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O DIREITO À CIDADE E OS SUJEITOS COLETIVOS DE DIREITO1

THE RIGHT TO THE CITY AND THE COLLECTIVE SUBJECTS OF LAW

Andrielly Larissa Pereira SILVA2


Lorena de OLIVEIRA3

RESUMO

Investiga-se a relação entre sujeitos coletivos de direito e direito à cidade. Com revisão
bibliográfica, analisa-se a formação urbana e o direito em questão; ainda, os sujeitos coletivos
de direito. Conclui-se que a construção mercadológica da cidade gera carência de direitos e,
assim, sujeitos coletivos surgem e são capazes de criar o direito à cidade, seja influenciando
no campo institucional ou na coexistência de sistemas jurídicos.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à cidade, sujeitos coletivos de direito, pluralismo jurídico.

ABSTRACT

The relationship between collective subjects of law and the right to the city is investigated.
With bibliographic review, the urban formation and the law in question are analyzed; still, the
collective subjects of law. It is concluded that the marketing construction of the city generates
a lack of rights and, thus, collective subjects arise and are able to create the right to the city,
either influencing the institutional field or the coexistence of legal systems.

KEYWORDS: Right to the city, collective subjects of law, legal pluralism.

1. Introdução

Diante da crescente urbanização no Brasil, principalmente a partir da década de


1970, a pesquisa sobre o direito à cidade se mostra essencial para promover a efetivação de
diversos direitos fundamentais. A falta de planejamento urbano e a forma de expansão das
cidades têm implicado em violação de garantias, principalmente para determinados grupos

1
Trabalho apresentado no GT7 • Direito à Cidade.
2
Mestranda em Direito pela Universidade de Brasília. E-mail: andriellylarissa17@gmail.com
3
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás. E-mail:
lorenadeoliveira03@gmail.com

1
sociais. Há de se compreender a dinâmica da construção e das disputas do espaço urbano para
verificar quais elementos geram a negação de garantias constitucionais.
Dessa forma, a presente pesquisa possui como objetivo analisar de que forma a
dinâmica de disputas e de construção do espaço urbano garante ou obsta o direito à cidade.
Ainda, como a atuação dos sujeitos coletivos de direito influencia na efetivação do direito à
cidade. Para tanto, serão analisados quais são os aspectos que permeiam a formação da cidade
e qual a concepção que se constitui do direito à cidade. Dada a interdisciplinariedade que a
complexidade do fenômeno urbano demanda, a análise será feita a partir de estudiosos de
diferentes áreas, com embasamento principal em David Harvey e Henri Lefebvre.
Nesse cenário, pretende-se investigar como os sujeitos coletivos de direito surgem,
como atuam na formação do espaço urbano e, sobretudo, como enunciam direitos. A análise
dessa categoria será realizada principalmente a partir de obras de José Geraldo de Sousa
Júnior. Ademais, será considerada como base analítica a teoria do pluralismo jurídico,
enquanto concepção teórico-metodológica, sendo Antônio Carlos Wolkmer o principal
referencial.

2. A cidade e seus muros (in)visíveis

A cidade é objeto de estudo de vários campos da ciência, dada a complexidade das


relações sociais que envolvem a realidade urbana. O modo de organização social e a dinâmica
da construção do espaço urbano não conseguem ser compreendidos e limitados pelas normas
jurídicas positivadas. Dessa forma, para além de uma análise limitada às fórmulas dadas pelo
legislador, faz-se necessária uma abordagem que considere as pesquisas e contribuições dos
demais campos do saber e que, assim, possibilite uma reflexão mais ampla sobre a cidade e os
direitos que a integram. Nesse sentido, o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre, pioneiro
na análise do direito à cidade assim denominado, reconhece as limitações das ciências
parcelares para a compreensão da cidade e do urbano e afirma que “não se pode pretender que
a cidade tenha escapado às pesquisas dos historiadores, dos economistas, dos demógrafos, dos

