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Relatório Final de Pesquisa Apresentado Ao CNPQ
Relatório Final de Pesquisa Apresentado Ao CNPQ
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DELGADO G 2005. Comunicação pessoal no Seminário sobre Exclusão social, promovido pelo Instituto
DNA Brasil, realizado em São Paulo.
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Tabela 1
População Residente por Ano e Situação
Sumidouro
Período:1950-2006
10
Tabela 2
Escolaridade das pessoas residentes com 10 anos ou mais de idade
Sumidouro - 2001
11
“Do ponto de vista educativo, este projeto de pesquisa insere-se na
tendência, assinalada por Damasceno e Beserra, (2004), de discutir a
educação rural da perspectiva da população a que se destina, isto é, os
agricultores familiares.”
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todos os munícipes, bem como nomes de possíveis pessoas a serem entrevistadas
foram-nos oferecidas ao longo da excursão.
Participamos de uma reunião com os produtores de São Lourenço na Escola
Flor do Campo que teve um importante papel na elaboração do projeto de
pesquisa. Foi o ensejo para pensar um roteiro de entrevista que considerasse
algumas “categorias do pensamento camponês” em Sumidouro, a saber: trabalho e
“gosto” ou “capricho”; tempo e biografia (casamento, nascimento, morte, sucessão
da propriedade); respeito. Destas categorias, o trabalho ocupava a centralidade,
identidade e destino social da maioria. O trabalho distinguia o tempo da
infância/adolescência e o tempo da vida adulta, da dependência e da autonomia,
concretizando o tempo da vida de cada um e de todos. Eis as anotações daquela
reunião com os agricultores, já ao anoitecer:
O senhor José Joaquim Correia, Zé Lulu, lembrou que, quando casou, aos 19
anos, ainda existia café no lugar. Conheceu Fernando Gomes de quem
comprava batata inglesa, colhia em saco de estopa, era “um lavourão” (3
hectares de terra). O sogro de Zé Lulu plantava cravo. Isso por volta de
1955. Nas conversas entrecruzadas com outros agricultores, alguém fez
referência a um dos mais antigos de São Lourenço, o senhor Hermes, com
mais de 80 anos que viveu “mais a vida ruim”. Os agricultores referiram-se
às dificuldades de ontem e a comodidade de hoje.
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“...ainda existem, na memória e na cultura deste campesinato elementos da
agricultura orgânica tradicional capazes de se contrapor à lógica prevalecente?”
Objetivos e metas
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da pesquisa como parte do estímulo e apoio ao desenvolvimento do cultivo
orgânico;
c) da difusão do conhecimento sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde
dos trabalhadores e de suas implicações ambientais junto às comunidades de
agricultores familiares em diferentes localidades do município de Sumidouro;
d) do intercâmbio de experiências, com a realização de excursões de
trabalhadores mais jovens a municípios com agricultura familiar comercial
organizada em princípios orgânicos, de modo a permitir a abertura da discussão de
alternativas técnicas apropriadas à olericultura com apoio da EMATER e da
Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente de Sumidouro;
e) do desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa em história oral que
proporcionasse o avanço de estudos interdisciplinares em ambiente e saúde. A
constituição de fontes primárias (depoimentos e documentos textuais e
iconográficos) como acervo para esta e outras pesquisas, sob cuidados da Casa de
Oswaldo Cruz implicaria o apoio desta instituição à organização local dos acervos e
da prática de história oral em Sumidouro de modo a propiciar a apropriação desta
tecnologia.
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MARCO TEÓRICO-CONCEITUAL
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De um lado, admitimos a existência de uma estrutura camponesa com
algum grau de autonomia no interior do sistema capitalista. A negativa de
Chayanov levar em conta a subordinação ao capitalismo, afirma Ciro Flamarion
Cardoso, prejudicou sua contribuição para o entendimento da estrutura camponesa.
Para o historiador brasileiro, uma estrutura camponesa se caracteriza pelo acesso
estável à terra (propriedade ou usufruto), pelo predomínio do trabalho familiar,
pela auto-subsistência (sem exclusão do vínculo ao mercado) e certa autonomia na
gestão das atividades agrícolas (Cardoso, 2004, 56-7). Esse grau de autonomia é
atinente à organização da produção imediata e confere ao campesinato uma
“elasticidade extraordinária de auto-exploração da força de trabalho” (Soares,
1981, 206).
Por outro, deve-se consideramos a possibilidade do capitalismo coexistir com
e subordinar a produção camponesa e, pois, de explicar a persistência do trabalho
camponês no interior deste sistema.
Há as duas formas de subordinação da produção camponesa às relações
sociais capitalistas, direta e indireta.
A primeira é a que prevalece na agro-indústria da fumicultura, da produção
de carnes, de óleos vegetais, etc. Trata-se da “agricultura integrada” (Grzybowski,
1987) na qual se dá uma subordinação real do proprietário-trabalhador familiar à
empresa capitalista em todas as fases do processo de produção e de trabalho.
A segunda vincula-se ao mercado capitalista. Mas esta forma, por sua vez,
contempla duas situações diferentes.
Margarida Moura assinala que a produção de alimentos a custos
extremamente baixos não é atraente ao investimento de capital em virtude de uma
lucratividade abaixo da média (Moura, 1988, 64). Esta produção contribui para
rebaixar o valor da força de trabalho e, portanto, tem impacto positivo no processo
de reprodução das relações sociais capitalistas como um todo. Do ponto de vista
teórico, trata-se da produção camponesa vinculada ao mercado, ou seja,
subordinada à competição entre os capitais, ao movimento do capital no setor
concorrencial da economia (Moreira, 1997).
Outra situação é aquela configurada pelo conflito entre as pequenas
propriedades e empresas agropecuárias voltadas para a exportação, situação na
qual prevalece a lógica do monopólio. A subordinação indireta do proprietário-
trabalhador familiar ao capital cede lugar, cada vez mais, à transformação do
camponês em proletário, mesmo que em tempo parcial. Nas áreas de expansão da
fronteira agrícola, no chamado Arco do Desmatamento da Amazônia2, o conflito via
2
Os conflitos acontecem igualmente no interior das áreas de interesse capitalista consolidadas do
sudeste e sul como se percebe nos conflitos entre o Movimento das Mulheres Camponesas e a Aracruz
Celulose.
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de regra se estabelece entre os camponeses e os agentes do “mercado de terras”
que viabilizam a expansão das relações capitalistas no campo.
O estudo sobre a agricultura familiar em Sumidouro remete à primeira
situação apresentada, quer dizer, da produção camponesa subordinada às relações
sociais capitalistas pela via do mercado.
A existência do campesinato como grupo social específico implica em
identificar as práticas adotadas por membros deste grupo para garantir a sua
reprodução social (Soares, 1981). Essas práticas, afetadas pelas situações acima
apontadas, envolvem: o destino dado a cada dos membros da família pela definição
da herança da propriedade; as atividades de auto-subsistência e, pois, o saber
prático da autonomia camponesa; as redes de compadrio e vizinhança que se
imbricam na relação com o poder no nível local, inclusive com os agentes técnicos e
de financiamento da agricultura.
Obviamente não se pode pensar a reprodução social do campesinato no
capitalismo sem a intervenção do Estado que tende a se fazer sob a ótica da
acumulação de capital, da expansão das relações sociais capitalistas e, portanto, da
seleção dos interesses das diferentes frações de classe implicadas. Tal intervenção
tem de ser examinada, assim, à luz da diversidade das situações de subordinação
apresentadas esquematicamente acima.
