazendas e todas as mercadorias para, em
troco delas, levarem açucares, tabaco e mais gêneros da terra, sem
precisão de Portugal” (33) ou, como Lucas Dantas, que queria “evitar
o grande furto que o Príncipe fez à Praça desta Cidade, bem conhecido
na demora do comboio, que ultimamente daqui saiu, ficando os
negociantes em termo de pedirem esmola” (34).
Para o grande número, para a massa, a grande atração estava na
abolição dos privilégios decorrentes da cor. Manuel Faustino dos
Santos Lira confessaria, mais tarde, que um dos objetivos era “reduzir
o continente do Brasil a um governo de igualdade, entrando nele
brancos, pardos e pretos sem distinção de cores, somente de
capacidade” (35). Na flor da idade, a cor já lhe devia pesar como
maldição. Também se queixava José Félix: “por sermos pardos não
somos admitidos a acesso algum” (36). João de Deus, humilde
alfaiate, aliciava companheiros, assegurando que seria “extinta a
diferença de cor branca, preta e parda” (37). E Luiz Gonzaga,
soldadodo Primeiro Regimento, oficiava ao Governador: “o suplicante
é um indivíduo de classe dos referidos desgraçados [pardos], tem a
mágoa, a mágoa inconsolável de ver subir aos postos aqueles que
nada mais têm, que a única cor branca” (38).
Nesses depoimentos, sente-se toda a revolta daqueles que se
viam preteridos por um injusto preconceito de cor. E foi essa gente
pobre, que, inflamada pela leitura proibida e animada pela palavra
dos que se esconderam na hora do perigo, fez a Inconfidência.
Reuniam-se em casa de Luiz Pires, lavrante, às Portas do Carmo, ou
na tenda de alfaiate de Lucas Dantas, à Rua Direita. Era a dieta. Eles

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eram os “franceses”, como se chamavam a si próprios. Queriam a
independência e a república. Não eram poucos. Quase cinqüenta
foram presos. E isso dá bem idéia de quanto se disseminara, na Bahia,
mesmo entre o povo, nas classes incultas, a idéia de emancipação e
da república. No meio intelectual, culto, que lia os livros e jornais
da Europa, não devia ser menor a propagação dos “abomináveis
princípios franceses”. A idéia nova embora sufocada aqui, contida
ali, amedrontada acolá, e sempre vigiada pelos representantes da
Coroa, não deixaria mais a antiga Capital brasileira.
Foi a 12 de agosto de 1798. A Bahia amanheceu com aspecto
novo, inédito, inconcebível para a época: — em cada esquina um
cartaz revolucionário. Era a imprensa do tempo. Os boletins
sediciosos, as proclamações jacobinas, as afrontas à ordem,
espalharam-se pela cidade. Prometia-se um aumento de soldo à tropa.
Acenava-se com o auxílio de uma esquadra estrangeira. Clamava-se
contra os impostos pagos à Rainha. Elogiava-se a França e a Liberdade.
E, por fim, a relação dos que estariam comprometidos no movimento:
oficiais da milícia, homens graduados, negociantes, advogados, frades
bentos, barbadinhos, franciscanos e terésios, familiares do Santo
Ofício. Ao todo, 676 pessoas. Verdade? Mentira? Provavelmente um
estratagema para estabelecer a confusão.
Durou pouco o sonho dos inconfidentes. Denunciados a 26,
começaram as prisões. Depois, veio o processo presidido pelo
Desembargador Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto. Escolha,
talvez, feita a dedo, pois não fazia muito que a Rainha, escrevendo
ao Governador, ordenava-lhe que “chamado a vossa presença o Des.
Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto o repreendereis severamen-
te por falta de obediência com que se houve e lhe segureis que fica
no meu entendimento o seu pouco zelo pelo meu Real Serviço”
(39). O processo iria reabilitá-lo aos olhos de Lisboa. Para isso, foi
inexorável com os humildes. Estes, porém, não se entibiaram: em
todo o longo processo, mantiveram a sua fé na República. Cipriano

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Barata (40) negou a sua participação, magrado as afirmativas dos
seus correligionários quanto à sua culpabilidade. Era dele esta carta,
de 18 de setembro do mesmo ano, escrita a Mr. Percent, vizinho do
engenho de Joaquim Ignácio de Siqueira Bulcão: “Muito desejava lá
ir para conversar e para dizer o grande perigo em que esteve o nosso
amigo Bulcão, não obstante eu me ter mudado de lavrador de cana
para de mandioca. Enfim, meu amigo, o tempo está melindroso para
escritos e com a vista falaremos” (41). Com a negação, conseguiu ser
absolvido. Joaquim Ignácio de Siqueira Bulcão, também indigitado,
teve apenas o incômodo de depor e negar a sua culpa (42).
Hermógenes Francisco de Aguillar e José Gomes de Oliveira, amigos
do Mr. Larcher e de D. Fernando Portugal, tiveram um castigo sua-
ve: seis meses de prisão “para assim expiarem as leves imputações”.
Contra os menos favorecidos, o castigo foi implacável. Mais de
vinte foram condenados a penas de açoites. Seis foram deportados
por toda a vida, para a África. Quatro foram pendurados na forca:
Manuel Faustino dos Santos Lira, João de Deus, Lucas Dantas e
Luiz Gonzaga das Virgens. E, destes, exceto o último, ainda tiveram
os seus corpos a apodrecerem, esquartejados, em vários pontos da
cidade, expostos à execração dos contemporâneos. A Coroa estava
desagravada. Por muitos anos, a população da Colônia, aterrada com
o castigo, não pensaria em rebelar-se, imaginava o Governo. Era,
porém, um erro. A Revolução, embora aos homens tremessem de
pavor, continuaria tenaz, irredutível, cada vez mais forte e dissolvente.
Não morreria com os desgraçados inconfidentes baianos. Iria
organizar-se novamente para explodir mais adiante. Agora, por certo,
os conspiradores seriam mais precavidos, menos indiscretos. O perigo
continuava. Tanto assim, que a Metrópole não se descuidava,
escrevendo, em 9 de dezembro, para D. Fernando Portugal, a fim de
“vigiar muito escrupulosamente a conduta de todos ao empregados
nesta Capitania [Bahia] para que aparecendo indícios de se achar
qualquer deles contaminados de princípios jacobinos e revoltosos

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de logo conta, indicando os motivos que tiver de suspeita” (43). O
espantalho da Convenção não daria tréguas ao absolutismo. O horror
às novas doutrinas aparece a cada passo. É um refrão, quase uma
obsessão. Em tudo a polícia da Rainha via a marca do jacobinismo.
Um estado de suspeição geral, longe de melhorar, piorava a situação.
O suspeitado é quase sempre um indivíduo que as autoridades
empurram para a conspiração.
Ainda em 1809, escrevia-se “que na Bahia há um grande número
secreto de pessoas vendidas ao Partido Francês” (44).
Perseguida, a República refugiara-se na maçonaria, no segredo,
crescendo sempre, embora malograsse em 1817. Aí, porém, já havia
um fato inteiramente novo e imprevisto: a mudança da Corte para o
Rio. Napoleão, invadindo Lisboa, não só retardou a Independência
e evitou a República, como garantiu a unidade que, talvez, somente
um império pudesse manter numa fase de transição.

NOTAS
(25) Affonso Taunay, em Visitantes do Brasil colonial, p. 213, diz que Simple Lisle
(1797) assim viu os salões de Silva Lisboa: “abertos a todos os estrangeiros de
aparência decente, vivem cheios da melhor sociedade local”.
(26) Devassa procedida contra o Padre Francisco Agostinho Gomes. Arquivo Público
da Bahia.
(27) Idem, ibidem.
(28) Braz do Amaral. A conspiração republicana da Bahia em 1798.
(29) Idem.
(30) Autos da Inconfidência de 1798. Arquivo Público da Bahia.
(31) Idem.
(32) É tradição na família Bulcão, e isso nos revelou o Des. Antonio de Araújo de
Aragão Bulcão, que Ignácio de Siqueira Bulcão dispendeu na época cerca de 200
contos com o movimento, conseguindo livrar-se por ser casado com a filha do
Secretário Perpétuo do Governo, José Pires de Carvalho e Albuquerque.
(33) Autos da Inconfidência de 1798. Denúncia de J. J. Sant’anna. Arquivo Público da
Bahia.
(34) Idem, depoimento de José Félix.
(35) Autos da Inconfidência de 1798. Arquivo Público da Bahia.

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(36) Idem, depoimento de José Félix.
(37) Autos da Inconfidência de 1798. Arquivo Público da Bahia.
(38) Autos da Inconfidência de 1798. Requerimento de Luiz Gonzaga das Virgens a
D. Fernando Portugal. Arquivo Público da Bahia.
(39) Carta régia de 21-6-1797. Arquivo Público da Bahia.
(40) Há no processo um documento sobre a constituição mórbida de Cipriano Barata.
Preso, Barata, feriu-se com uma tesoura. Pensou-se em tentativa de suicídio.
Mas, sujeito a um exame médico, declarou tratar de um velho hábito, pois
“quando tinha grande paixão costumava ferir-se sentindo-se com isso aliviado”.
O exame constatou quatro cicatrizes antigas e iguais no tórax. Laudo apenso aos
Autos de Inconfidência de 1798. Arquivo Público da Bahia.
(41) Autos de Inconfidência de 1798. Arquivo Público da Bahia.
(42) Ignácio de Siqueira Bulcão foi figura destacada nas lutas da Independência,
sendo o introdutor dos novos processos de fabricação do açúcar na Bahia.
(43) Correspondência de D. Fernando Portugal. Biblioteca Nacional.
(44) Carta régia de 17-11-1809. Arquivo Público da Bahia.

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Capítulo IV

A TRÉGUA DA INDEPENDÊNCIA

D epois do Descobrimento não há, talvez, acontecimento de maior


influência na vida brasileira do que a fuga de D. João VI.
O estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro abria horizontes
tão novos e tão largos ao país que as próprias paixões revolucionárias
tiveram de se aplacar por sentirem que o ambiente, até então propício
aos seus desígnios, modificara-se inteiramente. D. João “criara em
torno do seu nome forte auréola de simpatia para opor à idéia da
República” (45). A própria idéia da Independência “não ganhara,
antes talvez perdesse” (46). O mal-estar polarizava-se agora no novo
Reino. Os descontentes lançavam suas vistas para o Regente. Punham
no fato novo as suas esperanças. E somente os “puros”, os convictos
— sempre em número reduzido — mantinham as mesmas aspirações
republicanas. D. João VI atrasara com a sua presença o relógio
republicano. É pouco provável “que as forças ocultas só não
proclamassem a república com receio da Santa Aliança” (47). Neste
momento, a questão perde o seu aspecto internacional para fixar-se

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na órbita interna do Brasil. A prosperidade é incompatível com as
revoluções. E a situação do país era de desafogo, de bem-estar. A
elevação a Reino e a instalação da Família Real no Brasil não só
satisfizera a vaidade nacional, como canalizara para o outro lado do
Atlântico uma soma considerável de ouro, de riqueza. Especialmente
na Província da Bahia que, sob a administração do Conde dos Arcos,
desenvolvera-se “mais do que qualquer outra pelo notável crescimento
da sua riqueza, denunciado pela anual subida do movimento
comercial” (48). Depois era a curiosidade, a satisfação em torno ao
Império desabrochado na América com todo o seu séquito de
progresso. Progressos nas artes, nas letras, na economia, nos costumes,
na vida. Era o Jardim Botânico, a Imprensa Régia, o Tribunal, o
Banco do Brasil, a Corte. A Corte em que se formariam as ambições
nobiliárquicas dos brasileiros que foram os titulares do Império. Tudo
concorria para dar à nação uma nova fisionomia, permitindo à
monarquia ganhar o tempo necessário para contornar o perigo
republicano. O tempo ganho pela Coroa fora precioso, sobretudo
pelo aparecimento, na Europa, por esse tempo, da monarquia
representativa (49). O novo ideal era o derivativo salvador. Entre a
República e o Absolutismo interpunha-se a Monarquia Representativa,
de que aqui na imprensa o defensor era o Correio Brasiliense, de
Hipólito José da Costa. Data dessa época a dissociação das duas idéias
que aqui sempre haviam vivido juntas: a independência e a república.
Aquela se sobrepôs e esta, que, mais tarde, ainda seria preterida pela
Federação. Mas, diante do adversário comum, que era o lusitano
reacionário, os republicanos tiveram de ceder por um instante,
colaborando na Independência, que era “uma transação entre o
elemento nacional mais avançado que preferiria substituir a velha
supremacia portuguesa por um regime republicano segundo o
adotado em outras colônias americanas, por esse tempo emancipadas”
(50). Era a conciliação, tão opostas são nestes instantes de vida
nacional as idéias políticas e suas direções (51).

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Nessa transação, a maioria maçônica fora vencida. Quando José
Bonifácio acusa Ledo de republicanismo, na presença de D. Pedro I,
o acusado sabe “que em torno a essa imagem, multiplicada nas duas
Américas livres, como em volta de um amor impossível, inconfessável,
suspiram quase todos os irmãos ultraliberais do Grande-Oriente”
(52). Também em Pernambuco e em Minas, “o sonho republicano
continuava na imaginação dos maçons pernambucanos”. Os bacharéis
ajacobinados de Minas não esqueciam os ideais da Inconfidência (53).
Na Bahia, do mesmo modo, os republicanos tinham que ceder
o passo à independência com Pedro I, que já agora era o Grão-Mestre
da maçonaria. Republicanos — federalistas “cujas idéias andavam na
cabeça de muita gente” (54) — e sobre os quais há o seguinte
depoimento de Madeira: “Três são os partidos que existem nesta
cidade [Bahia]: dos naturais de Portugal, o partido quase geral é
puramente constitucional, e a este alguns há dos naturais do país
que se unem, dois são os partidos que estes seguem, a saber: os mais
poderosos já em posses e já em empregos de representação, ligados
aos togados do Rio de Janeiro, querem um constituição em que,
como lords, figurem independente do governo de Portugal e por
isso trabalham para a separação” e “os que pelas suas posses e empregos
não ombreiam com aqueles, querem uma independência republicana
em que só figurem os naturais do país; têm-se chocado ambos estes
partidos até aqui, tendo sido o resultado favorável ao primeiro
constitucional: porém, agora, julgando-se ofendidos ambos os corpos
por ser notado o geral americano por fraco e rebelde, trabalham a
reunir-se e, se o conseguem, como é de esperar, é necessário grande
força para o rebater; e, por isso, quanto maior brevidade houver em
prestar novas providencias e virem mais forças, maior será o resultado
ao bem da nação e dos do partido constitucional, que aliás será
sacrificado” (55). Era a união de monarquistas e republicanos para o
objetivo comum de Independência. A transação não implicara na
capitulação. Aliando-se para a Independência com os monarquistas,

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os republicanos, realizava esta, voltaram à carga. O próprio grande
Oriente cindiu-se. De um lado, os republicanos, os avançados,
Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira, Soares Lisboa e Januário
Barbosa. Do outro, os conservadores, J. J. da Rocha, os Andradas,
Carneiro Leão e Azevedo Coutinho. A trégua estava finda.
Não custaram os republicanos em se refazerem da decepção
sofrida com a aclamação de Pedro I. Não conseguiram, porém, reunir
forças suficientes para um movimento vitorioso. O maior deles, a
Confederação do Equador, fracassou. A República era a vítima dos
seus aliados. A doutrina que lhe corria parelha — a evangelização
democrática –– e o sentimento em que se apoiara — o nativismo ––
voltavam-se agora contra dois novos perigos: o absolutismo e o
lusitanismo. Enquanto vivesse um ou outro não estaria completa a
Independência, cuja torrente filosófica voltou a correr (56).
Nesse ambiente, foi impossível manter a mística republicana,
substituída pelas da democracia e do nativismo. Estes dois elementos
impediam que, no choque entre conservadores e avançados, a
República fosse para estes a “idéia central”, na qual seria impossível
tocar sem perder a própria razão de ser. Ficou como uma idéia à
margem, que se poderia, na hora da tormenta, lançar ao mar para
salvar o precípuo. Era o acessório e não o principal.
A nação preocupava-se mais em manter a independência com as
conseqüências em que depositara as suas esperanças do que em fazer a
república. “A necessidade de manter a unidade política do país toma o
primeiro lugar...” (57). Tanto assim que, em 1825, a Bahia se agitava
com a chegada de gazetas inglesas e francesas, em que se anunciava um
acordo entre Portugal e o Brasil, ameaça de uma Confederação do Reino
e do Império (58). E, em 1827, o boato de que o Visconde de Pirajá
iria proclamar o “Imperador absoluto”, novamente perturbava a vida
da velha capital da Colônia (59). Ambos os fatos tocavam na corda
sensível do país. O ideal republicano, por falta de organização dos seus
prosélitos, havia esmaecido, passando a um estado de vida latente.

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A própria crise financeira que abalava a nação era levada a débito
dos homens e não do regime monárquico que uma corrente queria
federativo. A crise, aliás, era tremenda, agravando-a a guerra do sul.
“As necessidades criadas por estas lutas impunham maiores exigências
de recursos para atendê-las. Novas emissões de papel moeda, agravadas
pelo aumento da circulação abusiva e fraudulenta do cobre, mais
concorreram para a depreciação do meio circulante, determinando,
pelas conseqüentes perturbações na vida econômica nacional, um
mal-estar e descontentamento geral”. (60) Era o déficit (61), a emissão
sem lastro, a liquidação do Banco do Brasil. O câmbio, cuja paridade
era 67¹/², baixara a 20¹/² (62). “O ouro e a prata haviam desaparecido
quase totalmente da circulação, e o país se achava inundado de papel
bancário e de moedas de cobre desbaseadas”. (63) A própria tropa
queria receber em metal “uma vez que o papel-moeda estava sofrendo
o rebate de 25%, de que provinham grandes dificuldades para a vida
dos militares” (64).
Em circunstâncias tão propícias, não teria sido difícil à idéia
republicana, se estivessem organizados os que a pregavam, tornar-se
a esperança do momento. Faltava-lhe, porém, a unidade de direção
que só a maçonaria lhe poderia dar. Parte do sentimento nacional
dividira-se entre vários grupos e facções, prenúncio do nosso
personalismo político, cuja característica é orientar os movimentos
“contra alguém” e não a “favor duma idéia”. As baterias assentaram-
se contra Pedro I. Principalmente, porém, contra o homem e não
contra o monarca. Combatia-se o Soberano caprichoso, voluntarioso,
a cuja culpa lançavam os males do país (65). E enquanto não era
possível implantar a República, que a distância da Revolução Francesa
fizera esquecida de muitos, pregava-se a federação, o sistema americano
(66). O sistema americano com a monarquia, pois monarquistas e
republicanos encontravam-se novamente – em torno à Federação –
como já se haviam encontrado em torno à Independência.

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O próprio exemplo francês sofrera um regresso com a revolução
de julho de 1830 (67). E, além disso, a influência dos Andradas
(68) concorrera para o 7 de Abril sem a República.
Por isso, se Rio Branco viu os federalistas de 31 a 37 “quase
todos republicanos” (69), Oliveira Lima pode dizer que “os
republicanos uniram-se quase todos aos avançados, que foram mais
tarde os liberais, certo número permanecendo fiel ao federalismo
(70). Em Minas, a agitação de 1830 era federalista (71).
Enfraquecida a idéia republicana, caminhávamos a passos largos
para a Federação, que “era a profunda convicção dos nossos
revolucionários de 1831” (72), e da qual Pimenta Bueno dizia não
ter encontrado “nesse tempo idéias claras e fixas” (73). Os
nacionalistas, os Exaltados, os liberais, os maçônicos, os autonomistas
iriam até as armas, não para realizar a República, mas, “para estabelecer
uma situação quase republicana” (74).
Se a Federação se apresentava como solução inevitável, a
República não conseguira empolgar a opinião. A Federação iludira-
a, como já a havia evitado a Independência.

NOTAS
(45) Tobias Monteiro. História do império, p. 849.
(46) Idem.
(47) Gustavo Barroso. História secreta do Brasil, p. 238.
(48) Oliveira Lima. D. João VI no Brasil, v 1, p. 147.
(49) Varnhagen. História geral do Brasil. 3. ed. v. 5, p. 292.
(50) Oliveira Lima. O movimento da independência, p. 7.
(51) Afrânio Peixoto. Ramo de louro, p. 19.
(52) Celso Vieira. Evolução do pensamento republicano no Brasil. In: À margem da
história da república, p. 43.
(53) Gustavo Barroso op. cit., p. 248.
(54) Ignácio Accioli op. cit., v. 4, p. 159.
(55) Ofício de 7-3-1822. In: Oliveira Lima. O movimento da independência, p. 223.
(56) Pedro Calmon. História da civilização brasileira, p. 193.

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(57) Oliveira Vianna. Evolução do povo brasileiro p. 251.
(58) Ignácio Accioli op. cit. v. 4, p. 324.
(59) Ignácio Accioli op. cit. v. 4, p. 327.
(60) Silvio Ferreira Rangel. Evolução econômica do Brasil. Primeiro Congresso de
História Nacional, v. 4, p. 716.
(61) Oliveira Lima. O império brasileiro, p. 185.
(62) Góes Calmon. op. cit., p. 49.
(63) Amaro Cavalcanti. O meio circulante nacional, v. 1, p. 322.
(64) Góes Calmon. op. cit., p. 48.
(65) Sílvio R. Ferreira. op. cit. p. 716
(66) Visconde do Uruguai. A administração das províncias no Brasil, p. xi
(67) Pedro Calmon op. cit. p. 196.
(68) Cândido Teixeira. A república brasileira, p. xx.
(69) Rio Branco. Le Brésil en 1889, p. 169.
(70) Carlos Augusto de Campos. O exército e o restabelecimento da Ordem, durante
a menoridade. Primeiro Congresso Nacional de História Nacional, v. 5, p. 117.
(71) Oliveira Lima. O império brasileiro, p. 42.
(72) Tavares Bastos. A província, p. 15.
(73) Visconde do Uruguai op. cit. p. 12.
(74) Pedro Calmon op. cit. p. 195.

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Capítulo V

AGITAÇÃO FEDERALISTA

O s dois Braganças — tão diferentes um do outro — teriam o mesmo


destino, em face dos liberais brasileiros. D. João, pela paciência, pela
omissão, impedira a República. D. Pedro, pela sofreguidão, pela ação,
retardara a Federação.
Um gesto imprevisto — a Abdicação — colocara o país atônito,
diante de um problema novo: a Regência.
O pensamento brasileiro desarticulou-se. A sua primeira reação
foi confusa. Nada, fora do Governo, era nacional. Tudo era estreito,
regional, local.
As idéias confundiram-se e desapareciam. Explodiam as paixões.
Poucos sabiam o que queriam. Os homens misturavam-se. Uns eram
federalistas, outros republicanos, alguns separatistas.
O Governo era monárquico. A lavoura rica era conservadora
(75). As soluções estavam nos motins, nas quarteladas, na desordem.
Se o país se agitava de norte a sul, essa convulsão não tinha
unidade. Eram movimentos desencontrados, desconexos, isolados.

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Não tinham uma direção nacional. Cada Província fazia sua rebelião
por conta própria, embora sob influência dos exemplos das tropelias
que lavraram em todo o território do Império.
No Pará, se a primeira rebelião, de agosto de 1831, se dirige
contra os portugueses (acusados de esperarem a vinda de D. Miguel
para a restauração) e tinha feição republicana (76), a que se segue,
em 35, aclama um Presidente, “enquanto Pedro II fosse menor” (77).
No Maranhão, também é nativista o movimento de 14 de maio
de 31, exigindo a expulsão dos militares portugueses.
Por todo o país, dominava a desordem. Em Recife, era a
Setembrizada, entregando a cidade ao saque e à anarquia (1831)
(78) e a Abrilada (1832), seguindo-se, na Província, a luta dos
Cabanos (1832). Também no Ceará, no Espírito Santo, Mato-
Grosso, Rio Grande, Sergipe e Alagoas, a Abdicação teve a sua
repercussão sangrenta. A turbulência das Províncias, porém, não era
mais do que o reflexo de quanto ocorria na Corte, onde as tropas se
insubordinavam e os políticos se dividiam num debate inflamado.
No Rio, em 31, as tropas se amotinaram a 12 de julho e a 7 de
outubro, na Ilha das Cobras; em 32, a 7 e a 16 de abril. Eram
conseqüências da atitude tomada pela tropa na Abdicação, “quando
para ganhá-la tinham muitos Oficiais afrouxado a disciplina,
lisonjeado todas as baixas pretensões dessa classe, a mais ínfima da
Sociedade” (79). Até Oficiais haviam sido expulsos por exigência
dos soldados (80).
No campo político, a dissensão abria-se entre Exaltados e
Moderados.
Estes queriam a evolução, aqueles a revolução. “A irritação dos
Exaltados, dirá Nabuco, trará a agitação federalista extrema, o perigo
separatista, que durante a Regência ameaça o país do norte ao sul, a
anarquização das Províncias” (81).
A estes ainda se juntou o Partido Restaurador, desaparecido com
a morte de D. Pedro, em 34. Eram os Caramurús.

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Cada um tinha o seu club, a sua sociedade, onde conspirava. O
próprio governo conspirava (82).
Os Moderados encontravam-se na “Sociedade Defensores da
Liberdade e da Independência”, “que verdadeiramente governou o
Brasil pelo espaço de quatro anos”. Foi em realidade outro Estado
no Estado (83). Os Exaltados fundaram a Sociedade Federal, presidida
pelo monge Custódio Alves Serrão (84). E os Restauradores faziam
o seu ponto de convergência na Sociedade Militar, logo invadida e
fechada pela populaça.
Conspirava-se, mas não se chegava a um acordo Os planos, na
expressão de Feijó, “eram desconcertados por opiniões opostas das
facções que se disputavam a preferência dos fins” (85).
Os Exaltados ficavam entre republicanos-federalistas e
monarquistas-federalistas. Os Moderados situavam-se entre a federação
e a monarquia unitária. “Os dois partidos influentes, Moderados e
Exaltados (o Restaurador estava à margem) concordavam ambos em
adaptar as bases democráticas de um governo descentralizado;
discordavam somente na forma da instituição central, inclinando-se
muitos para a república” (86). Prevaleceu, porém, a monarquia. Era a
confusão.
Ao lado disso, a crise que muitos acreditavam fruto da revolução,
mas que em verdade, como dizia o Ministro da Fazenda, não fizera
mais do que pôr a descoberto os males que existiam (87). Em 33 o
meio circulante se tornou o tema predileto da Câmara (88), até que
o padrão do câmbio foi quebrado, de 67¹/² para 43 2/10 (89).
Na Câmara, desde 1831 que se iniciara a reforma da
Constituição, a idéia dominante pode-se dizer era a Federação, a
autonomia das Províncias. “Era a ardente aspiração nacional” (90).
E no projeto enviado ao Senado estava esse artigo: “O Governo do
Império do Brasil será uma monarquia federativa”. (Projeto de 14-
10-31) (91). O Senado rejeitou o projeto. No fato, viu-se o
reacionarismo dos velhos: os amigos de Pedro I. O ambiente eletrizou-

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se. Só havia uma solução: o golpe de Estado. Para realizá-lo, deram-
se as mãos a maioria da Câmara, os Ministros e os Regentes. Por um
paradoxo, Exaltados e restauradores uniram-se contra o golpe de
Estado. Aqueles por desconfiança ao novo cavalo de Tróia, estes para
arrasarem o 7 de Abril (92). Imprimiu-se até a futura Constituição,
em Pouso Alegre. E quando tudo estava pronto, Honório Hermeto
lembrou a conciliação, que prevaleceu (93). Feijó demitiu-se. A
Constituição continuava...
Vieram as eleições de 33. Era uma nova oportunidade ao
federalismo, que “resume o mais largo trecho de nossa história
política” (94). A maioria foi dos liberais e preparou-se o Ato
Adicional. Os próprios adversários da Federação se haviam
convertido. Evaristo da Veiga, um destes, escrevia na Aurora: “Por
toda parte se deseja a federação e a reforma, todos a querem e seria
uma imprudência não ceder” (95). Ante a perspectiva de novas
desordens, os Moderados aceitaram os princípios dos Exaltados.
E o Senado, pela sua comissão, apoiava a Federação
“principalmente para satisfazer as necessidades locais na grande
extensão do Império” (96).
As Províncias exultaram, organizaram-se nos novos moldes.
Vieram as Assembléias Provinciais, onde se amestravam os futuros
estadistas.
A paz, porém, era de Varsóvia. O Ato Adicional não dera os
resultados almejados. E, “em plena vigência do Ato Adicional os
ministros suspendiam resoluções provinciais por simples portarias”
(97). A Federação que todos queriam apresentava graves problemas
nas delimitações dos dois campos: o federal e o provincial (98). A
assembléia, firmada no art. 25 do Ato Adicional, iria interpretá-lo...
As revoluções, no entanto, não haviam deixado de atormentar o
Brasil. A agitação e a crise continuavam. Era o desencanto. Na
Federação esperara o país a revelação e não encontrara mais do que

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um novo motivo de lutas. Feijó pressentiu a situação e lançou o seu
manifesto: “Reuniu-se a assembléia; dela tinha o Brasil direito a tudo
esperar, mas se falarmos com franqueza, confessaremos que em nada
desempenhou a expectação pública” (99). (7-11-1834). O político
sentia aproximar-se “a sua hora”. A hora em que ao Ato Adicional
oporia a sua orientação centralizadora (100). Não se enganava. Em
abril, Feijó assumia a Regência Una. Eleito por uma maioria relativa,
iria governar sem a Câmara e contra a Câmara.
No mesmo ano, rompeu a revolução do Rio Grande do Sul,
que sobreviveria à Regência. Acusaram Feijó até de dar incremento
aos Farrapos (101). E a luta entre ele e o Parlamento fez-se cada vez
mais áspera. Esses dois pequenos trechos darão uma idéia do que foi
o duelo entre o Regente e a Câmara. Dizia o governo ao abrir a
sessão de 37: “Remédios fracos e tardios de pouco valem ou nada
aproveitam na presença de males graves e inveterados”. Redigiu-se
então a resposta: “A Câmara dos Deputados faltará aos seus mais
sagrados deveres, se a prestar [cooperação] a uma administração que
não goza da confiança nacional” (102). Não pareciam dois órgãos
de uma mesma administração. Eram dois adversários que se
golpeavam.
A nação estava fatigada. Cansada de lutas, exaurida de forças. E
mais do que cansada, sentia-se apreensiva, quase desiludida. E, quando
tudo falhara, talvez ainda acreditasse na República pela qual se lutava
no extremo sul. Principalmente os novos intelectuais. Como notou
Oliveira Lima, “todas as gerações do império tiveram o ideal
republicano e federalista, embora o abandonassem depois por
conveniência ou convicção” (103). Com muito espírito, chamou-se
a isto o “sarampo republicano” (104).
A luta entre Feijó e o Parlamento não admitia conciliação:
terminou pela renúncia inesperada do Regente.

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NOTAS
(75) Pedro Calmon op. cit. p. 197.
(76) Pedro Calmon op. cit. p. 201.
(77) Carlos Augusto de Campos op. cit. p. 123.
(78) Joaquim Nabuco. Um estadista do império. Rio de Janeiro, 1936. v. 1, p. 15.
(79) Abreu Lima. História do Brasil. v. 2, p. 81.
(80) Idem.
(81) Joaquim Nabuco op. cit.
(82) Abreu e Lima op. cit. v. 2, p. 96.
(83) Abreu e Lima op. cit. v. 2, p. 88
(84) Oliveira Lima. O império brasileiro, p. 25.
(85) Apud Braz do Amaral. História da Bahia: do Império à República, p. 114.
(86) Tavares Bastos op.cit. p. 80.
(87) Ramalho Ortigão. A. de B. A circulação. Primeiro Congresso de História Nacional,
v. 4, p. 486.
(88) Pedro Calmon. O Marquês de Abrantes, p. 179.
(89) Em 1846, a lei Holanda Cavalcante, de 11 de setembro, fixou a paridade em 27 p.
(90) Alfredo Varela. Direito constitucional brasileiro, p. 18.
(91) Tavares Bastos. op. cit. p. 15.
(92) Alfredo Valadão. A Constituição de Pouso Alegre, v.3, p. 97. Primeiro Congresso
de História Nacional.
(93) Pedro Calmon. O Marquês de Abrantes, p. 168.
(94) Levi Carneiro. O federalismo; suas explosões; a Confederação do Equador.
Primeiro Congresso de História Nacional, v. 3, p.197.
(95) Aurelino Leal. O ato adicional. Primeiro Congresso de História Nacional, v. 3, p.
140.
(96) Aurelino Leal op. cit. p. 109.
(97) Levi Carneiro op. cit. p. 249.
(98) Aurelino Leal op. cit. p. 125.
(99) Eugênio Egas. Diogo Feijó, v. 2, p. 188. Também assinava o manifesto Miguel
Arcanjo Ribeiro.
(100) Vicente Licínio Cardoso. À margem da história do Brasil, p. 109.
(101) Aurelino Leal op. cit. p. 103.
(102) Martim Francisco. Contribuindo, p. 150.
(103) Oliveira Lima. O império brasileiro, p. 236.
(104) Idem.

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Capítulo VI

A REGÊNCIA E O AMBIENTE BAIANO

S e no país o ambiente encontrado pela Regência não era bom, na


Bahia era ainda pior. Havia mais de dez anos que na Província não se
sabia o que era a paz. Depois das lutas da Independência, tão
sangrentas – o que havia tornado mais vivo o sentimento de ódio ao
português – a população por várias vezes tremera ante as insurreições
de negros (105). Somente em um ano, 1828, houve três. Depois,
em 1830, o Presidente da Província, Visconde de Camamu, fora
assassinado em circunstâncias misteriosas. Tudo conspirava contra a
tranqüilidade.
Esse estado de inquietação permanente irritara os nervos da
Província, produzindo-lhe uma sensibilidade exagerada. Ficava atenta
aos menores rumores. A um simples boato reagia com um motim.
Ainda antes de conhecer a Abdicação, por duas vezes, num intervalo
de sete dias, se levantaram as tropas. A 4 e a 13 de abril de 1831. Eram
movimentos de nacionais Exaltados e, de permeio com eles, alguns
republicanos federalistas. Cipriano Barata estava entre os revoltosos

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(106). Não se circunscreviam, porém, à capital. Irradiavam pelo
Recôncavo, em Cachoeira, Santo Amaro e Maragogipe. Depois iriam
até mais longe, ao sertão: na Barra, a Câmara negou posse ao Ouvidor
Antonio da Silva Freire, por ser português; em Minas do Rio de Contas,
pelo mesmo motivo era preso o Juiz de Fora, Francisco Martins de Faria
(107). E também à Feira e Caetité chegou a desordem (108).
Foi festiva a nova da Abdicação. “Os adeptos das idéias liberais
e republicanas exultavam e compreendiam todos que estas idéias iam
triunfar” (109).
A 12 de maio a soldadesca novamente se levantou. O Batalhão
Piauí pedia a deportação de portugueses. O Governo, fraco, atendeu
ao pedido. Queria a este preço comprar a tranqüilidade. Teve-a por
um instante. A paz momentânea, não valeu o mau exemplo: em
agosto a artilharia dos quartéis de S. Pedro e dos Aflitos insubordinava-
se, exigindo melhorias de tratamento.
Sem importância política, isentas de qualquer ideologia, essas
desordens valem, porém, como testemunho do espírito de indisciplina.
Traduzem o mal-estar, a inquietação, a falta de autoridade do Governo.
A rebelião não tardaria, porém, em se definir federalista. A 28 de
outubro a cidade amanheceu em pé-de-guerra. Um batalhão se
amotinara e ainda esperava adesões. Atacados, os rebeldes receberam
as forças fiéis com vivas à Federação: a ideologia da época entrava
nos quartéis.
Batida na capital, a idéia refugiou-se no interior, para irromper
no arraial de S. Félix, a 16 de fevereiro do ano seguinte [1832]. Já
não era um motim: era uma revolução. Os seus autores, homens
simples do interior, já sabiam o que queriam. Deles o único que se
poderia distinguir pela cultura era o secretario de Guanais, Aprígio
José de Souza, advogado e mais tarde deputado geral (110). Era que
as idéias de Federação, de tão discutidas em suas linhas gerais, já não
eram segredo para muita gente. Tornaram-se vulgares, correntes entre
a população que sabia ler.