2
sociólogos. Cada uma destas especialidades traz sua contribuição para uma ciência da
cidade.” (LEFEBVRE, 2001, p. 43).
Essa multidisciplinaridade e as várias perspectivas que existem normalmente dentro
de uma mesma ciência suscitam a existência de diversas teorias sobre a cidade, que podem
variar conforme o método científico adotado, os elementos de pesquisa do campo da pesquisa,
dentre outros fatores. Sem a pretensão de se alcançar um conceito hermético e fixo de cidade,
objetiva-se refletir sobre elementos que envolvem a construção do espaço urbano e as
características da cidade.
O espaço urbano é construído a partir da ação humana e, por isso, a reflexão sobre o
urbano envolve a análise da dinâmica social existente. A cidade, fruto dessa construção, se
vincula diretamente com as relações sociais. Nessa perspectiva, Lefebvre indica que:

A cidade é a obra a ser associada mais com uma obra de arte do que com o
simples produto material. Se há uma produção da cidade, e das relações
sociais na cidade, é uma reprodução de seres humanos por seres humanos,
mais do que uma reprodução de objetos. A cidade tem uma história, isto é,
de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas
condições históricas. (LEFEBVRE, 2001, p. 52)

Essa obra de arte é moldada conforme os anseios humanos e, assim, o tipo de cidade
se relaciona com o que queremos nos tornar. Construímos a cidade e somos construídos por
ela, de forma que a arte também molda o artista. Ao indicar essa construção mútua, o
sociólogo Robert Park, sustenta que a cidade é:

a tentativa mais bem-sucedida do homem de reconstruir o mundo em que


vive o mais próximo do seu desejo. Mas, se a cidade é o mundo que o
homem criou, doravante ela é o mundo onde ele está condenado a viver.
Assim, indiretamente, e sem qualquer percepção clara da natureza da sua
tarefa, ao construir a cidade o homem reconstruiu a si mesmo. (PARK, 1967,
p. 3 apud HARVEY, 2008, p. 73)

3
Compreendida a relação de construção recíproca, a própria cidade pode aprofundar a
estrutura social e suas desigualdades. Dessa forma, destaca-se que não há uma passividade da
cidade, mas sim, uma contribuição para configurar a estrutura social, podendo ser, assim, um
mecanismo de geração e apropriação de riqueza (VAINER, 2002, p. 27). A cidade, nesse
sentido, possui um caráter político que não pode ser ignorado. A forma de organização do
território dialoga com a organização da vida social e demonstra uma relação política. Assim,
“indissociável à existência material da cidade está a sua existência política.” (ROLNIK, 2004,
p. 8). Reconhecido o caráter político, além de ser um complexo de relações sociais, a cidade
também possui relações de poder que frequentemente determinam quais anseios humanos
predominam sobre os demais e quem vai ter acesso a eles. O aspecto político da cidade está
presente tanto na relação dos grupos que coexistem na cidade e suas ações, quanto nas
instituições responsáveis pela gestão urbana (o Estado) ou aquelas que atuam nessa gestão,
mesmo que não oficialmente. Nesse contexto de diversidade de atores políticos, Lefebvre
sustenta que a cidade:

se situa num meio termo, a meio caminho entre aquilo que se chama de
ordem próxima (relações dos indivíduos em grupos mais ou menos amplos,
mais ou menos organizados e estruturados, relações desses grupos entre eles)
e a ordem distante, a ordem da sociedade, regida por grandes e poderosas
instituições (Igreja, Estado), por um código jurídico formalizado ou não, por
uma “cultura” e por conjuntos significantes. A ordem distante se institui
neste nível “superior”, isto é, neste nível dotado de poderes. Ela se impõe.
(LEFEBVRE, 2001, p. 52) (grifo nosso).

Dessa forma, há uma ordem distante e superior que se impõe na relação complexa de
construção da cidade e do urbano. Na composição dessa ordem, resta mais evidente a
presença do Estado, atual responsável oficial pela gestão e planejamento urbano. A arquiteta e
urbanista brasileira Raquel Rolnik assevera que, no contexto de formação dos Estados
modernos, surgem elementos determinantes na organização das cidades: primeiro, a
mercantilização do espaço, onde a terra urbana é uma mercadoria; segundo, a divisão de