Como veremos adiante, no item dedicado à Revolução Verde, a ação do
Estado volta-se em parte para impulsionar a oferta de alimentos em quantidade
suficiente e preço baixo para garantir a reprodução da força de trabalho na
economia capitalista. Com isso, subsidia a produção camponesa, viabilizando a sua
reprodução. É no interior desta ação que se apresenta o extensionismo rural
enquanto elemento da reprodução social do campesinato.
As práticas camponesas implicam o desenvolvimento da consciência social
que, como adverte Luiz Eduardo Soares, é necessariamente relacional. Para fins da
presente pesquisa, voltada para a construção da memória social, este é o núcleo da
questão conceitual sobre o campesinato que nos interessa aprofundar. Com a
palavra o antropólogo brasileiro:
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A assunção da identidade camponesa no Brasil faz parte da história dos
movimentos de trabalhadores rurais desde o pós-guerra e, de modo mais
expressivo, de meados da década de 1950 em diante. Contudo, após o golpe militar
de 1964, esta contra-revolução preventiva – como a cunhou Vasco Leitão da Cunha
- cujas conseqüências ainda estamos a avaliar, o campesinato deixou de se ver
assim. Poucos a reivindicam, preferindo se ver como proprietários, meeiros,
posseiros, arrendatários, assentados ou acampados. A retomada da identidade de
classe pelo Movimento das Mulheres Camponesas é uma novidade que se expressa
publicamente:
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de que nada acontece por acaso; um sentido esconde outro sentido, um
gesto imprudente chama outro gesto que o repare. Cada um vigiava o outro,
com o ar de quem dizia: “Estou de olho em você”, e tanto os pequenos
quanto os adultos prestavam atenção em tudo para ver se se tratava de boa
coisa.” (Moscovici, 2005, 67-8)
A ‘modernização’ da agricultura
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produção na política governamental voltada para a “modernização da agricultura”
nos anos 1960 a 1980. Mas ressalva que esta:
“... não se deu por um caminho único e totalmente excludente [cf. Sorj
(1980, p.117)], como também que não se revelou qualquer inferioridade ou
incapacidade intrínseca da pequena produção (onde lhe foi facultado o
acesso aos recursos necessários) para fornecer ‘respostas rápidas’ erigidas
como critério de eficiência da ação do estado no setor agrícola”. (Musumeci,
1987: 175).
21
Em outros termos, não se pode pensar o capitalismo no Brasil no período
recente, inclusive no campo, sem considerar a hegemonia do capital financeiro.
Palmeira chama atenção ainda para a ação do Estado na ‘modernização da
agricultura’, vinculada às mudanças na legislação social (Estatuto do Trabalhador
Rural, Funrural), criação de incentivos fiscais, investimentos em infra-estrutura
pública e política creditícia a juros subsidiados, dentre outras medidas.
A importância da política creditícia na ‘modernização da agricultura’ ressalta
sobre as demais medidas, uma vez que propiciou a incorporação, pelos capitalistas
mas também pelo campesinato, dos pressupostos da Revolução Verde, sem os
quais, a rigor, não se poderia falar em mudança no padrão técnico da agropecuária
no Brasil. Dada a importância do tema para a nossa pesquisa, resolvemos dedicar
algumas páginas a sua apresentação e avaliação.
3
A agroquímica resultou do esforço bélico duas guerras mundiais, afirma José Lutzenberger (2004): a
primeira deu origem aos adubos nitrogenados solúveis de síntese; a segunda, os herbicidas do grupo do
ácido fenoxiacético (2,4-D e outros) e os inseticidas organofosforados do grupo parathion e
organoclorados como o DDT.
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tradicionais. Na agricultura, a modernização se refere ao processo de
melhoria da produção agrícola pela adoção de técnicas modernas” (Empresa
Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural, 1975a: 19). (apud
Oliveira, 1984: 77).
23
oferta de crédito que vinculou empréstimos a aquisição de agrotóxicos. No caso do
Banco do Brasil, este vínculo era obrigatório: 15% do valor dos empréstimos para
custeio estava destinado à aquisição de agrotóxicos. Entre 1974 e 1981, a parcela
do crédito rural destinada a esta compra aumentou de 5 para 8% do volume do
crédito total de custeio, principalmente para as culturas de soja, trigo e algodão.
Um indicador importante que oferece uma visão mais aproximada do consumo de
agrotóxicos é o da relação entre valor do crédito sobre as vendas do setor que
elevou-se de 54% em 1977 para 71% em 1980 (Alves, 2002).
Os efeitos nocivos dos agrotóxicos descritos por vários autores e políticas
restritivas adotadas nos países de capitalismo desenvolvido, com a imposição de
redução do uso e produção de certos produtos (organofosforados e herbicidas) e a
proibição de outros (organoclorados) (Peres, 1999) não deixou de ter
conseqüências no Brasil, ainda durante o regime militar. No Rio Grande do Sul e no
Paraná, o movimento de reação ao uso indiscriminado de agrotóxicos partiu de
engenheiros agrônomos e ambientalistas. No Rio Grande do Sul destaca-se o nome
de José Lutzemberg e da Associação Gaúcha de proteção ao Ambiente Natural
(AGAPAN). Em 1977 a Secretaria de Agricultura do Rio Grande do Sul instituiu a
obrigatoriedade do Receituário Agronômico, vinculado ao financiamento agrícola,
uma medida incorporada pelo Banco Central em 1978. O receituário tornou-se
política oficial em 1981 mas, devido a falta de controle social mediante a
complementação de outras políticas públicas o instrumento deixou de cumprir seu
objetivo original (Alves Filho, 2002) e nunca foi implantado de modo amplo no país
(Pessanha, 1985: 10).
O impacto sobre a saúde dos trabalhadores e no ambiente foi denunciado
por engenheiros agrônomos fitossanitaristas do Paraná reunidos no XI Congresso
Brasileiro de Agronomia, realizado em Curitiba de 22 a 26 de outubro de 1979, uma
vez que o consumo de agrotóxicos foi considerado três vezes maior do que o
necessário (Pessanha, 1980: 9).
Em 1982, a repercussão da denúncia da contaminação das águas do Rio
Guaíba por agrotóxicos, ao ameaçar a população da capital do Rio Grande do Sul,
levou o governo estadual a proibir o uso de organoclorados, especificar princípios
ativos de uso restrito e instituir o Receituário Agronômico. No ano seguinte, foi
aprovada neste estado a lei estadual no. 7.747/83, a primeira lei sobre agrotóxicos.
Sistematizava o conjunto de medidas legais implantadas até então, servindo de
modelo para a elaboração de projetos de lei em 12 unidades da Federação.
A reação da Associação Nacional de Defensivos Agrícolas (ANDEF), criada
em 1974 e do Sindicato da Indústria de Defensivos do Estado de São Paulo não
tardou a se fazer sentir, com ação, em março de 1983, junto à Procuradoria Geral
24
da República sob argüição da inconstitucionalidade das leis estaduais face à
competência da União para legislar sobre normas gerais de proteção à saúde. A
decisão final do Supremo Tribunal Federal em maio de 1985 reafirmou a posição da
Procuradoria contrária à ação, legitimando as legislações estaduais, com alguns
vetos importantes, dentre os quais o direito das entidades civis impugnarem o
registro de determinados produtos nos órgãos fiscalizadores (Pessanha, 1985: 11).
Denúncias da contaminação de rios e da intoxicação de trabalhadores rurais
apareceram na imprensa no município paranaense de Maringá durante a década de
1980:
Mais de uma década depois, José Maria Gusman Ferraz fazia o seguinte
diagnóstico:
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“O modelo de agricultura nascido da Revolução Verde praticado há muitos
anos no Brasil e em outros vários países, onde o aumento do uso de insumo,
mecanização e monocultivo visando somente a produtividade e a ampliação
da fronteira agrícola, com pouca ou quase nenhuma preocupação com a
degradação ambiental, está se esgotando” (EMBRAPA, 1994).