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Difícil dizer da extensão do movimento, embora o seu chefe,
Bernardo Miguel Guanais Mineiro, escrevesse que “a Vila de Cachoeira
e diversas outras do sertão se acham perfeitamente conformes com os
nossos princípios” (111). Em Cachoeira, a 20 de fevereiro, onde dez
anos atrás se proclamara a “Independência da Bahia (112)... Não era
uma aclamação vaga, feita precipitadamente, sem programa, e na qual a
Federação aparecesse como novidade para atrair espíritos inquietos.
Precedera-a um programa. E se este não revelava nada de extraordinário,
mostrava o espírito paciente, ponderado, atilado, que o escreveu. Nenhum
excesso, salvo os ditados pela fobia ao elemento luso. Nele se inscreviam
a liberdade de imprensa, a reforma do Poder Judiciário, a reforma da
Administração e a fortificação da Província. Na própria exaltação contra
o português, abriam-se exceções que honram os revolucionários. Duas
condições se exigiam para que o filho de Portugal entrasse na Província:
“trazer estabelecimento de importância ou ser sábio” (113).
Cogitava-se também de uma Assembléia, com 21 membros,
“para marcar todos os limites da Independência da Província e suas
relações com o chefe principal da Federação” (114). Seria federação
realizada da periferia para o centro. Mais tarde a faríamos do centro
para a periferia. Exemplo de prudência é a linha mestra da Federação
no programa revolucionário: “Fica proclamado na Província da Bahia
o governo federativo para que esta Província nos seus negócios
internos e peculiares se governe independente de outra qualquer,
fazendo, porém, aliança com todas as outras, bem como obedecendo
ao chefe principal da Federação dos Negócios Gerais da Nação” (115).
Instalou-se, então, um governo regular, em que figuravam
Miguel Guanais, o Desembargador Ribeiro Magalhães, o Capitão.
Bacellar e Castro, o Capitão. Manoel Ferraz da Mota Pedreira e Augusto
Ricardo Ferreira da Câmara. Era o efêmero governo da Federação de
Guanais (116).
Por trás dos acontecimentos políticos estava, porém, a situação
de depressão econômica da Província. A idéia federalista era uma

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reação semiconsciente contra a centralização avassaladora e que
canalizava para a Corte uma grande parte da riqueza (117), enquanto
a principal indústria da Província, o açúcar, era batido em cheio pela
crise. Três elementos novos conspiravam contra a indústria açucareira:
a descoberta da beterraba, a repressão ao tráfico e o fenômeno do
café, a planta democrática, na expressão de Buarque de Holanda
(118), e que atraía para o sul, a preço alto, o braço escravo, com
prejuízo das culturas locais do norte (119). Em 1834, era de tal
monta a escassez de gêneros de primeira necessidade, que as Câmaras
Municipais do interior, os requisitaram ao Presidente de Província
(120). O trabalho emigrava para o sul.
Figurando com 152 mil sacas, em 1822, elevar-se-ia a nossa
produção de café para 1.252.882, em 1841.
O Governo não desconhecia a origem do mal. E o Visconde de
Pirajá, escolhido para chefiar a repressão à revolta, dizia no seu
manifesto: “um partido desmoralizado, que guiado pelo frenesi, talvez
por ver diminuídas as nossas rendas, e o giro circulante, que tanto
distinguira a nossa praça comercial, a quer precipitar em novos
abismos” (121). Era a confissão da decadência. Para combatê-la uns
queriam a revolução, a Federação; outros, a paz, a tranqüilidade.
Nesse ponto; não se ajustariam Exaltados e Moderados, que lutariam
durante a Regência.
Em cinco dias, foi extinta a Federação de Guanais. Os cabeças
foram presos. Mas o crime não deve ter chocado o ambiente. Na
atmosfera carregada do momento, devia ter sido um desses fatos pelos
quais se espera cada dia; e do qual mais admira a demora do que a
audácia.
A repressão não diminuiria o mal-estar econômico e financeiro
que, pelo contraste, ainda mais se acentuava na Bahia. Em 1806,
ainda saíam da Bahia 24% da exportação brasileira (122). O fumo
que, em 1826, se elevava a 561.000 arrobas, caíra, em 1833, a ...
148.000 (123). Era a situação que, em 1838, Calmon, Ministro da

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Fazenda, resumia dizendo que “a nação inteira amestrada pela
experiência de 12 anos requer instantaneamente a adoção de uma
medida eficaz, que faça cessar a perniciosa flutuação dos valores, a
desconfiança dos sinais que os representam, e a perda incalculável
que o Estado e os particulares sofrem diariamente nas suas fortunas”
(124).
Num habitat como este, as idéias não se fixavam: agitavam-se.
Era a angústia, a procura de uma fórmula nova, capaz de minorar o
descontentamento, atenuar a inquietação, restabelecer o equilíbrio
perdido.
A imprensa era disso um reflexo palpitante, vivo, real. De 1831
a 1837, sessenta periódicos se editaram na Bahia (125). Jornais em
todos os formatos, com todas as cores, com todas as paixões. Poucos
tinham uma existência longa. A maioria finava-se depois de poucos
números. Outros mudavam de nome. E os editores cercavam o
público, fazendo imprimir até quatro periódicos com títulos
diferentes.
Os clubes políticos, as sociedades, como se chamaram, também
tinham os seus órgãos (126). Neles defendiam as suas idéias,
pregavam, agitavam, caluniavam. A linguagem era virulenta, desabrida.
A Sociedade Federal editava o Precursor Federal, redigido por Luiz
Gonzaga Pau Brasil. O Conservador Social era o órgão da Sociedade
Conservadora. A Sociedade Militar, monarquista, tinha O Militar.
Os restauradores pregavam animados por Antonio Carlos na sua
passagem pela Bahia, pelo Jornal do Commercio. À corrente
federalista, talvez por mais numerosa, filiavam-se ainda O Pirilampo,
O Federal pela Constituição e O Guia Federal. Cipriano Barata,
revolucionário, dirigia a Nova Sentinela da Liberdade (1831) e a
Sentinela da Liberdade (1834). Nesse entrechoque de idéias, estava
presente O Separatista, cujas diretrizes se definiam no nome.
As ideologias diversas extremavam os agrupamentos políticos,
exaltando-os. À resistência legal opunha a revolução.

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Pouco mais de um ano decorrido após a Federação de Guanais.
Nesse ínterim a cidade se convulsionara com a “cemiterada”. E a 26
de abril de 1833, os réus da rebelião de São Félix, ainda presos no
Forte do Mar, aí levantaram novamente a bandeira da revolução.
Chefiavam-na Bernardo Miguel Guanais Mineiro, Alexandre Ferreira
do Carmo Sucupira e Daniel Gomes de Freitas, auxiliados por
Joaquim Giraldes, José de Vasconcellos, o Cônego Firmino e um
corcunda de nome Panteleão. Prenderam o comandante do Forte,
Francisco Telles Carvalhal Menezes Vasconcellos e, após dominarem
a parte da guarnição que não aderira ao movimento, fizeram hastear
com três vivas à Federação o pavilhão azul e branco dos
revolucionários, que lembrava a bandeira dos inconfidentes de 1798
(127). E oficiaram ao Presidente Joaquim Pinheiro de Vasconcellos:
“A guarnição da Fortaleza do Mar que tem proclamado a Federação
cujos artigos vão ser apresentados em Conselho, protesta a V. Excia.
perante a Nação e o Imperador, o Senhor D. Pedro Segundo, por
toda e qualquer hostilidade que mais suceda” (128) Era o
reconhecimento do Imperador. Esse é um dos poucos traços que
distinguem a revolta de 32 da de 33. Naquela não se nomeia o chefe
da Nação. Nesta é explícito: “obedecendo ao chefe da Nação, o Sr.
D. Pedro II”... (129).
Seguiu-se o bombardeio da cidade pelo velho forte. Até 1829,
esteve a capital sob o fogo dos canhões rebeldes, que atingiram a Sé
e algumas casas particulares (130), causando danos de pouca monta.
Sem auxílios, isolados na fortaleza, a resistência tornou-se impossível.
E nesse dia, levantaram a bandeira branca, rendendo-se. Mais uma
vez, falhara a Federação.
O crime não parece ter indignado a população: menos de um
ano depois (14-2-1834), Guanais era absolvido pelo júri.
A propaganda da idéia federal continuou franca. Se não lhe fora
até então favorável a sorte das armas, era crescente o número dos
seus adeptos. Estes não se batiam. Ainda em 1833, comemorando o

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7 de Setembro, a Sociedade Federal na Bahia publicava a Tradução
das Lições de Política Respectiva ao Sistema Federativo Segundo Rivero
(131).
Premida pelas rebeliões constantes, a Regência, para contornar
o espírito federalista do país, tivera que recorrer ao Ato Adicional. A
medida, embora anódina, aplacara a agitação. As revoluções davam
moratória à Regência. O Ato Adicional fizera “concessões moderadas
aos Exaltados, trabalho político que adiou de meio século o advento
da república” (132). E, dentro da nova organização política, instalava-
se na Bahia, em 1830, a Assembléia Provincial. A nova peça não se
ajustava no mecanismo nacional, que se reformara parcialmente, sem
prever conseqüências e sem submetê-lo à revisão necessária à
transformação que se desejava.
Que poderia fazer uma Assembléia que não contava com o poder
de uma receita? Por isso, a Assembléia da Bahia logo propôs à
assembléia geral uma reforma tributária, discriminando as rendas do
Império e as da Província. E, ferindo de frente a questão, apontando
o logro que seria o Ato Adicional sem a revisão tributária, inquinava
o sistema em vigor de ter “inconvenientes mais que bastantes para
frustrar todo o bem real que a Reforma prometera à administração
interina das Províncias” (133). Eram os primeiros ataques ao Ato
Adicional. A Federação ganhava terreno nas próprias fileiras do
governo.

NOTAS
(105) Depois da revolta de Ussás, em 1807, houve na Bahia várias insurreições de
negros. Assim, em 25 de agosto e 10 de dezembro de 1826, em 11 de março
de1827 e, por três vezes, em 1828. Em 1835, deu-se o maior levante por motivos
religiosos, conhecido sob o nome de Malês, em que lutaram 1.500 negros. Sobre
o assunto ver Nina Rodrigues. Etienne Brasil. A Revolução dos Malês, Revista
Instituto Histórico da Bahia, v. 33, p. 128; Edson Carneiro. Religiões negras.
(106) Cipriano Barata participou ainda da revolta da Ilha das Cobras, em 7-10-1831.
(107) Braz Amaral op. cit. p. 80.

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(108) Braz Amaral op. cit. p. 75.
(109) Góes Calmon op. cit. p. 51.
(110) Austricliano de Carvalho. Brasil colônia e Brasil império, v. 2, p. 272. Aprígio de
Souza sempre negou a sua participação na revolta.
(111) Bernardo Miguel Guanaes Mineiro apud Ignácio Accioli op. cit. v. 4, p. 353.
(112) Ata da sessão extraordinária da Câmara da Vila de Cachoeira, em 20-2-1832.
(113) Ignácio Accioli op. cit. v. 4, p. 356.
(114) Item 12 do Programa dos rebeldes.
(115) Item 9 do Programa dos rebeldes.
(116) Aristides Milton. Efemérides cachoeiranas, p. 60.
(117) Azevedo Amaral op. cit. p. 216.
(118) Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil, p. 138.
(119) Sílvio R. Ferreira op. cit. p. 717.
(120) Góes Calmon op. cit. p. 54.
(121) Ignácio Accioli op. cit. v.4, p. 350.
(122) Theophilo Falcão. Atividade comercial da Bahia, p. 3.
(123) Theophilo Falcão op. cit. p. 7.
(124) Amado Cavalcante op. cit. v. 2, p. 33.
(125) Alfredo Carvalho. A imprensa bahiana 1811-1889. Revista do Instituto Histórico
da Bahia, v. 21, p. 409.
(126) Cons. João Torres; Alfredo Carvalho. Anais da imprensa da Bahia, p. 40.
(127) Autos da revolução de 1833. Arquivo Público da Bahia.
(128) Ignácio Accioli op. cit. v. 4, p. 368.
(129) Braz do Amaral, op. cit. p. 107. Item 3 do Programa dos rebeldes.
(130) Autos da revolução de 1833. Arquivo Público da Bahia.
(131) O Instituto Histórico da Bahia possui um exemplar.
(132) Theodoro Sampaio. O visconde de Monteserrate, p. 27.
(133) Braz do Amaral op.cit.p. 128.

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Capítulo VII

A CONSPIRAÇÃO

E m 1837, a Regência de Feijó poderia considerar-se isolada no


país. Sem forças para reprimir as revoluções do Rio Grande do Sul e
do Pará, perdera a confiança dos que clamavam pela paz a qualquer
preço. Reprimindo-as com as forças do que ainda dispunha, era
combatida pelos simpatizantes dos movimentos rebeldes. Em resumo:
as duas grandes correntes de opinião lhe eram contrárias.
No Parlamento, não lhe era mais favorável o ambiente. O
combate recrudescera. Tornara-se violento. Implacável. O fim de Feijó
estava próximo.
Enfraquecida no centro, a Regência não podia emprestar aos
seus delegados nas Províncias a autoridade de que necessitavam para
enfrentar a situação de desordem. E os agitadores, conscientes da
situação, aproveitaram a oportunidade.
Na Bahia, em setembro, a população se amotinava por causa do
cobre falso, o xem-xem, como se chamou numa expressão
onomatopaica. Apesar da fiscalização, o cobre continuava a aparecer.

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Vinha principalmente em navios americanos (134). A Bahia fora
mesmo o ponto preferido pelos falsificadores, (135) até que a Lei de
11 de outubro de 1837 mandou resgatar o cobre pela metade do
valor (136), remediando a calamidade.
Um acontecimento inesperado, porém iria dar novo rumo à corrente
revolucionária baiana que, derrotada em 32 e 33, recolhera-se à maçonaria
e à imprensa. Esse acontecimento foi a vinda, para a Bahia, de Bento
Gonçalves. O general gaúcho trazia consigo um dos nomes mais
celebrados no país. Para os revolucionários era quase um deus.
Preso em Fanfa, haviam-no removido para o Rio de Janeiro, donde
se evadiram alguns dos seus companheiros. Por segurança, ele iria para
Fernando de Noronha. Um desarranjo no navio que o transportava,
deteve-o, porém, na Bahia. O destino auxiliava os conspiradores. No
Forte do Mar, Bento Gonçalves não perdeu tempo: lembrou-se de sua
grande arma, a maçonaria. E a 30 de junho de 1837 era lida na Loja
Fidelidade e Beneficência uma “prancha” do irmão R:. C:. Bento
Gonçalves “preso no Forte do Mar por efeito de política, fazendo ver
o estado em que se achava, e pedia o único recurso de lhe serem
ministrados meios de ser mudado para uma prisão cômoda, onde fosse
lícito falar aos seus amigos” (137). Era o começo da meada... A
maçonaria atendeu-o, mandando “lhe oferecerem os socorros de que
precisasse e estivesse ao alcance da Loja” (138).
Daí por diante, não houve maiores obstáculos. Começaram as
confabulações. O intermediário era um padre, maçon, que, a pretexto
de dar ao preso o conforto da religião, acertava os planos de fuga. E a
11 de setembro, pedindo licença para banhar-se no mar, Bento
Gonçalves alcançou uma canoa posta próxima ao forte. Oito remos a
aceleram para o Recôncavo. Era a fuga. Abrigou-se em Manguinhos,
na ilha de Itaparica. E, poucos dias depois, tornava à capital. Aí se
desenvolveu a sua ação de revolucionário. Articular a rebelião do sul
com um movimento na Bahia era a sua ambição. Pôs-se em campo.
Argumentou. Animou. Convenceu. O terreno lhe era propício. Em

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julho, Sabino Vieira fundara o Novo Diário da Bahia (139), onde se
expandia o seu espírito irrequieto de revolucionário. Já em agosto,
Souza Paraíso avisava a Montezuma: “tem a dias aparecido boatos
desorganizadores, os quais, posto que diferentes, contudo parecem
estar de acordo quanto à separação da Província” (140). Não lhe deu,
porém, Souza Paraíso a importância devida, atribuindo-os antes ao
espírito de novidade da época, do que a um real e forte sentimento de
rebelião. E acrescentava: “para o que talvez lhes tenha dado matéria a
linguagem da Folha há pouco aparecido na mesma Capital, intitulada
Novo Diário da Bahia (141). A imprensa fazia sentir o seu poder.
Manejada por Sabino, fazia-o de maneira desabrida, violenta, sem meias
medidas. Defendendo a revolução, publicava artigo como títulos como
este: “Poder-se-á dispensar a revolução no Brasil”? (142) E concluía
pela negativa. Sabino agitava-se. Dos revolucionários baianos se
aproximou Bento Gonçalves, “mostrando a inconveniência de estar
aquela bela Província sujeita ao Governo Regente do Império e que
convinha que a Bahia fizesse o mesmo que tinha feito o Rio Grande.
Esta idéia agradou e se foi estendendo por todos que adotavam as
idéias liberais” (143). As imaginações inflamavam-se pensando em
Piratini. Vieram as adesões. João Carneiro Filho, filiado ao movimento,
em outubro lançava um novo jornal — A Luz Bahiana. A propaganda
fez-se dentro dos quartéis. Os revolucionários fundaram Club (144).
Combinaram. Mediram forças. Sondaram o terreno. “O momento era
propício ao esforço do romper definitivamente com o centro, e tirar a
Bahia da condição subalterna em que ficara desde 1763” (145).
Precipitava-se a revolução. A partida de Bento Gonçalves para Santa
Catarina, numa sumaca de charque, não a enfraqueceria.
É corrente a versão de que o movimento se articulara no Rio,
donde os adversários de Feijó mandavam as instruções. Braz do Amaral,
Henrique Praguer, Austricliano de Carvalho, Sacramento Black e
Teófilo Ottoni a veiculam (146). A conspiração, porém, é
lidimamente baiana. Nada indica a influência de elementos do centro.

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Nenhum documento, nenhum testemunho. Tudo se prende a vagas
insinuações dos inimigos de Miguel Calmon, que quiseram apontá-
lo como apóstata da revolução, que combateu e que teria auxiliado
antes de galgar o governo, com a renúncia de Feijó.
Fosse, porém, uma simples revolução de quadros e a Sabinada
teria perdido a sua razão de ser com a queda do Regente. Animavam-
na, porém, outras idéias — a República e a Separação. Por isso, a
mudança do Governo, ocorrida em setembro, não evitou que
irrompesse em novembro. A distância das datas parece afastar a
hipótese de que não tivesse havido tempo para recolher a semente
lançada pelos adversários de Feijó, principalmente porque pouco antes
do movimento Sabino Vieira havia chegado do Rio de Janeiro (147).
Além disso, não era do feitio de Sabino exculpar amigos para expiar,
sozinho, as culpas de uma rebelião. O seu temperamento não cabe
dentro dessa hipótese de figuras influentes do Rio a se moverem por
detrás da cortina e desaparecerem depois de mau êxito, acobertados
pelo silêncio dele. Se acaso elas existissem, Sabino as teria denunciado
no curso do processo. Basta conhecer-lhe o caráter para não admitir
que tomasse a si, na hora da derrota, a responsabilidade que poderia
compartilhar com outros. Desse aspecto da organização de Sabino,
há um documento que é bastante para apagar dúvidas. Preso, Sabino
fora transferido para o paiol da fragata Príncipe Imperial. Nem todos
os réus, porém, tinham tido o mesmo tratamento severo. Contra
isso se insurgiu Sabino. Não se conformava que os seus
correligionários de revolução não estivessem padecendo com ele as
mesmas penas, os mesmos tormentos. E, a 25 de maio de 1839,
dirige-se ao Imperador para mostrar a desigualdade do tratamento:
“Onde estão tantos presos de justiça nesta capital? Onde João Carneiro
da Silva Rego, Sergio José Velloso, Inocêncio Eustáquio Ferreira de
Araújo? São os Suplicantes menos inculpados que aqueles co-réus?
Não, Senhor, mas não são favorecidos”! (148). Será admissível que
quem assim se insurgia contra uma simples desigualdade de

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tratamento, escondesse, com o segredo, cúmplices graduados e que
já deveriam estar no Poder com a queda de Feijó? Bastaria uma palavra
dele no curso do processo e teria arrastado para este, se existissem,
cúmplices influentes, políticos eminentes. Tal companhia poderia
mesmo mudar o curso da justiça, que o tanto fazia sofrer. Por que,
então, esse silêncio de Sabino? Só há uma hipótese verossímil: os
cúmplices da Corte não existiam.
O fato é que, em torno à conspiração, agrupavam-se velhos
revolucionários, derrotados em 32 e 33. Daniel Gomes de Freitas,
Sérgio José Velloso, José Joaquim Leite, Alexandre Sucupira, o Cel.
Bahiense, e outros ali estavam presentes. Não eram, porém, apenas
antigos revolucionários. Muitos deles eram homens experimentados
nos campos de batalha, veteranos das guerras da independência e do
sul. Daniel Gomes de Freitas estivera nas lutas do sul. José Joaquim
Leite, preso do Estado por Madeira, rebelde dos Periquitos, fora
reformado em 1830 (149). José Nunes Bahiense ostentava no peito a
Medalha da Guerra de Independência (150), participara da guerra do
sul (151) e fora um dos rebeldes do Forte do Mar, em 1833. Ignácio
Joaquim Pitombo já estivera “implicado em outro crime de motim”
(152). Inocêncio Eustáquio Ferreira de Araújo dera prova de “um
zelo infatigável, duma vontade fortemente pronunciada” (153).
Francisco Xavier Bigode vinha da guerra da Independência (154). As
derrotas anteriores haviam-nos desiludido da Federação com a
Monarquia. E agora, animados pela palavra de Bento Gonçalves,
queriam a República. Iriam juntar-se ao Rio Grande do Sul. A 27 de
outubro, apareceram pela cidade boletins revolucionários, incitando a
tropa e o povo a fazerem a revolução (155). Era o preparo do terreno.
Na trama revolucionaria, Sabino Vieira era o mais ardoroso, o
mais notável. Algumas das reuniões realizavam-se em sua casa, às
Portas do Carmo. Aí se encontravam os republicanos. Era uma casa
modesta e ampla. Sabino quase não a habita (156). Tem nela apenas
o seu ponto de leitura, pois a sua vida, a sua dormida costumeira é

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na casa de uma concubina. Á entrada, abre-se uma sala espaçosa em
cujos cantos estão quatro caixas de jacarandá. No centro, sobre um
tapete, a mesa redonda coberta por um pano azul bordado de preto,
onde descansam duas jarras e um grande castiçal. No fundo, um sofá
com dezoito cadeiras de jacarandá. Segue-se o corredor, que leva à
sala de jantar, cuja mobília é apenas um canapé e doze cadeiras em
torno à mesa. Daí parte a escada que leva ao sótão. Aí, no silêncio da
noite, recebe ele os rebeldes, que confabulam sobre os novos adeptos,
os planos, os avanços e as perdas do regime que querem implantar.
No sótão, não há assento para mais de seis pessoas e nesse pequeno
círculo Sabino Vieira pontifica (157). A sua fisionomia tem uma
expressão enérgica, que duas cicatrizes, uma transversal na testa alta e
larga, outro no queixo, tornam ainda mais forte. A barba é fechada
com pequenas suíças. Os lábios são finos e os olhos azuis, muitos
vivos, contrastando com os cabelos castanhos crespos e o nariz largo,
que traem a ascendência negra (158).
Outras vezes, os encontros se verificavam na casa do ourives
Manoel Gomes, à Piedade. A um deles compareceu Luiz Antonio
Barbosa de Almeida, que disse ter encontrado “diversas pessoas das
primeiras classes sociais” (159). A revolução se preparava com gente
de importância (160). A família Barbosa de Oliveira, de que descende
Rui Barbosa, distribuira-se pelos dois campos antagônicos, uns
tomando o partido dos rebeldes e outros, o do governo. Com João
Carneiro, que seria o Presidente da Sabinada, formariam Luiz Antonio
Barbosa de Almeida e João José Barbosa de Oliveira. Contra ele o
Cons. Albino José Barbosa de Oliveira, então Juiz de Direito em
Caravelas, ex-deputado na Assembléia Provincial (162).
As reuniões sucediam-se. Crescia o número de adeptos. Mas, à
medida que aumentava o círculo dos conspiradores, o segredo foi
desaparecendo. E, a 1º de novembro, Antonio de Souza Vieira
procurou Gonçalves Martins, chefe de policia, e o avisou de que a
rebelião estava próxima. Urgia providenciar para impedi-la. O

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denunciante dera a pista: os conjurados deveriam, nesse dia, avistar-
se na casa do ourives Manoel Gomes, à Piedade. O próprio chefe de
polícia foi realizar a diligência. Disfarçado, dirigiu-se à casa indicada,
esgueirou-se pela escada e no segundo andar, percebeu os
conspiradores. Vacilou entre surpreendê-los com a sua presença ou
retirar-se. E optou pela retirada: já ouvira o bastante (163). Senhor
do segredo, Gonçalves Martins dirigiu-se ao Presidente e contou-lhe
o ocorrido. Embora não tivesse visto os conspiradores escutara-lhes
a conversa e distinguira a voz de Sabino, Bahiense e Daniel Gomes
(164). O Presidente pediu-lhe que desse a denúncia por escrito.
Recusou-se Gonçalves Martins. Como afirmar o que não vira? Apenas
ouvira e podia ter se enganado na identificação das vozes. Com isso,
Souza Paraíso ordenou-lhe que continuasse nas diligências.
No dia seguinte, o chefe de polícia voltou à carga. Disse das
suas apreensões ao Presidente, principalmente de referência à tropa.
O comandante das armas, Luiz da França Pinto Garcês, desanuviou-
lhe, porém, o espírito. Pelos quartéis era ele o responsável: a ordem
não seria alterada. Defende os indiciados. “Este era até seu compadre;
aquele que tinha uma boa comissão, que não era de perder; tal outro
estava arrependido de ter sido revolucionário em outro tempo; um
lhe devia dinheiros; e o major Sérgio (165) lhe tinha dito com firmeza
e prontidão — que não tinha assistido aos clubs, nem era capaz de
ser revolucionário” (166). A Gonçalves Martins só restou um
caminho: recuar. Mas a cada recuo correspondia uma nova denúncia
sobre o movimento. A 4 do mesmo mês, José Marcelino dos Santos
avisou-o de que irromperia nesse dia o movimento. O Presidente e o
Comandante das Armas, no entanto, continuaram como fiadores da
tropa, inabaláveis, mesmo diante da exposição minuciosa feita pelo
Tenente-coronel Manoel Rocha Galvão a respeito da conspiração.
Para evitar a repetição dessas discussões entre ele e Gonçalves
Martins, Souza Paraíso retrucara a este de modo categórico: — “Para
que disputarmos todos os dias e haver tantos receios? Se a tropa

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entra na conspiração, esta está feita, por que não tem quem se lhe
oponha; e se não entra, não tenham receios” (167). Paralelamente, a
inércia do Governo, a conspiração adquiria novas forças. Os seus
partidários agitavam-se, articulavam, tudo preparavam para o golpe.
Valiam-se do ambiente favorável da cidade e da tropa, que ainda não
sabiam das providências tomadas pelo Governo imperial: a nomeação
de “um zeloso e inteligente Presidente” e maior consignação para as
despesas militares (168). Desde 11 de setembro, que Souza Paraíso
era demissionário, (169), mas somente a 14 de novembro passaria o
governo a Honorato Paim.
Sabino Vieira a todos procurava e animava com a sua palavra
fácil e inteligente. A revolução entrara na fase em que se cuidava mais
de organizar a vitória do que em conquistá-la. Para ele não havia
obstáculos. Audaz, nada o atemorizava. E com a audácia iria compor
um dos mais curiosos episódios da rebelião: convidar o Chefe de Polícia
para aderir ao movimento. Enquanto os demais revolucionários
procuravam, por certo, afastar-se da polícia, ele pedia uma entrevista
ao maior responsável pela ordem. Delineado o plano, calculadas as
probabilidades do bom êxito, Sabino ia jogar a maior cartada. Não lhe
seria possível obter o apoio de Gonçalves Martins? A pergunta passou-
lhe pela cabeça, seduziu-o, atormentou-o. Nada mais o conteve. A
missão era arriscada, mas valia tanto o apoio pretendido que não teve
dúvida: ia tentar. Quem sabe? Exposta a certeza da vitória, a inutilidade
da resistência, as vantagens que lhe adviriam, as ambições que podia
ter, os benefícios para a sua carreira política, o Chefe de Polícia, homem
como era, talvez cedesse. Sabino pôs mão à obra. Procurou um amigo
comum, Manoel da Rocha Galvão, e pediu-lhe que procurasse
Gonçalves Martins e o convidasse para vir à sua casa, em dia e hora
marcada, a fim de se avistar com ele. Fez-lhe, porém, uma
recomendação: Gonçalves Martins não devia saber o que ia. Escolheu-
se o dia 6 de novembro. O convidado não sabia a que ia e, quando
entrou, deparou com Sabino. E o chefe rebelde começou a narrativa...

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Às primeiras palavras, foi repelido. A autoridade se encrespara. Era
petulância, ousadia, convidar-se a ele, o mais direto responsável pela
legalidade, pela manutenção do governo, a entrar numa conspirata.
Teve ímpetos de prender Sabino. Ficou, porém, indeciso. Lembrou-se
que estava em casa de um amigo comum que o convidara. Receou o
epílogo violento para essa entrevista que se anunciara cordial. Terminou
preferindo ouvir o revolucionário e conhecer-lhe o pensamento. Sabino
continuou com a língua solta. Mas, ante o silêncio de Gonçalves
Martins, também mudou de tática. Sagaz, compreendendo a situação,
o dialeta recuou, tornou-se esquivo, diminuiu a verbosidade, parou
os argumentos e a conferência terminou fria, cada um no ponto em
que entrara. Para Sabino fora uma derrota. O Governo sabia de tudo,
conhecia as linhas gerais do movimento, os cabeças, podia prendê-los
e seria o fracasso. E, ao se separarem, cada qual sabia da gravidade da
situação. Sabino foi ter com os companheiros e disse-lhes tudo: —
estavam perdidos. A única hipótese era precipitarem a revolução. Fazê-
la já, sem perda de um minuto, pois, dentro de pouco deveriam estar
detidos e a rebelião, obstada, não passaria dum projeto, duma ilusão.
Todos foram acordes.
Para Bento Gonçalves Martins, a entrevista foi pior do que uma
derrota — foi uma nódoa. A pecha de traidor, de desidioso, de fraco,
por muito tempo o acompanharia através da vida pública. Os seus
inimigos foram impiedosos. Não o desculpou o fato de ter corrido
ao Palácio a contar quanto ouvira da boca de Sabino. A atitude dúbia
de Gonçalves Martins, vacilando entre o seu dever de Chefe de Polícia
e a sua correção de cavalheiro, nunca pôde ter uma explicação
satisfatória. Por mais que se defendesse, não conseguiu dar ao público
a compreensão desse drama de consciência, em que se debateu entre
o “prender” e o “não prender” Sabino Vieira, que a ele, chefe de
polícia, vinha dizer cara-a-cara que se tramava a revolução e que “um
dia a Bahia seria independente” (170). Até o promotor público,
acusando os revolucionários, não poupou, afirmando que “a rebelião

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tornou-se pública, e que os seus autores eram bem conhecidos, não
sendo presos por desleixo das autoridades” (171). E se o Ministério
Público não o livrava desses golpes rudes à sua dignidade, ainda menos
os adversários. Antonio Rebouças foi mais longe. Não o acusou de
fraco, incriminou-o de ambicioso. Não foi buscar, na fraqueza ou no
cavalheirismo, a razão por que Gonçalves Martins não prendeu Sabino
Vieira. Foi buscá-la na ambição. Firmado no depoimento de D. José
Balthazar da Silveira, que afirmara ter ouvido de Sabino, no próprio
dia da revolução, que Gonçalves Martins não aderira ao movimento
por que lhe haviam recusado a Presidência, caso fosse vitorioso (172),
Rebouças foi encontrar nesse motivo deprimente a causa da atitude
de Gonçalves Martins (173). Não era, aliás, a primeira vez que o
acusavam dessas relações com Sabino Vieira. Já por ocasião da morte
de José Joaquim Moreira, haviam-no apontado como amigo e até
sócio de Sabino, e de “ainda depois disso entreter com ele as mesmas
relações” (174). Com dois fatos, justificavam a argüição feita contra
Gonçalves Martins: não ter o jornal deste publicado uma palavra
sobre o crime e ainda ter impresso a defesa de Sabino (175). Também
Pinto Garcês acusou o Chefe de Polícia de ter se avistado com Sabino,
quando este se encontrava na cadeia, antes da revolução (176). Os
documentos, porém, não depõem de modo a aclarar a dúvida. As
velhas relações de Sabino com Gonçalves Martins, por si só, são de
molde a perturbar a defesa deste. Acresce a isso uma curiosa
circunstância. Os primeiros denunciantes do movimento, no próprio
testemunho do Chefe de Polícia, foram Antonio de Souza Vieira e
Manoel da Rocha Galvão. A posição dos denunciantes dá idéia do
modo por que se opunham a rebelião e do desejo que tinham em vê-
la malograda. Mas, quando se realizou a entrevista de Gonçalves
Martins com Sabino Vieira, se havia duas testemunhas em cuja
atenção Gonçalves deixou de efetuar a prisão, estas foram justamente
Souza Vieira e Gomes da Rocha. Coincidência? Ou seria que os unisse
algum segredo maçônico, tão em voga na época? Difícil responder.

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Registramos o fato e basta. Foram, porém, de tal vulto as acusações
feitas a Gonçalves Martins que, terminada a revolução, teve de requerer
o procedimento de indagações judiciais “a fim de poder o Suplicante
justificar-se, como pretende, de toda e qualquer suspeita, em que
possa ter incorrido, de não haver cumprido o seu dever, para evitar
os acontecimentos desastrosos que tiveram lugar nessa Capital” (177).
Um século já passou sobre o original episódio da Sabinada, em
que se defrontam o Chefe de Polícia e o Chefe da Revolução, este a
querer conquistar aquele para a sua grei. Depois de cem anos, não
sabemos dele mais do que os contemporâneos. Os arquivos nada
dizem. Os livros são omissos. A dúvida desafia os historiadores (178).
A posição tomada por Gonçalves Martins fora, porém, decisiva:
precipitara o movimento.