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classes; e, por fim, a existência de um poder centralizado que interfere diretamente na
condução do destino da vida cotidiana dos cidadãos (ROLNIK, 2004, p. 39).
Por sua vez, Lefebvre (2001, p. 35) sustenta que, no processo de industrialização, a
cidade rompe com o sentido de obra e torna-se produto, configurando-se em cidade-
mercadoria. Nesse contexto, ele trabalha o conceito de valor de uso e valor de troca na cidade.
O primeiro se refere à própria cidade e a vida urbana, o tempo urbano. O segundo são os
espaços comprados e vendidos, o consumo dos produtos, dos bens, dos lugares e dos signos.
A cidade-mercadoria é subordinada ao valor de troca, de forma que o espaço é
construído para a geração de produtos. Rolnik (2004, p. 29) indica que essa configuração de
cidade dominada pelo mercado ainda predomina atualmente, ressalvadas as particulares
históricas, sendo um elemento próprio das cidades capitalistas. A organização pela ótica do
lucro pode ser verificada na existência do mercado imobiliário, que lucra com a especulação
dos imóveis na cidade4, com aumento de seus valores de venda e dos preços dos aluguéis; ou
na atuação de construtoras e financeiras que lucram diretamente com a própria produção do
espaço urbano. A lógica da geração e captação das rendas fundiária e imobiliária, aumenta os
preços dos terrenos e imóveis e, com isso, a escassez de moradias e a segregação territorial
são produtos desse mercado da cidade. (MARICATO, 2002, p. 159).
Os investimentos, governamentais e privados, regulam quem terá o direito à cidade.
São eles, seguindo a lógica mercadológica, que vão delimitar a qualidade de vida de cada
bairro e influir nas características da consequente segregação territorial. (MARICATO, 2002,
p. 182). Dessa forma, as atuações do Estado e das instituições privadas se pautam por uma
supervalorização do valor de troca e, por sua vez, o valor de uso, que seria a vida urbana, é
deixado em segundo plano. A priorização de produção de mercadorias culmina em limitação
de acesso à cidade para aqueles que não possuem poder aquisitivo. Assim, a cidade deixa de
ser obra e se torna produto, acessível apenas aos que possuem condições econômicas.

4
Sobre o tema, Campos Filho (1999, p. 48) indica que a especulação imobiliária é “uma forma pela qual
os proprietários de terra recebem uma renda transferida dos outros setores produtivos da economia,
especialmente através de investimentos públicos na infra-estrutura e serviços urbanos”.

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Nesse contexto, impera a segregação socioespacial, isto é, a periferização de grupos
sociais no espaço das cidades, devido à baixa renda acompanhada normalmente com a
questão racial. Para esses grupos marginalizados, a cidade é negada e não há acesso aos bens
e serviços públicos em geral. A segregação, produto de uma base política e econômica, faz
com que cada grupo tenha seu local no espaço urbano.“É como se a cidade fosse demarcada
por cercas, fronteiras imaginárias, que definem o lugar de cada coisa e de cada um dos
moradores” (ROLNIK, 2004, p. 41). Há, assim, muros (in)visíveis (para aqueles que não
conseguem ou fingem não ver).
Cria-se cidades fragmentadas, onde aqueles com menor poder econômico e político
não possuem acesso aos direitos que envolvem o viver urbano. Há uma nítida desigualdade de
tratamento dado pelo Estado na gestão urbana na cidade-mercadoria, porquanto políticas
públicas urbanas se desvirtuam e se associam à valorização de espaços na lógica
mercadológica. O investimento de infraestrutura ocorre em bairros nobres e aos que possuem
baixa renda restam, a depender da atual gestão política do Estado, apenas programas
habitacionais em áreas distantes das que são valorizadas. Com isso, o Estado que segue a
lógica mercadológica na cidade intensifica ou mesmo gera a segregação socioespacial,
acompanhada pela desigualdade socioeconômica e violações de direitos. Destaca-se que a
forma de atuação do Estado para com a cidade se relaciona diretamente com a existência ou
não de uma democracia efetiva. Nessa perspectiva, Lefebvre assevera que:

[...] As segregações que destroem morfologicamente a cidade e que


ameaçam a vida urbana não podem ser tomadas por efeito nem de acasos,
nem de conjunturas locais. Contentemo-nos com indicar que o caráter
democrático de um regime é discernido em relação à sua atitude para com a
cidade, para com as “liberdades” urbanas, para com a realidade urbana, e por
conseguinte para com a segregação. [...] (LEFEBVRE, 2001, p. 99).