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necessidade de manejo do solo para a “construção de uma microbiota diversificada
e eficiente no controle de fitopatógenos de solo”, dificilmente obedecerá ao
princípio da precaução se a técnica tornar-se de uso comercial.
A polêmica em torno da diversidade das vias de desenvolvimento econômico
atesta a possibilidade de mais de uma via de desenvolvimento científico-técnico,
(Lacey, 1998) e, também, de política pública.
É relevante lembrar, neste sentido - em que pese a tendência ao
monocultivo implicada na descoberta - a aplicação da fixação biológica do
nitrogênio feita por Johanna Döbereiner na aclimatação da soja às condições do
solo e clima brasileiros em 19634, no âmbito da Comissão Nacional da Soja:
4
Matéria dedicada a J Döbereiner na Embrapa Agroecologia na página
http://www.cnpab.embrapa.br/aunidade/johanna.html
27
variedades de milho resistentes às secas e, obviamente, a “pesticidas” cujo
consumo inclusive seria reduzido (CIB, 2008).
Por outro, uma variante da biotecnologia que se apóia na própria
biodiversidade para desenvolver plantas resistentes ao aumento de temperatura de
até dois graus de temperatura. Ao comentar a previsão de que apenas cana-de-
açúcar e mandioca conseguirão ter ganhos de produção, o engenheiro agrícola
Eduardo Delgado Assad, da Embrapa
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QUADRO 1
MERCADO DE AGROTÓXICOS NO BRASIL - 2005
Agrotóxicos Consumo de agrotóxicos por cultura
Herbicida 40,8% Soja 50%
Fungicida 30,9% Algodão 10%
Inseticida 23,7% Milho e cana de açúcar 7%
Tratamento de sementes 4%
Trigo, café e citros 3%
Arroz 2%
Demais culturas (hortaliças e 11%
frutíferas)
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"O fato de termos mais intoxicação indica também que os produtos estão
sendo cultivados com mais tóxicos e as frutas, legumes e verduras acabam
comercializados com excesso de resíduos".
(...)
Os problemas nos produtos in natura estão expressados nos índices de
reprovação do Programa de Avaliação de Alimentos do governo federal
(Para). A maioria das amostras analisadas foi reprovada por excesso de
resíduos tóxicos ou utilização de substâncias não recomendadas para a
cultura.
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toxicológica ou ecotoxicológicas. Os movimentos sociais e inúmeras entidades da
sociedade civil assumiram então uma posição contrária em carta enviada a Roberto
Rodrigues, então ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (ANVISA,
2005; Carta, 2005).
Ao longo da história do desenvolvimento econômico e político do Brasil
pode-se perceber o predomínio dos interesses do que se convencionou chamar de
“complexo agroindustrial” (Delgado, 1985; Kageyama, 1987) fortemente
organizados no Ministério da Agricultura com apoio na bancada ruralista no
Congresso Nacional. Ainda durante a ditadura militar, as diferentes agências do
governo federal agiam concertadamente em favor desses interesses. Neste sentido
vale observar que em fevereiro de 1981, portaria do Ministério da Saúde alterou a
classificação toxicológica dos agrotóxicos que até então era baseada em portaria
anterior pela qual
31
Educação rural na perspectiva dos educandos
5
Por ideologia entendemos, de acordo com Maurice Dobb, o “conjunto coordenado de convicções e
idéias” ou filosofia social compartilhada por certos grupos da sociedade numa época histórica (Dobb,
1973). Este entendimento é comum a Schumpeter (History of Economic Analysis, 1954). Em nota de pé
de página, Dobb assinala o ponto de vista de Schumpeter de que os juízos de valor revelam a ideologia
mas não são a sua ideologia (idem, 12). Esta perspectiva é congruente com a da sociologia da ciência
(construtivismo) que assinala os compromissos do pesquisador com seu tempo, lugar e posição na
sociedade.
32
do Estado de São Paulo. O projeto foi uma articulação entre o grupo Aldebarã –
observatório a olho nu e o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. O
componente rural ficou sob a responsabilidade de Carlos Rodrigues Brandão
(Brandão, 1999).
Importa considerar, em todas essas iniciativas, o papel do agricultor na
chamada “questão ambiental”. Como assinala Wanderley (1999),
33
Admitir que os agricultores possam ser, mais do que participantes, atores no
processo da formulação, implementação e avaliação da política pública voltada para
a agricultura requer, como advertem Muller, Lovato e Mussoi (2003, 105)
“Diante disso, é imprescindível que haja uma maior compreensão acerca das
reais necessidades dos agricultores, seus valores, suas motivações e a lógica
que orienta e dá sentido às suas decisões, seu modo de viver e de se
relacionar com seu entorno físico e sócio-econômico.” (Idem, p. 105)
6
A autora debateu os trabalhos apresentados na sessão 1 – Meio ambiente e recursos produtivos - do
GT2 – Interfaces entre a questão agrária e a questão ambiental, apresentando questões para discutir no
grupo durante o 3º. Encontro da Rede de estudos Rurais (Terceiro encontro, 2008).
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PROCEDIMENTOS METÓDICOS
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Perguntamo-nos: a inscrição não seria uma mensagem destinada aos
cidadãos sumidourenses? Na oposição entre soberbos e humildes estaria contida
uma crítica cujo alvo poderia ser a elite local, ainda desconhecida para nós?
Os versos do apóstolo Tiago parafraseiam Provérbios, 3, 34, cujo sentido é
um pouco diferente: “Se Ele escarnece dos zombadores/ concede a graça aos
humildes”. A mensagem de Tiago é mais ‘radical’: além do verbo ‘resistir’ ter o
sentido de um inequívoco posicionamento ao lado de quem sofre, a palavra
‘soberbo’ é adjetivo substantivado, denota alguém arrogante, que se supõe mais
elevado que o outro, superior, pretensioso.
De fato, este foi um dos sentidos que apareceu com bastante força nos
depoimentos dos irmãos José e Altivo da Silva que, segundo as mesmas indicações,
seriam descendentes de ex-escravos.
Pouco tempo depois, percebemos, no exemplar do opúsculo História de
Sumidouro, de Luis Henrique da Silva, uma imagem8 da porteira de entrada da
fazenda do Barão de Aquino no qual estava inscrita a frase: “Para que tanto
orgulho se o nosso futuro é a morte” (Figura 3).
Figura 3
Porteira na Estação de Trem
8
A imagem reproduzida encontra-se disponível na página <Estações Ferroviárias>, elaborada por Ralph
Mennucci Giesbrecht, no endereço
http://www.estacoesferroviarias.com.br/efl_ramais_1/fotos/braquino.jpg
36
mensagem e pretenderam “apagar” o passado. O virtual tornou-se o real jamais
visto pela maioria!
Estávamos, portanto, a entrar em contato com uma denúncia moral dos
poderosos, embora revestida de sentido religioso.
Neste sentido é importante constatar a impossibilidade, persistente até o
final da pesquisa, de conseguir entrevistar as pessoas das famílias mais
“importantes” ou da elite local. Conseguimos nos aproximar delas, obtendo doação
de documentos e informações, mas nada além. Atitude diametralmente oposta dos
agricultores das chamadas “terras frias” de Sumidouro, acolhedora e, em certos
casos, até de exposição dos fatos mais difíceis das suas vidas.
Numa pequena cidade como Sumidouro, as redes de parentesco pareceram-
nos definir, ao lado daquelas de cunho econômico, as redes sociais subjacentes de
cada um de nossos depoentes tanto mais porque um percentual de
aproximadamente 80% dos moradores encontra-se na área rural e dependem da
atividade agropecuária. Isso revelou ser uma constatação parcialmente verdadeira.