NOTAS
(134) Braz do Amaral op.cit.p.132.
(135) Oliveira Lima. O império brasileiro, p. 187
(136) Exceto em Goiás e Mato-Grosso, onde o resgate foi feito na base de 1/4.
(137) Ata da Loja Fidelidade e Beneficência de 30-6-37. Boletim Maçônico, Salvador, v.
7, n. 12, 1936.
(138) Vide Anexo A, no fim do volume.
(139) O jornal de Sabino Vieira tinha a seguinte epígrafe: “O egoísmo nacional, bem
como o egoísmo individual, é um crime, todo aquele que se deixa dele possuir é
culpado de lesa humanidade”.
(140) Ofício de Paraízo a Montezuma de 12-8-1837. Arquivo Nacional. cx 1003-2.
(141) Idem.
(142) Diário Novo da Bahia, 11-8-1837. Arquivo Nacional.
(143) Wanderley Pinho. A Sabinada: novos documentos; narrativa dos sucessos da
sabinada, desde a fuga de Bento Gonçalves, escrita por um rebelde ou simpático
àquela revolução. v. 56, p. 730. Obs.: Citaremos Wandereley Pinho. Narrativa.
(144) Wanderley Pinho. Narrativa, p. 731.
(145) Rocha Pombo. História do Brasil, v. 3, p. 328.
(146) Braz do Amaral. A Sabinada; Henrique Praguer. A Sabinada; Austricliano de
Carvalho op. cit. v. 2, p. 357; Sacramento Black. A Sabinada, Revista do Instituto
Histórico Brasileiro, v. 48 e 50; Teófilo Otonni. Circular.
(147) Instituto Histórico da Bahia, pasta 24, maço 6.

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(148) Wanderley Pinho. A Sabinada; novos documentos. Revista do Instituto Histórico
da Bahia, v. 56, p. 791.
(149) Ministério da Guerra. Arquivo Militar. Fé de ofício de José Joaquim Leite.
(150) Almanack militar de 1857.
(151) Daniel Gomes de Freitas. Narrativa dos sucessos da Sabinada. Revista do Instituto
Histórico da Bahia, v. 56, p. 663. Este trabalho foi divulgado pelo ilustre Dr.
Wanderley Pinho.
(152) Fé de ofício, v. 56, p. 776. Instituto Histórico.
(153) Op. cit. p. 773.
(154) Braz do Amaral. A Sabinada, p. 57.
(155) Austricliano de Carvalho op. cit. v. 2, p. 358.
(156) Documentos da Sabinada. Arquivo Público da Bahia, pasta 5.
(157) A reconstituição da casa de Sabino Vieira foi feita de acordo com os autos de seqüestro
que se encontram no Arquivo Público da Bahia. Documentos da Sabinada, pasta 4.
(158) Wanderley Pinho. A Sabinada; novos documentos. Revista do Instituto Histórico
da Bahia, v. 56, p. 640.
(159) Trecho de Memórias políticas de Luiz Antonio de Almeida. In: Braz do Amaral.
A Sabinada, p. 204. Luiz Antonio participou da Constituição baiana de 1891,
sendo o chefe da oposição.
(160) Teixeira de Freitas, nomeado Juiz pelos rebeldes, foi por isso processado e absolvido.
(162) Rui Barbosa. Mocidade e exílio. Cartas. Notas e prefácio de Américo Jacobina Lacombe.
(163) Antonio Rebouças. Nova edição da simples e breve exposição de Francisco
Gonçalves Martins. Revista do Instituto Histórico da Bahia, v. 52, p. 180.
(164) Gonçalves Martins. Suplemento à minha Exposição, p. 12.
(165) A. Rebouças op. cit. p. 187.
(166) Sérgio José Veloso que participou da revolução.
(167) A. Rebouças op. cit. p. 192.
(168) Ministério da Guerra. Relatório, 1838, p. 18.
(169) Ofícios do Governo da Bahia, 1833-1838. Arquivo Nacional.
(170) Gonçalves Martins. Suplemento, p. 13.
(171) A. Rebouças op. cit. p. 218.
(172) Francisco Vicente Viana. A Sabinada. Revista do Instituto Histórico da Bahia, v.
14, p. 603.
(173) A Rebouças. Ao chefe de polícia Gonçalves responde o Rebouças, p. 56.
(174) Wandereley Pinho op. cit. p. 642.
(175) “Analise ao impresso publicado por Francisco Sabino Alvares da Rocha Vieira
por um amigo de Lei”.
(176) Luiz de França Pinto Garcez. Defesa. Arquivo Público da Bahia.
(177) Ofício de Bernardo de Vasconcelos. Vide Anexo C, no fim do volume.
(178) Sobre o assunto, convém consultar: Gonçalves Martins, Simples e breve exposição
e Suplemento à minha exposição; A. P. Rebouças, Nova edição da simples e breve
exposição e Ao Chefe de Polícia Gonçalves responde o Rebouças.

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Capítulo VIII

SABINO VIEIRA

À revolução faltava apenas um chefe. Um chefe com a virtude e a


malícia exigidas pela posição de mando. E se muitos pretendiam o
bastão, nenhum o podia disputar a Francisco Sabino Álvares da Rocha
Vieira, dentre os conjurados. Era o chefe natural. Como observou
Cotegipe era “o mais notável de todos os revolucionários” (179).
Os próprios defeitos existentes na sua personalidade — e que não
eram poucos — não impediam que as qualidades, ainda maiores, lhe
assegurassem a posição de destaque num ambiente revolucionário.
Confirmava o conceito de Nabuco: “A fatalidade das Revoluções é
que sem os Exaltados não é possível fazê-las...” (180). E Sabino era
um Exaltado, um grande Exaltado. Apaixonava-se pelas idéias,
imprimia-lhes uma força nova, dava-lhes tudo. Todo ele vibrava ao
se dedicar a uma causa. Punha ao seu serviço todo vigor da sua
individualidade. Nele as idéias produziam o efeito de um incêndio:
enquanto ardia, era deslumbrante; passadas as chamas, tudo era cinza,
mesma idéia por que se inflamara. Abandonava-a, então, para se

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consagrar a outra, sempre com o mesmo denodo. Não tinha firmeza
senão no espírito liberal que, embora tomando tonalidades diversas,
nunca o deixou. Dentro desse espírito liberal, era versátil. Como
liberal foi emancipado, nacionalista, federalista, republicano,
demagogo. Tudo eram formas do mesmo sentimento, da mesma
paixão. Sem forças para se fixar definitivamente num pensamento,
procurava nessas mutações em torno a uma mesma doutrina, a
satisfação para o seu temperamento inconstante. Conciliava, assim,
os pendores da sua formação intelectual com os impulsos dos seus
nervos. Ferreteado, certamente, por uma tara, tendo um irmão louco,
Sabino deve ter sido presa de uma grande luta íntima. E, para não
fracassar de todo, buscava nessas oscilações o refúgio, o descanso, o
bem-estar para suas horas de crise, em que tinha de ceder, para mais
adiante poder retomar a direção perdida. Dele disseram seus inimigos
que “nunca teve norte certo” (181). A expressão deve ser verdadeira,
se afastarmos a idéia liberal. Mas, quem poderá dizer do milagre que
terá sido a obra de Sabino realizada sob a maldição de uma tara?
Nos momentos, porém, em que se conseguia libertar do estigma
que o torturava, era incomparável. Ninguém o excedia. Identificava-
se com a causa escolhida e era o mais devotado, o primeiro.
Por tudo isto, se muitos dos conjurados se afastaram do
movimento por causa da presença de Sabino (182), nenhum pôde
obstar a que ele fosse o chefe.
Para o Doutor Sabino, como o conhecia toda capital baiana, a
revolução de 1837 não foi mais do que uma nova experiência e um
bilhete de ingresso na história. A conspiração não tinha para ele
nenhum valor de novidade, nenhum atrativo de emoção
desconhecida. Era apenas um abismo a cuja borda, por uma fatalidade
do destino ou uma imperiosa exigência dos seus nervos não podia
deixar de se debruçar. Sabino sentia a vertigem das rebeliões e da luta
como os outros sofrem da vertigem das alturas: era o irresistível!

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Falar-lhe numa revolta, num combate, na deposição de um governo,
era como chegar fogo à pólvora: explodia.
A mesma natureza que o dotara de uma inteligência viva, de
um poder raro de persuasão, qualidades de afabilidade, distinção no
trato pessoal, dotes de angariar prosélitos, marcara-o com o sinete
do crime. E toda a sua vida de agitado, de irrequieto, foi uma oscilação
entre a criminalidade comum e política. Esse duplo aspecto de
delinqüente faz dele um tipo raro, raríssimo mesmo, nos anais da
nossa história.
Impulsivo, violento, incapaz de sopitar um sentimento, as suas
arrancadas vão quase sempre ao extremo. Mas, temperamento feito
de contrastes, à paixão de Sabino segue-se logo o arrependimento.
Passado o primeiro impulso, ei-lo a implorar o perdão, a eximir-se da
culpa, com o mesmo poder de dialeta com que ataca ou o mesmo
ardor com que fere.
Nas rebeliões, parece uma criança a construir um castelo de cartas
— edifica só pelo prazer de destruir. Rebela-se contra a própria obra
pela qual arriscou a vida. Foi sempre assim. Em Itaparica, na luta da
Independência, mal acabara o calor da primeira refrega, já o
encontramos tramando contra os próprios companheiros de luta e
de jornada. Feita a Independência, está entre os rebeldes dos
Periquitos. Na Sabinada, antes da vitória, conspira contra o Presidente
Carneiro para substituí-lo, não levando avante a contra revolução
por causa do major Santa Eufrásia (183). Como quem não sabe o
que quer, nem para onde vai, guerreia pelo amor à guerra; combate
pelo gozo do perigo; conspira por que lhe é impossível deixar de
conspirar. No seu espírito, não há lugar para os dias quietos de
calmaria: a sua paixão é a luta.
Mas, ao lado dessa alma de revoltado, o destino colocara, numa
singular união, o médico caridoso, o amigo das crenças (184), o
homem de estudo, o professor de medicina. Dentro de sua desgraça,

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o Doutor Sabino teve as suas horas de generosidade. Cuidou dos
doentes, levou-lhes o conforto da sua palavra, do seu saber, da sua
fama. Como médico, era um apóstolo. Tratava dos pobres, dos
humildes, nunca se esquivando a uma consulta. Curou os
desfavorecidos da fortuna. Mesmo no exílio, quando devia ter a alma
envenenada pelo sofrimento, não perdeu o sentimento de caridade,
não se esqueceu de que era médico (185). Talvez, muitos dos que o
seguiam nas suas prédicas contra as autoridades fossem antigos
doentes seus, que o acompanhavam nas suas horas de paixão política.
Ao romper a revolução de 1837, que lhe guardou o nome — A
Sabinada — Sabino já trazia consigo um largo cabedal, uma grande
bagagem de delitos comuns e políticos em que se celebrizara.
O seu batismo de fogo, pelo que se conhece, foi em Itaparica,
na luta da Independência. Tinha, nessa época, vinte e seis anos e era
Ajudante do Campo do Comandante da Ilha e Cirurgião-Mor da
Legião da Bahia (186). A esquadra portuguesa, a 7 de janeiro de
1823, atacou a Ilha. O combate durou três dias e Sabino portou-se
com galhardia, sentiu-se no seu habitat, entre o canhoneio, os assaltos,
o cheiro de pólvora, a dúvida. Ele próprio diria mais tarde ter prestado
“relevantes serviços durante toda a luta das tropas lusitanas, no
recôncavo da cidade da Bahia, sua pátria” (187). Como tudo isso
lhe devia fazer bem aos nervos irrequietos! Nesse embate, o poeta
assim o viu:

Tu, Sabino,
Com Martins, arrojado, ínclitos feitos
De importância e valor, no lance obraras: (188)

Mas, mal amorteceu o fogo, derrotado o inimigo, já estava


conspirando com os companheiros contra os patriotas que, ao seu
lado, se haviam batido pela mesma causa. Descoberta a trama, não se
fez esperar a conseqüência da tentativa de insubordinação: recolheram-

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no ao paiol da fragata União. Sabino, num lance d’olhos, passara de
herói a traidor. Da fragata evadiu-se para Cachoeira, onde foi preso,
sendo transferido para o Forte de Itaparica (189).
Proclamada a Independência, o primeiro movimento da rebelião
que se registrou na Bahia foi o do batalhão dos Periquitos, cujo
comandante, Silva Castro, fora preso por Felisberto Gomes Caldeira.
Era uma revolução “tramada por uma fração desorganizadora, ou
republicana, que ali existia, como existia em todas as capitais do
Império” (190). Dela participava Inocêncio da Rocha Galvão, que
seria aclamado Presidente da Bahia, durante a Sabinada. Sabino estava
no seu posto: formava entre os amotinados.
Depois, quando Pedro I convocou a nação para as guerras do
sul, Sabino, atraído pelo seu próprio destino, não faltaria com o seu
concurso. E como cirurgião do Batalhão 14 marchou para o campo
da luta (191).
Ao retornar, encontrou o país agitado pelos nativistas que se
insurgiam contra o “maroto”, o “pé de chumbo”. Filiou-se logo ao
movimento. Apoiou as aspirações dos nacionais com a paixão que
lhe era peculiar, indo até o assassinato. Firmou-se na imprensa. E no
seu próprio testemunho foi “Um dos mais decididos propugnadores
a favor da gloriosa Revolução do 7 de Abril” (192).
Os seus serviços de guerra e de revolução não acreditavam,
porém, junto ao Governo, que temia o seu temperamento irrequieto.
Aos olhos das autoridades já estava identificado como um elemento
perigoso à ordem pública e a quem não se devia proporcionar cargos,
cuja função lhe pudesse dar qualquer parcela de poder. Por isso,
quando regressou da campanha do sul, Sabino teve frustrada a sua
pretensão de ser nomeado Cirurgião-mor do Hospital Militar da
Bahia. Não lhe valeu alegar serviços. O Presidente da Província,
consultado sobre o assunto, depois de ouvir algumas pessoas,
apressava-se em responder: as “informações, também juntas, depõem
contra o suplicante, que de forma alguma me parece que deve ser

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empregado nesta Província, pois bem bastam os funcionários públicos
de espírito Exaltado que aqui há, os quais só servem de incômodo às
autoridades” (193). A agitação, porém, ainda lhe deixava tempo para
os estudos. As suas horas de descanso ele as divide entre os grandes
mestres da Medicina e as obras políticas, onde aprende as novas formas
de governo e a filosofia política da Europa. Essas horas de leitura
marcam sempre um intervalo entre um crime praticado e outro a
cometer. E Sabino, agora aparece na barra do júri, respondendo pelo
assassinato de Carlos Manoel de Lima. Consegue absolvição. A
sentença favorável não o afasta, porém, do torvelinho de delitos em
que o enleara o destino. Estava-lhe reservada uma provação mais
cruel: ser o autor da morte da mulher.
A cena passou-se a 18 de setembro de 1833. A sua causa foi a
perversão sexual da virilidade de Sabino que, surpreendido pela
mulher, Joaquina Gonçalves, em sua própria casa, ao Castanheda,
contra ela investiu empunhando uma faca de ponta. A esposa,
aterrorizada, precipitou-se escada abaixo. Na queda, fraturara o braço.
Sobreveio o tétano (194). E a 5 de Outubro falecia.
Sabino defendeu-se da acusação. Negou a veracidade da versão
esposada pelo processo. Damos-lhe a palavra: “aproveitaram-se desse
funesto acontecimento, para mim sempre doloroso, os meus inimigos,
inimigos somente por oposição de opiniões políticas, pois que jamais
dei causa a alguém para outra origem de inimizade, para assoalhar
que eu havia assassinado minha mulher” (195). Aos depoimentos
das testemunhas arroladas opõe-se a palavra do acusado.
O fato não interrompeu, porém, a atividade jornalística de Sabino.
De passagem para a Europa, Antonio Carlos conseguira reanimar o
Partido Restaurador. Os partidários da volta de D. Pedro I, os
Caramurus, como os apelidava o povo, movimentaram-se e vieram a
campo pelo Jornal do Commercio, cujo redator, Vicente Ribeiro Moreira,
iniciou a campanha. Sabino, entusiasta do 7 de Abril, contraditou-o.
Fê-lo também por um jornal — O Investigador Brasiliense — em cujo

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cabeçalho imprimiu o lema: “À Pátria dou quanto à Pátria devo”.
Começou a polêmica. A linguagem de ambos era violenta. Os
contendores agridem-se, descompõem-se, até que vem o primeiro
desforço pessoal. Ainda não decorreu um mês após a morte da mulher
de Sabino. Estamos a 31 de outubro de 1833. Terminada a consulta
matinal, Sabino sai da Santa Casa, à rua da Misericórdia, e dirige-se
para a Praça do Palácio. Ali, encontram-se os desafetos. Estão cara a
cara e nenhum se contém. Vem a luta e Sabino, em plena face, chicoteia
o jornalista. A desavença política transformou-se então num ódio de
família. Os Moreiras, ultrajados pelo rebenque de Sabino, juram vingar-
se. Destes, o mais exaltado é o alferes José Joaquim Ribeiro Moreira,
irmão do agredido, e que assoalha por toda a cidade estar disposto a
cobrar-se de Sabino na mesma moeda: chicoteando-o.
Por essa época, Sabino já era preparador de Anatomia da
Faculdade de Medicina e médico da Santa Casa. Os amigos avisam-
no do perigo a que está exposto. E Sabino, conhecendo o seu
temperamento, teme as conseqüências. Sabe que não será capaz de
receber uma afronta sem a repelir com a máxima violência. Resolve
por isso trabalhar para evitá-lo. Neste episódio, a conduta de Sabino
é inatacável. Age com correção absoluta. Procurou contornar a
situação. E a 3 de novembro escreve a Joaquim de Souza Velho,
cunhado de Moreira, comunicando-lhe ter denúncia de que o desejam
ultrajar e que se tal se der ele se defenderá. Não se limita, porém, a
esse apelo. Na mesma data, dirige-se por escrito ao Comandante do
Corpo de Munícipes Permanente, pondo-o ao corrente da ameaça
que paira sobre ele e pede a sua intervenção. José Moreira não parece
disposto a nenhuma conciliação. Quer ir até o fim, sejam quais forem
as conseqüências. Prepara-se para elas. E a 7 de novembro, prevendo
o desenlace fatal do episódio, fez o seu testamento. Nesse mesmo dia
se lhe depara a oportunidade que deseja. Ao meio-dia, encontra-se
com Sabino na Praça do Palácio. É hora de movimento. Pessoas que
vêm da Misericórdia, da Sé, do Carmo, da Ladeira da Praça, todos

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afluem para ali. Para Moreira não seria de perder tal ocasião. Toda a
cidade assistiria à vingança dos Moreiras. E o alferes não a deixa passar.
Empunha a taca que propositadamente trazia e corre para Sabino e
lhe diz: — “estimo encontrá-lo aqui, patife, para dar-lhe com este
chicote; lembra-se do que fez ao meu mano”? (196). É a desforra.
Transbordando de ira, rubro de ódio, começa a chicoteá-lo. Sabino
recua. Todos os olhares convergem para aqueles dois homens que
lutam em plena rua. Novos açoites e Sabino continua a recuar.
Lembra-se, porém, do seu estojo de cirurgião. Saca-o ligeiro, tira
uma faca interóssea e espera o inimigo. Este não se intimida ante a
lâmina. Avança novamente e levanta o látego. Não chega, porém, a
fazê-lo descer sobre Sabino. Ouve-se um grito e José Joaquim leva a
mão ao ventre. Escorrendo por entre os dedos, aparece um filete de
sangue e o agressor cambaleia. Os mais próximos amparam-no. Está
ferido de morte. Sabino vai novamente comparecer perante a Justiça
(197). O primeiro júri (198) condenou-o à pena de 12 anos de
prisão com trabalho. Sabino não se conformou com a decisão,
declarando que o tribunal popular era formado por “Uma maioria
de pessoas afetas ao partido restaurador”. Apelou para novo júri e
este se realizou em Cachoeira (199), reduzindo a pena à metade. O
réu pediu, então, a comutação da pena à Regência que, em 4 de
outubro de 34, amenizava-a para seis anos de degredo na Província
de São Pedro do Rio Grande do Sul. Ainda restava uma esperança: a
reconsideração do decreto. Sabino mais uma vez solicitou o perdão.
E a 27 de novembro obtinha o perdão total da pena. Estava livre,
depois de mais de um ano de prisão.
Retirado inesperadamente da atividade, Sabino não tivera tempo
para preparar as suas contas de tesoureiro da Faculdade de Medicina,
cargo que exercia no momento do crime. E, enquanto preso, procedia-
se a um inquérito para apurar-lhe a responsabilidade. Ainda da prisão,
oficiou comprometendo-se à prestação de contas. Mas, o inquérito
continuou, concluindo por atribuir-lhe um alcance de 263$432... (200).

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O castigo fora rude. A reclusão por mais de um ano, para um
temperamento irrequieto como o de Sabino, devia ser um tormento.
E, ao retomar a liberdade, Sabino, provavelmente, estaria disposto a
recolher-se a uma vida de ciência, de estudo, longe das agitações,
afastado das rebeliões. Durante mais de dois anos só encontramos
sinais da sua vida na Faculdade de Medicina. Não durou muito, porém,
a inatividade política de Sabino. Num ambiente como o da Regência,
cheio de seduções para um espírito revolucionário, não pôde passar
incólume. A sua constituição mental era muito fraca para resistir à
epidemia de desordem que grassava no País inteiro.
Quando lhe falaram, em 1837, num movimento visando a
independência da Bahia e a implantação da República, os seus nervos
não resistiram mais. Aderiu à idéia. A alma do revolucionário, contida
durante dois anos, inflamou-se, recobrou novas forças, sentiu-se à
vontade na trama da conspiração. Dedicou-se inteiramente ao novo
ideal que abraçara. E por tal modo se identificou com o pensamento
revolucionário que se tornou o chefe indicado e cuja autoridade, no
âmbito da conspiração, se tornava cada vez mais evidente e necessária.
Não era preciso dizer, nem proclamar — todos sentiam que ele era o
chefe. Nele, para essa posição de relevo, tudo concorria, no momento.
Em abril, havia se submetido a concurso para professor da
Faculdade de Medicina, com uma tese de sucesso para a época —
Dissertação sobre a Cárie das Vértebras (201). Tivera como concorrente
o Dr. Manoel Ladislau de Aranha Dantas, a quem venceu. O fato
dera-lhe um justo renome de homem de ciência, atenuando muitas
das prevenções existentes contra ele. Não era mais o agitador, o
revolucionário, o inimigo da ordem, o criminoso. Ganhara um novo
título, título cobiçado em todo o País: “Professor da Faculdade de
Medicina da Bahia”. Entrava para o corpo docente de um dos mais
acatados centros de estudo do País e até da América. Para que se
tenha idéia exata da importância, do conceito que desfrutava a
Faculdade de Medicina, transcrevemos a palavra de um acatado

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médico argentino, Gregório Alfaro: “cuando nuestra Faculdad daba
aún los primeros pasos vacilantes, las escuelas médicas de Bahia y
Rio de Janeiro eran ya famosas en La América entera” (202). Era
assim a Faculdade de Medicina. Compreende-se, portanto, o que deve
ter representado para Sabino, na sociedade da época, ter vencido o
concurso. Aumentou-lhe o círculo das relações, proporcionou-lhe a
entrada nas melhores rodas, deu-lhe à palavra uma nova autoridade.
A esse prestígio de professor, Sabino juntara ainda, em julho,
quando fundou o Novo Diário da Bahia, o de proprietário e diretor
de um jornal diário, onde podia satisfazer as vaidades dos amigos,
criar e destruir reputações, elogiar e atacar, pregar a revolução.
Nesse mister de propaganda pela imprensa ninguém o excedeu.
No jornal, a sua ação tocava às raias do temerário. Aconselhava, aos
olhos do governo, a revolução. O próprio Presidente Souza Paraíso
assim resumiu a atuação do chefe revolucionário: “O Novo Diário da
Bahia, que se dizia ser escrito por Sabino havia nesta parte tocado ao
extremo abuso, e sendo por isso levado ao júri foi julgado inocente”
(203). A absolvição animava os revolucionários, assegurando-lhes a
impunidade. Além disso, Sabino tinha o prestigio da inteligência.
Era o mais culto dos revolucionários, o que conhecia as últimas
tendências d’além-mar, sabendo a última palavra sobre o regime
republicano.
Discutido, ultrajado, admirado, Sabino impressionou, profun-
damente, a sua época. Foi tal o sulco por ele deixado no ambiente
baiano que Junqueira Freire, chegado à puberdade mais de dez anos
após a Sabinada, seria “um partidário veemente do chefe da rebelião”
(204) e sobre ele deixaria estes versos, os primeiros e únicos de uma
poesia sobre Sabino:

O povo te amava, seguia os teus passos,


Nas ruas, nas praças, chamava por ti:
Tu eras um anjo... (205)

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Também um drama inacabado, tendo como cenário a Sabinada,
esboçaria Junqueira Freire. É dele um diálogo entre a Filha e o Pai... (206)
Como as “livrarias do cônego da Sé da Mariana, Luiz Vieira da
Silva, que constava de 270 obras, com perto de 1.000 volumes; e de
Ignácio José de Alvarenga, 61 obras; em 104 volumes”, os
inconfidentes mineiros de que nos dá conta Rodolfo Garcia (207), a
biblioteca de Sabino elevava-se a cerca de mil volumes (208). Nele,
ao lado dos grandes tratados médicos, como o Dicionário das ciências
médicas, em 60 volumes, e o Dicionário de medicina, em 21 volumes,
se encontravam os livros que bem dizem das suas tendências, das
suas predileções políticas e literárias. A cabeça de Sabino estava cheia
de Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Tocqueville.
Era um intoxicado pela cultura francesa, que continuava a exercer
sobre o nosso meio intelectual uma influência incontestável.
Estávamos na época em que nos vestíamos e pensávamos como em
Paris. De lá importávamos modistas e livros. Tudo que era francês
era corrente no nosso meio.
Por isso, nas estantes de Sabino lá estava Voltaire com o seu
Dicionário filosófico, em 14 volumes, os Ensaios sobre os costumes e espírito
das nações em 8 tomos e as Mélanges philosophique. As obras de
Montesquieu, em 8 tomos; Tocqueville com a Democratie; A Revolução
Francesa de Mignet; o Governo Republicano de Murat; os Sudários filosóficos
de Locke, em 4 volumes; a Filosofia de Newton; e finalmente o Contrato
social de Rousseau, e o Espírito da Enciclopédia, em 15 volumes.
Essa biblioteca explica melhor Sabino do que as suas próprias
obras. Nela se encontra a formação do seu pensamento revolucionário,
republicano. Os seus guias ali estão. Encontrando terreno tão
propício, devem ter tido uma ação profunda e decisiva. Decidiram
da sorte de Sabino que, inflamado à leitura das obras revolucionarias,
devia ter querido realizar no Brasil o que outros já haviam conseguido
na Europa. A mentalidade toda voltada para os anseios de liberdade
e de democracia devia se assemelhar à de um girondino.

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Todavia, mais do que tudo isso, Sabino, dentre os conspiradores,
era o que possuía por nascimento a alma do revolucionário, e a cujo
serviço estava uma inteligência persuasiva, viva, e que se apaixonava,
apaixonando os que a ouviam. Trazia do berço o destino de eterno
revolucionário. E não pôde fugir à sua sina. Antes, aceitou-a com
júbilo. Por isso realizou-a largamente. Poucos como ele tiveram uma
existência tão repleta de movimento, de agitação, de revolta.
Enquanto os seus companheiros calculavam os prós e os contras
da revolução, ele se entregou inteiramente ao movimento. Não media
conseqüências e nem pesava dissabores: lutava. Era o chefe.

NOTAS
(179) Wanderley Pinho op. cit. p. 741.
(180) Joaquim Nabuco op. cit. v. 1, p. 21.
(181) Wandereley Pinho. Narrativa, p. 731.
(182) Análise ao impresso publicado por Francisco Sabino A. R.
(183) Daniel Gomes de Freitas op. cit. p. 736
(184) Sacramento Black. A Sabinada. Revista do Instituto Histórico Brasileiro, v. 48-50.
(185) Agenor Miranda. Últimos dias do chefe da rebelião bahiana de 1837. Revista do
Instituto Histórico da Bahia, v. 49.
(186) Ladislau dos Santos Titara. Paraguassú. Revista do Instituto Histórico da Bahia, v.
49, p. 39.
(187) Wandereley Pinho op. cit. p. 757.
(188) Ladislau dos Santos Titara op. cit. p. 39.
(189) Aristides Milton. Efemérides cachoeiranas, p. 347.
(190) Memória descritiva dos atentados de facção demagógica na província da Bahia.
Revista do Instituto Histórico Brasileiro, v.30 I, p. 233.
(191) Wandereley Pinho op. cit. p. 757.
(192) Idem.
(193) Braz do Amaral. História da Bahia: do império à república. p. 66; Ofício do
Visconde Camamu de 29-5-1829.
(194) Laudo médico do Dr. Jonathas Abbot. Instituto Histórico da Bahia, pasta 24.
(195) Análise do impresso..., p. 2.
(196) José Alvares do Amaral. Província da Bahia, p. 448.
(197) No Instituto Histórico da Bahia, está o processo do assassínio de J.J. Moreira.

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(198) Realizou-se a 10 de junho de 1834.
(199) 29 de junho de 1834.
(200) Braz do Amaral. A Sabinada, p. 77.
(201) Sabino Vieira. Dissertação sobre a cárie das vértebras. Salvador: Tipografia Aurora,
1837 [Tipografia de Serpa & Com...].
(202) Gregório Alfaro. Grandes médicos, p. 206. Buenos Aires, 1936.
(203) Exposição do procedimento do Des. Francisco de Souza Paraíso, p. 12.
(204) Homero Pires. Junqueira Freire, p. 175.
(205) Homero Pires op. cit. p. 175.
(206) Homero Pires op. cit. p. 177.
(207) Rodolfo Garcia. Prefácio à Inconfidência mineira. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1936. v. 1, p. xiii.
(208) Vide no fim do volume, Anexo B, a relação completa da biblioteca de Sabino
Vieira.

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Capítulo IX

REPÚBLICA!

A idéia revolucionária havia atingido o seu ponto culminante.


Chegara o momento em que tinham de optar entre pô-la em ação,
aproveitando o apogeu, ou vê-la, dali por diante, deperecer. Estava
madura.
Ao separar-se de Gonçalves Martins, Sabino deveria ter noção
perfeita da situação. Se aquele correra ao Palácio, este imediatamente
procurara os companheiros. Cientes do ocorrido, nenhum discordou:
o movimento seria já, no mesmo dia. Apressaram tudo para a tardinha.
E, quando o sol ia descambando por trás da ilha de Itaparica, Sabino,
Daniel Freitas, Bahiense, João Carneiro e Manoel Gomes alcançaram
o quartel de São Pedro, onde estava a Artilharia. Iam desarmados.
Chamaram o corneta e mandaram tocar a chamada ligeira (209). Para
muitos foi uma surpresa, mesmo entre os que se encontravam
apalavrados para a revolução. O próprio Sérgio Velloso, figura
destacada do movimento, somente ao perguntar sobre a significação
do toque da corneta ficou inteirado de que já era a revolução que se

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desencadeava. Antes, Inocêncio Eustáquio Ferreira de Araújo, ainda
nesse dia, dissera ao pai, de referência à revolução, que a “julgava
muito remota” (210). A corneta dera, porém, o primeiro sinal da
Sabinada. Agora não havia como retroceder. O golpe imprevisto, se
atordoava alguns dos conspiradores, surpreendera o Governo
completamente. Para o Presidente Paraíso, descansado na palavra do
Comandante das Armas, que afirmara responder pela ordem, a
revolução fôra, no momento, inesperada. De quanto o deve ter
surpreendido o movimento, se tem idéia pelo que, em 1º de
dezembro, escrevia Bernardo de Vasconcellos ao Presidente Pedroso,
acusando o recebimento de um ofício de Souza Paraíso de 2 de
novembro, “anunciando os receios de uma conspiração, outro de 6
do dito mês assegurando que os conspiradores não ousariam atacar
as forças da Legalidade, por que a Tropa de 1ª Linha, fiel ao seu
dever, não compartia os seus crimes; e outro finalmente de 7, já a
bordo em que mui sucintamente participava que traído pelas forças
que supunha fiéis, se viu forçado a abandonar a Capital” (211). Vê-
se aí a marcha da vigilância governamental: a 2, receoso; a 6, dia do
início da revolução, perfeitamente tranqüilo, confiando na fidelidade
da tropa...
Para os revolucionários não havia um minuto a perder. Agora
era pôr mãos à obra. Destacaram-se guardas avançadas para as Mercês
e os Aflitos. Recrutaram-se civis para engrossarem as fileiras rebeldes.
Distribuíram-se armas e cartuchos. E, enquanto isso, Sabino, o maior
responsável pelo resultado, numa azafama de ordens, subia e descia a
rampa da velha fortaleza. Ao ter a notícia da revolução, faltou ao
Governo a unidade de vista, indispensável à repressão do levante. O
perigo não conseguira apagar as antigas desavenças existentes entre o
Presidente, o Chefe de Polícia e o Comandante das Armas. Este
mandara o seu ajudante de ordens, D. José Balthazar da Silveira,
inteirar-se dos acontecimentos. Não mais voltou com a resposta. Fora
detido pelos rebeldes. Francisco de Paula Bahia, conhecido por Chico

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Bicudo, e Alexandre Sucupira o haviam prendido, e também ao
Tenente Coronel Pedro Luiz de Menezes.
Gonçalves Martins dirigiu-se ao Quartel de Polícia, deu algumas
instruções e depois rumou para o Palácio do Governo. Ali se
encontrou com Pinto Garcês. Foi impossível ajustá-los na mesma
orientação. Gonçalves Martins opinava pelo ataque imediato contra
os revolucionários, antes que se preparassem para o combate. Era o
minuto decisivo. A ação pronta, enérgica, poderia ser eficaz. Obrigaria
os rebeldes à luta, antes de se organizarem. Animaria os indiferentes.
Daria ao Governo uma força moral, que o tempo só faria diminuir.
Pinto Garcês, a quem o Presidente Souza Paraíso entregara o comando
de todas as forças, preferiu o ataque no dia seguinte, as forças militares
dispostas com toda a técnica de guerra, um plano previamente traçado
e estudado, cada sargento sabendo bem o papel que ia desempenhar
na peleja. Foi esta a opinião que prevaleceu: a divergência dera a
vitória à revolução. Começaram, então, a se aprestar as forças de ambos
os contendores. Durante a noite, se não houve choques armados,
houve adesões. Entre meia noite e uma hora, deu-se o contato das
guardas avançadas das duas tropas. E as do Governo começaram a
bandear-se para os revolucionários (212). Eram os primeiros sinais
da defecção.
No quartel de São Pedro, cercados pelo Governo, estavam os
rebeldes em número aproximado de 250 (213). Na Piedade, onde
acampavam as forças legais, estavam cerca de 600 soldados, assim
distribuídos: 300 praças da Polícia; 60 imperiais marinheiros; o
batalhão da guarda nacional da Sé com 70 soldados; as guardas
nacionais de São Pedro e Sant’anna com 150 praças aproximadamente;
e parte do 3º batalhão de caçadores com 70 homens.
Começaram, então, os preparativos para o ataque e o 3º batalhão
foi postar-se no Rosário de João Pereira. A disciplina, porém, não era
boa. Desde a véspera que, dentre a tropa, circulavam rumores de
insubordinação. E quando Pinto Garcês ordenou “carregar as armas”,

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a situação real se esboçou nítida. Os oficiais vieram comunicar-lhe
que os soldados espalhavam as balas pelo chão, carregando as armas
apenas com pólvora seca. Fez-se então um conselho e “a opinião, em
geral, era que se não atacasse, por que os soldados talvez não
obedecessem, e que só estavam prontos a tudo, a força de mar e a de
Sant’anna”.(214).
Não tardou, porém, a situação a se definir. A ala esquerda do 3º
batalhão, comandadas pelos sargentos, encaminhou-se para o forte,
aderindo ao movimento. A atitude dessa ala decidiu da dos demais
corpos. Em seguida, a ala direita também se juntou aos rebeldes
“ficando sem soldados os oficiais e comandantes” (215). Por fim a
polícia também aderira. Ao Governo restava apenas a Guarda
Nacional de Sant’ Anna e o corpo de marinheiros, ao todo cento e
poucas praças: a revolução estava vitoriosa. Vencera sem um tiro. A
tropa, certamente dominada por um trabalho anterior de propaganda,
de descontentamento, e reduzida por promessas de melhoria, não
oferecera nenhuma resistência aos rebeldes: aderira.
Ao Governo nada mais restava senão abandonar a cidade,
aproveitando os primeiros momentos do triunfo revolucionário, em
que os rebeldes, ainda embevecidos na vitória, não cuidavam dos
vencidos.
O Presidente Paraíso, apoiado nas forças da marinha, embarcou
no brigue Três de Maio, comandado pelo Capitão de Fragata João
Francisco Régis, que se fez ao largo para livrar-se da artilharia das
fortalezas. Abandonara a idéia de recolher-se ao navio de guerra inglês
surto no porto. Neste sentido, chegara mesmo a escrever ao cônsul
inglês do próprio punho: “lembra-se [o Governo] de requisitar de
V. S., como cônsul de uma nação amiga, se digne fazer demorar por
mais algum tempo neste porto o brigue de guerra britânico que nele
se acha, afim de que sirva de apoio, no caso de precisão” (216). Cem
anos atrás a Inglaterra, pela sua marinha de guerra, já zelava os
interesses do seu próspero comércio na Bahia.