Constitui-se, assim, como um dos elementos que marcam a realidade das cidades,
ressalvadas as particularidades regionais, a segregação socioespacial. O acesso a direitos se
relaciona diretamente com a organização socioespacial das cidades e, nesse sentido, a forma

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de construção do espaço urbano pode garantir direitos ou negá-los. Ou, como normalmente
ocorre, pode implicar na limitação do acesso ao uso da cidade e aos direitos que se relacionam
ao viver urbano, destinados àqueles que possuem poder aquisitivo, conforme a lógica
mercadológica.

3. Sujeitos coletivos de direito e a busca por cidadania

Os muros (in)visíveis das cidades dividem diversas realidades que coexistem no


espaço urbano. De um lado, estão as regiões nobres que possuem a garantia de infraestrutura e
de prestação dos serviços públicos básicos. De outro, estão os bairros periféricos e
marginalizados que, em sua grande maioria, não possuem acesso aos serviços públicos de
moradia, iluminação, saúde, educação, mobilidade urbana, dentre outros direitos que devem
ser garantidos pelo Estado.
Como visto, a produção do espaço urbano pautada por uma lógica mercadológica é
um elemento predominante nas cidades capitalistas. Atendendo a essa lógica de mercado, há a
oferta de mão-de-obra barata na cidade para atrair mais lucro e, dessa forma, pessoas se
sujeitam a trabalhos formais ou informais, com baixa remuneração.
Com tais trabalhadores sem capital suficiente para estar do lado de dentro dos muros,
onde há acesso à infraestrutura e direitos, amplia-se as regiões marginalizadas. Assim, a
cidade que atrai e oferta “oportunidades de emprego” também é a cidade que nega o usufruto
dos direitos que envolvem o viver urbano. Sem condições para viver nas regiões de valor
econômico para o capital imobiliário, as populações de baixa renda recorrem aos demais
bairros na tentativa de ver garantido seu direito de morar. Ante a ausência de infraestrutura
em tais regiões que são desprovidas de interesse mercadológico, se deslocam diariamente às
regiões valorizadas para ter acesso a elementos básicos do viver urbano, como serviços de
saúde, educação, comércio e trabalho. Além de não usufruírem dos serviços públicos que
financiam com o pagamento de impostos, também não conseguem atuar nas esferas políticas
oficiais de gestão da cidade, tanto pela distância espacial quanto por não ocuparem os locais

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de poder. Dessa forma, se encontram relegados no exercício da cidadania5. Rolnik (2004, p.
22) indica, nesse sentido, que “[…] o conceito de cidadão não se refere ao morador da cidade,
mas ao indivíduo que, por direito, pode participar da vida política.”.
Todavia, além das dimensões política e jurídica vistas como oficiais, que se
relacionam com a gestão da cidade no âmbito político administrativo do Estado, há o caráter
político da práxis urbana, feita na luta pela apropriação do espaço urbano e pelo direito à
cidade. No contexto de contradições que a cidade capitalista produz, com a atração e rejeição
de determinados grupos, sujeitos resistem e também são atores políticos na dinâmica de
construção da cidade.
Esses grupos passam a reivindicar o direito de morar, principalmente, acompanhado
dos demais direitos que envolvem o viver urbano, como o acesso à cidade e seus espaços
públicos e serviços, e reinventam tais direitos coletivamente. Nesse sentido, em sua
dissertação, Martins (2015, p. 34) indica que diante das contradições urbanas e com a tomada
de consciência de grupos sociais acerca do direito à cidade, exigível do Estado e passível de
construção coletiva, há a emergência de novos sujeitos.
A partir da ação desses sujeitos, há a construção da cidadania que lhes é negada.
Souza Júnior (1993, p. 34) assinala que “No Brasil, hoje, a experiência de luta pela construção
da cidadania se expressa como reivindicação de direitos e liberdades básicos e de
instrumentos de organização, representação e participação nas estruturas econômico-social e
política da sociedade.”.
As práticas políticas desses sujeitos são novas e realizadas por atores que se auto-
organizam e se autodeterminam, de forma paralela ou em contraposição aos espaços
constituídos para o seu exercício oficial (SOUSA JÚNIOR, 2002, p. 53). Trata-se dos sujeitos
coletivos de direito, categoria jurídico-sociológica que surge na década de 70/80 para se
referir a esses atores políticos. Ao analisar a categoria, Sousa Júnior (2002, p. 54) faz