As redes eram mais fragmentadas e diversificadas que supúnhamos, tanto em
virtude do predomínio de constituição de famílias nucleares numa vasta área de
pequenos proprietários e parceiros, como pelo fato de que, sobrepostas a estas se
‘desenhava’ uma outra rede, de caráter político.
Ao longo do período assinalado foram realizadas 25 entrevistas com
moradores mais antigos de Sumidouro, cujos depoimentos, devidamente
autorizados nos termos do Comitê de Ética em Pesquisa, foram em sua maior parte
transcritos e se encontram em fase de edição e de sumarização. Cada depoente foi
fotografado e em alguns casos houve doação de fotografias e outros documentos
pessoais9.
Quanto à relevância do roteiro das entrevistas, com sua ênfase na trajetória
de vida dos depoentes (casa, trabalho, cidade), constatamos que, além de
favorecer os “trabalhos da memória” (Bosi, 1971), propiciou a “conexão entre
diferentes esferas da vida social” e evidenciou “processos de transição” (Thompson,
2002) desconhecidos por nós.
A entrevista, principalmente a de tipo semi-estruturada, é um processo de
conhecimento cuja complexidade escapa à consciência dos dois sujeitos envolvidos
porque, como nos lembra o filósofo tcheco Karel Kosik, é um processo marcado
pela ambigüidade – o conhecimento tanto é reflexo, como projeção e ainda
avaliação (Kosik, 1976). Por isso, a entrevista tem um caráter indeterminado e
inconcluso que precisa ser objeto de um esforço da interpretação. A entrevista não
9
Os depoentes cederam os direitos sobre o depoimento oral para a Casa de Oswaldo Cruz e assinaram o
termo de consentimento esclarecido no qual tomaram ciência dos e acordo com os objetivos da pesquisa
e reconheceram a cessão de depoimentos.
37
é um conjunto de falas que podem ser simplesmente transcritas e analisadas
segundo “temas específicos”; é um texto complexo, aberto a influências, a exigir o
desvendamento do valor conferido a certas práticas e crenças implicadas nos
eventos dos quais o entrevistado participou e dá seu testemunho.
Verificamos, mais uma vez, que o significado da história oral é o de ser um
método adequado para captar os significados que certos eventos ou processos
tiveram para os depoentes e, em conseqüência, para o próprio grupo social no qual
se inserem de suas relações sociais e políticas mais amplas. Mas igualmente, em
alguns casos, de processos ou ângulos ignorados pelos historiadores. Neste sentido
incluímos, no final do roteiro, as seguintes perguntas: Gostaria de deixar algum
recado para os sumidourenses? Uma última pergunta: o(a) sr(a) lembra de algum
acontecimento diferente ou mesmo fantástico que tenha presenciado?
Sabíamos que a história oral é, inevitavelmente, uma prática de construção
de fontes que instaura uma relação sócio-cultural cujos sentidos, para nós, teriam
de ser (re)descobertos no decorrer da pesquisa. Pressupúnhamos a necessidade de
controlar os aspectos mais evidentes na relação entre pesquisador e depoente, a
exemplo, de um lado, da indução de respostas e, do outro, da projeção de
identidades expressas na valorização do próprio depoimento.
Este último aspecto vinha inevitavelmente associado, sabíamos, ao fato de
sermos ‘estrangeiros’ hospedados na cidade. De fato, o nosso distanciamento
propiciou, em muitas oportunidades, maior autonomia para os nossos depoentes
falarem de aspectos da vida considerados mais ‘problemáticos’ no cotidiano das
relações sociais. Certamente a idade avançada de nossos depoentes, entre 80 e 97
anos, facilitou esse processo devido ao desprendimento de compromissos sociais
consagrados em nossa sociedade.
A maior parte das entrevistas foi conduzida pelo coordenador da pesquisa,
com a participação, sempre que possível, dos auxiliares de pesquisa, estudantes de
graduação, moradores do município que obtiveram bolsas de iniciação científica.
Embora este aspecto ainda não tenha sido avaliado pela equipe, vale
registrar que a partir da gravação das entrevistas em programa irradiado no
aniversário de fundação do município de Sumidouro pela rádio FM local, a equipe
tornou-se ‘publicamente’ conhecida. Além do mais, a radiodifusão desencadeou o
interesse de alguns moradores em esclarecer melhor diferentes aspectos da história
do município, apontando outros possíveis depoentes para a pesquisa.
A participação de um professor de Historia na equipe – Carlos Tadeu
Gomes– também abriu caminho para a apropriação dos depoimentos no âmbito
escolar, de modo a envolver jovens do ensino médio, uma boa parte filhos de
agricultores.
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Vejamos agora o tratamento do material da pesquisa.
Procedemos a uma transcrição literal das entrevistas, tarefa não muito
simples, devido ao fato de que muitos dos transcritores tiveram de realizar a tarefa
como aprendizagem inicial. Isso nos obrigou à conferência de fidelidade cuidadosa.
Uma vez enfrentada esta tarefa, o desafio mais importante foi, como lembra
Thompson (2002), construir uma história a partir dos relatos orais.
Algumas preocupações relacionadas ao método assinaladas pelo autor na
obra citada foram tentativamente incorporadas: cada entrevista ser considerada
como um todo; compará-la às demais do mesmo grupo; verificar as informações
oferecidas em outras fontes; situar as evidências dentro de um contexto mais
amplo, tendo presente as transformações ocorridas na agricultura e na sociedade
no período da vida dos entrevistados.
Quanto à análise, seguimos também a sugestão do autor (Idem, 307-14) de
adotar os pressupostos da literatura, quer dizer, entender a fala, em geral, como
“gramaticalmente primitiva, cheia de redundâncias e de rodeios, empática e
subjetiva, hesitante, voltando repetidamente às mesmas e frases feitas” (Idem,
310).
Destacamos as hesitações e as repetições de palavras, frases ou sentidos
atribuídos porque entendíamos que se a entrevista poderia ser analisada como uma
narrativa destinada a transmitir um significado, sendo este o objetivo explícito do
Projeto, por outro lado, tínhamos consciência de que a fala deveria ser entendida
como um discurso construído na entrevista (Idem, 314).
As entrevistas analisadas no próximo tópico foram construídas com o
recurso de um roteiro que explorou, propositalmente, a “ilusão biográfica”
(Bourdieu, 1998). A suposição de uma continuidade na experiência de vida e os
ardis da manipulação da memória para reconstruir identidades é, para nós, o fulcro
do interesse. A história de vida foi utilizada, portanto, para tentar captar as
ressignificações de experiências de vida. Não por acaso, mas porque sabíamos o
quanto entrevistas sobre o tempo da infância, do trabalho e da vida cidadã
envolviam a temática “ambiental”. O próprio título do projeto e os objetivos da
pesquisa a que eram solicitados a colaborar, mediante assinatura de um termo de
consentimento esclarecido e de cessão de direitos, não deixava qualquer margem
de dúvida.
Também tínhamos de supor o contexto de suas próprias vidas, influenciadas
por esta temática sob a forma de questionamentos às práticas agrícolas.
Entendemos, portanto, a entrevista e seus resultados – os depoimentos,
relatos orais ou “testemunhos” (Voldman, 1998) – um discurso que remete a
diversas vozes, as que se enunciam na entrevista com outras implícitas na
39
argumentação em pauta numa entrevista ainda que os sujeitos nela envolvidos
disto não tenham consciência imediata, manifesta ou não.