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O Comandante das Armas, Pinto Garcês, recolheu-se ao brigue
Vinte Nove de Agosto. E Gonçalves Martins, pensando na resistência
que poderia oferecer o Recôncavo, rumou para Plataforma, donde
seguiu para Passé.
Para os revolucionários, a primeira etapa da partida estava ganha.
Agora, era dar forma à vitória, organizá-la e consolidá-la. E para que
não faltasse um traço vivo da soberania popular à rebelião, dirigiram-
se à Câmara Municipal, que era a mais alta expressão da vontade do
povo. Desde a Colônia que as Câmaras sempre haviam representado
a força de opinião pública contra o absolutismo. Eram elas que
representavam a Coroa contra as autoridades desmandadas. Nelas
estava o centro de resistência brasileira. E pelas 11 horas os sinos do
Paço Municipal repicaram, chamando os vereadores. A solenidade
de uma sessão ia consagrar as idéias dos revolucionários. O povo
aglomerou-se na Praça do Palácio, onde a tropa rebelde desfilava
festivamente. E, nesse ambiente, instalou-se a Câmara para exprimir
a “opinião geral da província”. Não ia deliberar — seria o porta-voz
da revolução. Tudo quanto se deveria fazer já fôra assentado e debatido.
Desde as idéias até os nomes (217). A precipitação do movimento
deve ter causado, aliás, algumas dificuldades com refêrencia aos
dirigentes a escolher. Os conspiradores não haviam tido tempo de
discriminar as funções de cada qual. A vitória surpreendera-os antes
da partilha. Agora era mais difícil. Não se distribuíam cargos ainda
dependentes do bom ou mau êxito do movimento: repartiam-se os
despojos de um triunfo. Talvez por isso despertasse ciúme a designação
dos postos. Para o posto supremo, de Presidente, houve um meio
hábil de contornar as ambições: escolheu-se um ausente, Inocêncio
da Rocha Galvão, que se encontrava nos Estados Unidos e tinha
sido companheiro de Sabino na Revolta dos Periquitos. Para substituí-
lo, designou-se o Vice-presidente João Carneiro da Silva Rego,
homem mais afeito ao comércio do que à política, mas de qualquer
modo investido no mandato de Deputado à Assembléia Provincial.

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E a Sabino tocou a Secretaria do Governo, donde tudo orientaria
com a sua capacidade. Dava-se-lhe a função principal, mas se lhe
negava o título de Presidente.
E a Câmara, interpretando o sentimento geral, proclamou a
Independência e a República. Por uma aclamação, a Bahia ficava
“inteira e permanentemente desligada do governo denominado —
Central do Rio de Janeiro e considerado Estado livre e independente”
(218).
Fora um golpe branco. Fizera-se sem ódio e não se registrou
sequer uma vingança pessoal dos vencedores. E embora a cidade
permanecesse por mais de 24 horas sem governo, pela indecisão do
Vice-presidente, “nunca a Bahia esteve mais tranqüila que nessas horas
sem governo” (219). O momento, porém, era de recompensar os
que haviam contribuído para a implantação do novo regime. A cada
oficial deram-se dois postos de acesso e aos soldados 600 réis e farda,
igualado o soldo do Exército ao da Polícia, e concedeu-se anistia aos
militares. Cortejava-se a tropa. Mas se não impedia que, desde o
primeiro dia, diz Daniel Gomes de Freitas, Ministro da Guerra dos
rebeldes, houvesse desgosto por causa das promoções. Ele, aliás, fôra
um dos mais bem aquinhoados: de primeiro tenente passara a tenente-
coronel. Era dos que mereciam mais do que os dois galões dados a
granel. O Major Sérgio José Velloso fôra elevado a brigadeiro, o Major
Inocêncio Eustáquio de Araújo, a coronel; e o Segundo-tenente
Nunes Bahiense, a major.
Da Capital começou o êxodo. Na praça que seria sitiada ninguém
desejava permanecer. A população retirava-se ou fugia para o
Recôncavo, utilizando-se dos barcos e dos saveiros que cruzavam a
baía, repletos de emigrantes.
A revolução, nos primeiros dias, esteve parada. A vitória fácil
talvez lhe tivesse tirado o ímpeto necessário para deslocar-se e
propagar-se. Ficou circunscrita à capital. Aí tinha tudo, mas fora tudo
lhe era adverso. Perdeu-se tempo em proclamações, em ditirambos à

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vitória. Além disso, a revolução sofrera dois grandes revezes. Um na
fuga dos tesoureiros Almeida Couto e João Lopes de Leão, que
levaram consigo cerca de quinhentos contos. Disso, a conseqüência
seria a falta de dinheiro, obrigando dentro de pouco tempo a emissão
do papel com curso forçado, mas que o comércio se recusava a receber.
O outro, com a defecção da polícia, que, sob a orientação do
comandante Sande e do Dr. Antônio Simões da Silva, deixou a cidade,
indo acampar em Pirajá, sob a bandeira do Governo.
Enquanto a revolução estagnava, o Governo preparava a reação,
ganhando com o tempo a organização de que precisava após a derrota
inicial.
Por que parou a revolução? Os seus dirigentes, todos eles
conhecedores das lutas da Independência, deveriam ter compreendido
que a posição da capital seria precária se não contasse com o
Recôncavo. Sem esquadra que evitasse o bloqueio marítimo, o
caminho único que se lhes deparava para o abastecimento da Capital
era o Recôncavo. Sem este, a partida estaria perdida desde o início: a
melhor hipótese seria resistirem até a fome. É provável, porém, que
esperassem, no interior, adesões tão entusiásticas e preciosas como as
da tropa da Capital. E, ao invés de provocarem-nas pela presença e o
contato, marchando para o Recôncavo, preferiram deter-se na cidade.
Talvez por isso não fossem vitoriosas as adesões que eles esperavam e
o Governo receiava, certo da existência de muitos focos em diferentes
pontos da Província e “que também existiam na de Pernambuco e
em muitos outros apareceriam” (220).
Fora da Capital, houve apenas pequenas agitações logo
malogradas pela ação das autoridades. Assim, em Itaparica, onde o
Juiz Municipal José Plácido dos Santos e o Padre Francisco Pereira
dos Santos venceram as tendências rebeldes de Barros Galvão (221);
na cidade da Barra, onde o pai de Cotegipe evitou o pronunciamento
da Câmara, em favor do movimento (222), que chegara a ser
aclamado pelo Juiz Souza Rabello e pelos Juízes de Paz Francisco

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Malaquias e Manoel Cabral; em Vila Nova (223), que ameaçara
insurgir-se sob a chefia do Tenente Baraúna; em Caravelas,
zelosamente vigiado pelo Juiz Albino José Barbosa de Oliveira (224);
e na Feira de Santana, que malgrado o dinheiro para aí enviado pelos
rebeldes da Capital, só aderiu ao movimento quando militarmente
ocupada pela expedição de Higino Pires Gomes (225).
No Recôncavo, a alma da resistência foi Gonçalves Martins. Em
sete dias convocou forças e foi acampar em Pirajá, onde já estava a
Polícia. Não havia faltado o concurso da agricultura abastada, que
dominava a orla da Baía de Todos os Santos: Cachoeira, Santo Amaro,
Maragogipe e a Villa de São Francisco logo correram, pela sua burguesia
conservadora e fiel ao trono para a defesa da ordem legal, com gente
afeita aos serviços da guerra e amestrada na campanha da emancipação.
Era a nobreza rural, que se levantava a favor do Imperador, e da qual
dizia uma proclamação rebelde ao povo: “vos pretende oprimir uma
recua de desprezíveis e fôfos aristocratas, que à custa da Vossa liberdade,
só tem em vista a defesa de seus lucros” (226).
Contudo, Gonçalves Martins realizara um milagre de esforço e
organização. De Plataforma passara para Passé, onde conferenciou
com o Tenente Coronel J. I. de Siqueira Bulcão. Daí rumou para o
engenho de Baixo, para se avistar com Ignacio Bulcão e Miguel Teive
Argollo, com os quais combinou as primeiras medidas do bloqueio,
impedindo a remessa de gado para a Capital. Seguiu então para a
propriedade paterna, o engenho S. Lourenço, onde estava o
comandante do batalhão da Vila de São Francisco, Tenente-coronel
José Joaquim Chaves. Era uma cavalgada incessante através dos
canaviais e do massapê. A 8, já estava em Santo Amaro, onde sob a
presidência do Juiz José de Moura Magalhães, reuniu os amigos,
conclamando-os à luta. Em 20 horas vencera 20 léguas, apesar das
paradas sucessivas e das conferências. As alimárias deviam sucumbir
nessa corrida, que mais parecia a disputa de um record, do que a
organização de uma resistência militar.

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Se a 8 estava na Vila de São Francisco, convocando uma reunião
no velho convento dos frades franciscanos, para receber a palavra do
Comandante Antonio Rojó de Sá Barreto, no mesmo dia estava em
Santo Amaro, onde encontrava Alexandre Gomes de Argolo Ferrão,
o futuro Barão de Cajaíba.
Gonçalves Martins era incansável. Não perdia tempo. Lançou-
se em seguida para o engenho Cajaíba, donde escreveu com Argolo
ao Presidente deposto, convidando-o a vir chefiar a resistência.
Anunciava-lhe a existência de recursos, esperando que tudo estivesse
terminado dentro de 20 ou 30 dias. Em um mês, contavam dominar
a revolução.
No dia seguinte, tornava a Santo Amaro para assistir à reunião
da Câmara Municipal, presidida por um irmão, José Gonçalves
Martins. E a 12, já apeava em Cachoeira para acertar providencias
com o Coronel Rodrigo Brandão.
Atendendo ao convite que lhe fôra feito, o Presidente Paraíso foi
para Cajaíba. Ali se encontrou com Argolo, Gonçalves Martins e
Pinheiro de Vasconcellos, combinando os três as primeiras nomeações
da campanha que se ia iniciar. A Rodrigo Brandão foi dado o comando
das forças de Cachoeira e Argolo assumiu a chefia das tropas de Santo
Amaro e da Vila de São Francisco. A reação começava a se organizar e
disciplinar. Pela madrugada, partiram para Pirajá, aonde chegaram à
tarde do mesmo dia. Em sete dias, o Recôncavo mobilizara-se e já
estava às portas da cidade, entrincheirado, vigilante e dando começo
ao cerco. O Governo, nessa primeira semana, podia afirmar que tinha
feito muito. A revolução nada progredira: deixara-se sitiar dentro da
Capital. Agora, com tropas inimigas a lhe barrarem a passagem em
Pirajá, seria mais difícil expandir-se. Não tivera a celeridade de
movimentos e a ousadia de atacar. Esquecera-se de que as maiores
vitórias não pertencem aos generais mais técnicos — cabem aos mais
rápidos. Perdera a própria característica militar das revoluções, que
está em suprir por um deslocamento irregular, porém, fulminante, as

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desvantagens que possam ter diante de forças que agem obedientes à
técnica de guerra. Não suprira com o ímpeto da primeira hora, em
que tudo deve ser entusiasmo e desconhecimento do perigo, as
deficiências do futuro, quando teria que defrontar um exército regular.
Dera ao adversário o tempo bastante para se organizar. E agora o tinha
atento, acastelado em boas posições, olhando para a cidade republicana.
Por isso, em sete dias, a Sabinada já havia perdido terreno. Não
só no campo militar, mas também no plano ideológico. O quadro
da capital baiana, já era aquele debuxado por Nabuco para os dias
subseqüentes das revoluções: “O entusiasmo do primeiro momento
é uma expansão e nada custa, porém, custa muito a solidariedade
dos dias subseqüentes” (227). Realmente, desaparecido o ardor inicial,
falhadas as adesões no interior com que pareciam contar, a situação
desenhou-se angustiosa. Era a de uma península sem comunicações
por terra, com o interior, e sem uma esquadra que lhe assegurasse o
domínio do porto. A revolução ficava estrangulada dentro da Capital.
Isso, devem ter compreendido os revolucionários, ou pelo menos
uma boa parte dos que se haviam incorporado ao movimento e lhe
garantiam ainda algumas probabilidades de triunfo. Acudiu-lhes,
então, a idéia de prepararem uma retirada para a hora da derrota.
Alguma coisa que atenuasse o crime da revolução, que se desencadeara
em busca de dois ideais imperdoáveis para o Imperador: a república
e a independência.
Os revolucionários dividiram-se, então, em dois campos: os que
desejavam a revolução como ela se iniciara, a Bahia “inteira e
perfeitamente desligada do governo desmoronado — Central do Rio
de Janeiro”; e os que procuravam uma fórmula intermediária e de
conciliação entre o Trono e a Revolução. Procuravam um traço de
união que lhes garantisse a generosidade do Imperador. E isto eles
encontraram no próprio Imperador-menor: a independência e a
república existiriam somente durante a menoridade, que devia,
normalmente, terminar seis anos mais tarde. Seria o meio de evitar a

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cisão nas hostes revolucionárias. Neste sentido, oficiaram ao Governo
rebelde, pedindo a aceitação da idéia, declarando-se “convencidos
de que esta medida é tanto de suma vantagem quanto a única capaz
de fazer conseguir todos os ânimos a abraçarem a causa proclamada,
livrando o Estado do flagelo que ordinariamente se experimenta,
quando as mudanças políticas de governo não são unanimemente
abraçadas” (228). Assinava o documento a maioria dos que haviam
firmado a ata de 7 de novembro da Câmara Municipal.
Ao governo republicano, no momento, faltava força para aceitar
a luta interna: teve de transigir. Opor-se à sugestão de se colocar o
Imperador-menor acima da agitação revolucionária seria expor-se aos
perigos de uma contra-revolução dentro das suas próprias forças, e
que talvez lhe fosse fatal, imprescindível como era a coesão absoluta
para enfrentar o Governo legal. Aceitá-la seria manter a unidade,
conservar as probabilidades da vitória e adiar a solução.
Depois, se vitoriosa, a revolução poderia convergir para os ideais
com que se havia iniciado.
A corrente republicana, para a consecução dos seus objetivos,
mais convinha, no momento, a solução conciliatória. Teria de recuar,
vencida pelas circunstâncias, mas continuaria detendo em suas mãos
o governo revolucionário. Depois...
Para dar a demonstração pública do seu assentimento, o Vice-
presidente João Carneiro oficiou à Câmara Municipal, pedindo que
se reunisse para retificar a ata anterior. A sua linguagem já não era a
mesma do primeiro dia, quando prometera: “Quebrar as cadeias que
nos roxeam os pulsos, fechar para sempre os cofres da Província aos
luxos da Corte, declarar nossa independência” (229). Agora era outra,
mudara, transformara-se. Pedia que se declarasse na ata “que a
separação da província em Estado Independente era até a maioridade
de Sua Majestade o Imperador Senhor D. Pedro II” (230). De acordo
com esse desejo, a Câmara Municipal reuniu-se e emendou a ata: a
revolução, para viver, negava os seus próprios ideais.

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NOTAS
(209) Francisco Vicente Vianna op. cit. p. 603.
(210) Manoel Ferreira de Araújo Guimarães. Defesa do sargento-mor Inocêncio Eustáquio
Ferreira de Araújo. p. 4.
(211) Ministério da Justiça. Ordens imperiais 1834-1837. Arquivo Público da Bahia.
(212) Wanderley Pinho. Narrativa, p. 731.
Pela manhã, as tropas estavam dispostas para o início da luta: a sorte das armas
ia decidir a revolução.
(213) Braz do Amaral. A Sabinada. p. 19.
(214) A. Rebouças. Nova edição da simples e breve exposição. p. 200.
(215) Wandereley Pinho. Narrativa, p. 731
(216) Documento do Consulado inglês na Bahia. Officio de Souza Paraizo de 7-11-
1837. Arquivo Público da Bahia
(217) Wandereley Pinho. Narrativa, p. 732.
(218) Ata da Câmara Municipal de 7-11-1837.
(219) Wandereley Pinho. Narrativa, p. 733.
(220) Exposição dos sucessos do Marechal J. C. Callado. Salvador, 1838. p. 2. Citaremos:
Sucessos do Marechal Callado.
(221) Braz do Amaral. A Sabinada, p. 45.
(222) Informação fornecida por Wanderley Pinho, biógrafo ilustre de Cotegipe.
(223) Oficio do Presidente Pedroso de 20-1-1838. Arquivo Nacional.
(224) Memórias inéditas do Cons. Albino José Barbosa de Oliveira, a serem publicadas
brevemente por Américo Jacobina Lacombe, a cuja gentileza devemos a publicação
do seguinte trecho referente à Sabinada: “Neguei passaportes para a Bahia e
prendi o bêbado do Luiz Onofre, e o Antonio Jacinto, depois de apreendidas as
cartas dele a bordo da lancha — Maceió— do Capitão-Mór José Ignácio de
Almeida. Correu o tempo, a revolução caiu a 16 de março de 1838 e eu fui
chamado como Suplente a Assembléia Provincial e não fui por causa dos meus
imprudentes Parentes aos quais não podia valer e que estavam presos na cadeia”.
(Memórias do Cons. Albino José Barbosa de Oliveira — IV caderno).
(225) Na valiosa coleção de Aloysio de Carvalho, consultamos alguns números do Novo
7 de Novembro e do Novo Diário da Bahia, hoje raros.
(226) Novo Diário da Bahia, de 19-12-1837.
(227) Joaquim Nabuco. Um estadista.
(228) Representação de 9-11-1837.
(229) Proclamação de J. Carneiro, em 7-11-1837.
(230) Ofício reservado de B. Vasconcellos a Paraíso, em 17-11-1837. Arquivo Público da
Bahia. (Vide Anexo C).

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Capítulo X

AS IDÉIAS DO SÉCULO

P remida pelas circunstâncias, a Sabinada não pôde manter íntegra a


orientação doutrinária que a inspirara. Se os que a tramaram lhe
haviam traçado uma ideologia, os acontecimentos se incumbiram de
obrigá-la a mudar de rota. Os fatos haviam sido mais fortes do que o
sonho republicano. A revolução, para não sucumbir nos embates de
uma luta íntima, intramuros, tivera que aceitar a involução. A
república e a independência, já agora, condicionavam-se a um prazo
certo. Só existiriam enquanto Pedro II não atingisse a maioridade.
Esse retrocesso deu lugar a que muitos despojassem a revolução
baiana do seu caráter republicano e emancipador, reduzindo-a apenas
a um grande motim contra a Regência. Para julgarmos, entretanto,
das idéias da Sabinada, não nos devemos prender demais a esse recuo,
talvez simples expediente político para se fortalecer nas primeiras
horas incertas do movimento.
As revoluções fracassadas não se identificam pelas suas
transigências. Marcam-se pelas idéias que lhe deram impulso,

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agremiaram homens, agitaram os espíritos e as deflagraram. Não se
podem libertar do conflito entre os homens e os acontecimentos.
Por isso, uma vez lançadas na vida real, saídas do círculo dos
conspiradores para o ambiente largo das multidões, são obrigadas a
adaptar-se, transigir, mutilar-se, ganhando em vigor, em força, o que
perdem em pureza doutrinária, em limpidez ideológica. Mesmo para
vencerem, são levadas a poupar o sentimento conservador da maioria
respeitando as susceptibilidades do meio. Foi, por certo, esse
imperativo que fez com que o arrojo dos revolucionários fosse
substituído pela prudência da massa que eles queriam dominar. A
Sabinada, ao transformar-se numa realidade, não pôde permanecer o
que era no debate teórico dos conjurados. A idéia em marcha, para
não parar, precisou adquirir novas formas. Isso, porém, não impediria
que com o tempo retornasse ao ponto de que se afastara. Contornava-
se, talvez, um obstáculo sem perder o objetivo visado. Era como o
rio, cujas voltas, aumentando-lhe o volume das águas e assegurando-
lhe a própria existência, não o desviam do desaguadouro...
Disso uma prova flagrante é o deserto do governo rebelde, de
19 de Janeiro de 1838, que criou o ministério revolucionário. Nele
não se faz referência à ata de retificação e, sim, à de 7 de novembro,
que proclamara a república e a separação. Dizia o decreto: “Sendo
incompatível com os princípios políticos, venturosamente
proclamados no Dia Glorioso Sete de Novembro do ano passado, a
forma de governo, que até aqui tem regido este Estado, o qual,
constituído, como se acha, pela Ata em Sessão da Câmara Municipal
do referido dia, em Nação Livre e Soberana, não pode ser
administrado pelas antigas fórmulas Provinciais...” A retificação fôra
depressa esquecida.
Para se avaliar dos ideais da Sabinada, é necessário estudar a sua
etiologia, o pensamento dos homens que a realizaram, o julgamento
dos seus contemporâneos.

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A revolução, como vimos, filiou-se indiretamente à rebelião dos
Farrapos. Foi Bento Gonçalves, o animador inicial do movimento
quando preso na Bahia. O próprio Chefe de Polícia, quando escreveu
ao Presidente Paraíso, comunicando-lhe suspeitar da rebelião, o fez
nestes termos: “fui avisado por um amigo e pessoa de probidade, de
que existia um plano de revolta, até mesmo de separação, e que tal
plano era fomentado por muitos indivíduos, cujos nomes me foram
revelados e talvez deixado por Bento Gonçalves, e manejado hoje
por quem lhe deu a fuga”. Queria Bento Gonçalves articular com a
República de Piratini uma revolta baiana. E para isso mostrou “que
convinha que a Bahia fizesse o mesmo que tinha feito o Rio Grande”.
“Esta idéia agradou e se foi estendendo por todos os que adotavam
as idéias liberais”. Aí um dos primeiros passos da Sabinada. O terreno
em que se iniciou era lidimamente republicano. A idéia vinha tangida
pelos ventos do sul, onde se proclamara a República e por ela se
lutaria durante dez anos. Não podia haver mais pura inspiração
republicana para os revolucionários baianos. E esta eles jamais
abandonaram. O próprio Governo legal nunca deixou de apontar à
nação. Ainda às vésperas da revolução, quando a atmosfera se carregara
de tal modo, que o Governo julgava necessário tranqüilizar a
população da Bahia, o Presidente Souza Paraíso, na sua proclamação,
não se esqueceu de mencionar o exemplo gaúcho: “Posto que se não
possa já duvidar da existência nesta Província de um partido
desorganizador, que simpatizando com os sentimentos dos que têm
infelizmente sujeitado as Províncias do Pará e Rio Grande do Sul...”
Também o Vice-presidente revolucionário, Carneiro, no dia da
Revolução, parece querer salientar os laços existentes entre revoluci-
onários baianos e gaúchos, e diz no seu manifesto: “O Rio Grande
declara-se independente; mas o Governo dos Calmons e dos
Vasconcellos tudo intriga, tira as tropas das Províncias, prepara e
arma portugueses para suplantar os Riograndenses”. A frase parece

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não a de um aliado, pelo menos a de um simpatizante que se atira à
luta em defesa do outro.
Sente-se claramente que os alicerces da Sabinada foram batidos
sobre o exemplo dos Farrapos. Se lá se proclamara a República e a
Independência, outro pensamento não podia congregar os conjurados
baianos. O objetivo era idêntico: realizar na Bahia o que estava
incendiando os pampas. Em novembro, quando irrompeu o
movimento, a palavra de Bento Gonçalves não devia estar esquecida.
Era muito recente a sua ausência da Bahia, donde se retirara havia
menos de dois meses, depois de pregar num ambiente para o qual não
era nova a idéia republicana, que desde os fins do século XVIII tinha
penetrado na Província, sem que a deixasse depois, apesar dos revezes
sofridos no curso dos acontecimentos. O general rebelde apenas
reavivara um velho sentimento, que o mau destino reduzira a um estado
de vida latente e ao qual se abriam novas perspectivas com a luta do
Rio Grande. Foi esse sentimento que organizou a revolta da Sabinada
que “no fundo tinha índole semelhante à de Piratini”.
Na preparação do movimento, se aparece um objetivo
permanente, um ideal invariável, este era o da separação, que equivalia
à República. Ainda não se desenvolvera no país o sentimento de
unidade, que embora já existindo com a Independência e a criação
do Exército Nacional, só se consolidaria com a guerra do Paraguai.
Não fôra, por isso, difícil que, favorecida por causas econômicas, a
idéia separatista ganhasse terreno. Desde agosto, o Presidente Prisco
Paraíso já notara que, num ponto, eram acordes os boatos sobre um
movimento revolucionário: “quanto à separação da Província”. E já
às vésperas da revolução, Gonçalves Martins participava a Paraíso “a
existência de um plano, no qual entravam Sabino, Carneiro, e outros
dos que figuraram depois, tendo por fim separar a Bahia da união
das outras Províncias do Império”. Mas, se diretamente a revolução
se filiava ao Rio Grande, exemplo mais próximo e mais sentido, a sua
base doutrinária ainda estava na França de Rousseau, de Voltaire, de

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Achiles Murat. As vistas voltadas para o sul lembravam-se da
Convenção. A República de Piratini dava mais perspectivas do que
idéias. Estas os baianos iam buscar na Europa, enquanto os Farrapos
lhes davam a consciência da possibilidade, em terras do Brasil, de
um movimento forte em torno da idéia republicana.
Basta ver os nomes que idealizaram a revolução baiana, para
saber-se das suas velhas tendências de rebelião. Daniel Gomes de
Freitas, José Joaquim Leite, Alexandre do Carmo Sucupira, Sérgio
José Velloso, são todos eles homens afeitos a revoluções. Não estrearam
na Sabinada. Vinham de movimentos anteriores, onde se haviam
exposto em defesa de suas idéias.
Nenhum, porém, com a fé de ofício de Sabino. E Sabino era
republicano, “republicano ardente” chamou-o Austricliano de
Carvalho. Familiarizado com a leitura das Enciclopédias, dos
doutrinadores democráticos e republicanos, apaixonara-se pelo
sistema, que já era o de toda a América, exceto o Brasil. Assim, se
pela cultura, ele era um “francês”, pelo mimetismo era um
“americano”. E ambos o que lhe ditavam era a República.
Sobre Sabino temos ainda testemunhos valiosos, colhidos no
Sacramento Black. São os de dois colegas seus da Faculdade de
Medicina, o Cons. Vicente Ferreira Magalhães e o Dr. Aranha Dantas,
que o censuravam “por republicano”. Mais expressiva, porém, é a
sua afirmação feita a Gonçalves Martins, na ocasião em que se avistaram
na véspera do movimento: “um dia a Bahia seria independente”. E
que era a emancipação senão a república?
O ideal republicano desponta em todos os documentos deixados
pelos inconfidentes. Ao júri que os sentenciou, na Bahia, o Promotor
Público apresentou um Plano de Revolução, que é um depoimento
eloqüente sobre as inclinações doutrinárias dos réus da Sabinada.
Nele se vê a associação dos dois pólos que atraiam os espíritos
irrequietos dos revolucionários: a cultura européia e o exemplo
americano. Aquela, transplantada para o novo continente e vingando

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em toda América espanhola; este, despertando as imaginações
brasileiras, revoltadas com a solidão do Império no Novo Mundo.
Um pequeno trecho do Plano servirá para patentear a união
dos dois fenômenos políticos, em torno dos quais volteavam as
inteligências que urdiram o movimento de 37. É dele esta descrição
do panorama brasileiro, posto em confronto com a Europa e a
América: “O mesmo republicano Murat, talvez aprendendo de
Thomaz Penn, crê e afirma que a Europa será republicana nestes
cinqüenta anos. De certo, com a marcha que teve o Brasil, esse gigante,
que para assim dizer podia ser a cabeça da América, nem nestes outros
337 anos, pode lá chegar”. E continua: “Não só nos diz o já citado
republicano Murat — nós somos os americanos, como uma bola
rolando com um movimento acelerado sobre um plano inclinado; e
que não pode parar senão em seu fim”.
Ressalta aí a idéia nuclear da revolução: lançar o Brasil no plano
inclinado republicano que, aos conspiradores, se afigurava fatalidade
histórica impossível de evitar e cujo retardamento tirava ao país a
condição que devia ter “cabeça da América”. Queriam por isso realizar
a República na Bahia, antecedendo a profecia de Murat para a Europa
e acompanhando a marcha da América, toda ela republicana. O Trono
era visto como um anacronismo. Ser monarquista significava estar
fora das idéias do século, atrasado, fiel a um regime já desprezado e
atacado pelos escritores políticos mais em voga. Viam o Império
como uma humilhação imposta à nação, que se não podia ombrear
com as antigas colônias espanholas, já integradas no sistema novo,
liberal, e que se abria a todas as esperanças de liberdade e igualdade.
Mordia-os o velho ciúme entre brasileiros e platinos. Retardaram-se
na estrada do progresso. Ficáramos aferrados às instituições
monárquicas, enquanto o Prata realizara a independência com a
república. Faltava-lhes a distância para ver que, colocando o Império
entre a Colônia e a República, evitamos o caudilhismo, e, mais do
que isso, a separação. A salvação estava no barrete frígio. Com ele

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realizaríamos um grande ideal – termos instituições iguais às do Prata
e às dos livros da Europa.
Além disso, o recuo apontado pelos que negam à Sabinada o seu
ideal republicano deve ser compreendido dentro do tempo e do meio
em que se realizou. Não era a primeira vez que, no Brasil, as revoluções
— mesmo as republicanas — apelavam para esse subterfúgio da
menoridade, atirando-se de frente contra a Regência impopularizada e
ressalvando o jovem Imperador, ainda cercado pela simpatia da sua
infância. Ao sentimentalismo brasileiro, “homem cordial” que sempre
fomos, não despertava entusiasmo bater-se contra os direitos de um
órfão de pai e mãe, ainda impúbere e que brincava nos jardins de São
Cristóvão. As baterias populares assestavam-se contra a Regência. Que
culpa tinha a criança, que representava a dinastia, quanto aos erros,
aos males que infelicitavam o país? Nas camadas populares, não poderia
associar o mal-estar às instituições. O descontentamento voltava-se
contra os homens e não contra o regime.
Aí, talvez, um dos motivos que concorreram para obrigar os
republicanos da Sabinada a transigirem em meio à revolta com os
que pleiteavam a salvaguarda do Trono e do Imperador. Mais do que
isso, porém, estes encontravam uma receptividade favorável, por parte
dos dirigentes do movimento, que não podiam ignorar as cláusulas
idênticas nas rebeliões do Pará e do Rio Grande. Naquela, também,
se aclamara um Presidente que governaria “enquanto Pedro II fosse
menor”. Nesta, o primeiro manifesto de Bento Gonçalves, de 20 de
setembro de 1835, prometia sustentar “o trono do nosso jovem
monarca...” e respeitar “o juramento que prestamos ao nosso código
sagrado, ao trono constitucional”... E nem por isso deixara de existir
a República de Piratini.
Natural, portanto, que aos idealistas da Sabinada não repugnasse
a sugestão de se retificar a ata de 7 de novembro, deixando expresso
que a República subsistiria somente até a maioridade. Com isso a
rebelião ganhava novo alento, reunia em torno de si um número

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muito maior de adeptos e respeitava o sentimentalismo nacional.
Tudo isso sem se afastar do modelo escolhido — o Rio Grande. A
transação não faria desaparecer a corrente republicana, que havia
deflagrado o movimento, e que, se não pudera conter dentro dos
seus limites ideológicos, continuava na direção da rebelião.
Tanto assim que o Governo Central não deu nenhum crédito,
nenhum valor, ao regresso doutrinário. O próprio Arcebispo D.
Romualdo Antonio Seixas, pregando em Santo Amaro, exclamava
aos fiéis, referindo-se aos habitantes da capital: “Assim os pudéssemos
abraçar e vê-los reunidos sob os gloriosos estandartes da Religião e
do Trono...”. Do Trono que se haviam afastado para proclamar a
República. E um jornal oficioso, O Legalista, que se editou em
Cachoeira durante todo o período da rebelião, perguntava: “Ainda
haverá homem tão simplório que desconheça em as revoltas que vêm
aparecendo já no Pará, já em S. Pedro do Sul, já na Bahia, a mão
dum partido de conjurados, dispostos a reduzir o Brasil, a míseros
estados republicanos?” É a mesma tecla da República, sempre repetida
pelos contemporâneos da Sabinada.
Junqueira Freire, que escreveria ainda sob uma viva influência
da tradição oral, falando da Sabinada, pôs estes versos na boca de
um personagem:

Agora decida-se a sorte da guerra,


Ou morte ou República, ou servo ou senhor.

Também os versos populares, que corriam pelo Recôncavo,


assinalavam o caráter republicano da insurreição:

São Republicanos
Vossos benefícios.
Devorar dinheiros.
Devorar patrícios.