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Para Milton Santos (2007), o conceito de cidadania evolui em um processo de lutas e conquistas de
direitos. Ele se relaciona à condição de “membro da sociedade nacional” no século XVII; ao “direito de
associação” no século XIX; e alcança os “direitos sociais” no século XX, que envolvem à garantia de um padrão
de vida decente.

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referência às “organizações populares de base”, que surgem “primeiro como veículo de
reivindicações sociais e econômicas imediatas, e depois, paulatinamente, como orientação
política declarada, de uma ação que postula mudanças estruturais da sociedade.”.
Na cidade, pode-se visualizar essas reivindicações a partir de movimentos de bairro,
por exemplo, que buscam a garantia de políticas públicas que lhe são negadas. Mas, para além
disso, os sujeitos coletivos de direito também buscam uma nova forma de criação dos espaços
e de convivência, a partir de suas experiências. A noção de sujeitos se vincula à postura que
assumem enquanto agentes nas práticas sociais pautadas por um anseio de transformação, se
afastando de uma passividade na sociedade. Esse protagonismo se desenvolve a partir da
percepção de suas próprias identidades e o reconhecimento de suas capacidades de auto-
organização e autodeterminação. Wolkmer (2001, p. 130) indica, nesse sentido, que “a noção
de ‘identidade’ deve igualmente ser concebida como um processo de ruptura que permite que
movimentos sociais se tornem sujeitos de sua própria história”.
Tal percepção de identidade se dá de forma coletiva, de forma que os sujeitos se
reconhecem de forma mútua e, com isso, suas ações são com base em uma consciência de
projeto coletivo, com reivindicações e objetivos de mudança em comum. As práticas dessas
coletividades não se limitam, assim, às demandas imediatas, mas se pautam por novos
modelos de vivência social. Nesse sentido, ao analisar esses sujeitos que entram em cena na
história brasileira, entre 1970 e 1980, Sader (1988, p.55) indica:

quando uso a noção de sujeito coletivo é no sentido de uma coletividade onde se


elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros
pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas
lutas.

Essa forma de organização, portanto, se caracteriza por ocorrer em lugares políticos


novos e não na política institucional. Trata-se de experiências populares que têm como palco
o cotidiano. Nesse contexto, no prefácio do livro “Quando novos personagens entraram em
cena”, de Eder Sader, Marilena Chauí (1988, p. 13) sustenta que criam-se novos espaços
políticos e também novas relações com o espaço público.

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Há, assim, uma reconstituição das relações entre a sociedade civil e o Estado, o que
implica em uma nova produção não só política, mas também jurídica. É a partir da ação de
produção e efetivação de direitos que Sousa Júnior concebe a ideia de sujeitos coletivos de
direito. Ao estudar esses sujeitos sociais, o autor afirma:

A análise da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, que se exprime
no exercício da cidadania ativa, designa uma prática social que autoriza estabelecer,
em perspectiva jurídica, estas novas configurações, tais como a determinação de
espaços sociais a partir dos quais se enunciam direitos novos, a constituição de novos
processos sociais e de novos direitos e a afirmação teórica do sujeito coletivo de
direito. (SOUSA JÚNIOR, 2002, p. 63)

Dessa forma, tais sujeitos são capazes de intervir na esfera jurídica, anunciando
direitos para serem criados ou mesmo visando a efetivação dos positivados. Eles possuem
práticas instituintes de direito, que geram reflexos inclusive nas esferas de poder do Estado. É
essa capacidade de interferir na esfera jurídica (para além do direito positivado) que os
caracteriza enquanto sujeitos coletivos de direito.