Para Ana Maria Mauad, de acordo com a perspectiva analítica de Meneses
(1992), trata-se de rejeitar a idéia de resgate da memória para investir na noção
de construção da memória. Uma construção que se faz no presente, para atender
às solicitações do presente como advertia Marc Bloch (1993). Na rememoração do
passado suscitado pelo entrevistador,
40
5. Esta narrativa ou relato oral é fruto de um diálogo entre vozes
sociais (Bakhtin, 1986; 1992); as vozes são sociais por serem
representações sociais de diferentes agentes sociais, a saber: os
depoentes, como integrantes do campesinato enquanto grupo
social; o entrevistador como pesquisador científico; os técnicos
agrícolas; os professores do ensino fundamental e médio; os
vendedores de fertilizantes e agrotóxicos, etc.
6. Ao entendermos a memória como processo de construção da
identidade de um grupo social, podemos também entender como a
apercepção social do tempo pode implicar a apropriação de
memórias alheias.
41
OBJETIVOS ALCANÇADOS
42
9. Irani da Rocha Charles, nascida em Campo Leal, Sumidouro, RJ, no dia 05
de dezembro de 1948, filha de Ermenegue Dejair da Rocha e Virginia
Martins da Rocha.
10. Isabel Maria da Silva, nascida em João Cardoso (Calado) em Sumidouro
no dia 30 de outubro de 1920, filha de Albertina Maria da Silva e de Paulino
da Silva.
11. João Batista Miranda, nascido em Sumidouro, RJ, em 21 de maio de
1957, filho de Leontina Celestina Hottz e de Antonio Miranda.
12. José da Silva, nascido em Sumidouro, RJ no dia 25 de janeiro de 1909,
filho de Maria Helena da Silva e de Jovito José da Silva.
13. José Ildephonso Chermouth, nascido em Lambari, Sumidouro, RJ, no dia
23 de janeiro de 1922, filho de Alexandra Abelha Chermouth e de Diogo
José Chermouth.
14. Julia Ferreira da Silva Andrade, nascida em Santo André, Sumidouro, RJ,
no dia 15 de setembro de 1931, filha de Ema Vitória Ferreira da Silva e de
Daniel José da Silva.
15. Lizete Evangelista da Conceição, nascida em Sumidouro, RJ no dia 22 de
julho de 1942, filha de Afonso Rodrigues do Espírito Santo e Maria Augusta
dos Santos.
16. Luzia Paulino Pinto Porto, nascida em Petrópolis, RJ. No dia 15 fevereiro
de 1935, filha de Josina de Oliveira Pinto e José Paulino Pinto.
17. Manoel dos Santos Filho, nascido em São João da Pirapitinga,
Sumidouro, RJ, no dia 19 de dezembro de 1940, filho de Máxima Chapieta
dos Santos e de Manoel dos Santos.
18. Maria Cândida Marques Gaspar, nascida em Nova Friburgo, RJ, no dia 18
de junho de 1935, filha de Ana Maria Marques Gaspar e de Miguel da Silva
Gaspar.
19. Maria José Storani Gonçalves, nascida na Barra de São Francisco,
Sumidouro, RJ, no dia 25 de novembro de 1914, filha de Maria Máxima
Storani e de Nazareno Storani.
20. Nair da Silva Rosa, nascida em Sumidouro, RJ, em 02 de fevereiro de
1922, filha de Arsênio José da Silva e Antonília Rosa da Silva.
21. Nobuko (Rosa) Noguchi Inada, nascida em Tomeaçu, Pará, em 03 de
junho de 1938, filha de Hanako Noguchi e de Konozuke Noguchi.
22. Paulo de Souza Mattos, nascido em Botafogo, Sumidouro, RJ, em 8 de
julho de 1909, filho de Ana Luiza de Souza e Manoel de Souza Mattos.
23. Petronilha Rosa dos Santos, nascida em Sapucaia, RJ, no dia 05 de
dezembro de 1923, filha de Maria Carneiro e de Manoel Joaquim Carneiro.
43
24. Vivian da Conceição Zão, nascida em Sumidouro, RJ, no dia 8 de
dezembro de 1975, filha natural de Guilhermina Lucia Zão.
25. Entrevista temática com Adilson da Rocha Charles e Rodrigo de Castro
Pereira, técnicos da Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente, gravada
conjuntamente em 25/10/2007.
44
Realizamos um exercício para selecionar os melhores entrevistadores da
turma do Curso Normal, mas o projeto sofreu continuidade com o afastamento do
professor orientador Carlos Tadeu Gomes, devido a doença crônica na família que
se prolongou durante todo o período de duração da pesquisa.
Em conseqüência, acabamos por não conseguir aplicar todos recursos
disponíveis para entrevistas (gravação e transcrição) do Auxilio Projeto Individual
de Pesquisa.
O APQ foi, por sinal, aprovado em outubro de 2006 mas o valor aprovado
liberado apenas em março de 2007 quando o trabalho de campo já estava
avançado. Por isso, uma parte dos equipamentos (gravadores, mouse ótico, pen
drive) teve de ser adquirida com recursos próprios do pesquisador.
Cabe destacar, apesar das dificuldades apontadas, algumas iniciativas
positivas do ponto de vista da divulgação dos resultados da pesquisa.
A primeira foi a criação da página Fala Sumidouro na internet, com o
domínio www.falasumidouro.com Esta página foi o resultado do projeto de iniciação
científica “Memória Social sobre ambiente e saúde: organização de uma página de
internet do projeto de história oral em Sumidouro, RJ”, com bolsa do CNPq
concedida a Lusyana Porto da Silva, ora em andamento.
A outra iniciativa teve lugar em Sumidouro durante a comemoração do 116º
aniversário de fundação da cidade. Trata-se do programa de rádio “Fala
Sumidouro” irradiado no dia 10 de junho de 2007 pela Conquista FM.
Na medida em que nos tornamos conhecidos na cidade, pudemos contar
com apoio da imprensa local, a exemplo do Jornal Foco e Olhar Público que
divulgaram notícias sobre a pesquisa.
Durante o desenvolvimento da pesquisa, participamos do VII Encontro
Regional Sudeste de História Oral, realizado no campus da Fiocruz, com o texto
“Memória, saúde e ambiente: Um projeto de pesquisa-ação com agricultores e
familiares de sumidouro, RJ”, comunicação apresentada no dia 7 de novembro de
2007, no GT “Meio Ambiente”. Uma versão modificada do texto integra os
resultados apresentados neste relatório.
45
ANÁLISE DOS DADOS, INFORMAÇÕES E OBSERVAÇÕES
COLETADAS
FIGURA 4
Imagem de Sumidouro em 2008
46
Na segunda imagem, também produzida por Rafael Dias no trabalho de campo
em 28/04/2008, identifica-se o ponto mais elevado registrado na imagem anterior,
a Pedra do Retiro, onde se encontram as nascentes do Rio Paquequer.
FIGURA 5
Imagem da Pedra do Retiro - 2008
47
QUADRO 2
SÉRIE HISTÓRICA DAS ÁREAS DE MATA NO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO, REGIÃO SERRANA E MUNICÍPIO DE SUMIDOURO
(1940 – 1995)
48
É notável que na região serrana tenha se registrado um aumento das áreas
de mata entre 1950 e 1960, enquanto em Sumidouro estes aparentes ganhos
somente acontecem uma década mais tarde. Contudo, o declínio da mata após
1970 é mais acentuado neste município que nos demais: aproximadamente 73% da
área de mata foi eliminada e substituída no período compreendido entre 1970 e
1995.
De acordo com o Instituto Estadual de Florestas (Governo do Estado do RJ,
1998),
49
Para confirmar tais informações em fonte escrita de caráter público, o IBGE
registra nas atividades econômicas de Sumidouro mais de uma década
depois a extração de 8.000 m3 de lenha, ao lado da produção agropecuária,
na qual já se destacam as hortaliças (IBGE, 1956).”