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Em verdade, que poderia significar a independência e a república,
proclamadas para vigorarem até à maioridade, senão um subterfúgio
para se conseguir a república definitiva? Acentuou Damasceno Vieira
que “A Separação por tempo indeterminado importaria em república;
porém de tal não cogitaram os sediciosos de 1837: inventaram uma
separação extravagante, a findar quando D. Pedro completasse 18
anos de idade”.
São idéias que se repelem: a instituição de um regime com prazo
determinado. No prazo, no evento futuro, se poderia ter o caminho
para tornar o velho sistema, se falhasse a experiência republicana,
não uma condição a cumprir se a tentativa gerasse resultados
satisfatórios, conquistando as simpatias da população. É absurdo
admitir-se que a República poderia ser implantada na Bahia, organizar-
se, viver durante seis anos, até 43, quando se devia realizar a
maioridade, e depois extinguir-se.
Que os acontecimentos e a pequena repercussão da idéia de
República, tanto na Capital, como no Recôncavo, obrigassem os
responsáveis pela sedição a buscarem, nessa fórmula extravagante, o
meio de se prepararem para um golpe definitivo, é bem mais provável
do que a renúncia ao ideal que os havia reunido, animado, inflamado,
até o ponto de se atirarem aos perigos de uma aventura revolucionária.
Seria demais exigir-se que, na sua própria certidão de batismo
republicano, a Sabinada deixasse inscrever o seu atestado de óbito,
por não terem os que a fizeram a habilidade suficiente para se
desviarem de um dissídio que lhes seria fatal.
Precipitando o movimento, realizado antecipadamente, os
conspiradores não tinham tido o tempo preciso para que os
descontentamentos gerais fossem levados insensivelmente, por um
trabalho paciente de catequese e de propaganda, a se agrupar em
torno da doutrina republicana. A Sabinada — com o seu objetivo
— não havia chegado a esse estágio fixado por Mitre para que sejam
possíveis os movimentos e em que “as idéias, os sentimentos, as

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predisposições morais e intelectuais do homem se convertem em
consciência individual da grande massa”.
O preparo, que deveria ter antecedido a rebelião, teria de ser
realizado dentro da própria tormenta revolucionária. Com esse
objetivo, publicaram os revolucionários um jornal, o Novo Sete de
Novembro que foi distribuído gratuitamente pela cidade sitiada “para
que em um tempo em que as idéias populares se fermentam, as boas
doutrinas se difundam e cruzem em todas as inteligências”. A
revolução, pela propaganda, procurava atrair as simpatias da
população para o ideal republicano.
Também o Novo Diário da Bahia continuava a prédica
republicana. Ao mesmo tempo em que se preocupava com a sorte
das armas, a revolução trabalhava na propaganda republicana, para
conquistar no povo o apoio que ainda lhe faltava para a vitória desse
novo sistema político. No seu número de 1º de janeiro de 38, escrevia
o jornal de Sabino: “O misero Governo do Rio de Janeiro débil e
enfraquecido de recursos no momento em que vão expirando as
esperanças de recuperar esta importante Província, e de manter a
integridade do Império”... No seu sonho republicano, os
revolucionários baianos, infelizmente, buscavam quebrar a unidade
do Império. Mas, continuava o artigo: “Supomos que tendesse a
torná-la Soberana, Independente e Republicana, sem estar bem cônscia
de que seus recursos por si só eram muito suficientes para dar-lhe
uma vida e fisionomia característica de um Estado verdadeiramente
Livre. Um dos grandes motivos certamente da nossa revolução de 7
de novembro foi a convicção em que se acham todos os Baianos, de
julgarem que a nossa Província tem aquele grau de civilização, riqueza,
recursos de todo o gênero para elevar-se a categoria das Nações do
Mundo. Sim a Bahia não é alguma destas Províncias miseráveis e
mesquinhas, como o Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Paraíba
etc. que mal podem com as suas rendas fazer face às suas necessidades
publicas respectivas”. A imprensa, para conquistar, derramava-se e

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perdia a medida. Na sua azafama de convencer, os jornalistas da
revolução usavam de uma linguagem virulenta e muitas vezes
inverídica. Na derrota, viam o restabelecimento do “sistema colonial”.
E, se apreciavam a revolução gaúcha, ia ao auge o seu entusiasmo:
“Cabe aos nossos irmãos do Rio Grande do Sul a estimável gloria de
ter aberto a porta aos grandes destinos do Brasil, de ter inflamado a
primeira sentelha da Revolução, de ter em suma feito troar no nosso
continente o grito precursor da Liberdade e Independência”. Com
isso, se procurava educar o povo, orientando-o para a República.
Reunir forças para evitar o malogro da idéia nova que já encontrava
oposição de vulto era, certamente, o objetivo interno dos republicanos.
E, para isso, o essencial era ganhar tempo, fortalecer a insurreição.
Era, no momento, impossível opor-se à ratificação da ata que
proclamara a Bahia “Estado livre e independente”, não admitindo a
transigência com os que declaravam ressalvar os direitos do Imperador,
quando atingisse a maioridade.
A revolução de 1837 queria ir mais além, longe daquelas que a
haviam antecedido, na Bahia, em 32 e 33. Enquanto nestas a idéia
central era a Federação, naquela se omitiu inteiramente o pensamento
federativo. Era que o mau êxito dos dois movimentos anteriores devia
ter disposto os rebeldes baianos a não mais tentarem o meio termo
da federação — queriam o máximo, a independência e a república.
Daí o silêncio absoluto em torno à federação. Em todos os atos da
revolução de 37, não se encontra uma palavra de referência ao antigo
ideal de muitos de seus pró-homens. O fato não pode ser levado à
conta de uma omissão involuntária, quando a maioria dos dirigentes
do movimento vinha de revoluções federalistas, em cujas proclamações
e programas tanto se repetia, até em minúcias, a adoção do sistema
federativo. O silêncio de 37 representava o abandono, a desilusão do
pensamento por que já se haviam batido. Repudiavam-no por
incompatível com a independência e a república que desejavam fundar
na Bahia. A República conseguira sobrepor-se à Federação. Por ela, se

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iam bater bravamente os revolucionários de 1837: “com uma
resistência sem igual”, na frase do general que os venceu.

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Capítulo XI

O CERCO

U ma vez delimitadas as zonas sob o domínio dos contendores —


os rebeldes com a Capital e os legais senhores do Recôncavo —, ambos
compreenderam que se iria reproduzir o mesmo mapa militar da guerra
da Independência. A vitória deveria caber àquele que conseguisse cortar
as comunicações do outro, impedindo-lhe o abastecimento de gêneros
e armas, indispensáveis à ação militar. Para isso, o essencial era o domínio
do mar. Quer para a Capital, quer para o Recôncavo, o caminho era o
mesmo: a baía de Todos os Santos. Nessa disputa, a posição dos legais
era evidentemente superior. Podendo apoiar-se numa frota regular, que
cruzaria a barra livre das fortalezas e indiferente à ação da pequena
esquadra dos rebeldes, os legais seriam os senhores do comércio
marítimo da Província.
A luta, portanto, apresentava-se num campo de ação propício
ao Governo. Este, para vencer, não necessitava mais do que o fator
tempo, à espera que se esgotassem as reservas rebeldes, caso a guerra
se mantivesse dentro desse traçado inicial.

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A própria Regência, apesar de afastada do cenário dos
acontecimentos e ainda sem o conhecimento pleno da situação, de
logo se apercebera que o melhor meio para vencer a revolta era o
cerco. Foram nesse sentimento as suas primeiras instruções para a
Província. A 15 de novembro recebera Bernardo de Vasconcellos o
ofício, que a 7 lhe enviara Souza Paraízo, comunicando a rebelião. E
logo, a 17, enviando ordens minuciosas sobre a orientação a ser
tomada pelo governo local (231), acentuava: “Podendo concorrer
para a mais pronta derrota dos revoltosos o assédio da cidade o Regente
interino lembra a V. Excia., e desde já a declararia, e aos outros pontos
ocupados por eles em rigoroso bloqueio, se tivesse conhecimento
mais circunstanciado do estado da Província. Este assédio V. Excia.
procurará tornar efetivo, interceptando as comunicações por terra, e
mar com destacamentos e vasos de guerra.”
A distância e a preocupação com outras lutas internas não tirara
à Regência a capacidade de aprender com nitidez as situações que se
ofereciam aos seu exame. Num relance, havia a única ordem possível
no momento: a manutenção do cerco. Nesse sentido, aliás, durante
mais de dois meses convergiria a sua ação. Reduzir o inimigo pela
fome, pela falta de munições, pelo cansaço, foi o plano que se traçou
o Governo. Aliás, Alexandre Argolo e Gonçalves Martins quando, a
10 de novembro — três dias depois da revolução — escreveram a
Souza Paraízo, convidando-o a vir chefiar a resistência, já aconselhavam
o bloqueio. Diziam eles: “Marchando V. Excia. para aqui, [Engenho
Cajaíba] deve dar ordens mais terminantes para que um dos Brigues
aperte o bloqueio da Barra não permitindo que os gêneros de primeira
necessidade desembarquem na Bahia e sim para o Recôncavo. O
segundo brigue deve avançar até defronte do Forte de Itaparica e
apoiado pela Companhia dos Imperiais Marinheiros segurar o ponto
da mesma Itaparica e formar o bloqueio por esse lado. Não receie V.
Excia., que o brigue não possa aproximar-se da Ilha, porque na guerra
passada [Independência] teve isto lugar no ataque do Forte”.

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Os rebeldes é que parecem não ter visto a situação com a mesma
clareza dos seus adversários. Mal compreendendo as desvantagens
que teriam numa luta parada, aceitaram o cerco. Ou melhor,
pretenderam o bloqueio das forças governistas do Recôncavo, quando
não tinham elementos materiais para torná-lo efetivo, já que o poder
de alcance das baterias das fortalezas da Bahia não era suficiente para
impedir a passagem das embarcações que entrassem, procurando a
proximidade de Itaparica. Contudo, decretaram o bloqueio dos
legalistas. Após comunicar ao cônsul inglês ter sido “Proclamada a
Separação desta Província, elevando-a à categoria do Estado Livre e
Independente”, João Carneiro testemunhou o seu desejo de manter
as mesmas relações de cordialidade com as nações amigas (232). Visava
com isso ter o auxílio da Inglaterra na realização do bloqueio dos
legais, auxílio, sobretudo preciso por estarem fundeados na Bahia
alguns vasos britânicos, que apreciavam a nossa luta interna e zelavam
pelo interesse dos súditos ingleses.
A Inglaterra, porém, não parecia disposta a atender a nenhum
bloqueio. Vender a ambos, enriquecer o seu comércio, esse, sim, era
o seu objetivo. Daí os incidentes que, durante todo o período da
rebelião, surgiram entre os representantes ingleses e as duas facções
em luta, ambas a desejarem um apoio mais eficiente da pequena
esquadra britânica surta no porto. Esta, porém, limitava-se, de quando
em quando, a mudar de posição, para permitir que as fortalezas
revolucionárias e os vasos legais trocassem alguns tiros, sem a atingir.
Apesar disso, o Samarang e o brigue Batersly, foram vítimas de tiros
perdidos dos Fortes do Mar e da Gamboa.
Quanto a respeitar o bloqueio mútuo, a ação inglesa nunca
passou de promessas. Custava pouco prometer aos dois governos —
o rebelde e o legal — que as embarcações inglesas só comerciariam
com um deles, enquanto sob os olhares irritados e impotentes de
ambos eles continuavam a vender aos dois contendores, tornando
cada vez mais próspero o comércio inglês no Brasil, definitivamente

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instalado desde a abertura dos portos. Por isso, enquanto João
Carneiro oficiava ao Cônsul inglês, estranhando que rumassem para
o Recôncavo navios de sua nação “tendo muitos deles fazendas a
bordo e até outros gêneros, que podem servir ao partido dissidente
desta Capital” (233), o Presidente Pedroso avisava ao mesmo cônsul,
referindo-se aos navios ingleses: “faça V. S. que eles para ai [Itaparica]
se dirijam, na certeza de que qualquer que tiverem pagado aos rebeldes
lhes será repetidos pelo governo legal”.
Ao Governo legal não bastava, porém, cortar as comunicações
dos rebeldes, sitiando-os na Capital. A guerra requeria ainda que
fossem privados das fontes de receita, a fim de que, empobrecidos,
não pudessem conseguir com o dinheiro aquilo que não podiam
obter pela força: o comércio com o estrangeiro. E Miguel Calmon,
Ministro da Fazenda, escrevia ao Presidente Pedroso: “convirá privá-
lo de todos os meios que possam habitá-lo a persistir na revolta”,
acrescentando: “é o mais notável o da arrecadação das Rendas Públicas
pela Alfândega e Consulado, rendas que, aliás, podem ser percebidas
fora da cidade, como se praticou, embora em ponto pequeno, na
guerra da Independência” (234).
Antes de recebida a ordem de Miguel Calmon — tanto agiam
todos embebidos nas lições das lutas da Independência — já não
escapara, porém, ao Presidente Pedroso a necessidade apontada por
aquele. A 1º de dezembro, Pedroso comunicara ao Cônsul inglês:
“tendo este governo resolvido cortar toda a comunicação do
Recôncavo com os rebeldes, que ocupam a Capital desta Província,
estabeleceu na Vila de Itaparica, onde existe bom ancoradouro para
as embarcações d’alta navegação, uma alfândega onde poderão fazer
as suas descargas”.
A guerra, porém, como que paralisara. Afora um ou outro
combate sem conseqüências maiores, tudo se resumia em tiroteios de
pouca monta, ineficientes. Quer de um lado quer do outro, só uma
tática predominante, um objetivo, um rumo: o sítio. Tanto os legalistas,

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como os rebeldes, só insistiam num ponto: conseguir o isolamento
do adversário. Para ambos, a luta parecia resumir-se numa dessas
manobras de Estado-Maior, em que os louros da vitória cabem àquele
que consegue, nos mapas, um melhor desenvolvimento de forças e em
que o triunfo é uma simples hipótese. A linguagem de um é igual à
linguagem do outro. Vasconcellos oficia, dizendo ao Presidente da
Província: “Já V. Excia. terá recebido o Aviso, em que eu por ordem do
Regente lhe insinuei que a estar ainda ocupada a Cidade pelos rebeldes
tomasse posse da Presidência em qualquer das Câmaras Municipais,
que procurasse interceptar toda a comunicação dos rebeldes tanto por
mar, como por terra”. É de 9 de dezembro este ofício. A 15 de dezembro,
João Carneiro também oficia ao Cônsul inglês. Dir-se-ia que era uma
réplica a Vasconcellos: “nesta data este governo vai declarar em perfeita
incomunicabilidade esta Capital com o Recôncavo”.
Entre as duas atitudes, embora idênticas, havia, porém, uma
grande diferença. Para o governo legal, representava a vitória; para os
rebeldes, o suicídio. Aquele, com o tempo, fortalecia-se, congregava
novas tropas vindas de Pernambuco, de Sergipe e da própria
Província; preparava o material bélico necessário e fazia seguir para a
Bahia alguns vasos para efetivar o bloqueio e conduzir armamentos e
munições, fretando mesmo embarcações particulares, como o Paquete
do Norte, da Companhia Niterói.
Os rebeldes, aceitando o jogo do inimigo, perdiam as vantagens
iniciais da luta. Sem apoio, numa frota capaz de evitar o bloqueio
imposto pela Regência e sem canhões que impedissem a entrada das
embarcações legais no Recôncavo, os rebeldes tinham, no tempo,
um grande inimigo. Se era certo que os dias lhes permitiam melhor
aguerrir as suas tropas, contudo essa melhoria não era proporcional
aos avanços da organização militar do governo legal. Este dia-a-dia
tornava-se mais presto para a guerra. Cresciam as suas reservas de
homens e munições. Melhoravam as suas posições estratégicas.
Fortificavam-se as trincheiras. A demora da ação, portanto, de modo

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nenhum seria favorável aos rebeldes, cujos chefes retardavam a
investida, na ilusão de que romperiam o cerco quando fosse necessário.
O fato é que o sítio não tardou em fazer sentir os seus efeitos,
diminuídos os stocks dos rebeldes, que teriam depois de nomear uma
comissão de seis negociantes – Macnab, João Gonçalves Cezimbra,
Manuel Alves Fernandes Sucupira, Burcheck, João Higgin e
Guilherme Benn (235) – para regularem a distribuição dos gêneros
alimentícios na cidade, cujo comércio de cabotagem, até então
reservado aos nacionais, foi franqueado aos estrangeiros. Foi de 23
de dezembro a resolução do Governo rebelde. Dizia ela: “Que fique
provisoriamente supressa a lei que proíbe o Comércio de cabotagem
pelos Estrangeiros; e permitido aos mesmos Estrangeiros o dito
Comércio de cabotagem podendo importar para esta Capital os
gêneros do País comestíveis e fabricados; ficando sujeitos os
Estrangeiros que negociarem em tal comércio às mesmas condições
os encargos, a que estão sujeitos os Nacionais”. Para mitigar a falta
do comércio nacional, inteiramente impedido pelas forças fiéis, quer
por terra, quer por mar, os rebeldes atraíam o comércio estrangeiro,
acenando-lhe com a cabotagem. A medida, porém, não seria de grande
efeito, pois, já inteiramente dominado pela esquadra legal, o porto
rebelde somente poderia ser transposto por embarcações que iludissem
a vigilância das naus do Império. Eram poucas as que conseguiam. E
com isso consumiam-se num estacionamento pernicioso as energias
rebeldes. Tão fortes se sentiam os legais, que o Presidente Pedroso
pedia ao Cônsul inglês para se manterem os navios britânicos a “tal
distancia de terra que entre estes e eles possam ficar os navios do
Governo livres das balas dos Fortes”. E, embora não o atendessem as
embarcações inglesas, a situação do Governo legal era realmente
privilegiada. A luta que se iniciara com reais desvantagens para ele
tivera o seu panorama mudado com a inércia dos revolucionários.
Estes se haviam chumbado à capital. Deixaram-se sitiar. E a Regência
sentia que, com isso, ganhava a cartada. Mais valia aguardar, esperar

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o momento próprio e desfechar o golpe, quando tivesse absoluta
segurança do bom êxito da iniciativa. Já não era aos rebeldes que
cabia a direção da guerra. Reduzidos a uma ação defensiva, cabia
agora às tropas legais detectarem a orientação da luta. Nessa situação
feliz, podendo escolher o rumo dos acontecimentos militares, o
governo preferia manter-se na mesma direção de sitiante, desobrigado
de grandes esforços, livre da árdua missão de atacar e que sempre
requer maiores sacrifício de vida. Vencer o inimigo pela fadiga, pelo
desespero dos sitiados, foi a diretriz traçada para as operações.
Sebastião do Rego Barros, Ministro da Guerra da Regência, se
incumbiria de ditar as normas da ação a ser seguida. Fê-lo em ofício
ao Presidente da Província, traçando com prudência, bom senso e
habilidade a atitude diante da rebelião. São dele estas recomendações:
“Sendo a sorte dos combates, ainda bem concebidos, e melhor
encaminhados algumas vezes duvidosa, e ditando a prudência que
na luta em que ora V. Excia. se acha empenhado, se haja de ter em
vista a probabilidade e possível certeza do bom êxito, em tudo que
se empreender contra os rebeldes; Manda o Regente Interino em
Nome do Imperador recomendar a V. Excia que não aperigue a honra
de nossa tropa em combates parciais, que só servem de debilitar a
Força, quando ineficazes, antes previdente e cauteloso só trave ação
quando pela maioria numérica, destreza e disciplina da Tropa e
circunstancia das localidades possa V. Excia contar com a certeza da
vitória. A procrastinação dos combates ganha a causa pública e perdem
os rebeldes, por que não podem engrossar o seu número, no entanto,
que aquela recebe de todos os pontos auxílio e mais Força para de
um só golpe os aniquilar e pulverizar” (236). Estava retratado o
pensamento do Governo legal. Rego Barros, com muita precisão,
traçara o ponto de vista da Regência. Resumira-o com rara felicidade:
“com a procrastinação dos combates ganha a causa pública”.
Custaram os rebeldes a compreender tal situação, se é que chegaram
a percebê-la antes dos momentos finais, em que nada mais restava a fazer.

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Em janeiro, ainda insistiam por que os navios saídos da Bahia
não tocassem em Itaparica ou outro ponto do Governo, obrigando-
os a uma fiança antes de largarem. E, mais do que isso, permitiam a
exportação para Sergipe e para o próprio interior da Província de
gêneros de primeira necessidade, esquecidos do sítio em que estavam
e da necessidade de armazenar a maior quantidade possível de tudo
quanto fosse útil à resistência. Para Cotinguiba, chegaram a ir cinco
mil e quinhentas arrobas de charque, enviadas por Buchec & Cia.
(237). Isso, como notou Daniel Gomes de Freitas, “em uma época
em que o Bloqueio inimigo progressivamente aumentando, bem era
de presumir nos sitiasse por quanto já nós de fato privados de
comunicação pelo Interior, apenas nos restava a entrada de alguma
embarcação que escapar pudesse ou deixasse de ser descoberta por
algum vaso de guerra contrário dos que fora da Barra existiam vedando
entrada deles para a Cidade”. E se de quando em quando conseguia
vencer o bloqueio alguma embarcação, como a galera Zebra e outra
Dinamarquesa, que tanto irritaram a Regência, nem por isso deixava
de haver “iminente falta de mantimentos, o sítio em extremo
rigoroso”. Nesse ambiente de opressão, os rebeldes movimentavam-
se em preparativos lentos. Apenas João Carneiro parecia bater-se pela
necessidade do ataque rápido, imediato. Não sendo, porém, um
técnico militar, ficava subordinado às deliberações dos oficiais. Uma
vez, porém, — e isso mostra o seu desejo de ver atacado o inimigo
— não concordou com estes. Foi nas fortificações das trincheiras. O
Ministro de Guerra rebelde, Daniel Freitas, que propusera a medida,
é quem conta a resistência de João Carneiro, “que deixou de anuir
com a evasiva de que se entrincheirando o Exército jamais se
empenhariam seus combatentes por ganhar maior terreno, além do
defensivo, sendo mais difícil o vencimento das trincheiras contrárias
pela indiferença que se apoderaria deles por um tal fim”. A observação,
se inexata sob o ponto de vista militar, revela o espírito cético e sutil
que a ditou. João Carneiro não acreditou que os soldados, uma vez

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protegidos em trincheiras, delas saíssem para se expor às balas do
inimigo, que era necessário desalojar para romper o cerco.
Era, porém, surpreendente o poder de resistência dos rebeldes.
Desamparados, não recebendo senão recursos insignificantes do
exterior continuavam a manter-se nas mesmas posições e com o
mesmo ânimo. O ideal como que lhes multiplicava as energias. Apesar
de não virem os auxílios esperados, por não ter a rebelião vingado
em outros pontos da Província, eles nem por isso se entibiavam.
Dentro da indisciplina própria a um exército em grande parte
improvisado, realizavam alguma coisa de notável. A própria indústria
de guerra funcionava regularmente no Laboratório e na Fundição,
provendo a tropa de pólvora e bala. Na capacidade de resistir,
ultrapassavam todas as perspectivas do governo legal, que, apesar da
superioridade das posições e dos armamentos, já se inquietava com a
demora da vitória. A procrastinação dos combates, embora favorável
aos sitiantes sob o prisma militar, causava-lhes um mal-estar moral,
enfraquecendo-os às vistas das outras Províncias, infundindo-lhes o
receio de que o movimento repercutisse em outros pontos do Império.
Tornava-se, portanto, indispensável uma ação mais violenta para
vencer os rebeldes. Nada, porém, se faria se não se dotassem as forças
legais de um comando eficiente e experimentado na arte da guerra.
Não bastava a ação enfadonha do cerco. Era preciso atacar. Se as
tropas fiéis se haviam elevado de 1.175 praças em fins de novembro,
a 2.380 a 15 de janeiro, até atingirem 4.000 homens no final da
guerra, os efetivos rebeldes alcançavam “5.000 homens bem armados,
municiados e fortificados nas vantajosas posições da cidade”.
A Regência via escoar-se o tempo sem que se cumprissem os
vaticínios dos seus prepostos. Ao deflagrar-se o movimento, Argolo
e Gonçalves Martins estimavam em 20 ou 30 dias o prazo necessário
para debelá-lo. O Presidente Pedroso, em fins de novembro, prometia
vencer só com o auxílio de Pernambuco. Mas as profecias falharam.
Estávamos já na segunda quinzena de janeiro e a situação poder-se-ia

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dizer que se mantinha inalterada. O cerco, se produzira todos os seus
efeitos militares, não satisfazia pela morosidade aos interesses políticos
da Regência. O próprio bloqueio marítimo, decretado a 2 de janeiro
de acordo com as normas do Direito das gentes, ressalvando os navios
de guerra das nações amigas e estabelecendo o apresamento, era
burlado.
Escolheu, então, a Regência um grande nome militar para
comandar as suas forças em operação na Bahia: João Chrisostomo
Callado. Poucos desfrutariam no exército imperial de melhor conceito.
Com mais de quarenta anos de caserna, Callado conquistara pelo
valor todos os postos. Em Passo do Rosário, sob as ordens de
Barbacena, comandara a 2ª Divisão (238) e dele dissera Barbacena,
na sua parte de 28 de fevereiro de 1827, ao Conde de Lages: “O
brigadeiro Callado, comandante da divisão preencheu a minha
expectação e mostrou-se general hábil durante a retirada” (239). Além
disso, era homem afeito às revoltas baianas. A de abril de 1831
obrigara-o a deixar o comando, por exigência dos amotinados. Este
fato, se o incompatibilizava de algum modo por servir à exploração
dos rebeldes da Sabinada, que o apontavam como um inimigo da
Província, também o recomendava pelo seu conhecimento dos
homens que iria dirigir ou enfrentar.
A 21 de janeiro, Callado, vindo da Escuna Andorinha,
apresentou-se em Itaparica ao Presidente Pedroso. A sua ação, porém,
não primaria pela harmonia com este. Ciosas das suas prerrogativas,
não consentiam as autoridades civis que a eles se sobrepusessem os
militares enviados para a Província, fossem quais fossem os seus galões.
Sabiam ser corteses sem serem cortesãos. A distinção era, no entanto,
muito sutil para ser compreendida pelos homens habituados à vida
militar. Por isso, jamais se entenderam as autoridades civis e militares
da Bahia. A estas faltou o tato, que substituíram pelo autoritarismo
e o espírito de hierarquia. Labatut e Camamu são disso exemplos
palpitantes. Mesmo diante das situações mais graves, os baianos não

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cediam qualquer parcela da sua autoridade, sobretudo a quem detinha
a força material.
O dissídio entre Pedroso e Callado existiu desde o primeiro
momento. Este diria ter sido “recebido de uma maneira arrogante”
(240) por Pedroso, que ainda lhe informou ser o chefe da esquadra
um covarde. Esta referência deveria susceptibilizar o espírito de classe
do General que, além disso, iria esposar as rivalidades já existentes
entre Pinto Garcês, que com ele combatera nas guerras do sul, e o
Presidente, ao lhe dizer aquele no primeiro encontro que tiveram:
“Meu General, Deus o faça mais feliz do que eu: conto hoje ofícios
de transcendência, escritos ao Sr. Presidente sem que tenha resposta
alguma e S. Excia diz que os não abre” (241). A Regência, porém,
como que previra as divergências entre o General e o Presidente. Nas
instruções àquele (de 30-1-1838), vinha logo a advertência: “Mui
expressamente se recomenda ao Comandante das Armas que se
entenda e conserte com o Presidente sobre todas as operações que
houver de conceber e executar” (242). De nada valeu, porém, a
advertência. Pedroso e Callado continuaram às turras até ao fim.
Muito depois de vencida a campanha, os dois ainda se agrediam em
ofícios, discutindo a prisão de Francisco Xavier de Barros Galvão,
imposta pelo General (243). Isso não impediu, porém, que ambos
continuassem nos seus postos, servindo à causa legal: comunicavam-
se e atacavam-se com cerimônia.
Não aconteceu o mesmo com Theodoro Alexandre Beaurepaire,
natural de Toulon e comandante da Divisão Naval (244). A esta
cabia a responsabilidade do bloqueio marítimo, ponto essencial para
as operações das forças legais. Enquanto a ação das forças de terra
ficava sujeita ao debate, sendo difícil apontar os erros das evoluções
militares, sempre sujeitos a apreciações contraditórias, a ação das forças
navais patenteava-se em fatos. Podia-se discutir a conveniência ou
não de um ataque. Justificava-se a ocupação ou não de uma posição.
No bloqueio do porto, porém, era diferente: tudo se resumia a um

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fato único: a entrada ou não de embarcações. E se estas ganhavam o
porto, só havia uma conclusão: o bloqueio falhava. Era um fato
contra o qual não havia defesa possível, dado o domínio absoluto da
esquadra sobre a Barra. A acusação se impunha: a esquadra dormia...
Daí, o cuidado com que Rodrigues Torres, Ministro da Marinha,
escrevia a Pedroso: “faça sair freqüentemente todas as vezes que as
circunstâncias dessa Província o permitir, e cruzar nas suas águas pelo
maior espaço de tempo que for possível os navios de Guerra que ahi
estão” (245). Nem por isso deixou o bloqueio de ser iludido varias
vezes. E Pedroso, para não tomar a si a responsabilidade do fato, não
contemporizou — denunciou aquele que lhe parecia culpado, o
Comandante do brigue 3 de Maio (246). Veio a resposta da Corte,
autorizando o Comandante da Divisão Naval, a nomear e remover
os oficiais sob as suas ordens, inteirado como estava o Ministro da
Marinha da ação do Comandante do 3 de Maio, visto “não ter ele
empregado toda a sua eficácia em impedir a entrada para a Cidade de
algumas embarcações, no lugar onde teve ordem de cruzar” (247).
Molestou-se Theodoro Beaurepaire com a acusação de Pedroso
a um subordinado e que também era seu colega de farda. Mas, além
do espírito de classe, Beaurepaire não podia deixar de sentir que a
censura também se estendia a ele, que era o responsável imediato,
direto pelo bloqueio. Preferiu, por isso, demitir-se. No curso da luta,
que despertara tantas rivalidades, tantos despeitos e dissensões entre
os que combatiam os rebeldes, era esta, entretanto, a primeira vez
que uma rusga passava dos limites íntimos dos bastidores, para surgir
na publicidade de uma exoneração. Era um mau exemplo e um
péssimo precedente, principalmente quando o Governo sabia não
ser esta a única desinteligência dentro das suas hostes. Cabia-lhe
contornar a situação, evitando a demissão de Beaurepaire que, escrevia
Rodrigues Torres a Pedroso, “não por ter origem senão em
mesquinhos ciúmes e rivalidades que desprezíveis em si mesmos,
podem, contudo ter tão funestos efeitos, se chegarem a vingar e tomar

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corpo no meio das dificuldades com que tem de lutar o Governo
geral e V. Excia para sufocar a rebelião nessa Província” (248). E na
mesma data dirigia-se a Beaurepaire, negando-lhe a demissão:
“quaisquer que sejam os motivos [do pedido de exoneração] não
devem ter tanta força, como o dever que tem V. S. de corresponder
à confiança que lhe mostrou o Governo Imperial nomeando-o para
a honrosa comissão de que se acha encarregado”. Com isso adiou-se
apenas uma situação irremediável. O dissídio entre o Presidente e o
Comandante da Divisão Naval já atingira a um ponto, em que os
bons ofícios do Ministro da Marinha eram apenas um pouco de azeite
lançado sobre o mar bravio: a calma era passageira. Não durou muito
o modus vivendi. Apesar de Pedroso escrever para o Rio, informando
ser “o bloqueio reconhecido pelos cônsules aqui residentes” (249),
a verdade era que alguns navios estrangeiros não deram grande
importância às determinações da Regência, rompendo-o a cada passo.
E muitos, com a autorização do governo rebelde, entendiam-se com
as duas facções em luta. Assim a fragata francesa Sapho, os brigues
suecos Eduard e Joel, e o brigue dinamarquês Anna Dorothéa. Era
apreciável o movimento do porto. No entanto, nada irritava mais a
Corte do que saber violada a sua ordem de bloqueio. Cada embarcação
entrada na Bahia representava um novo alento para os rebeldes e o
conseqüente retardamento da rendição que há três meses se esperava
ansiosamente.
Desta feita quem transpôs o bloqueio, ancorando no porto
rebelde, foi uma galera Dinamarquesa, com um grande carregamento
de farinha. A indignação do Governo central chegou ao auge. Já não
havia como contemporizar. E em termos ásperos, oficiou para a Bahia
estranhando que a galera Dinamarquesa iludisse a vigilância da
esquadra “sem que nem ao menos lhe fosse intimado o bloqueio do
dito porto, e parecendo ao mesmo Governo [imperial] incrível que
fatos de semelhante natureza ocorram sem o maior desleixo da parte
do Comandante da Força Naval...” Era a demissão de Beaurepaire.

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Substituiu-o Frederico Mariath, a quem logo no dia seguinte se
mandava apurar as causas da inércia da fragata Príncipe Imperial, de
que era comandante Rodrigo Theodoro de Freitas.
O bloqueio não era, porém, assunto em que transigisse a
Regência. Advertiu-se por isso Mariath, ao mesmo tempo em que se
lhe ordenava a nomeação de um Conselho de Investigação, para apurar
o ocorrido, em termos enérgicos: “ficando V. Mce. outrossim na
inteligência de que o Governo o fará responsabilizar pelo
comportamento dos seus subordinados se contra eles não proceder
V. Mce. imediatamente que pratiquem qualquer ato menos em
harmonia com os princípios de severa disciplina, que cumpre manter
a bordo dos Navios de Guerra, em que por qualquer maneira, revelem
falta de inteligência ou coragem, qualidades essenciais em um Oficial
de Marinha”. E estranhava que a galera Dinamarquesa houvesse
transposto a Barra, “apesar das terminantes ordens do mesmo
Governo [imperial] e do crescido número de Embarcações de guerra
que ali existem, dando-se deste modo alento aos Rebeldes e
procrastinando-se o termo dos desastres que sobre essa Província
pesam”. As ordens rigorosas da Regência não pareciam bem
cumpridas. E ela ameaçava os desidiosos, responsabilizando-os pela
violação do bloqueio, ao mesmo tempo em que enviava novas
embarcações de guerra. Ainda em fevereiro, vinha a fragata
Regeneração, comandada por Joaquim Marques Lisboa, o futuro
almirante Tamandaré.
A esquadra inglesa continuava, porém, como um obstáculo à
ação das forças legais. Indiferente às recomendações do Presidente
Pedroso, as naus britânicas permaneciam fundeadas próximas à terra,
e este insistia por que fossem cumpridas as suas instruções, pois,
escrevia ele ao cônsul inglês: “não sendo até hoje atendida tão justa
como necessária requisição continuando a permanecer as mencionadas
embarcações [inglesas] ancoradas junto à terra não será fácil evitar-
se, travado algum combate que alguma bala lhes chegue”.

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Não era, no entanto, essa perspectiva de serem atingidos os navios
ingleses que molestava o Governo legal. A causa era outra. No local
em que fundeara, a esquadra inglesa protegia o contrabando e
prejudicava o bloqueio.
A chegada do General Callado ia, porém, mudar a fisionomia
da guerra. As tropas legais abandonariam a tática morosa do cerco,
para tomarem a iniciativa do ataque. Dir-se-ia, no entanto, que os
dois exércitos inimigos consertavam-se na escolha dos planos militares:
também os rebeldes, após um longo período de apatia, renegariam a
atitude defensiva para se lançarem na aventura dos combates. Ambos
pareciam impacientar-se, cansados da monotonia das trincheiras, em
que a luta se prolongava infindável, sem vantagens para qualquer
lado. A guerra entraria, agora, na sua fase violenta, decisiva, trágica.