4. O direito à cidade

As contradições do capitalismo nas cidades geram tensões sociais resultantes da


exclusão de acesso e participação dos direitos que envolvem a cidade para determinados
grupos. Nesse contexto, Wolkmer (2001, p. 119) sustenta que novos agentes participam do
processo histórico e, a partir de suas carências e exigências, também atuam na produção
jurídica. Trata-se aqui dos movimentos sociais analisados enquanto sujeitos coletivos de
direito.
A cidade mercadológica, geradora de carências materiais, também é palco de
movimentos reivindicatórios que se colocam como agentes para uma nova organização da
sociedade. Esses movimentos sociais pautam a construção de um novo paradigma de cultura
política e de uma organização emancipatória, o que inclui o âmbito jurídico. Sendo assim, há

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um modelo de cultura político-jurídica que se funda na ideia de pluralismo. O novo sujeito
histórico, constituinte de direito, está no núcleo desse pluralismo jurídico (WOLKMER, 2001,
p. 120). Dessa forma, a compreensão da juridicidade não limitada à concepção clássica de
legalidade estatal se mostra bem mais coerente ao plano fático da cidade capitalista geradora
de carência e também de movimentos que respondem em busca de uma nova forma de viver o
urbano.
Reconhecendo essa produção do direito à cidade na cotidianidade, não oriunda de
fontes estatais, Lefebvre (2001, p. 138-139) indica que “esses direitos mal reconhecidos
tornam-se pouco a pouco costumeiros antes de se inscreverem nos códigos formalizados. [...]
Entre esses direitos em formação figura o direito à cidade”. O autor sustenta, nesse sentido,
que a cidade não é apenas uma linguagem, mas primordialmente uma prática (LEFEBVRE,
2001, p. 101). A partir dessa prática, enunciam-se direitos. Para Lefebvre (2001, p. 117): “[...]
A pressão da classe operária foi e continua a ser necessária (mas não suficiente) para o
reconhecimento desses direitos, para a sua entrada para os costumes, para a sua inscrição nos
códigos, ainda bem incompletos.”
Assim, o direito à cidade dialoga diretamente com as práticas enunciantes de direito,
oriundas de uma ação coletiva. É um direito coletivo e provém das ações coletivas de
construção do espaço urbano. Para além de pautas específicas, consolida-se em um novo
projeto de organização social-urbana. Harvey, sustenta que:

O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a


recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da
cidade. Além disso, é um direito comum antes de individual já que esta
transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo
de moldar o processo de urbanização. A liberdade de construir e reconstruir
a cidade e a nós mesmos é, como procuro argumentar, um dos mais
preciosos e negligenciados direitos humanos. (HARVEY, 2012, p. 74).

Nessa perspectiva, a análise do direito à cidade vai muito além de uma concepção
limitante do direito oriundo apenas da função legiferante do Estado e contido somente nos
textos legais positivados. Também não deve perpassar apenas por concepções teóricas

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desvinculadas da análise da práxis urbana. O direito à cidade não surge de modismos
intelectuais. Ele vem da rua, do grito de pessoas oprimidas. (HARVEY 2013a, p. 8-10).
A ideia de direito à cidade e a reivindicação para sua concretização pode impulsionar
a criação de princípios e leis inspirados nas pautas levantadas. Conquanto o direito à cidade
não seja proclamado expressamente na Constituição Federal, diversos são os avanços na
legislação brasileira que caminham nesse sentido. A incorporação à Constituição Federal de
1988 dos princípios da função social da cidade e da propriedade, do reconhecimento dos
direitos de posse dos moradores dos assentamentos urbanos informais e da participação direta
dos cidadãos em processos decisórios sobre a cidade representam avanços no direito à cidade
no campo institucional. Tais elementos foram pontos centrais da pauta de Reforma Urbana,
levantada principalmente por movimentos populares, organizações não governamentais,
associações de classe e instituições acadêmicas e de pesquisa organizadas em torno da
promoção do direito à cidade (ROLNIK, 2009, p. 31).
O Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) contribuiu para a positivação
de direitos urbanos, exercendo pressão para a inclusão do capítulo sobre a Política Urbana na
Constituição de 1988, regulamentado posteriormente pelo Estatuto da Cidade. (CAFRUNE,
2016, p. 187). Ressalta-se, todavia, que é a partir do processo histórico, com atuação de
diversos grupos sociais, que o direito vai sendo construído. Não é algo pronto e acabado. Lyra
Filho (1999, p. 86) indica que:

Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita,


perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de
libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e
opressões que o contra-dizem, mas de cujas próprias contradições brotarão
as novas conquistas.