50
A intensificação do uso da terra para a olericultura a partir de 1970 e, em
Sumidouro, mais fortemente nas décadas seguintes, restringiu também as áreas
dedicadas ao descanso. Na compilação dos dados do Censo Agropecuário de
1995-1996, Daniela Egger (2006) nos mostra que as áreas de terra dedicada às
lavouras temporárias, no caso de Sumidouro, à olericultura praticamente não
deixavam margem para o pousio, comprometendo a prazo a fertilidade do solo:
QUADRO 3
UTILIZAÇÃO DAS TERRAS
SEGUNDO ESTADO, MESORREGIÃO E MUNICÍPIO
1995-1996
Temporárias
Localização/ Permanentes Temporárias em
Forma de descanso
Utilização das
Área (ha) Área (ha) Área (ha)
terras
Estado 78.758 258.483 5.393
51
QUADRO 4
ESTABELECIMENTOS SEGUNDO A CONDIÇÃO DO PRODUTOR
SUMIDOURO, 1995-1996
Condição do produtor N %
Proprietários 800 50,1
Arrendatários 137 8,5
Parceiros 600 37,6
Ocupantes 40 2,5
Fonte: Censo agropecuário – IBGE – 1995/1996
QUADRO 5
ESTABELECIMENTOS SEGUNDO A FORMA DE OCUPAÇÃO DA TERRA
SUMIDOURO, 2005
52
garantiria a subsistência de sua família, sendo que a diversificação das culturas
propiciaria um rendimento médio por causa das oscilações do preço dos produtos 10.
Mas é importante assinalar que, se a olericultura permite o cultivo anual, há de se
ter mente pelo menos dois aspectos cuja análise será desenvolvida no tópico A
agricultura como prática econômica e o uso de agrotóxicos: de um lado, o
uso intensivo tende a esgotar o solo, donde a importância da adubação e do uso de
agrotóxicos e, logo, maiores gastos com insumos; por outro, trata-se de um
segmento de atividade econômica caracterizado pela concorrência.
A importância econômica e social da parceria, acima ressaltada, merece
alguns comentários adicionais.
Graziano da Silva (1978, p. 89) compara os dados dos cadastros do INCRA
de 1965 e 1972 e observa um aumento médio de 50% na área explorada em todos
os estratos de propriedade. Mas enquanto nos estratos superiores as áreas
inexploradas aumentaram proporcionalmente, houve uma diminuição deste registro
nos estratos inferiores. A intensificação do uso da terra nas pequenas propriedades
é uma das características marcantes desta época em que o crescimento da
economia brasileira tomou um grande impulso, com taxas de até 11%, a ponto de
ser comparado ao “milagre econômico” observado na Alemanha e Japão no pós-
guerra. Um traço importante destacado pelo autor diz respeito à parceria que
inclusive teria adquirido relevância nos imóveis rurais de maior tamanho, a ponto
de sugerir a possível substituição da mão-de-obra assalariada permanente. Para
Graziano da Silva, a parceria é uma forma de pequena propriedade baseada no
trabalho familiar.
De acordo com o Manoel Antonio Soares da Cunha, a parceria na região
fluminense do Vale do Paraíba desenvolve-se a partir do desaparecimento do café
nos anos 1950. O antigo colono toma conta da mesma gleba, recebe parte dos
insumos e entrega 25% da produção de café e 50% em outras culturas (milho,
arroz de sequeiro, mandioca para farinha). Para ele, o parceiro somente aparece na
estatística como produtor se ele for independente, ou seja, se tem o negócio, se ele
for o que vende, se ele recebe em vez de pagar11.
Provavelmente há um percentual elevado de pequenos proprietários com
terra insuficiente para garantir a reprodução do grupo familiar. Mas é importante
assinalar, também, a advertência de Manoel Antonio: o parceiro somente aparece
nas estatísticas na condição de produtor se ele tiver o controle da comercialização
do produto. Aliás, o interesse da EMATER em dar visibilidade ao parceiro tem a ver
com o objetivo dos técnicos de combater o “atravessador” nas relações de parceria,
10
Informação prestada por Fátima Curty Moura em 08/12/2006.
11
Entrevista informal com Manoel Antonio Soares da Cunha no Rio de Janeiro em 27 de março de 2006.
53
uma vez que, ao manipular nos preços e nos prazos, deprime a renda e a
capacidade de endividamento dos parceiros12.
Uma questão a ser respondida é a de saber qual a forma predominante de
contrato de parceria em Sumidouro. Há casos em que o proprietário fica com 60%
e o parceiro 40%, num flagrante desrespeito ao Estatuto do Trabalhador Rural que
limita a cota do proprietário em até 50%13.
O controle da comercialização significa referir-se à diferenciação social do
campesinato, do camponês empobrecido e do camponês rico e, neste processo à
emergência da categoria social do ‘patrão’. O comerciante em Sumidouro tem suas
próprias terras que explora em parceria, entregando os insumos e equipamentos.
Por isso cabe-lhe o provérbio popular entre os sumidourenses: patrão rico, meeiro
burro14.
12
Conversa com técnicos da EMATER - Sumidouro no dia 22 de março de 2006.
13
Idem.
14
A equivalência da figura social do comerciante com a do patrão é uma construção social da linguagem
cotidiana. Assim, numa conversa com uma aluna da área rural, perguntada por que os pais vieram
morar em Sumidouro, respondeu que o pai antes trabalhava como ‘assalariado’ num sítio, numa lavoura
à meia. Esclareceu: lavoura à meia é quando o patrão dá a terra e o empregado a cultiva.
54
utilizando para isto uma área de 500 hectares (de um total de 3.000 dedicados à
agricultura):
“É uma atividade que na sua maioria os produtores plantam para
subsistência, utilizando mão de obra familiar de aproximadamente 425 pessoas”.
O milho plantados por 90% dos produtores registrados na data o faziam
para consumo próprio, apenas 10% produziam pequeno excedente para venda, via
de regra sob a forma de fubá.
Na exposição agropecuária de Sumidouro em 2006, o pequeno público que
passou por lá teve a oportunidade de ver algumas espigas de milho originárias do
município. O milho ‘cateto’, por exemplo, variedade nativa selecionada por Gilécio
Candido, de Dona Mariana, teria até mais de cem anos. Foi isto que entendemos de
uma conversa com o senhor Antonio Moura:
Esse milho está comigo tem uns 50 anos. Quem me deu essa semente foi o
Antonio Wermelinger. Ele ganhou do pai dele, mas agora veio me pedir
porque tinha perdido. Então o milho agora voltou pra família dele.
Não, naquela época era bom. Podia derrubar mata e plantar caqui, plantar,
porque ninguém zangava, eu acho que era bom, tinha esse negocio de
preocupação não.
15
Em Sumidouro, a queimada era uma prática feita a cada cinco anos, disse-nos Fátima Moura em
10/02/2006.
55
É o que também constatamos no depoimento de Julia Ferreira da Silva
Andrade. A fazenda da família era grande, pois quando perguntada pela dimensão
respondeu que hoje, dá, já tem asfalto lá e tudo! Deve levar uma meia hora dum
lado a outro! A possibilidade de uma lavoura itinerante, nos moldes da agricultura
‘tradicional’, implicava uma disponibilidade de terra sob uma floresta. Perguntada
se tinha floresta na fazenda naquela época
56
Os agricultores referem-se à fertilidade da terra nesta época. É o que diz o
senhor Christiano de Jesus:
- Adubo quando a terra estava muito fraca, quando a terra tava muito fraca,
quando o terreno tava fraco, adubava, botava um bocado de porco no
terreno...