NOTAS
(231) Vide Anexo C.
(232) Documentos Ing. Ofício de 15-12-1937.
(233) Ofício de João Carneiro ao Cônsul inglês, em 8-11-1837. Documentos do consulado
inglês. Arquivo Público da Bahia. Citaremos: Docs. Ing.
(234) Ministério de Fazenda. Ordens imperiais 1834-1841: ofício de 28-11-1837.
Arquivo Público da Bahia.
(235) Góes Calmon op. cit. p. 59.
(236) Ordens imperiais: ofício de 10-12-1837. Arquivo Público da Bahia.
(237) Daniel Gomes op. cit. p. 651.
(238) Tasso Fragoso. Batalha do Passo do Rosário, p. 216.
(239) Op.cit. p. 374.
(240) Sucessos do Marechal Callado, p. 2.
(241) Idem.
(242) Ministério da Guerra. Ordens imperiais, 1838. Arquivo Público da Bahia.
(243) Sucessos do Marechal Callado, p. 35.
(244) Celso Schröder. Efemérides de revolução rio-grandense, 1835-1844. Anais do
Primeiro Congresso de História e Geografia Sul Rio-Grandense. v. 2.
(245) Ministério da Marinha. Ordens imperiais: ofício de 13-1-1838. Arquivo Público
da Bahia.
(246) Op. cit. ofício de 11-1-1838. Arquivo Público da Bahia.

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(247) Op.cit. ofício de 22-1-1838. Arquivo Público da Bahia.
(248) Op. cit. ofício de 1- 2-1838. Arquivo Público da Bahia.
(249) Ofício de Pedroso de 20-1-1838. Arquivo Nacional.

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Capítulo XII

OS ESTRANGEIROS E A REVOLUÇÃO

N as revoluções brasileiras, a figura do estrangeiro aparece como


uma constante. Seja com maior ou menor influência, lutando ou
simplesmente animando para desaparecer na hora do perigo, é raro o
estrangeiro não estar presente aos nossos movimentos de insurreição.
Por isso, talvez, a atitude oficial de desconfiança que tivemos, desde
a Colônia, em face do filho de outras terras. Nunca o vimos como
pessoa capaz de colaborar franca e desinteressadamente conosco. E
até hoje, quando o cosmopolitismo das capitais mitigou essa
modalidade de xenofobia, ainda a vamos encontrar bem viva em
muitos pontos do interior.
A própria Coroa se incumbira, aliás, de difundir e fixar nos
nacionais esse horror ao estrangeiro. Diante dele, a nossa gente ficava
de pé atrás, entre um temor meio cívico e meio religioso. O governo,
a sociedade, a família, todos ficavam em sobressalto na presença do
estrangeiro. “Pois não diziam todos — a carta régia, o sermão do

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padre, a tradição popular, a crônica da terra — que o estrangeiro era
espião, traficante ou renegado?” (250).
Mr. Kindersley, que esteve na Bahia em 1764, queixava-se de
ter permanecido durante todo tempo de sentinela à vista (251). Nesse
horror ao alienígena não poupávamos nem sequer às mulheres.
Bastava não ser filho de Portugal ou do Brasil para que aos nossos
olhos fosse um suspeito. De tanto repetida, a lenda em torno
estrangeiro identificara-se inteiramente conosco — era mais do que
um sentimento, era quase um instinto.
E o governo deixava — até auxiliava — que a desconfiança
indígena diante do homem de outras terras, se infiltrasse, corresse
mundo, dominasse todos os espíritos.
Nos primeiros tempos, evitava com isso, de algum modo, o
comércio clandestino, o contrabando, que não poucos forasteiros,
diz La Barbinais, lançaram nas prisões da Bahia. Depois, dos fins dos
séculos XVIII em diante, mitigava a ação dos estrangeiros portadores
das idéias novas que convulsionavam a Europa. É a época em que o
estrangeiro não era apenas o traficante, mas, também, o introdutor
das idéias jacobinas, o revolucionário, o perturbador da ordem.
A Sabinada não podia fugir à regra. Teve, por isso, de sentir a
ação do elemento estranho ao País e que para aqui trouxera o seu
pensamento, com a acolhida dos espíritos irrequietos e que não
participavam desse temor generalizado diante do alienígena.
Eram franceses, ingleses, italianos e portugueses, cada um a tomar
o partido das suas preferências. O lusitano era conservador, legalista,
retrógrado. Os revolucionários odiavam-no. Os ingleses eram os
comerciantes. A luta para eles era apenas um bom mercado em que
cevavam as suas ambições de lucro. O seu ideal era vender. Não
tomavam partido. Com uma esquadra surta no porto, continuavam
a comerciar com ambas as facções, através das firmas britânicas da
Bahia, já prósperas nessa ocasião. Robson & Cia., Harnson Lathan
& Cia., Franside Jusus & Cia., Buchek & Cia., Mellors Russell &

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Cia. representavam todas elas o bom senso comercial inglês, a rede
econômica que sobre nós lançara a Grã-Bretanha, desde a abertura
dos portos e que ainda mais florira após a Independência. De
discussão satisfazia-se com as referentes aos impostos... (252).
Os franceses e italianos, porém, não se satisfaziam em assistir
inertes ao desenrolar dos acontecimentos. Eram bem latinos, para se
inflamarem pelas idéias. Aqueles tinham pela causa rebelde a simpatia
de republicanos. Nem o Cônsul Dugrevil conseguia ficar indiferente,
talvez seduzido por Sabino a quem homizou nos dias trágicos da
derrocada. Acompanhou os sentimentos do seu patrício Alexandre
Gueulette e com ele animou os revolucionários, auxiliou-os, deu-
lhes o apoio da sua autoridade. Com isso perdeu o consulado,
suspenso das funções pelo seu governo. E Gueulette, anistiado em
1840, foi posto fora do Império.
Não eram assim os italianos que tanto preocuparam a Regência.
Estes, talvez fossem carbonários, expatriados no segundo quartel do
século XVIII. Assim como no Rio Grande, formavam entre os rebeldes
Zambecari e Garibaldi, suspeitava o Governo Imperial — e há nisso
mais um traço a aproximar a Sabinada dos Farrapos — que os colonos
italianos da Bahia fossem também partidários da revolução. Aqui estavam,
entre outros, Zama, Baggi e Spinola, que deixaram ilustre descendência
baiana (253) e que se haviam expatriado por serem republicanos. A
suspeita transportou-se mesmo para a imprensa. E o Eco da Religião e da
Pátria chamava a atenção do Cônsul italiano por constar “que alguns
colonos italianos se alistaram entre os rebeldes” (254).
Rego Barros, porém, era mais enérgico nas suas ordens contra
os estrangeiros e principalmente os italianos. É dele este ofício que
mostra o ambiente da desconfiança existente em relação aos forasteiros:
“Sendo da maior solicitude do Governo Imperial, não omitir
qualquer meio que pareça conducente a acelerar o restabelecimento
da Ordem na Capital dessa Província que infelizmente continua a ser
presa dos Sediciosos e Anarquistas, apoiados por Estrangeiros díscolos

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e perversos, que esquecidos da neutralidade que deviam guardar se
tem, aliás, ingerido em dissensões Políticas, e dado porventura calor
e direção aos rebeldes: Manda o Regente Interino em Nome do
Imperador lembrar e recomendar mui particularmente a V. Excia.
que procure por todos os meios separar da Capital todos os
Estrangeiros, principalmente os Italianos, que consta são os mais
encarniçados inimigos da Ordem; e chamando-os por meio de
aliciações, que logo se lhes verifiquem, já por qualquer outro meio
que a prudência de V. Excia. sugerir” (255). O Governo via os
estrangeiros com os mesmos olhos dos seus antecessores coloniais.
Temia o forasteiro. Sabia não ser elemento com que pudessem contar
a ordem e as instituições. Por isso vigiava-o. Preferia mesmo pecar
pelo excesso, de que pela imprevidência. Mas, vencida a guerra, não
apareceram entre os culpados os italianos de que tanto se arreceiou o
Ministro da Guerra. Por que? Contentamo-nos em assinalar o fato.
Mas, se o Governo temia franceses e italianos, os rebeldes tinham no
português o alvo predileto da sua xenofobia. Eram eles que pagavam
o maior tributo ao nacionalismo revolucionário. Se se tinha de
queimar uma propriedade a escolha recaia, não sem justificação, na
de um maroto. E se o caso era de saquear um armazém também não
mudava o pendor nacional: atirava-se contra o português. Estávamos
muito perto da guerra da Independência: o luso era o traidor, o
tratante, o espião, o inimigo, enfim. A preferência, porém, não
impedia que nos momentos de desespero as iras populares se
voltassem contra os filhos de outras nações, que não Portugal. Nos
últimos dias da Sabinada, três franceses foram presos na Capital, sob
a acusação de se comunicarem com a esquadra legal, por meio de
sinais luminosos. A população queimou-lhes as propriedades ao
Unhão. Ingleses e franceses eram vítimas do ódio rebelde, provocando
incidentes de caráter internacional. E João Carneiro, havendo afirmado
que o seu governo “jamais consentirá que se viole o Direito das Gentes,
e as relações Universais, que ligam os Povos entre si”, resolveu que

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os estrangeiros usassem um distintivo que indicasse a nacionalidade
de cada qual. Escreveu, então, ao Cônsul inglês: “Queira V. S. ordenar
aos súditos da sua Nação, que d’ora em diante tragam no chapéu os
laços que distingam a sua mesma Nação”.
Com isso, evitavam-se os equívocos. Marcavam-se as fronteiras
da amizade. E se algum estrangeiro passeava pelas ruas, todos sabiam
se eram amigo ou inimigo, conforme a fita que ostentasse no chapéu.
Não foram poucos, porém, os que iludiram a cordialidade
nacional, valendo-se da sua condição de estrangeiros, para viverem
num vai–e-vem constante entre as posições rebeldes e legais,
contrabandeando mercadorias. Mas, em fevereiro, Sabino se dispôs a
acabar com o abuso. Intimiou-os, então, a escolher: teriam que optar
entre a Capital e o Recôncavo. Aos estrangeiros apresentava-se o
dilema: com a República ou com Império.

NOTAS
(250) Pedro Calmon. Espírito da sociedade colonial, p. 245.
(251) Affonso Taunay. Na Bahia colonial, p. 386.
(252) Docs. Ing. Ofício de João Carneiro de 8-3-1838.
(253) Zama foi o pai de César Zama. Baggi casou-se com uma irmã de Gonçalves
Martins. Spínola é o tronco da ilustre família baiana desse nome.
(254) Arquivo Nacional, cx. 1003-2.
(255) Ministério da Guerra. Ordens imperiais: ofício de 30-12-1837. Arquivo Público
da Bahia.

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Capítulo XIII

AÇÃO MILITAR

P ara a inércia das tropas rebeldes, muito concorrera a defecção da


força policial que, sob o comando de Manoel Coelho de Almeida
Sande e do Chefe de Polícia Antonio Simões da Silva, se retirara da
Capital, indo acampar em Pirajá. Diante do fato imprevisto, a
revolução ficou perplexa, estarreceu. As opiniões se dividiram entre
perseguir os desertores ou deixá-los se afastarem sem incômodos.
Temeu-se, porém, que o Batalhão 3º de Caçadores “único então nas
circunstancias de tentar tão ardua empresa”, qual a de atacar a polícia,
seguisse igual destino ao dos retirantes e se preferiu proteger a
retaguarda, evitando um desastre maior.
Desse modo, desorganizara-se por completo o exército rebelde
que a imprensa legal estigmatizava em trechos com este: “De soldado
se vai a Tenente, de Tenente, a Coronel, de Coronel a Generalissimo;
eis o exército do Sabino que não tem soldados rasos” (256). A essas
mofas respondia o entusiasmo revolucionário em quadras de louvor
aos seus heróis:

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Eia, portanto, Capitães valentes.
Daniel, Alexandre, Limoeiro;
Vós Inocêncio, e Amaral prudentes;

Vós hábil Nunes, Chavier guerreiro;


Bravos Paula, Rocha, e outros diligentes,
Com Sérgio fazei face ao mundo inteiro (257).

A animação poética, no entanto, não movia o exército rebelde.


Sem meios seguros para um ataque de resultado certo, durante todo o
mês de novembro, os responsáveis pela revolução mantiveram-se em
preparativos. Nesse mister, foram inexcedíveis. Embora encontrassem
grande cópia de material bélico nos depósitos da Capital, faltava-lhes
principalmente material humano, que tiveram de improvisar, ensinando,
entre os temores da guerra, os rudimentos da arte militar. Procedeu-se
ao aliciamento de voluntários, tratou-se da fabricação de pólvora e
balas, cuidou-se da aquisição de navios de guerra.
No mar, porém, estava o ponto fraco da revolução. Sem manter
o domínio da entrada da Barra, seria impossível garantir o
aprovisionamento indispensável ao curso da campanha que se iniciava.
E, se não lhes faltavam os recursos necessários à obtenção de vasos
armados e aptos a se lançarem à guerra, eram insuficientes os
marinheiros de que dispunham. Por subscrição popular, se adquiriu
a galera Conceição Oliveira, que tomou o nome de 7 de Novembro.
O governo rebelde comprou o paquete Brazilia, que se juntou ao
brigue Trovão. De nada valeu o sacrifício. Sem pessoal apto a manejar
a esquadra, sem marinheiros “por quanto nem os existentes eram
suficientes, nem encontrava-se quem das [embarcações] de alto bordo
se encarregasse das suas manobras, vindo assim a permanecerem no
Porto”, fracassou a tentativa rebelde para a organização de uma
esquadra que lhe assegurasse as comunicações, mesmo com o
Recôncavo. No mar, os revolucionários deviam contentar-se com

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navios inúteis e o fogo ineficaz das fortalezas que bombardeavam, de
tempos em tempos, os vasos legais que podiam alcançar. Era a derrota.
Em terra, porém, apesar de todas as dificuldades surgidas, era
mais feliz a ação organizadora dos rebeldes. Dentro da cidade sitiada,
preparava-se um verdadeiro exército. As tropas improvisadas
amestravam-se para os embates cruentos da guerra. Criaram-se a 1.ª;
2.ª; 3.ª e 4.ª Brigada de 2.ª linha. Inocêncio Eustáquio Ferreira de
Araújo assumiu o comando da 1.ª (258), Francisco Ribeiro Neves o
da 2.ª e José Joaquim Leite, dirigiu a 3.ª (259). Os pretos, sob o
comando do Major Santa Eufrásia, formaram o batalhão dos Leais à
Pátria. Os Artífices também tiveram o seu batalhão, com 800 homens,
sendo comandante o capitão Manoel Boaventura Ferraz (260). Havia
ainda o dos Bravos da Pátria e a Companhia dos Camarões.
A artilharia, núcleo inicial da insurreição, foi reforçada, criando-
se também a Artilharia Miliciana. A Capital baiana transformava-se
toda ela numa fortaleza vigilante, bem armada, municiada, mas imóvel.
Obcecados pela idéia de uma organização militar poderosa, de ataques
irresistíveis, os rebeldes estagnavam dentro da cidade, exclusivamente
dedicados ao pensamento da criação de novos corpos de tropa, da
guarnição de novas posições, da invencibilidade das suas linhas de
defesa. A costa era fiscalizada pelas fortalezas e por piquetes
distribuídos nos pontos mais acessíveis a um desembarque dos
legalistas, como o Unhão, o Passeio Público, os Aflitos, o Rio
Vermelho e Barra. Na parte da terra, ocupavam a Bandoleira,
Campinas, Barreiras, São Caetano e outras posições elevadas, onde
descortinavam os movimentos das forças inimigas.
Nesse afã de constituírem um grande exército, os rebeldes
perdiam um tempo precioso, permitindo ao inimigo, que mais bem
provido de dinheiro, de comunicações, de tropas, não mais se deixaria
bater. Faltara-lhes a coragem dos movimentos de êxito duvidoso,
mas surpreendentes. Não se quiseram arriscar a uma investida, talvez
prematura, mas que encontraria o inimigo ainda sem o poder de

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resistência, de combatividade, que somente o tempo lhe poderia dar,
com a chegada de reforços de vários pontos.
Enquanto os revolucionários se aferravam à Capital, incapazes
de compreender a situação que se esboçava, o Governo legal
arregimentava-se, suprindo as deficiências das suas forças. Contando
com o apoio do Recôncavo, da nobreza rural que habitava e movia
os seus engenhos, pôde o Governo legal, em pouco tempo, reunir
um elevado número de homens militarizados. De Cachoeira, veio o
primeiro batalhão da Guarda Nacional. Depois Santo Amaro, Vila
de São Francisco, Jacu, Canabrava, Pojuca, Cotegipe, São Tomé, Passé,
também enviaram os seus contingentes. Era o Exército Restaurador,
como se chamou, que se organizava. A Alexandre Gomes de Argolo
Ferrão coube o posto de General em Chefe. O Visconde de Pirajá
postou-se em Itapuã com uma divisão. O Visconde da Torre
comandou outra divisão. E a resistência legal foi se tornando cada
vez mais forte, mais disciplinada, mais sólida, se compararmos com a
sua fraqueza dos primeiros dias, em que a única tropa fiel era a Polícia,
com cerca de 200 homens.
Em fins de novembro, o governo já dispunha de 1.175 praças,
embora apenas 792 tivessem armas e fosse pouco o cartuxame
existente. Contudo, já progredira muito. Melhorara material e
moralmente, reanimado da surpresa de que fôra assaltado com a
notícia da rebelião. A Guarda Nacional passara a constituir o Batalhão
Provisório, com uma boa organização militar.
Nesse ínterim, os rebeldes apenas haviam tentado apoderar-se
de Itaparica. Malograra, porém, o primeiro ataque devido a terem os
legais, avisado em tempo, ocupado as melhores posições, obrigando
Firmino Mendes Limoeiro e Tupinambá, que comandavam a
expedição rebelde, a retrocederem, voltando para a Capital. O mau
sucesso não os desvaneceu da idéia de ocuparem a ilha e uma nova
expedição, mais forte do que a primeira, foi preparada. Os fados,
porém, ainda desta feita não lhes sorririam. Um fato imprevisto

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roubou-lhes a vitória: no momento do desembarque, o vento
amainou. Foi o bastante para que as forças fiéis levassem a melhor,
rechaçando os atacantes.
Somente a 30 de novembro, deliberaram os rebeldes a sair da
imobilidade em que se haviam mantido até então, desfechando um
golpe sobre as posições inimigas, em Cabrito e Campina.
Quatrocentos praças, sob a direção do Major Lázaro Vieira do
Amaral, iniciaram a ação, investindo contra as guardas avançadas
legais, sob o comando do Tenente José Raimundo de Figueiredo
Branco. Socorreu a este o Cel. Seara, que deteve a investida. O fogo
foi nutrido com ardor. E do combate, Daniel Gomes de Freitas deixou
esta descrição: “a falta de munição para o então 1º Batalhão da 2ª
Linha, que nesse ponto distinguiu-se, e a imobilidade do 1º da 1ª de
sua primeira posição, sem travar-se, como lhes cumpria, na Peleja,
ocasionou talvez as sucessivas e funestas conseqüências, testemunhadas
nessa Capital”... Os rebeldes também derrotados em Campina, onde
Argolo reforçara com a sua gente os comandados do Major José da
Rocha Galvão, tiveram que bater em retirada, em direção do Bate-
folha, protegidos pela artilharia até o engenho da Conceição. As
perdas de lado a lado não haviam sido grandes: cerca de cinqüenta
mortos, dentre os quais estava o Tenente José de Aquino Tanajura,
que se batia entre os legalistas. A vitória dos atacados fôra completa.
Bernardo de Vasconcellos, acusando o recebimento da nova, escreveria
ao Presidente Pedroso, declarando-se ciente do “combate que teve
lugar no dia 30, em que atacando os rebeldes o nosso acampamento,
foram repelidos por forças da legalidade, e completamente
debandados”.
Realmente fôra uma debandada. Os rebeldes, sempre tão
morosos nos movimentos, tão tardios nas investidas, permaneceriam
durante mais de um mês sem ânimo para voltar à carga e enfrentar o
inimigo. Todo o mês de dezembro e ainda a primeira semana de
janeiro, quase quarenta dias foram gastos em se refazerem das perdas

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sofridas nesse combate, que os desnorteara. Não o haviam previsto.
Nos seus cálculos, quando a derrota os surpreendeu, só estava a vitória.
Esse contato com o malogro, enfraqueceu-lhes o ânimo, atordoou-
os. Sentiram-se, talvez incapazes de reagir, de cobrar novo alento e,
por isso, deixaram que o tempo cicatrizasse a ferida. Precisavam de
muito tempo para que na tropa se desfizesse a impressão causada por
esse revés, logo na primeira investida contra os legalistas. E por mais
de um mês mantiveram-se inertes, limitados a pequenos tiroteios
esparsos, aqui e ali, entre as guardas avançadas. O descanso, porém,
se lhes fazia algum bem, produzia um mal bem maior: o ambiente
de desconfiança, de suspeita, entre os próprios revolucionários. Preso
dentro da capital, os revolucionários como que se dedicaram a um
trabalho de introspecção, de fiscalização das atitudes dos seus próprios
companheiros. E a intriga lavrou como uma epidemia de
conseqüências grandemente funestas. Com as vistas voltadas para si
mesmos, espreitando-se uns aos outros, dominados por uma
desconfiança recíproca, não tinham tempo senão para se destruír.
Em cada correligionário viam um traidor, sobre o qual lançavam a
responsabilidade dos insucessos. De todos os lados vinham as
delações, as denúncias, as acusações. E a própria tropa deixava-se
contaminar por esse ambiente, acusando os seus chefes, e
desmoralizando-os. Transcorreu, assim, o mês de dezembro, até que
em janeiro os rebeldes, sentindo cada vez mais os efeitos do sítio que
lhes privava de qualquer socorro externo, diminuindo-lhes as reservas,
depuseram-se a um novo ataque contra as trincheiras legais. A
primeira investida foi a 4, atacando os rebeldes o acampamento de
Campina. Do resultado do embate, temos este depoimento de Pinto
Garcês, ao comunicar ao Presidente Pedroso o ocorrido: “os rebeldes
vieram hoje com força até o rio Camorogipe na Campina, e aí foi
sustentado um vivo fogo de mais de três horas pelo Cel. Antonio
Correa Seara”, depois do que se retiraram para São Caetano. O mau
êxito perseguia os revolucionários baianos. Enquanto os rebeldes

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paralisavam as operações durante o mês de dezembro, o governo
legal recebia novos reforços das outras Províncias. Do sul, viera o
coronel José de Sá Bittencourt e Câmera com 48 praças. De
Pernambuco chegara o Tenente-coronel José Joaquim Coelho (261)
com 500 homens, desembarcando em Plataforma. A demora fazia-
os encontrar um inimigo cada vez mais forte. Os efetivos legais já se
elevavam a 2.380 homens (262). Não desanimaram, porém, os
rebeldes e a 6 voltaram ao ataque, obedecendo ao plano traçado
pelo Capitão Mandim Pestana, a quem se facilitara “todos os
esclarecimentos que julgou conveniente exigir, talvez para
competentemente detalhar a força disponível, prestando-se-lhe os
respectivos Mapas dos corpos existentes, e assim ao fato do Estado
efetivo deles, com as precisas alterações, do Ponto que deveria
acometer-se, maneira e dia do ataque” (263). O fato, aliás, não
agradara a muitos revolucionários, especialmente a Daniel Gomes,
que não confiava em Mandim, julgando-o sem “opinião fixa na
adoção do sistema proclamado de Próximo” (264). Não só por isso,
no entanto, era combatido o plano traçado. Daniel Gomes achava-o
também em desacordo com as instruções rudimentares das tropas
rebeldes, ainda mal preparadas para “complicadas evoluções Militares,
umas talvez por muitos ignoradas, por falta de exercícios, e outras
difíceis de manobrar-se competentemente pela desproporção do
terreno em certos lugares próximos ao Inimigo” (265). Podia disso
valer-se o exército legal para repelir o ataque com vantagem, sobretudo
em algum momento de “confusão inerente a uma tropa pela maior
parte bisonha na tática das Armas; principalmente em alguma retirada,
não presumida, em que a menor regularidade se observaria de
ordinário pela indisciplina e falta de conhecimentos práticos” (266).
Não obstante, a 6 realizou-se o ataque rebelde. 700 homens forçaram
a posição do Cabrito. A derrota mais uma vez espreitava os rebeldes.
E, desesperados com mais esse insucesso a juntar-se aos anteriores,
fizeram de Mandim o alvo de seu ódio, das suas acusações,

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atribuindo-lhe o ter prevenido os legais que “emboscando-se em
posições inesperadas, donde com vantagem não se achar aquele
predisposto”. Pensaram mesmo em submetê-lo a um Conselho de
Guerra, chegando João Carneiro a autorizar a Nunes Bahiense: —
“pois façam o Conselho e o sentenciem a morte, que eu confirmarei”
(267). A oposição de Daniel Gomes evitou, porém, que se
consumasse tal idéia.
Derrotadas, as forças rebeldes voltaram a ocupar as suas posições
anteriores, em São Caetano, Barreiras e Bolandeira. Apenas Inocêncio
atacou das 8 às 12 da manhã do dia 9 (268).
Com esses continuados reveses, a guerra voltaria a paralisar-se.
A atmosfera da capital era irrespirável, asfixiante. Por todos os lados
apenas se ouvia falar em traições. Que as imaginações aceitavam como
única explicação para os repetidos malogros dos ataques rebeldes.
No Governo, nos quartéis, nas trincheiras, todos mais ou menos
acreditavam em boatos de delação. Na Bolandeira, “reinava a intriga
e poucos cumpriam seus deveres”. Era a indisciplina invadindo a
tropa, sem que os oficiais, responsabilizados pelos insucessos, tivessem
autoridade para evitá-la.
Chegou-se mesmo a conspirar abertamente, quando ao Governo
ocorreu a criação de um Ministério, com que contornaria a situação,
evitando os choques entre o governo civil e os militares. O ambiente
era realmente intolerável. Daniel Gomes assim o resume: “as medidas
governativas vacilantes e não obedecidas in limine suas ordens, cada
um fazendo, inventando o que bem lhe parecia, que o General (269)
tinha correspondência com o Inimigo, tratava de entregar a causa,
sem defesa, e por isso convinha ser demitido, além de outros fatos
presenciados em diversos lugares” (270). Além disso, a velha rixa
entre os homens de farda e os de casaca, que levava o Tenente Coronel
Marques Cardoso a dizer de público “que casacas se enganaram,
julgando-se com direito a dar ordens ao general reprovar alguns atos
seus” (271). E os boatos a circularem pela cidade, agravando a aflição

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dos aflitos. Se hoje o acusado era o General em Chefe, amanhã era o
comandante do Forte do Mar, da Gamboa, da Barra ou do Monte-
Serrat, todos indigitados de atraiçoarem a causa rebelde (272).
Num ambiente como este, era impossível qualquer resistência,
qualquer organização. O despeito, a ambição, a intriga, encontravam
um campo propício para se expandirem, aumentando a
intranqüilidade e o desespero da população que sofria, privada de
tudo, a fim de ser satisfeito o exército que defendia o ideal
revolucionário (273). E o derrotismo ganhava terreno, cevava-se na
boa fé da população. A conspiração contra o governo de João Carneiro
reunia adeptos, tomava impulso. Apelidavam-na de Gregoriana. A
imaginação fácil via João Carneiro, mancomunado com os
portugueses, principalmente com José Antonio Rodrigues Vianna,
Joaquim José Teixeira, Luiz Xapeleiro, opinava pela sua demissão
(274). O Ministério, porém, moveria as dificuldades. Representava
uma divisão de poderes, o equilíbrio da revolução. Mitigou as
dissensões entre civis e militares e mesmo as que existiam entre estes.
Sérgio Velloso e Marques Cardoso recompuseram-se com Daniel
Gomes. Atenuaram-se os despeitos de Nunes Bahiense e do Major
Rocha. E a revolução pôde continuar.
Sabino Vieira assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros; João
Carneiro Filho, a da Justiça; Silva Freire, a da Fazenda; Manoel Pedro
de Freitas Guimarães, a da Marinha; e Daniel Gomes de Freitas, a da
Guerra. Era um pequeno ministério, que mascarava o estado de agonia
da revolução. Havia mais de dois meses que se iniciara o movimento,
pois estávamos a 19 de janeiro, e não se podia dizer que a rebelião,
durante esse tempo, tivesse obtido qualquer êxito. Não progredira,
não avançara, não ganhara um palmo de terreno. Limitara-se a defender
a Capital contra os sitiantes e era muito pouco para quem precisava
dominar a Província para alcançar os seus objetivos. A luta devia
entrar num período decisivo. Enquanto os rebeldes haviam
consumido o tempo em ataques frustros, o Governo legal tinha feito

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convergir para a Bahia todas as reservas disponíveis, sem prejuízo da
luta que era obrigado a sustentar contra os Farrapos. Agora, a única
esperança era romper o cerco em algum ponto, restabelecendo as
comunicações dos rebeldes com o interior da Província.
Nesse sentido, centralizaram-se as atividades dos revolucionários,
que cuidaram de refazer-se dos acontecimentos de janeiro, preparando-
se para um novo golpe, mais vigoroso, mais coordenado, decisivo.
Era, talvez, a última cartada jogada pela Sabinada. Dessa investida
dependeria a sua sorte.
O mal maior, dentro das fileiras rebeldes era, porém, ainda o
ambiente de desconfiança, que se não desfizera de todo e a que novos
fatos viriam dar incremento, criando empecilhos intransponíveis para
uma ação eficiente e harmônica.
Primeiro foi a defecção do brigue Trovão, sob o comando de
Malhado, e que se fôra incorporar à esquadra governista. O ódio
popular chegou ao auge com a traição e correu a incendiar as
propriedades do desertor. “Traídos pelo Malhado, cheios de
indignação e rancor, os republicanos, sem compaixão alguma puseram
fogo à sua casa”.
Além disso, fôra apreendida uma carta dos legalistas, endereçada
a Sérgio Velloso. A notícia, célere, espalhou-se por todos os
acampamentos. Foi comentada, repetida, explorada. Era quase o
clamor público a acusar o General em Chefe. Entre militares e paisanos
só havia um refrão: “O general é traidor, deve ser deposto”.
Mas, a desconfiança chegara a tal extremo que, resolvido o ataque
e sendo necessário “guardar-se o maior segredo para que não fosse,
como as demais vezes, divulgado”, até do General em Chefe se ocultou
a data escolhida para o início das operações. Na antevéspera, a 15,
apenas o notificaram para que se apresentasse a tropa, pois iriam
entrar em fogo. E somente na véspera, a 16, se lhe revelou a data
fixada: dentro de 24 horas começaria o ataque. O episódio é singular.
Assinala bem o ambiente que cercava os combatentes. O plano de

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batalha traçara-o Daniel Gomes, de acordo com a inexperiência da
tropa rebelde, “em verdade pouco exercitada nas mais precisas
evoluções Militares”.
Seria uma investida em grande estilo, todas as forças se
empenhando simultaneamente na luta para forçarem o inimigo nas
várias posições que ocupavam. Ao mesmo tempo, se despejariam os
rebeldes contra Cajazeira, Boa Vista, Campina, São Caetano e
Barreiras, onde comandava o Cel. Inocêncio Eustáquio. Sete mil
homens participaram da batalha, sendo 3.000 legais e 4.000
revolucionários, iniciada a ação às 9 horas da manhã do dia 17.
Combateu-se durante todo o dia, sem que nenhum dos contendores
quebrasse a resistência do outro. Lutou-se até o pôr-do-sol, quando
a escuridão obrigou a suspensão das hostilidades. Os rebeldes haviam
apenas se ressentido da falta de ação das suas forças de Bolandeira
que, por uma confusão de ordens de que fôra culpado o Capitão
Correia de Britto, haviam permanecido inertes (275).
No intervalo da noite, os antagonistas preparavam-se para a
jornada seguinte. Durante toda a noite, trabalharam o Laboratório e
a Fundição de Balas, a fim de suprirem as forças da Capital do
cartuxame necessário e de que estavam desfalcadas (276).
Mal raiou a aurora, a peleja reiniciou-se, mais violenta, mais
decisiva. Eram 5 horas da madrugada e um fogo nutrido, cerrado,
impiedoso, já varria todos os setores legais. Ninguém parecia disposto
a ceder. As horas se escoaram, sem que a vitória se esboçasse para
qualquer lado. Uma notícia falsa iria, porém, decidir a sorte das armas
imperiais. É o Ministro da Guerra da Sabinada quem o diz: “eis que
tornando-se mais renhido e quase decisivo a nosso favor o combate,
procuraram alguns indivíduos menos decididos a arrostá-lo com a
mesma intrepidez, com que nele a princípio se travaram, e no dia
precedente o sustentaram afinal, espalhar entre os demais, ainda firmes
no cumprimento dos seus deveres, que o cartuxame se tinha finalizado,
carregando o Inimigo nesse ensejo com mais vigor sobre as linhas,

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por observar a pouca ordem que já nas mesmas havia, segundo a
confusão que em tais lances se apodera dos combatentes” (277). Era
a retirada, a derrota, a debandada. As forças rebeldes haviam fraqueado.
Faltara-lhes o ânimo de rematarem com o mesmo denodo os
sacrifícios desses dois dias trágicos. O triunfo fugia-lhes por esse erro
tão comum, nas batalhas, que é o de julgar-se o adversário com
maiores reservas do que as que ele realmente tem: nas tropas imperiais
também estava a findar-se a munição (278). Nesse fim de tarde, a
retirada dos rebeldes salvara a causa da Regência (279). Os vencedores,
porém, contentaram-se em ocupar cinco posições rebeldes (280).
Temendo alguma cilada e já com as energias quase esgotadas, não
tentaram perseguir os atacantes que, talvez, tivessem sofrido “a maior
derrota, se a intentasse o inimigo, que bastante cansado e talvez receoso
de algum estratagema em tal retirada projetada, deixou de o
empreender” (281). Ao comando legal faltara a ousadia de avançar,
que lhe daria um triunfo definitivo.
A Sabinada perdera a sua última cartada. E o revés fôra rude,
cruel, tremendo. Aos chefes, para se imporem, já faltava a aureola da
vitória. Na cidade, tudo era pânico, terror, anarquia. A população
começara mesmo a amotinar-se diante da derrota. E o governo rebelde,
falhadas todas as suas promessas de triunfo, ficava sem forças para
manter a ordem civil e a disciplina militar. A soldadesca embriagada,
desvairada, espalhava-se em grupos pela Capital, intranqüilizando-a.
A perspectiva era o saque.
A reação do Governo rebelde sobrepôs-se, porém, à anarquia.
Prendeu, espancou, ameaçou e a Bahia retomou o seu ritmo de
sofrimento resignado.
Das camadas populares o mal-estar transferira-se, no entanto,
para os arraiais do Governo. Agora, era aí que se conspirava. João
Carneiro, tantas vezes acusado e ameaçado, era o alvo da trama que
lhe solapava a autoridade. Impossível, porém, falar em conspirata,
onde estivesse Sabino, sem que ele aderisse à idéia. Na sua vida, era

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uma fatalidade, tinha a força de um destino. E Sabino aí estava a
rondar os despojos do Vice-Presidente, articulando elementos para
o depor e substituí-lo. Parte da oficialidade anuíra à trama,
prometendo-lhe apoio. O Major Santa Eufrásia faria, porém, malograr
o intento de Sabino. Consultado, opôs-se à conspiração. Foi o
bastante para que a abandonassem os seus autores, talvez receosos de
uma dissensão interna que precipitaria a derrota. A Sabinada vencia
mais esse obstáculo, íntimo, um dos muitos que tanto a enfraqueceram.
Era, porém, admirável o poder de imaginação dos rebeldes. Mal saídos
de uma derrota, sitiados, defrontando um inimigo bem mais forte,
mais bem municiado, logo novos planos, novas probabilidades de
triunfo renasciam na inteligência dos revolucionários baianos.
Arquitetavam planos, traçavam expedições, organizavam vitórias
futuras, indiferentes à realidade dramática que os espreitava, sitiava e
esmagava. Pareciam não sentir a agonia que cada vez mais se
aproximava. No sonho da vitória, refugiavam-se dos horrores que se
abriam os seus olhos. A cada derrota opunham a perspectiva de um
êxito remoto, impossível mesmo. Como que se contentavam com a
imagem, cada vez mais distante, do ideal que os animava. Nessa
seqüência de planos imaginários, conceberiam agora uma investida
para o Recôncavo, rompendo o bloqueio da esquadra imperial. Por
mar se lançariam em direção à Feira de Santana, obrigando o
adversário a voltar-se para a retaguarda.
Para chefiar a expedição árdua e de tanta responsabilidade,
escolheu-se o Coronel Higino Pires Gomes, que já dera provas de
bravura em São Caetano. Tudo se apresentou em segredo, tomadas
as mesmas providências de sigilo das vezes anteriores, a fim de que a
surpresa assegurasse o êxito da travessia por entre os vasos de guerra
da legalidade. E a 8 de março, às primeiras horas da noite, protegida
pela escuridão, a força expedicionária embarcou na Ribeira. Eram
500 homens, distribuídos em 14 baleeiras e um lanchão, todos bem
providos de munições, e que ainda levavam armas e apetrechos de

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reserva. Esgueirando-se por entre as embarcações que bloqueavam o
porto, iludindo a vigilância dos inimigos, conseguiram passar
despercebidos, singrando durante a noite as águas quietas da Bahia,
indo desembarcar na Boca do Rio. Aí deu-se o primeiro encontro de
Higino Pires Gomes com tropas fiéis que, batidas, abriram o caminho
dos rebeldes para a Feira de Santana, onde acamparam triunfantes,
auxiliados pelos Juízes de Paz Manoel Simões Vitório e Manoel
Simplício Rodrigues. Foi esta a única empreitada vitoriosa da
Sabinada. Não era, porém, o prenúncio de outras vitórias: era a
queima dos últimos cartuchos, das últimas reservas da revolução,
cujo fim se aproximava.