Nesse sentido, falar de direito à cidade é falar de um novo projeto político-jurídico de


cidade, algo que ainda não existe mas segue sendo construído. É garantir as pautas específicas
oriundas das carências urbanas, mas também alcançar o ideário de cidade enquanto obra,
indicado por Lefebvre. Trata-se do direito de acessar e também de transformar a cidade.

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Lefebvre (2006, p. 135) afirma que “o direito à obra (à atividade participante) e o direito à
apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade.”
O direito à obra se relaciona à ideia de gestão democrática da cidade, que foi
positivada e segue a passos lentos na sua concretização pela via institucional. Mas é algo já
trabalhado na cotidianidade, por sujeitos coletivos de direito que se articulam em
organizações de bairro, em movimentos pela reforma urbana e demais grupos que atuam na
obra e saem da passividade. E o gozo do direito à cidade não se vincula a uma lógica
individualista, pautada apenas no direito de propriedade. O direito à apropriação aqui
abordado, se relaciona com o uso público e coletivo do espaço urbano, quebrando com a
lógica de geração de carências da cidade mercadológica. Trata-se de “Um direito ativo de
fazer a cidade diferente, de formá-la mais de acordo com nossas necessidades coletivas [...] de
definir uma maneira alternativa de simplesmente ser humano” (HARVEY, 2013b, p. 32).

5. Resultados e considerações finais

A organização das cidades tem sido conduzida principalmente por setores


econômicos que transformam a cidade em produto. O mercado imobiliário determina a
construção da cidade, criam-se espaços valorizados que não são acessíveis àqueles que não
possuem renda e, então, são expulsos para demais regiões. O investimento público e privado
de infraestrutura é feito nas regiões escolhidas para serem valorizadas e, para a periferia, não
há a mesma preocupação em fornecer serviços urbanos. Na cidade-mercado impera, portanto,
a segregação socioespacial.
Nesse contexto, há carência do direito à cidade. A ausência de direitos impulsiona
determinados grupos que estão cansados de esperar a efetivação dos direitos que, pela teoria,
são inerentes a eles. Saem da passividade e viram atores na construção do espaço urbano. A
cidade passa a ser criada não somente por aqueles que a concebem enquanto produto, mas
também por movimentos reivindicatórios que se colocam como agentes para uma nova
organização da sociedade. Tais sujeitos atuam de forma coletiva e anunciam direitos para

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serem criados ou mesmo visam a efetivação dos já positivados. Eles possuem práticas
instituintes de direito, que coexistem com o ordenamento jurídico oficial e que, inclusive,
influenciam na própria positivação de direitos. São os sujeitos coletivos de direito, buscando
alcançar a cidadania que lhes foi negada.
Dentre essas influências realizadas na positivação de direitos, a previsão de direitos
fundamentais e princípios correlacionados ao direito à cidade se destaca, representando um
grande avanço no ordenamento jurídico. O princípio da função social da propriedade marca a
quebra com a lógica patrimonialista individual para o compromisso com a coletividade e
dignidade da pessoa humana.
Conquanto essa mudança de perspectiva represente uma conquista significativa, há
um hiato entre as previsões constitucionais e a concretização de direitos. Por isso, sujeitos
coletivos de direito continuam buscando formas de construir uma cidade mais coerente e
denunciando a ausência de cumprimento de direitos.
Dessa forma, as lutas urbanas continuam, na expectativa de concretização de direitos
fundamentais. E, em um plano ideário maior, de construção do direito à cidade. Um direito
ativo, de fazer a cidade, não marcada por segregação socioespacial e delimitada por muros
(in)visíveis. Mas sim, cidade enquanto obra, edificada para a garantia de direitos
fundamentais e também construtora de sujeitos com cidadania.

6. Referências bibliográficas

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14
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