- Nós plantava milho, que meu pai sempre plantou milho, porque, por causa
do gasto, por causa da galinha, do porco, né, plantava milho desde que nos
mudamo pra lá começamos a plantar o milho e tomate. Que a primeira
lavoura que papai fez foi de tomate.
Mas quando ele chegou lá, em 1947, outros já faziam ou tinham feito o
plantio, como as famílias Kuçaga e Watanabe. O nome de Tacuso Kitame, também
citado por Rosa Noguchi, aparece entre agricultores da região de Dona Mariana,
uma das áreas de maior concentração da comunidade japonesa que, nas “terras
frias” do município de Sumidouro, faz divisa com de Nova Friburgo (Centro Pró-
Memória de Sumidouro, 1952).
Os moradores de Sumidouro referem-se ao papel inovador dos imigrantes
japoneses na agricultura, ao ensinarem o cultivo das olerícolas. Uma das
depoentes, a senhora Petronilha Rosa dos Santos, afirmou que a experiência com
57
as culturas de tomate, pimentão, batata, jiló, repolho foi compartilhada entre
japoneses e brasileiros ao longo dos anos 1940-1950:
16
Entrevista não gravada. Rio de Janeiro, em 19 de junho de 2006.
58
Os japoneses estavam plantando quiabo. Seleções efetuadas dentro do
material genético usado na época de quiabo gerou dois materiais genéticos
melhorados: as seleções Piranema e Santa Cruz 47, as duas ainda
cultivadas mas a SC-47 está nos catálogos das firmas de sementes.”
“A colônia japonesa também desenvolveu o tomate: deu uma característica
ao tomate bilocular, denominado de Tomate Santa Cruz que se espalhou
pelo Brasil. Mas nesta região o plantio de tomate sofria muito o ataque da
murcha bacteriana e fusarium (fungo), ambos existentes no solo, por causa
da existência abundante do outras solanáceas17. A plantação de tomate foi
iniciada então na região do Médio Paraíba, em Paty do Alferes e serrana,
onde não havia este acúmulo de plantas e nem o hospedeiro da bactéria e
também estavam livres de fusarium. Havia produção tomateira em Friburgo
e Sumidouro18 mas as áreas de maior produção estavam localizadas em
Vassouras e em Paty do Alferes.”
- Não tinha bicho, não tinha conversa não. Só plantava e colhia. Hoje em dia
precisa tá com remédio em cima. Aquele tio meu plantou uma moita de
tomate ali, tava vendo-se doido, tá um bicho cortando o pé dele de
noite, corre a terra em baixo, deixou o pé lá murcho, o filho dele
disse que é murchadeira, disse que o remédio é caro pra chuchu, mais
que acha que é murchadeira, que lá não tem murchadeira... Não sei.
17
Dicionário Aurélio Digital XXI: família de plantas superiores, da ordem das tubifloras, composta de
ervas, arbustos e trepadeiras, sendo poucas as árvores. Folhas alternas; flores solitárias ou cimosas,
pentâmeras e actinomorfas; fruto: baga ou cápsula. Conhecem-se umas 2.000 espécies, em todo o
planeta, muitas das quais brasileiras. O tomateiro, o tabaco, o pimentão, várias pimentas, a beladona, a
batateira, etc., são solanáceas úteis (não falando das ornamentais).
18
Quando lembrei que a produção olerícola em Sumidouro era antiga, reportando às informações
constantes da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, do IBGE, ele disse ter realizado viagem à região
serrana no ano de 1956, na qual constatou que as hortaliças pertenciam a cultivares (variedades
híbridas) sem resistência a doenças e pragas.
59
- Agora o senhor falou que não usava adubo nem remédio. O senhor lembra
de quando mais ou menos começou a ser necessário usar?
- Esse remédio mais ou menos, tem esse negócio de lavoura com adubo
esse remédio para matar esse bicho, deve ser de uns cinqüenta anos para
cá, que tinha... Naquela época, não tinha.
- Não tinha.
- Não.
- E por que?
- Porque eu peguei fazer lavoura de tomate eu já era casado e os filhos já
estava grande, não havia lavoura de tomate aqui no nosso lugar. Pessoal
falou que um homem com sessenta anos plantava tomate, esse eu acho que
pegou, que num pode, não havia em lugar nenhum, não se falava em
tomate. Havia um tomate garrafinha que jogava aí no meio da roça (risos)
que nascia e colhia um tomatinho miudinho, bom pra comer. Não havia
tomate de planta, não, pode ser que só se esse serviu, porque esse
não era não.
- O senhor acha que a introdução do tomate foi a razão...
- Hem?
- O senhor acha que o cultivo de tomate, é que trouxe o problema do...
- Dos bichos?
- É.
- Ah, esses bichos esses nadava por cima da terra, né, tenta cuidar, né.
- Pois é. A minha pergunta é: se não tinha antes, por que passou a ter
depois?
- Então. Mais aí eu não sei que negócio é esse de murchadeira, não posso
dizer ao senhor da onde que veio esse negócio.
(Risos)
19
Murchadeira: designação popular de bactérias do solo como a Ralstonia solanacearum que afeta
principalmente tomate e batata.
60
- Quer dizer num certo momento não tinha, no outro momento passou a ter.
- É.
- Alguma coisa aconteceu na terra, ou no uso da terra. Talvez no uso da
terra que permitiu que aparecesse o problema, né?
- Porque alguns aqui não entende, lavram a terra com o boi por aqui
tratado, com arado, lavrava a terra do outro. Aquela terra vinha no
arado, botava na outra terra que não tinha, pegava a murchadeira. A
gente comprava uma batata inglesa pra comer e descascar ela e
jogar no meio da terra do trabalho que tinha murchadeira. Pronto,
afetou a terra toda.
20
Ver nota 7.
21
Brachiaria mutica ou capim-angola. De acordo com Warren Dean (1996, 130), capins africanos teriam
sido introduzidos nalgum momento do século XVIII nas invernadas próximas à cidade do Rio de Janeiro.
A respeito dos capins exóticos introduzidos no Brasil a partir do século XVIII ver Primavesi (1999). De
acordo com o senhor Antonio Lavourinha, o capim braquiária teria sido introduzido em Sumidouro por
Miguel da Silva Gaspar, pai de Maria Cândida Marques Gaspar. Ele foi dono de uma fazenda em Bela
Joana, na parte de Sumidouro que fica no Vale do Paraíba.
61
A indução do processo de modernização
62
marido teve que fazer um bocado de composição de calcário, de esterco de
galhinha..
- Pra compor a...
- ...farinha de osso, prantar milho, de triturar tudo aquilo. Nós nunca
queimamos um capim.
- Hum, hum.
- Até tapueraba que é uma erva daninha na propriedade, a gente
amontoava. Amontoava, fazia aqueles montões...
- Hum, hum.
- ... deixa ali de um ano pro outro, no outro ano aquilo era um montão de
esterco que a gente esparramava na terra. E tem proprietário que ele tem
prazer de queimar.
Vejamos agora quem são, para os depoentes, os agentes indutores da
introdução da agricultura convencional em Sumidouro.
Os vendedores de fertilizantes e agrotóxicos são citados por todos. É o que
se constata no seguinte trecho do depoimento de dona Julita:
63
é do seu Tomazinho, que vocês conheceram que é do Tomazinho, que é um
dos homens predominante na região nossa lá, de bem financeiro. Porque ele
era, ele era representante da... da Monte Lima, sabe?
– Hum!
– Então ele tinha uma casa de adubo, que ele era representante e ele, ó,
riqueceu né? Muito, muitos empobreceram por ele, esse senhor Tomaz.