NOTAS
(256) Eco da religião e da pátria, nº de 18-11-1837.
(257) Braz do Amaral. A Sabinada, p. 174.
(258) Fé de Ofício de Inocêncio Eustaquio. Revista do Instituto Histórico da Bahia, v.
56, p. 771.
(259) Fé de Ofício de José Joaquim Leite. Revista do Instituto Histórico da Bahia, v. 56,
p. 773.
(260) Fé de Ofício de Boaventura Ferraz. Revista do Instituto Histórico da Bahia, v. 56,
p. 777.
(261) José Joaquim Coelho. Barão da Vitória (1796-1860) era natural de Lisboa.
(262) Documentos sobre A Sabinada, Biblioteca Nacional, maço 4.
(263) Daniel Gomes de Freitas, op cit. 660.
(264) idem.
(265) Idem.
(266) Idem.
(267) Idem.
(268) Fé de Ofício de Inocêncio Eustáquio. Revista do Instituto Histórico da Bahia,
v.62, p. 772,
(269) Daniel Gomes de Freitas op. cit. p.666.
(270) Idem.
(271) Sérgio José Velloso era o General em Chefe.
(272) Daniel Gomes de Freitas op. cit. 668.
(273) Daniel Gomes de Freitas op. cit. p. 707.

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(274) Wanderley Pinho. Narrativa, p. 735.
(275) Ofícios do Governo da Bahia, em 19-2-1838. Arquivo Nacional.
(276) Daniel Gomes de Freitas op. cit, p. 687.
(277) Idem, p. 688.
(278) Idem, p. 688.
(279) Ofício de Pedroso de 19-2-1838. Biblioteca Nacional.
(280) Fé de Oficio de Inocêncio Eustaquio. Revista Instituto Histórico da Bahia, p. 772.
(281) Pinto Garcês. In: Braz do Amaral. A Sabinada, p. 179.

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Capítulo XIV

ÚLTIMOS DIAS DA REPÚBLICA

A nomeação do General Callado mudara, como vimos, a


fisionomia da guerra. O Império impacientava-se com a demora,
temia-a mesmo, e abandonara a tática do sítio, exigindo uma ação
mais pronta, mais rápida. Não bastava vencer — era preciso vencer
já. Para essa mudança de atitude, concorriam principalmente causas
políticas, pois, conforme escrevia o próprio Callado, “era evidente,
que o Governo baquearia se a Capital da Bahia não fosse livre da
dominação destrutora, a anarquia nela existente, até a abertura das
Câmaras” (282). Além disso, porém, a Regência receava que a situação
se agravasse de um momento para outro com a irrupção do
movimento, em muitos dos focos existentes, não só na Província
como em Pernambuco. Se tal se desse, seria o Governo, já tão
atribulado com a guerra dos Farrapos, obrigado a distrair novas forças,
dividir as existentes e, talvez, não mais pudesse dominar a situação.
Por tudo isso, a posição que assumira a Regência diante da
revolução mudara radicalmente. Não havia mais tempo a perder.

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Passava-se de um extremo a outro. Durante três meses, o Governo
imperial nada mais fizera do que procrastinar a luta. Agora, era ele
quem impunha que as forças avançassem a toque de caixa. Atacar a
qualquer preço era a palavra de ordem. Custasse o que custasse ,era
preciso vencer logo: que se não perdesse um minuto no extermínio
da Revolução. E em 30 dias estimou Callado o prazo para tomar a
cidade rebelde (283).
A guerra, porém, tem os seus caprichos. Tudo se dispusera para
que a 21 de fevereiro se realizasse a investida fulminante, avassaladora,
irresistível, das forças legais. Os rebeldes, porém, as antecederiam no
ataque. E a 17 surpreenderam as tropas imperiais com uma ação
vigorosa. Estas, ainda em preparativos de organização para o ataque,
que se deveria realizar a 21, apenas conseguiram, e a muito custo,
deter o avanço revolucionário. Foram dois dias de fogo ininterrupto,
vivo, estonteante. Com isso, gastara-se o cartuxame dos sitiantes
(284). E o Governo legal era obrigado a adiar a ação que desejava
tão breve e tão rápida. Precisava de tempo para refazer-se dos embates
de 17 e 18 de fevereiro, prover as suas reservas de munição e aparelhar
a tropa para o combate que deveria assumir grandes proporções.
Esse proêmio de batalha requeria uma ação meditada, ponderada,
paciente, que somente os militares poderiam compreender. Qualquer
precipitação, o menor descuido, o mais leve erro poderia ser funesto.
Era preciso prever tudo: o bom e o mau. Não só o desenvolvimento
do avanço, como o caminho da retirada, devia ser estudado, traçado,
marcado com segurança. A posição de cada força, a distribuição da
artilharia, a hora própria de entrar em fogo, a concepção de um sem-
número de hipóteses, conforme o rumo que tomasse a luta, a
substituição das tropas fatigadas, o reforço das que fraqueassem e até
o número de tiros de cada soldado, tudo deveria ser estabelecido,
acordado, ordenado, antes do combate. É fácil avaliar-se o tempo
necessário para ter tudo isso concluído e exato.

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Dedicado a esse trabalho preliminar, Callado deixava que os
dias transcorressem preferindo a demora à aventura de um combate
de êxito duvidoso. A sua posição não era a de quem precisasse vencer
pelo ímpeto, pelo arrojo, pela rapidez dos movimentos surpreendentes,
como acontecera aos revolucionários, nos primeiros tempos da luta:
ele aliava-se ao tempo para calcular. Conhecedor da arte da guerra,
militar experimentado, sabia ser esse, no momento, o melhor
caminho.
Não pensava, porém, do mesmo modo o Presidente Pedroso.
Para este, o modo mais fácil e seguro de dominar a rebelião era atacar
logo, tudo se resumindo, talvez na sua concepção de leigo, a um
toque de corneta: avançar! A demora irritava-o. Queria por isso uma
ação menos morosa, com menos cálculos, mas, no seu entender, mais
eficiente pela brevidade. E, impotente da resistência do General
Callado, que não atendia às suas ordens para um ataque imediato, o
Presidente lançava sobre aquele a responsabilidade de qualquer
malogro das tropas imperiais. As relações entre eles, que nunca
chegaram a ser cordiais, tornaram-se mais tensas. Avivam-se os
ressentimentos de ambos e que existiam desde o primeiro encontro,
em Itaparica. A correspondência de Pedroso para Callado tinha um
tom áspero, arrogante, insólito. Eram cartas de um superior
hierárquico, molestado por não ver cumpridas as suas ordens. A 6 de
março escrevia Pedroso a Callado: “Nenhuma razão há mais para
demorar a não ser a convicção de nossa fraqueza e a da força inimiga,
convicção que estou bem longe de acreditar que tenha penetrado o
espírito de V. Excia.”. Acabemos com isso ou diga-se, claramente,
que tememos o inimigo e que apenas nos achamos dispostos para
lhe resistir se nos atacar, esperando mais a fome” (285). Para ferir
fundo o brio militar de Callado, o Presidente levantava o véu de uma
acusação maliciosa: deixava antever que o medo era o motivo da
suposta inação do Comandante das Armas. Este, porém, não se
apressava diante da insinuação malévola. Continuava a preparar a

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tropa e riscar os mapas, indiferente à sofreguidão do Presidente. Nesse
ponto, como em outros, jamais se entenderiam as duas autoridades.
Persistia, porém, Pedroso no seu intento de vencer logo. E à
movimentação lenta do General Callado respondia com novas cartas
e novas forças. O tom da correspondência é cada vez mais acre, como
quem lança mão de um último recurso para forçar a investida
imediata. Pedroso continuava a atirar sobre o General toda a
responsabilidade de quanto ocorresse devido à sua inércia e censurava-
o: — “É bastante sensível que V. S. não tem feito, como me havia
assegurado, o ataque imediato sobre a cidade, único recurso e o mais
pronto que na crise atual poderia haver para inutilizar qualquer
tentativa e aumento de força que o bando rebelde pudesse ir
obtendo”... E advertia mais adiante: “V. S. deve pesar seu bom senso,
quanta responsabilidade recai hoje sobre si, mais que sobre ninguém,
pela falta de pronta destruição dos rebeldes da cidade, e que inúmeros
males, incluindo a perda total da Província, pode sobre ela acarretar
essa falta” (286). Na monotonia da Itaparica, donde, distante, assistia
impaciente ao desenrolar dos acontecimentos, o Presidente Pedroso
ditava ordens e as reiterava. Insistia, acusava, reafirmava o seu
propósito. E, no mesmo dia em que expedira as ordens anteriores,
tornava a escrever ao General Callado: — “Se tivesse atacado os
rebeldes há mais tempo, como fiz ver desde o dia em que V. S. chegou
à Província, e lhe recomendei no meu ofício de 6 do corrente, não
teríamos novas dificuldades a vencer e não correria a Província os
perigos de que se acha ameaçada”... (287). A expressão era insolente.
O General, em quarenta anos de caserna e outros tantos de serviços
relevantes ao País, talvez jamais tivesse sentido alguém se dirigir a ele
nesse diapasão. Pedroso, porém, não recuava. Atacar já e já, tornara-
se-lhe uma idéia fixa, irredutível, dominadora. Era uma obsessão. E,
correndo todos os riscos de empreitada, assumindo para si a
responsabilidade de qualquer desastre, sobrepondo-se com a sua
autoridade à prudência do General, ordenou o ataque. Nada de meias

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palavras, de subterfúgios, de contemporizações. A ordem de Pedroso
era decisiva, definitiva, não podia deixar dúvidas: “Ataque, portanto,
V. S. quanto antes os rebeldes da capital. O que lhe é muito
positivamente ordenado por este governo sob sua responsabilidade,
cumprindo dar pronta execução a esta ordem, para que eu possa não
só devidamente informar, o Governo Imperial, a quem passo a dar
conta dos últimos acontecimentos, como também tomar as medidas
que julgar conveniente para salvar a Província, que o mesmo governo
se dignou confiar-me” (288).
Pedroso intimava o Comandante das Armas a obedecer. E, este,
ferido pelo aguilhão enérgico do Presidente, teria, enfim, de se mover,
atacar. Incontinente, convocou os Comandantes das Brigadas e Chefes
do Departamento, a fim de acertar o plano contra os rebeldes, plano
que na reunião realizada a 11 de março estava concluído, lavrando-
se uma ata assinada por Callado, Bittencourt Câmara, Seara, Pinto
Garcez, Coelho, Pinto Paca e Argolo.
A 3ª Brigada avançaria sobre as novas posições da Bolandeira e
Armações e do Centro, do ponto das Barreiras, uma força de 300
homens atacaria os revolucionários na Cruz do Cosme, encruzilhada
de São Bento e Campo Seco (289). Seria a investida final. Após
quase um mês de expectativa, os dois exércitos parados nas suas
posições, ia se dar o choque. Eram 9.000 homens que iam entrar na
peleja; 5.000 das forças republicanas e 4.000 das armas imperiais
(290), que se estendiam desde Itapuã até Pirajá, formando a faixa
que estrangulava os sitiados.
No dia 13, começou o ataque. Num movimento surpreendente,
as forças legais investiram pela direita dos rebeldes, na retaguarda de
São Caetano. Foi um golpe rápido. A posição defendida por Francisco
Xavier Bigode não pôde resistir, deixando nas mãos do inimigo todo
o material bélico (291). Simultaneamente, as demais forças legais
forçavam em vários pontos as trincheiras inimigas. E a luta
desenvolveu-se cruel e heróica. Dos rebeldes, o primeiro a tombar

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fora Canabraba. As trincheiras rebeldes resistiam bravamente,
obrigando o adversário a lances épicos, como o dos sargentos João
de Moura e Nunes Cardoso, que assaltaram as da Campina (292).
Defendiam as posições até o último alento. E a avançada legal se
fazia através dos campos e estradas “cheias de sangue e de cadáveres”
(293).
Os governistas haviam se dividido em quatro brigadas. A 1ª,
comandada pelo Coronel Seara, e a de Pernambuco, sob as ordens
do Coronel Coelho, numa ação comum avançaram sobre São Caetano
e vieram ocupar o Engenho da Conceição, a fim de se estenderem
pelos Mares e Calçada, isolando as forças rebeldes de Itapagipe, com
o auxilio da esquadra. Argolo comandava a 2ª brigada, que constituía
o centro, e se dividiu em três colunas, atacando concomitantemente,
os pontos de Negrão, Gervásio e José Marques, que cederam depois
dum fogo renhido. Vencida esta etapa ocupou Argolo a posição do
Resgate, onde pernoitou. A 3ª brigada, sob a responsabilidade de
Bittencourt Câmara, lançou-se sobre a Bolandeira e Rio das Pedras,
acampando nas armações de João Lourenço (294), protegido pelo
fogo do patacho Camarão.
O avanço se fazia lentamente, sempre retardado pela resistência
enérgica dos rebeldes. À 1:30 da tarde, Pinto Paca oficiava ao
Presidente Pedroso informando-o da situação que, assim, resumia:
na casa da Correção, estava o Coronel Seara; na estrada da Lapinha,
o Coronel Coelho, e Argolo levava vantagem no Negrão (295). E às
10 horas da noite, num balanço dos acontecimentos do dia, Pinto
Paca novamente se dirigia ao Presidente, participando-lhe que o Cel.
Seara estava no Areal; Argolo ocupara o Resgate; o Cel. Coelho, a
Cruz do Cosme; e na Armação de João de Lourenço fôra o inimigo
desalojado pela brigada de Itapuã (296). Em um dia de combate, as
forças imperiais haviam progredido consideravelmente. Podia-se dizer
que tinham realizado quase todos os seus objetivos militares, apesar
da resistência tenaz do inimigo, que recuava palmo a palmo, sempre

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castigando com as suas metralhas as vanguardas legais. O avanço legal
não abatera, porém, o ânimo dos revolucionários. Estes, malgrado
as posições perdidas, as numerosas baixas verificadas na sua tropa,
ainda confiavam na vitória. O próprio Ministro da Guerra, Daniel
Gomes, achava não haver “por ora que recear por estar a sorte da
peleja propensa a um dos dois partidos beligerantes” (297). E quando
tudo estivesse perdido dentro da Capital, aos rebeldes ainda animava
uma hipótese: — romperem o cerco, agredindo “qualquer ponto,
depois de reunidas as Forças de batalha” (298). O poder de resistência
dos revoltosos superara a expectativa de Callado. Pelas informações
que lhe fornecera o Presidente Pedroso — que, ainda não fazia muito,
lhe transmitira a notícia que lhe enviara da Capital o negociante
português José Rodrigues Vianna sobre a falta de mantimentos, o
desânimo e a anarquia existentes entre rebeldes (299) — esperava
defrontar-se com um exército sem direção, sem bravura, sem
vitalidade. E o inimigo com que deparara dava mostras de raras
qualidades militares. Confessando quanto fôra para ele inesperada a
combatividade dos sitiados, escreveria Callado: “não havia essa
noticiada privação, nem desalento, como experimentei eu, e os bravos
companheiros d’armas” (300). A resistência rebelde fôra de tal ordem
que iludira o plano de Callado, que era ocupar, no mesmo dia, a
Capital. E, ao por do sol, informava ele ao Major Pinto Paca: “Eu
tencionava entrar na Cidade hoje mesmo, mas o cansaço da tropa e a
posição do inimigo com uma resistência sem igual no-lo privam,
aqui pernoito e pela manhã prossigo no ataque com estes valentes
que Comando” (301). Cruz do Cosme, 6:30 de 13-5-38.
Agora, era vencer a noite. No dia seguinte, recomeçou o combate.
A resistência rebelde, embora ainda perseverasse impedindo o avanço
dos legais, fazia-se desordenadamente, quase sem direção. Eram
pequenos quadros de heroísmo, de sacrifícios, em meio a um exército
em desespero. A 1ª Brigada legal firmou-se na Calçada e no Bom
Gosto, passando ao Forte de Jequitaia, onde o Major Augusto Cesar

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Burlamaque teve de permanecer encurralado pela artilharia rebelde
(302). O General Callado alcançou a Lapinha e a Soledade. E as
tropas vindas pelo litoral, tomaram o Forte da Lagartixa.
A posição dos revolucionários era insustentável. Com a cidade
quase toda ocupada pelo inimigo, era cada vez menor o terreno que,
a custo, ainda mantinham sob o seu poder. Nem por isso, estavam
dispostos a render-se. Muitos batiam-se obstinadamente. E, ao meio
dia, Callado informava a Pinto Paca, escrevendo sobre o cavalo: “Aqui
estou em um fogo horroroso sem poder avançar, mas sou teimoso
ou morrer ou livrar o Brasil”. E continuava: “Tenho gente sobre o
Barbalho, Burlamaque está de posse de Jequitaia e Lagartixa; mas
Itapagipe que deveria estar tomado com a proteção da Marinha, ainda
não tenho esse prazer” (303).
Hora a hora, porém, tornava-se pior a situação dos revoltosos.
Lutando dispersos em alguns pontos básicos para a defesa da cidade,
tinham que ceder sempre às investidas das forças imperiais. Pedro Menezes,
vindo de Plataforma, cercara-os no Forte de Monte-Serrat, que se rendeu.
Argolo dominara o Barbalho e se infiltrava por Nazaré. A coluna de
Itapuã avançava por Brotas e Rio de São Pedro, onde Santa Eufrásia,
Duó, Paixão e Guazina comandavam os piquetes da heróica resistência
rebelde (304). O avanço dos legais, porém, fazia-se sobre cadáveres e
entre chamas. Em desespero de causa, impotentes para deter a marcha
do inimigo, os rebeldes, à medida que se retiravam, iam lançado fogo à
cidade. A noite a capital baiana era uma enorme fogueira. Cerca de 160
prédios ardiam. Os próprios legais também ateavam o incêndio, para
desalojarem os rebeldes, que se abrigavam dentro das casas (305). E o
incêndio se alastrava por toda a capital (306).
A Sabinada agonizava num braseiro infernal. Durante muitos
anos, conservou a Capital baiana as marcas trágicas desse drama,
vendo-se os prédios em ruína, incendiados por ocasião da revolução
de 1837 (307). A luta tornou-se cada mais cruenta. Os contendores
batiam-se movidos pelo ódio, cheios de rancor.

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A investida das forças legais era brutal. Nada poupava, nada
perdoava. Enfurecidos pela bravura com que se batia o adversário, os
soldados do Império assemelhavam-se a uma horda de bárbaros lançada
sobre a cidade. A passagem de cada pelotão assinalava-se por atos de
crueldade. Nas grandes fogueiras das casas incendiadas, lançavam-se
pessoas vivas, indefesos prisioneiros (308). Dos chefes rebeldes a
nenhum dos que caíram prisioneiros no ardor do embate foi poupada
a vida. Bigode foi fuzilado depois de preso. Vinhático, já prisioneiro,
caíra assassinado, por ordem do Cel. Queiroz, comandante do Batalhão
de Santo Amaro, na própria casa, quando se calçava para acompanhar
os seus algozes (309). Santa Eufrásia perdera a vida depois de se render.
E o próprio Callado registraria no seu relatório a morte de Bigode e
Santa Eufrásia “depois da batalha”... (310). A própria noite não fôra
motivo para que ensarilhassem as armas, pois, guiados pelos clarões
do incêndio, continuaram a tirotear. Às 10 horas, Callado ocupou o
Arsenal de Marinha, último apoio dos revoltosos na Cidade Baixa.
Agora era rápido o progresso dos atacantes.
Pensaram, então, os dirigentes da Revolução em retirar-se,
rompendo o cerco, em direção à Armação. Ser-lhes-ia fácil baterem
uma das três colunas em que se dividira a brigada de Itapuã. Nesse
sentido, opinaram os Majores Santa Eufrásia, Duó e Limoeiro (311).
Um obstáculo intransponível, no entanto, se lhes sobrepunha:
o estado lastimoso da tropa, que não poderia conduzir os acessórios
imprescindíveis a uma marcha dessa natureza (312). Com a tropa de
que dispunham, a retirada era impraticável. Aos rebeldes restava apenas
aguardarem o fim da tragédia que se desenrolava aos seus olhos e na
qual eram as vítimas, já quase indefesas.
À noite, consumara-a o exército imperial, coordenando a sua
ação, ocupando os melhores pontos para a investida. Já eram senhores
da cidade: os revolucionários dominavam somente os Fortes do Mar,
da Gamboa e de São Pedro e uma pequena área protegida pela artilharia
deste último.

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Na Piedade, instalou-se o quartel-general de Callado. E às 5 horas
da manhã, este escrevia ao seu Ajudante: “Estou com o meu Quartel no
Largo da Piedade e alguma força por outros pontos da Cidade Baixa,
Barbalho, Nazaré, e Soledade, preciso cartuchos, e armas”. “Em caso de
necessidade arme todo o doente que o possa ser por que o inimigo
batido e dividido pode fazer cabeça para fugir” (15-3-38, às 5 horas da
manhã). O General que há três dias sentia de quanto eram capazes os
soldados da revolução, apesar do desbarato em que estavam, temia alguma
surpresa. Era impossível resistir por mais tempo. A ninguém, na posição
em que se encontravam os rebeldes nessa manhã de 15 de março, seria
dado pensar em outro alvitre, senão no da rendição. O grosso do exército
rebelde dispersara-se ou tombara no campo de batalha. A cidade estava
ocupada pelos legalistas e perdidas estavam quase todas as posições
estratégicas. Apenas um pequeno número ainda lutava sem objetivo
determinado. Mas, mesmo assim, perdidas todas as esperanças, os
revolucionários ainda combatiam. O Forte do Mar, com as suas peças
voltadas para o Arsenal de Marinha e a Cidade Baixa, durante todo o dia
castigou as tropas fiéis. E, nas imediações do Forte de São Pedro, um
pugilo de bravos deteve até à tarde as arremetidas vigorosas das forças
sitiantes. Nas Mercês, não eram pouco mais de 48 praças, sob o comando
do Capitão Mattos e do tenente João Ladislau, a resistirem. Nos Aflitos,
o Major Alexandre Sucupira, com um número reduzido de
companheiros, enfrentava “o grosso da coluna inimiga, que com todo
afinco carregava”. Os revolucionários baianos eram um exemplo de
coragem, de resistência, de tenacidade. O dia todo se passou nessa luta
brava e praticamente inútil.
Às três horas da tarde, os legais se apoderaram dos Aflitos e do
Passeio Público, refugiando-se os rebeldes no seu último reduto, a
fortaleza de São Pedro, que o inimigo sitiava a tiro de pistola. “O
combate, narra Argolo, tornou-se geral e tão violento, que cercados,
por todos os lados batidos os rebeldes” içaram a bandeira branca do
armistício (313).

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Era o fim. Sérgio Velloso apresentou uma proposta de rendição,
que foi recusada, e teve de entregar-se incondicionalmente. E diante
dos vencedores desfilaram os vencidos: 610 prisioneiros, remanescentes
de uma jornada heróica, que depunham as armas ainda quentes da
luta. Depois, renderam-se os Fortes do Mar e da Gamboa. Estava
finda a Sabinada. A paz descia sobre a Bahia. Estava salvo o Império.
A República baiana fôra afogada em sangue pela Regência.

NOTAS
(282) Wandereley Pinho. Narrativa, p. 736.
(283) Atos do Governo, 1838. Arquivo Público da Bahia.
(284) Sucessos do Marechal Callado, p. 2.
(285) Sucessos do Marechal Callado, p. 13.
(286) Ofício do Governo da Bahia ao Ministro da Guerra, em 19-2-1838. Arquivo
Nacional.
(287) Braz do Amaral. A Sabinada, p. 143.
(288) Op. cit. p. 140.
(289) Op. cit. p. 142.
(290) Idem.
(291) Sucessos do Marechal Callado, p. 12.
(292) Ministério da Guerra. Relatório, 1838.
(293) Wanderley Pinho. Narrativa, p. 737.
(294) Braz do Amaral. A Sabinada, p. 59.
(295) Parte Oficial de Alexandre Argolo ao Marechal J. C. Callado.
(296) Braz do Amaral. A Sabinada, p. 58.
(297) Sucessos do Marechal Callado, p. 29.
(298) Op. cit. p. 30.
(299) Idem.
(300) Idem.
(301) Sucessos do Marechal Callado, p. 31.
(302) Op. cit. p. 16.
(303) Correspondência Oficial do Ten. Cel. M.J. Pinto Paca.
(304) Braz do Amaral. A Sabinada, p. 63.
(305) Correspondência Oficial do Ten. Cel. M. J. Pinto Paca.

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(306) Góes Calmon, op. cit. p. 59, dá a seguinte relação incompleta de casas incendiadas:
“horroroso o espetáculo do incêndio de quarteirões inteiros de casas da cidade,
ao Duarte, ao Beco do Mocambinho, ao Largo da Piedade (quatro), ao Portão da
Piedade, ao quatros grandes sobrados à Rua Nova do Comércio, pertencentes ao
negociante Pedroso, e os dos também negociantes João Gonçalves Ferreira,
Manoel Antonio Gomes Francisco Lopes de Carvalho, Domingos Henrique dos
Reis, Antonio Raimundo a Paz, João Francisco Alvares, José Ramos Neves,
Francisco José da Rocha, Antonio Pinto Leite, Henrique Guilherme Coelho,
José Rodrigues da Costa; uma carreira de lojas em Santa Bárbara, 22 prédios na
Ladeira da Conceição da Praia e na Preguiça, além de muitos outros”.
(307) Silva Lima. A Bahia de há 60 anos. Revista do Instituto da Bahia, v. 21 p. 94.
(308) Wanderley Pinho. Narrativa, p. 737.
(309) Sacramento Black. Revista do Instituto Histórico Brasileiro, v. de 1887.
(310) João Christostomo Callado. Relatório sobre os acontecimentos, na Bahia. 1838.
(311) Daniel Gomes de Freitas op. cit. p. 722.
(312) Op. cit. p. 723.
(313) Correspondência Oficial do Ten.-Cel. M.J. Pinto Paca.

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Capítulo XV

PROCESSO E EXÍLIO

D a soma de sacrifícios que a revolução impusera à cidade rebelde,


basta um resumo do balanço apresentado pelo General Callado ao
governo imperial: 1.258 inimigos enterrados pelas suas tropas e 2.989
rebeldes aprisionados. Do grande exército revolucionário, que chegara
a atingir 5.000 homens, pouco restava. Todo ele fôra desbaratado
pelas investidas legais.
Mas, ocupada a cidade, restabelecida a ordem, ao Império
cumpria, agora infligir aos republicanos um castigo exemplar, rude e
que, atemorizando a Nação, a livrasse de novos surtos rebeldes. Dos
principais responsáveis, porém, muitos ao sentirem o fim próximo
da aventura revolucionária se haviam foragido. Desde o dia 14,
Sabino, Carneiro, Carneiro Filho, Freitas Guimarães e José Joaquim
Leite se haviam homiziado em lugar ignorado. José Nunes Bahiense
também desaparecera.
Começaram, então, as buscas em procura dos foragidos. As forças
imperiais varejaram as casas à cata dos chefes revolucionários. E

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durante oito dias foram infrutíferas todas as pesquisas. Não faltaria,
porém, quem denunciasse aos vencedores o asilo dos vencidos. E a
22, por indicação do Corneta Juvencio José de Sant’Anna e de José
Antonio Leitão, a quem se prometera uma recompensa, Sabino Vieira
e Alexandre Gueulette eram presos na casa do Cônsul frânces,
surpreendidos dentro de um guarda-roupa. Também nesse dia, numa
casa à Lapinha, eram detidos João Carneiro e Carneiro Filho, os
últimos dos chefes rebeldes a serem presos, exceto Nunes Bahiense e
Higino Pires Gomes, comandante da expedição à Feira de Santana, e
que não seriam encontrados.
O Governo tinha, agora, prisioneiros, os responsáveis pelo
movimento. Não se contentara, porém, em deter os de maior
projeção, os dirigentes. No seu afã de reprimir energicamente,
abarrotara as prisões de humildes soldados — depois remetidos para
o sul ou para Fernando de Noronha —, de simples homens do povo,
de intelectuais inermes. A mais leve culpa, uma simples suspeita, era
o suficiente para ser alguém envolvido nas malhas de uma denúncia,
de um processo. Nem o clero escapava. Os Padres José Antonio
Neves, subchantre, Manoel Ribeiro, Firmínio Henrique Ribeiro,
Antonio Tomaz de Aquino e Jacinto Teodoro Costa, só a 7 de março
de 1839 conseguiriam ser absolvidos, como o foram também os
empregados da Alfândega e a quase totalidade dos denunciados.
Para os chefes revolucionários, porém, ia começar um amargo
período de provações, tanto era o desejo de vingança da Regência.
Durante mais de dois anos, se arrastariam os processos através
dos tribunais do País. Para os réus, seriam dois anos de tortura, de
dúvida, de incerteza. A cada condenação seguia-se a esperança de um
recurso, mas logo a realidade desfazia a ilusão. Dois anos vividos
entre as condenações a morte e os intervalos das apelações. Dois
anos de expectativa, de angústia.
A primeira seleção feita foi entre os civis e militares, aqueles
entregues à Justiça Ordinária e estes, à Militar. A sociedade ia ser

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desagravada. Submetidos ao Conselho de Guerra, Sérgio Velloso,
Inocêncio Eustáquio, Sucupira e José Joaquim Leite foram
condenados à morte, variando as penas de prisão impostas aos demais.
Apelaram. E a Junta Militar da Bahia confirmou todas as sentenças
que, em grau de recurso, foram encaminhadas para o Supremo
Tribunal. E este, por acórdão de 14 de janeiro de 1840, não só
confirmaria as penas de morte impostas àqueles, como as estenderia
a Ignácio Joaquim Pitombo, Manoel José de Azevedo Coutinho, João
da Paixão, Marques Cardoso, Boaventura Ferraz, Pedro Barbosa Leal,
Rodrigo Ardignac e Manoel Florêncio do Nascimento (314), todos
condenados “à morte natural”.
Na Justiça Comum, o processo corria os trâmites legais.
Arrolavam-se as testemunhas, inquiriam-se os denunciados, faziam-
se as citações da lei. Não demorou a reclusão. Durante todo o tempo,
estiveram os presos divididos entre os porões das presigangas, os
navios de guerra e as cadeias da Relação e do Aljube.
A 2 de junho de 1838, reuniu-se na Bahia o júri que deveria
julgar os chefes civis do movimento. Foi o “Júri de sangue”, como o
chamou a Cidade, glosando com mordacidade uma frase do Promotor
Carvalho e Silva, que exclamara diante dos jurados: “É preciso aplacar
com o sangue dos revolucionários a poeira da revolução”. Ainda
estavam bem vivas as impressões deixadas pelos dias dramáticos da
República baiana. E o Conselho de Jurados pronunciou-se pelo
enforcamento de Sabino, João Carneiro e Carneiro Filho, condenando
os demais a penas de prisão. Diante dos três chefes revolucionários,
levanta-se o espectro da morte próxima. Podiam, porém, pedir outro
julgamento. E apelaram para novo júri. A Vila de São Francisco,
tradicional residência de grande parte da nobreza rural da Bahia, e
que tanto combatera as idéias liberais da Sabinada, foi o lugar
designado para o próximo julgamento. E a 7 de novembro de 1838,
quando se comemorava o primeiro aniversário da revolução, por
singular coincidência, pela segunda vez, os rebeldes compareciam

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perante o tribunal popular. Na sala ampla do velho convento dos
franciscanos, na Vila de São Francisco, reuniam-se os jurados sorteados
para funcionarem. Eram todos eles homens de bom sangue, largos
haveres e monarquistas. Na presidência, estava Miguel de Teive e
Argolo. E em torno à mesa, ocupando as cadeiras de talha cara,
recostados nos espaldares altos, estavam Araújo Góes, Vicente Ferreira
Gomes, Manoel Ignácio de Argolo e Queiroz, Joaquim Estanislau,
Salvador Muniz Barreto, João de Araújo Lima, Pedro José Joaquim
Ramos e Egas Muniz Ferrão, que ainda não atingira a maioridade. A
promotoria estava a cargo de José Moreira de Vasconcellos, jovem
professor de Retórica e advogado da Santa Casa de Misericórdia. No
dia seguinte, estavam concluídos os trabalhos — Sabino e João
Carneiro tinham confirmadas as penas de morte e Carneiro Filho
fora condenado a 14 anos de prisão. Não desanimavam, porém, os
réus da Sabinada dos seus esforços para retirarem do pescoço a corda
que, pela segunda vez, lhes era atirada pelos conselhos de sentença:
agora, pedindo que lhes salvassem as vidas, apelavam para o Tribunal
da Relação.
E, enquanto aguardavam esse novo pronunciamento da Justiça,
foram remetidos, a 18 de novembro, para as Cadeias da Relação,
sitas no andar térreo da Câmara Municipal da Bahia. Sabino, aí, se
juntaria a Alexandre Sucupira e José Joaquim Leite, também
condenados à morte pela justiça militar. Eram três homens em
desespero. A imagem do enforcamento próximo devia aterrá-los.
Precisavam de qualquer coisa que os desviasse desse pensamento
tenebroso. Necessitavam evadir-se da atroz realidade que os cercava.
Para isso, tomaram a atitude, provavelmente falsa, de desdenharem
as sentenças e passaram a portar-se “da maneira a mais escandalosa,
repreensível, e subversiva, representando Comédias, fazendo festins
estrondosos, e acintosos, mostrando assim o nenhum caso que faziam
de tais sentenças, a de pena última como se estivessem presos por
simples correção”, informava Evaristo Ferreira de Araújo ao Presidente

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da Província, Thomaz Xavier d’Almeida (315). O Governo, “receando
algum mau resultado do escandaloso procedimento”, determinou a
remoção de Sabino e dos seus companheiros para a fragata Príncipe
Imperial. A volta para o presídio infecto de bordo seria o preço do
mau comportamento dos sentenciados. E a 2 de março de 1839,
novamente Sabino era recolhido ao paiol da fragata que balouçava
tetricamente sobre as águas da Bahia.
Nada se poderia desejar de pior para servir de prisão aos
revolucionários baianos. O paiol da fragata era uma masmorra. Ao
seu ambiente poucos poderiam resistir. O próprio médico de bordo
atestara, a pedido de Sabino, não reunir o presídio as “qualidades
higiênicas que são necessárias à conservação da saúde”, não só pelo
pouco espaço e a umidade, bem como pelos “princípios miásmicos,
dizia o doutor Francisco de Macedo, que se desenvolvem
principalmente da água, que existe em putrefação em maior ou menor
quantidade na caverna do porão” (316). E não podia haver
depoimento mais insuspeito. Acrescia a isso ser Sabino um homem
doente, portador de uma gastro-hepato-enterite crônica, que
reclamava bons ares e bom trato, como atestaram os Drs. Vicente
Ferreira Magalhães, Antonio Policarpo Cabral e José Vieira da Faria
Aragão Ataliba, professores da Faculdade de Medicina. E, de posse
dessas provas sobre a insalubridade da prisão e da doença da Sabino,
o filho deste, Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira Júnior, dirigiu-
se ao Imperador, pedindo a transferência do pai para uma das cadeias
da cidade, “na qual posto que debaixo de ferros, não será vítima dos
tormentos, que sofre”. Realmente as torturas da prisão marítima eram
extraordinárias. Os próprios presos falando às autoridades da Província
deixaram a descrição desse bojo de navio que lhes servia de presídio.
Sabino, dirigindo-se ao Chefe da Polícia, diria estar “cumprindo uma
sentença de morte lenta, e cruel, que lhe não foi, nem podia ser,
imposta por algum Tribunal ou Autoridade legítima”. Outra não era
a expressão de José Joaquim Leite que, oficiando ao Presidente da

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Província, afirmava estar “em uma tal prisão, onde nem ao menos se
pode andar perpendicularmente danificada sem dúvida sua saúde, já
de muito anos precária, até que talvez, venha ali a findar seus dias”.
Ambos sentiam-se morrer aos poucos na prisão que lhes fora destinada
e que Alexandre Sucupira achava “ser só própria para corpos não
viventes ou mais para insetos”.
Desse modo, porém, cumpria-se o desejo de vingança do
Governo. Às penas pronunciadas pela justiça, as autoridades juntavam
o martírio dos infelizes revolucionários; perseguidos, desamparados,
não tinham por si, além da dos advogados, uma voz a defender-lhes
ou pelos menos a mitigar-lhes os sofrimentos, além da de Ângelo
Ferraz, futuro Barão de Uruguaiana, que na Assembléia Provincial
pedia a anistia para republicanos da Sabinada. Não eram, porém, os
três revolucionários homens que se deixassem vencer facilmente. E
cheios de humildade dirigiam-se os três ao Imperador, solicitando
clemência para que fossem livres dos flagelos e transferidos da prisão
e onde não podia “o desgraçado aí embocetado levantar-se, ou andar,
senão curvado”.
Desta feita, porém, a tenacidade com que protestavam os réus
contra o local da prisão surtiria efeito, sendo os três revolucionários
removidos para o Forte do Mar. Era um meio termo. A velha fortaleza,
construída numa coroa emergente do mar, cercada d’água, tinha a
segurança de uma prisão marítima e a relativa comodidade das cadeias
de terra. Ali, porém, Sabino mostraria que os longos meses de
sofrimento não lhe haviam abatido a têmpera de agitado. Os artigos
e os tormentos não haviam apagado em Sabino a idéia liberal. Uma
vez no Forte do Mar, em contato com a guarnição, esta seria logo
enleada pelas qualidades invulgares de sedução pessoal, pela dialética
do chefe da revolução baiana, que procuraria aliciar elementos para
uma nova empreitada rebelde, ao mesmo tempo em que escrevia um
periódico revolucionário. O Governo, no entanto, estava atento. Não
durou muito a permanência de Sabino no Forte do Mar. A

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tranqüilidade pública reclamava a permanência de Sabino no paiol
da fragata Príncipe Imperial, donde seria removido para a corveta 2
de Julho. Enquanto esperavam o pronunciamento do Tribunal de
Relação, os revolucionários eram hóspedes temidos das embarcações.
A 20 de julho de 1839, foi julgado improcedente o recurso e
mantidas pelo Tribunal de Relação as penas impostas pelo júri da
Vila de São Francisco. Poucas esperanças ficavam para Sabino e João
Carneiro, que viam sempre confirmada a pena de morte, que lhes
fora imposta desde o primeiro julgamento. Ainda se não haviam,
porém, esgotado os meios de defesa. Um último recurso — o Superior
Tribunal de Justiça — restava aos inconfidentes. E para ele apelaram
os condenados.
Antes, porém, que se manifestasse a mais alta instância da
magistratura, a política brasileira seria modificada por um golpe de
profundas conseqüências: a maioridade. Tramado e realizado por
políticos liberais, o fato novo transformava inteiramente o ambiente
nacional. E o jovem Imperador, num gesto de clemência e sabedoria,
estendia sobre todos os delitos políticos o perdão da anistia. A sorte
dos republicanos de 37 transmudava-se: a forca fora substituída pelo
degredo.
Era de 22 de agosto de 1840 o decreto da anistia. Os réus
escapos da morte e das galés seriam tangidos para o interior do País,
para lugares diversos, e que pela sua própria distância de grandes
centros os tornariam inofensivos à segurança pública. A guerra, porém,
fôra muito cruel para que os vencedores compreendessem a
generosidade imperial, que muitos receberam com desconfiança. O
Presidente da Bahia, Paulo José de Mello Azevedo e Britto,
participando ao Visconde de Abaeté o cumprimento de decreto de
anistia, acrescentara, traduzindo a impressão desfavorável causada pelo
gesto de clemência: “todos os súditos fiéis de Sua Majestade Imperial,
que puseram no Campo de Batalha suas vidas à mercê das balas dos
rebeldes tem os olhos fixos na conclusão do marcado destino de

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Brasileiros que, incendiaram a cidade, e lhes tingiram as ruas com o
sangue de seus irmãos”. A observação valia por uma advertência.
Trinta dias tiveram os proscritos para se prepararem para a
partida. E depois de assinarem, perante o Chefe de Polícia Gonçalves
Martins, o termo de compromisso, a 20 de novembro de 1840, os
revolucionários, ainda presos na Bahia, embarcaram na corveta
Regeneração, comandada pelo Capitão de Mar e Guerra José Joaquim
Raposo, com destino à Corte. Por mais temível, Sabino Vieira iria
sozinho para Goiás. João Carneiro, Carneiro Filho e Daniel Gomes
de Freitas, destinavam-se para São Paulo. Em Ouro Preto, deviam
fixar-se Sérgio Velloso, José Leite, Alexandre Sucupira e Inocêncio
Eustaquio. O francês Alexandre Gueulette seria posto fora do Império.
Outros foram mandados para o interior da Província.
Da Capital do País, cada um tomou o seu destino. E a 20 de
março de 1841, Sabino e os companheiros que deveriam ficar em
Ouro Preto, iniciaram a jornada do degredo. Começava um novo
ciclo na vida dos agitadores baianos. Para Sabinom, era o início da
via-crúcis. Contrastando com a paisagem bucólica do interior, a
calmaria das grandes florestas, os dias mornos das viagens infindáveis,
ele não teria um instante de tranqüilidade. Continuaria marcado pelo
mesmo sino de agitação e de sofrimento sob que parecia ter nascido.
1.500 quilômetros de estradas, quase intransitáveis, separavam o Rio
de Janeiro de Goiás. E era este o percurso a ser vencido a cavalo pelo
chefe da revolução baiana, tendo como dormida as margens das
aguadas. A travessia longa e áspera não modificaria, porém, o
temperamento de Sabino. Mal chegado a Goiás, onde devia residir,
renasceriam nele as mesmas paixões que o haviam levado ao exílio: a
política e o jornalismo. Nos altos e baixos da sua vida, eles estão
sempre presentes. E em Goiás não podiam desaparecer.
A população recebera-o num ambiente de desconfiança,
conseqüência da má tradição que o acompanhava. A presença, no
entanto, depressa desfez o ambiente de reservas. Como médico,

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conseguiria vencer as resistências que se lhe opunham, tornando-se
benquisto, estimado. Daí para a política era um passo. E Sabino
ingressou nas fileiras liberais de que era mentor Manoel Alves Ribeiro,
tornando-se em pouco tempo “chefe prestigioso do Partido Liberal
na capital de Goiás, onde conquistou inúmeros amigos e verdadeiros
admiradores” (317). Na política, porém, a sua grande arma era a
imprensa. Para combater as arbitrariedades e violências do Presidente
da Província, José de Assis Mascarenhas, começou a editar um pequeno
jornal O Zumbi, do qual tirava apenas 12 exemplares, a fim de fugir
aos rigores da lei da imprensa. A sua linguagem, como sempre, era
inflamada, violenta. Fez época. E a luta entre ele e o Presidente tornou-
se acesa. A corda teria, no entanto, que partir do lado mais fraco. E a
13 de abril de 1844, Assis Mascarenhas comunicava ao Governo
imperial que, a bem da tranqüilidade pública, Sabino fôra enviado
para o Forte do Príncipe da Beira, no extremo oeste do Brasil. Não
podia existir lugar mais ermo. Levantado nas margens do Guaporé,
190 léguas a baixo da cidade mais próxima — a cidade de Mato
Grosso — o velho forte, edificado em 1776, na imponência das suas
linhas grandiosas, tinha qualquer coisa de infernal. A própria
guarnição, de quando em quando, o abandonava...
Expulso de Goiás, o proscrito baiano, a 29 de agosto de 1844,
partiu para Mato-Grosso, de que era Presidente o Tenente Coronel
Ricardo José Gomes Jardim. A viagem, para aumentar os tormentos
do degredado, devia ser feita a pé. Mas, já na hora da partida, com as
algemas a segurar-lhe os pulsos, Sabino inspiraria a piedade de um
colega, o Dr. Teodoro Rodrigues de Moraes, que lhe ofereceu a
própria montada para realizar a jornada. Quarenta e oito dias foram
consumidos na travessia até alcançarem Cuiabá, a 16 de outubro,
onde fizeram uma parada de nove dias, durante os quais Sabino
atendeu a população, vítima de uma epidemia. Teriam, porém, de
prosseguir na marcha interminável. E, a 25 de outubro, o Presidente
da Província oficiava ao comandante do Forte, comunicando a partida

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de Sabino Vieira “a quem o governo, por tornar-se perigosa a
continuação de sua residência em Goiás, mandou que fosse
conduzido, com toda a segurança, para o forte do Príncipe da Beira,
a fim de ali residir, d’ora em diante debaixo de vigilância da respectiva
autoridade”.
Em favor de Sabino ia, porém, se levantar uma voz — a do
Imperador. E a 25 de outubro do mesmo ano, o Ministro da Guerra,
Manoel Antonio Galvão, participava ao presidente de Goiás “que
S.M. o Imperador há por bem que o referido anistiado seja conduzido
a essa Capital [Goiás] e nela se conserve, como dantes”... (318).
Chegaria tarde a clemência imperial. Sabino ao ser recebida a
ordem, já estava bem distante, em Mato-Grosso. As suas idéias liberais
haviam-no, porém, tornado um hóspede indesejável para os governos,
que o temiam. Como o Presidente de Goiás, o de Mato-Grosso
também não estimava a presença de Sabino. E a 25 de novembro,
Gomes Jardim escrevia ao Ministério do Império, observando que
“às idéias exageradas e anárquicas do referido anistiado podem
encontrar talvez simpatia e ser mais fatais nesta Província do que na
de Goiás”. Mas, enquanto, os governos o receavam, Sabino
continuava a varar o sertão, rumo à cidade de Mato-Grosso, aonde
chegou a 5 de dezembro. Sete meses permaneceu ele ali. Era um
instante de calma, de sossego, na sua vida de agitado. A tranqüilidade,
porém, para ele — tal era o seu destino — nada mais era do que um
intervalo breve. Em julho, as ordens imperiais para que tornasse a
Goiás vieram novamente perturbar-lhe os momentos de relativa
calmaria. Insurgiu-se, no entanto, o revolucionário contra a
magnanimidade do Imperador. Já agora era ele próprio que queria
seguir para o Forte do Príncipe da Beira. Não desejava mais voltar
para Goiás. Se o haviam obrigado a partir, agora era ele que se
empenhava por continuar em demanda ao extremo oeste brasileiro.
E a 26 de julho, Sabino requeria ao Juiz Joaquim Antonio
Vasconcellos Pinto uma ordem de habeas-corpus, a fim de poder

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prosseguir a viagem interrompida para o Forte do Príncipe da Beira.
No pedido havia alguma coisa de paradoxal, que só a personalidade
de Sabino podia explicar (319).
Deferida a petição, na mesma noite Sabino desapareceu da cidade
de Mato Grosso. De nada, porém, lhe valeria o salvo-conduto judicial.
Logo uma escolta saiu-lhe ao encalço, indo prendê-lo no Registro
de Jauru. Não lograra êxito o protesto de Sabino que, impotente
diante da força, teve de seguir para Poconé. Ali uma nova
oportunidade se lhe deparou para se revelar o médico caridoso. A
população devastada por uma dessas epidemias do interior acorreu a
ele em busca de tratamento. E de tal modo procedeu o infeliz agitador
que, a 13 de outubro, a Câmara Municipal se dirigia ao Presidente da
Província pedindo que se dignasse ordenar permanecer “onde se achava
o doutor em medicina Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira,
atenta a necessidade que ainda experimentava o mesmo Município”
(320). Esquecia-se a Câmara de que ao Governo não importava curar
doentes — o essencial era castigar o criminoso. Sabino não podia
parar. E o próprio Chefe de Polícia, Manoel Pereira da Silva, veio
buscá-lo. Não mais o encontrou. Cansado de sofrer, desesperado
diante da perseguição, o anistiado preferira fugir, indo homiziar-se
na fazenda Jacobina, de propriedade dos Pereira Leite. Acolhido num
ambiente de cordialidade, Sabino viu-se abrir os seus olhos uma vida
nova, de paz. Não perdera, porém, o ideal: pregar as suas idéias
liberais; “prosseguiu na predica. Mesmo ali, segregado da sociedade,
ainda continuaria a da suas crenças republicanas aos moços, que ele
sabia os velhos monarquistas” (321). Usava para isso da “palavra
fácil, eloqüente, arrebatadora” (322) e, sobretudo desse instrumento
que ele tanto manejara e tanto amava — a imprensa. Redigiu, então,
um pequeno jornal, O Bororo (323), onde emitia o seu pensamento,
fixando numa ação mais eficaz o poder da sua inteligência. E, ao par
disso, a atividade de clínico consumia-lhe o tempo. Apesar da saúde
abalada, realizava “freqüentes viagens a cavalo, que fazia para acudir

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os doentes, sem distinção de classe nem de fortuna, que o mandavam
chamar” (324). No fim da vida, alquebrado, depois de um longo
sofrimento, Sabino ainda continuava o mesmo.
O Governo, porém, não o esquecera. Mais de um ano já se
escoara sem que tivesse notícias do foragido, mas ainda continuava a
recomendar às autoridades de Poconé que se não descuidassem das
buscas em procura de Sabino Vieira. Fosse para onde fosse, Sabino
em pouco tempo tinha atrás de si a matilha lançada pelo Governo.
Não podia haver maior tortura do que essa de saber-se constantemente
procurado, sempre sob a ameaça de uma nova prisão. Escondido
numa fazenda do interior de Mato-Grosso, sob a proteção de uma
família importante, ainda assim não podia confiar na sua segurança.
A cada passo, a cada minuto, poderia estar detido. E a 12 de outubro
de 1846, dando vazão ao sentimento, Sabino escrevia: “Asilado por
entre as brechas que arreiam o majestoso Paraguai na Província de
Mato-Grosso, contra tão inútil e extravagante perseguição que me
há jurado o governo do meu País, proscrição que mais me tem servido
para emprestar-me a importância que aliás não mereço”. Nesse trecho
parecia sentir que do martírio lhe viria à glória. E ele bem poderia
dizer como o poeta:

assim, não morrerei, porque sofri!

Realmente, poucos padeceram como ele. A anistia fora pior do


que a morte. Durante seis anos, não conhecera um instante de
tranqüilidade plena, perfeita. O exílio fôra para ele um caminho sem
fim, através as matas-virgens de Goiás e de Mato-Grosso. A morte,
porém, estava próxima. A vida cansara-se de torturar Sabino Vieira.
E a 25 de dezembro — triste Natal! — quase repentinamente, Sabino
Vieira faleceu. Morte tão rápida, que nem permitira que
administrassem os sacramentos ao moribundo. Era o fim. O fim de
uma vida de sofrimentos e de angústia. Sabino Vieira, o agitado, o

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irrequieto, o rebelado, o criminoso, ia descansar. Na pequena e humilde
capela da fazenda Jacobina, sob a invocação de Santo Antonio —
santo guerreiro —, abriu-se uma cova rasa para receber os despojos
do chefe da República baiana de 1837. Cobriu-a uma campa de
madeira, comovente lembrança de um amigo, um desses amigos como
os muitos que ele soubera cativar e conquistar. Nela se inscreveu a
seguinte dedicatória:

Tributo ao Saber e a Amizade. Aqui


Dorme o Sono dos Mortos o Dr. F. Sabino
A. da R. Vieira. Nascido na Província da
Bahia. Faleceu aos 25 dias do Mês de Dezembro de
1846.
Deixando Após a sua morte Saudosas Recordações.
Ao seu compe. e amigo.
I. C. P. Leite.

A morte dava a Sabino Vieira isso que a vida lhe negara


sempre: a paz.

NOTAS
(314) Daniel Gomes de Freitas op. cit. p. 727.
(315) Wanderley Pinho A Sabinada. Novos documentos, p. 780.
(316) Op. cit. p. 748.
(317) Carta do Senador Ramos Caiado. Revista do Insituto Histórico da Bahia.
(318) Agenor Miranda. Os últimos dias do chefe da rebelião baiana de 1837: A Sabinada.
Revista do Instituto Histórico da Bahia, v. 49, p. 287. O presente trabalho nos
prestou relevante auxílio para a reconstituição desse período da vida de Sabino
Vieira.
(319) Idem, p. 299.
(321) Carta de Manuel Nunes da Cunha apud Agenor Miranda.
(322) Carta de Luiz Benedito Pereira Leite, de 28-12-1908, apud [Agenor Miranda?
N. E.]

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(323) Carta da Baronesa de Vila Maria de 12-1-1896. Revista do Instituto Histórico da
Bahia, v. 19 p. 386.
(324) Agenor Miranda op. cit. p. 313.

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ANEXO A

ATAS MAÇÔNICAS REFERENTES À PERMANÊNCIA DE


BENTO GONÇALVES NA BAHIA

Ata maçônica de 30 do 6º mês de 5837: “... Teve lugar


igualmente a leitura de outra prancha a dirigida pelo Ir.: R.: C.:
Bento Glz. da Sa., preso no Forte do Mar por efeito de comoções
políticas, fazendo ver o estado em que se achava, e a vista do que
pedia o único recurso de lhe serem ministrados meios de ser mudado
para uma prisão cômoda, onde fosse lícito falar aos seus amigos; do
que sendo a L.: inteirada foram nomeados pelo Ir.: Vem.:, para
visitarem ao dº Ir.:, e lhe oferecerem os socorros de que ainda
precisasse, ou estivesse ao alcance da L.:, os Ir.: Roberto, Thes.: e
Orad.: Adj.:, o qual pelas razões que manifestou foi substituído pelo
Ir.: Mestr.: de Cer.:”.
(Livro de Atas da L.: Fidelidade e Beneficência, nº 1, mss. — Nota: Ata
publicada por Borges de Barros, mas com incorreções).

Ata maçônica de 28 o 6º mês de 5837: “... O Ir.: Secretº


apresentou uma prancha do Ir.: Bento Glz da As. Gr.: 18 de que
ficou a L.: ciente, sendo logo nomeados os II.: Guimarães, Manoel
Joaquim e Marques para se dirigirem por parte da L.: ao Ir.: a
participarem-lhe que ela ficou inteirada, e que faria o que estivesse a
seu alcance a fim de melhorar a sua sorte e observando o Ir.: Paulo
José Max.do que visto o seu Gr.: se nomearem IIr.: do
Gr.:correspondente, e não havendo nesta Aug.: L.: fossem os de
maior, sendo então substituídos os dois últimos pelos IIr.: e Sec.:”.
(Livro de Atas da L.: Virtude no Oriente da Bahia, nº 1, mss. — Ata lida por
Pedro Calmon, no Instituto Histórico da Bahia).

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ANEXO B

RELAÇÃO DOS LIVROS ENCONTRADOS NA CASA DE


SABINO VIEIRA E QUE, TALVEZ, SIRVAM PARA O
ESTUDO DE SUA PERSONALIDADE

“Vida dos Homens ilustres de Plutarco, em quinze volumes;


Dicionário Filosófico de Voltaire, em quatorze volumes; Ensaio sobre
os costumes e Espírito das Nações por Voltaire, em oito volumes;
Memórias de Silvio Pellico, um volume; Entretenimentos sobre a
pluralidade dos mundos, um volume; Voltaire, Melanges
Philosophiques, dois volumes; Say, Curso de Economia política ,
quatro volumes; Lepage, dois volumes; Deveres dos Homens, de
Sílvio Pellico, um volume; Say, Cartas a Malthos, um volume; Ganilh,
do Poder e da posição, um volume; Influência da Democracia sobre
a liberdade, um volume; Da Democracia, por Tocqueville, dois
volumes; Espírito da Enciclopédia, quinze volumes; Fontenelle,
química medical, um volume; L’exploration de La Poitrie, um
volume; Formulário de Magendia, um volume; Segur, História de
Napoleão, dois volumes; Obras de Montesquieu, oito volumes;
Obras D’elvecio, três volumes; Delitos e penas, um volume; Richard,
Botanica e Fisiologia, um volume; Coleção das contribuições, seis
volumes; Magendi, Fisiologia, dois volumes; Vatel, Direito das
Gentes, dois volumes; Richerand, Fisiologia, dois volumes; Santo
Ilário, Viagem ao Brasil, dois volumes; Briand, Manual de higiene,
um volume; Begin, Fisiologia Patológica, dois volumes; Proscrição
de São Bartolomeu, um volume; Adelon. Fisiologia do homem,
quatro volumes; Broussais, Fisiologia, dois volumes; Anatomia de
Bichat,cinco volumes; Rostand Gigiene, dois volumes; Orfla, digo
offila Medicina legal, três volumes; Halle´s Fisiologia, dois volumes;

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Cabans, dois volumes; Bichat, Anatomia geral, quatro volumes;
Tratado das Membranas, um volume; Bichat, Vida e Morte, um
volume; Brilland, Medicina legal, um volume; Gallois, Experiências,
o principal da vida, um volume; Estória Natural da Raça Humana,
um volume; Mayósoutlines of fisiologi., um volume; Orfila, um
volume; Socorros dido Orfila, socorros aos asfixiados, um volume;
Deslandes, Manuel de Higiene, um volume; Orfila, Elementos de
Química, dois volumes; Dicionário de Química, cinco volumes;
Chaptal, Química, quatro volumes, digo três volumes; Thenard,
Química, cinco volumes; Richard, dois volumes; Botânica Médica;
Quimica de Lavoisier, três volumes;Velpeaço, Anatomia Cirúrgica,
dois volumes; Meguiné, Revolução Francesa, dois volumes; Arte de
marcar as dores dos remédios, um volume; Bailles, Metrologia, digo
Melcorologia, um volume; Formulário dos Hospitais, um volume;
Formulário Magistral, um volume; Morat, Governo Republicano,
um volume; Casenave, Moléstia da pele, um volume; Vircy, Filosofia
natural, um volume; Santo Helário, Filosofia Zoológica, um volume;
Ratier, Formulário, um volume; Begin, Medicina operatória, um
volume; Manual de Matéria Médica, um volume; Campanha de
Bonaparte, um volume; Guilherme Tell, um volume; Macinas de
Rochefoucould, um volume; Contrato social de Rousseau, um
volume; Rechard, das Fórmulas, um volume; Formulário magistral
de Alibert; um volume; Deserção, ou resumo de éteres da Medicina,
um volume; Dicionário das Ciências Médicas, sessenta volumes,
faltando o número trinta e um e cinqüenta e um; Dicionário de
Medicinas, vinte e um volumes; Rocher, Patologia cirúrgica, cinco
volumes; Broussais, Phailegmasias, três volumes; Richerand,
Nozographia, quatro volumes; Laenneo, Auscultação mediata, dois
volumes; Andral, Anatomia Patológica, três volumes; Idem, Maladies
de Poitrine, dois volumes; Doutrina Médica, um volume; Rostan,
Medicina Clínica, três volumes; Pinel, Nozographia, três volumes,
Chomel, Febre Tifóide, um volume; 8 Idem, Elementos de Patologia,

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um volume; Broussais, Refutado por si mesmo, um volume; Danger,
Da Doutrina de Brossais, um volume; Pinel, Medicina Clínica, um
volume; Boissear, Fisiologia, um volume; De eritação e loucura, um
volume; Nova Doutrina Médica, um volume; Refutação de Brucé,
digo de Broussais, um volume; Dupuytren, Clínica cirúrgica, dois
volumes; Moygrier, Partos, dois volumes; Aliberti, Moléstias da pele,
dois volumes; Scárpa, Moléstia dos olhos, dois volumes; Obras
cirúrgicas de Astlescoop, dois volumes; Idem de Desault, três
volumes; Pronósticos de Hyprocratis, dois volumes; Geografia de
Balbi, um volume; Velpeau, Tratado dos partos, um volume; Tratado
das fundas, um volume; Jobert, Feridas das armas de fogo, um volume;
Coster, operações cirúrgicas, um volume; Pavarnier, Manual de
Terapêutica, dois volumes; Manejo dos Partos. Um volume;
Capurose, Moléstias das mulheres, um volume; Idem, Idem dos
Meninos, dois volumes; Blandin, Anatomia, um volume; Begin,
Aplicação da doutrina filosófica e cirúrgica, um volume; Cursos dos
Partos, um volume; Scarpa, Aneurisma, um volume; Outlines of
Mid Zifery, um volume; Idem Idem, The surgeons’s, um volume;
Compêndio popular de Anatomia, um volume; An acount of a new
method of making died anatomical preparations, um volume;
Elementos gerais de Patologia, um volume; Primeiras linhas da prática
de cirurgia, um volume; The hancet, dois volumes; Gilbras, quatro
volumes; História Natural de Berfon, truncada e com volumes
repetidos, quarenta volumes; Gullen, Maeria Médica, dois volumes;
Leis Militares, dois volumes; faltando o segundo; Medicina dos
Meninos, doze volumes; Sílvio Valéria, um volume, Farmacopea
Lundinence, um volume; Mecelanias Evangélicas, um volume;
Ensaios morais de Pope, um volume; Instrução de infantaria, um
volume; Outlines of Mid Wifey, um volume; Ensaios Filosóficos de
Locke, quatro volumes; Língua de cálculo de Coudillac, um volume;
Chave Brouniana, dois volumes; Conhecimento de medicamento,
dois volumes, faltando o primeiro; Patologia de Ganbins,um volume;

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e Arte de receitar as fórmulas de Medicina, um volume; Paraíso perdido
de Milton, um volume; Elementos de Euclides, um; Regulamento
de cavalaria Pruciana, um; Felosopria de Newton, um; Nova Teoria
de fisionomia, um; Manual de Anatomia descritiva, um; Ensaios
sobre enfermidades de Angola, um; Instrução sobre o tratamento
dos asfixiados, um; Regulamento de infantaria, um; Escolha
fundamental ou método fácil de aprender a ler, um volume; Velozo
Alcalis, um; Farmacapea geral, um Jerocomia, um; Europa e América,
um; Escolas Normais, um; Poemas de Kentish, um; Desertação
Inaugural das regiões cálidas, um; Moléstias das mulheres prenhas,
dois volumes; Maygrier, demonstrações de parto, um volume; Tratado
das fundas, um; Embriologia de Nelpean, um; Anatomia Topográfica,
um; Manual de Tísica Divertida, dois volumes, faltando o primeiro;
Novo e Velho Testamento, um volume; dicionário de Moraes, dois
volumes; Tratado completo dos Partos ou Atlas, um; Anatomia
cirúrgica, ou Atlas, um; Dicionário Inglês de Vieira, um; Idem Francês
Portateli, um; Caramurú e Poema Ético, um; Revista Médica
Fluminense, vinte folhetos; e vários outros folhetos e gazetas que
ficarão com estas obras e dois Escarpelos nas Estantes referidas”.

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ANEXO C

OFÍCIO DE BERNARDO PEREIRA DE VASCONCELOS


EM 17 DE NOVEMBRO DE 1837

(Reservado)

Illmo. E Exmo. Snr.

Recebi a 15 o Ofício de V. Exa. de 7 do corrente a bordo do


Brigue Três de Maio, no qual participa ter-se emfim realizado a revolta
que receava, principiando esta pelo Corpo de Artilharia, e
consumando-a pela traição dos outros Corpos de 1.ª Linha, e Policial,
excetuados apenas os Imperiais Marinheiros, e uma pequena porção
da Guarda Nacional. O Regente interino em Nome do Imperador
ouviu com a mais viva dor quando V. Exa. expôs a este, respeito, não
progredir, descarregou um golpe muito prejudicial no bem estar, e
prosperidade dessa Província, e de que as outras hão de rescutir-se.
O mesmo Regente aprovou o expediente tomado por V. Exa.
de se passar para bordo do mencionado Brigue, e de oficiar dele aos
proprietários, e influentes na Província; das quais a de esperar que
coadjuvem ao Governo no justo empenho de salvar o país, de
anarquia que o ameaça. E o mesmo Regente me ordena que declare a
V. Exa. que releva não abandonar jamais a Província senão no caso
extremo, e improvável de que não possa a sua presença nela ao menos
contribuir para o restabelecimento de nossas instituições. A posição
a bordo de uma embarcação de guerra é segura e vantajosa, e V. Exa.
a não deve deixar senão, ou quando em terra nada tenha que recear,
ou a sua presença ali seja indispensável para alguma importante
operação.

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Podendo concorrer para a mais pronta derrota dos revoltosos o
assédio da Cidade, o Regente interino lembra a V. Exa., e desde já a
declararia, e aos outros pontos ocupados por eles, em rigoroso
bloqueio, se tivesse conhecimento mais circunstanciado do estado
da Província. Este assédio V. Exa. procurará tornar efetivo,
interceptando as comunicações por terra, e mar com destacamentos,
e vasos de guerra.
Também com este receberá V. Exa. o Decreto autorizando-o
destacar mil e quatrocentos Praças da Guarda Nacional dessa
Província, para as empregar no serviço mais adaptado as suas
circunstâncias. Para este destacamento chamará V. Exa. os Guardas
Nacionais que com mais brevidade possam apresentar-se, pedindo-
os aos Corpos mais próximos que possam fornecer das três classes
mencionadas no Decreto de 9 de Outubro, das quais serão tiradas
indistintamente.
Ao Presidente da Província de Pernambuco é nesta mesma data
ordenado que mande tocar nesse porto a Expedição, que daquela
Província segue para a do Rio Grande do Sul, e V. Exa. é autorizado
a fazer desembarcar, e a empregar no serviço dessa Província, e para o
fim de sua pacificação a Tropa de 1.ª Linha que nela houver, como
lhe será comunicado pela Repartição da Guerra.
O Regente interino se vê também na necessidade de autorizado
a V. Exa. para dissolver todos os Corpos de 1.ª Linha, devendo remeter
os Soldados para esta Corte ou para o Rio Grande do Sul, segundo
mais convier. Os Oficiais dos Corpos dissolvidos que estejam
implicados na revolta, viram presos para esta Capital, ficando V. Exa.
na Inteligência que deve ir retirando da Província para esta, ou para
a do Rio Grande do Sul, as Praças de 1.ª Linha, que se forem
apresentando, e que possam aí alterar o sossego, ou obstar ao seu
restabelecimento, na forma que he será declarada pela Repartição
competente.

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Se o novo Presidente não tiver ainda tomado posse, poderá V.
Exa. mardar-lhe dar, ou a bordo desse mesmo Brigue, se estiver nas
águas do Município da Cidade, ou na Câmara de Itaparica, ou em
outra qualquer esteja a Capital ainda em posse dos revoltosos.
Não se descuide V. Exa. de reunir a Assembléia Legislativa
Provincial, inda a bordo de qualquer vaso, se entender que, com os
seus membros proprietários, poderá obter maioria, dar posse ao seu
sucessor, e facilitar a queda dos revoltosos, e o conseguimento da
tranqüilidade pública.
Não pode, a tanta distância, descer o Regente interino a
particularizar a marcha, que V. Exa. deve seguir em negócio tão
delicado, mas o mesmo Regente confia que V. Exa. não poupará
diligência, e esforços para a pronta pacificação dessa Província,
preferindo sempre todos os meios conciliatórios, sem que com tudo
sejam tais, que, considerados, pelos revoltosos, como filhos de
fraqueza, e não de prudência, e generosidade os não acoroçoem, e
obstinem no crime. Deus Guarde a V. Exa. Palácio do Rio de Janeiro
em 17 de Novembro de 1837.
P. S. — Autorizando-se no Decreto incluso ao Presidente da
Província de Sergipe a destacar a Força de 400 Praças da Guarda
Nacional da mesma Província, ordena Regente interino que se V.
Exa. julgar conveniente que não tenha por ora lugar a realização
daquele destacamento, ou por não convir retirar dali forças, ou pro
achar-se aquela Província em comoção, V. Exa. reenvie o dito Decreto
ao Governo Geral. Devo também prevenir a V. Exa. que posto que
se mande por as ordens de V. Exa, a Corveta Carioca, convém que V.
Exa. a faça quanto antes partir para o Pará visto levar ela munições de
guerra e outros objetos para a dita Província. Deus Guarde a V. Exa.
Palácio do Rio de Janeiro em 17 de Novembro de 1837.
(A.) Bernardo Pereira de Vasconcellos
Snr. Francisco de Souza Paraíso.

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COLOFÃO
Formato 15 x 21 cm

Tipologia Galliard BT 10,5/15

Papel Alcalino 75 g/m2 (miolo)


Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)

Impressão Setor de Reprografia da EDUFBA

Capa e Acabamento Bigraf

Tiragem 600

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