Bom, a empresa, por exemplo: tinha um novo produto para ser lançado, ai
eu fazia o estudo de mercado pra saber a focalização do..., quais os
principais mercados em termos de plantas, em termos de..., vamos dizer,
área geográfica era perspectiva de venda, fazia um calculo do potencial de
venda e fiz pra essa empresa também outros grupos de produtos, fiz a parte
de sementes que na época, em seguida eles compraram uma empresa
22
Foi incorporada à Novartis em 1996, com a fusão entre as duas grandes companhias suíças do setor, a
Ciba-Geigy e a Sandoz numa fusão de interesses no ramo químico entre indústrias produtoras de
fármacos, agrotóxicos e aditivos para alimentos, etc. A propósito, em 2000, a Novartis Agribusiness e a
Zeneca Agrícola se fundiram, formando a Syngenta.
Ver http://www.novartis.com.br/_sobre_novartis/historia/index.shtml
64
internacional de sementes agrícolas, aí quando a gente fala que é semente
melhorada...
65
Ainda denuncia o fato de que muitos escritórios da EMATER, das Secretarias
de Agricultura e da EMBRAPA nos estados “passam o tempo experimentando
graciosamente produtos das empresas” (idem, 112).
Mas o comportamento das empresas estatais não era também diferente das
multinacionais. É o que depreendemos do depoimento do senhor José Chermouth,
analisado detalhadamente a seguir.
José Chermouth trabalhou na lavoura, tornou-se administrador de fazenda
em Simplício, Minas Gerais, deixando a atividade depois da erradicação do café, por
volta de 1955, a introdução do gado e o parcelamento da propriedade da terra.
Retornou a Sumidouro e então se tornou vendedor autônomo de “adubo”
(fertilizante) por indicação de Jóe Teixeira Vogas, técnico que trabalhava no
escritório local da EMATER. Assumiu a licença de vendedor autônomo vinculado ao
CORE, com o que podia não apenas vender diretamente ao produtor, mas também
revender.
Vendia adubo da empresa Ultrafértil, na época uma estatal que mantinha
fábrica em São Paulo23. A matéria-prima era vendida para as empresas privadas
que fabricavam o produto mas, em dado momento, a Ultrafertil resolveu produzir
fertilizante, concorrendo com estas empresas. Foi numa época em que houve forte
subsídio à oferta de fertilizantes por parte do governo e se considerava um passo
decisivo na “modernização da agricultura”, como destacado na matéria “Idéia fértil”
do número inaugural da Revista Veja (Ver Anexo II).
A procura pelo adubo da Ultrafértil era maior, porque era de melhor
qualidade e mais barato, mas a empresa estatal teria parado de produzir o adubo
por pressão das outras empresas. Contudo a empresa atuava exatamente como as
demais empresas. Impunha a “venda casada”:
66
passei pra Ultra Fertium, passei pro adubo Índio, de Campos. Então eu
trabalhei pra quatro firmas...
- Ah...
- Três de São Paulo e uma de Campos!
- E o senhor passou a vender veneno por quê?
- O veneno? Eu vendi pra Ultra Fértil!A Ultra Fértil quem mandava
vendê!
- Ah, a Ultra Fértil que mandava?
- È! Mandava o remédio pra vendê e eu vendia.
- Ah, então ela fabricava também o...
- Não ela comprava, comprava e passava pra...
- O senhor lembra o nome do...
- Dos veneno?
- É!
- Ah! Um era Ditane, era Folidol, era essas porcaria aí!
- Em cima desse assunto, a PESAGRO, que foi a responsável por uma parte
do Projeto de Micro-Bacias em Campo Leal, eles fizeram um estudo sobre
perda de solo. E aí eles fizeram um levantamento também da quantidade de
NPK no solo e tal, dos micro e macro nutrientes presentes nos solos em
Campo Leal. E eles constataram adubação excessiva. Tanto que os índices
chegaram a ponto que eles disseram assim: “Olha, vocês podem ensacar
essa terra que vocês trabalham e vender como adubo”. Não é?
67
QUADRO 6
PLANO MUNICIPAL DE EXTENSÃO RURAL: OBJETIVOS E METAS
SUMIDOURO, 1990-1991
- E o Joaquim muito, ele era uma pessoa tímida assim, bem devagar, então
ele se familiarizou com a gente. Então ele tava diariamente em nossa casa.
E nessa época, ele apres... Ele tava lançando é... Um produto que chamava
difolatan, que era pra pinta.24
– Hum, hum.
– Então esse difolatan, ele que foi ensinar o José como trabalhar. Como nós
não tinha habilidade, não tinha conhecimento de agrotóxico, desses remédio
24
Pinta ou pinta-preta é o nome comum da doença causada pelo fungo Alternaria solani em olerícolas
como batata, tomate, pimentão, brócolis, couve-flor, berinjela e o jiló, favorecida pelo monocultivo, calor
e umidade. O produto usado, Difolatan, é um agrotóxico específico, isto é, um fungicida.
68
venenoso, brabo, ele começou ensinar meu marido como trabalhar. Então
meu marido começou a trabalhar com agrotóxico, dentro da receita que é
devida.
– Hum!
– Entendeu?
– Então foi a Emater que indicou o... Começou a introduzir o uso do
agrotóxico.
– Ensinar o uso do agrotóxico...
- E a outra coisa que tem muita gente que não dá valor, mas, às vezes,
parece alguém aqui... , por causa do caqui aqui veio um agrônomo do
Paraná, mostro ele, me ensinou a podar a agente fez muita gente
passo aí chamou de maluco e a gente só veio ganhar com isso, só veio
multiplicar, de maluco não teve nada. Deu pena de fazer a podação que foi
recomendada, mas tem alguma coisa quando a gente olha alguma pessoa
de bem a gente tem que acreditar e ir à luta.
Por que “muita gente não dá valor”? Isto é, porque a atitude reativa dos
agricultores diante dos técnicos? Tratar-se-ia de um problema de ‘educação’, de
que o técnico não sabe chegar e o agricultor não sabe receber? Muitas vezes somos
levados a esta crença devido ao autoritarismo do saber competente. Contudo esta é
apenas, por assim dizer, uma ‘camada’ de uma problemática mais profunda. A
questão é saber se os agricultores são capazes de ‘manipular’ adequadamente o
‘pacote tecnológico’ da Revolução Verde. Na opinião de Rodrigo, isto não tem se
mostrado viável, a exemplo do problema do manejo do solo:
O nosso agricultor, ele sabe plantar, mas infelizmente ele não... ele não, ele
não usa o pacote inteiro. Esse pacote seria o que? A análise de terra. Ele
não faz análise de terra. O nosso agricultor aqui no nosso Município não faz
análise de terra. Se ele bota cinqüenta gramas de adubo numa planta ele
sempre vai botar cinqüenta gramas.
69
- Tá mudando. Porque se você tá botando fósforo no teu solo, nosso solo é
pobre em fósforo entendeu? De modo geral a gente faz a análise dum solo
de pastagem aqui, ele tem um PPM de fósforo. A partir do momento que
você começa a adicionar fósforo naquele solo, com três, quatro, cinco anos,
aquele solo já vai ter trinta PPMs de fósforo. Se você tá botando cinqüenta
gramas, dez gramas já bastariam para suprir a necessidade. Não. Mas ele
continua botando as cinqüenta. Esse excesso de fósforo, com certeza, causa
o que? Ele passa de... Ele, por exemplo, o zinco, ele já não consegue
absorver direito. E o zinco é um nutriente que faz o que? Faz a planta ficar
mais forte. Entendeu? Faz a planta ter resistência a determinadas doenças.
Ativa o sistema imunológico da planta. Se a planta tem muito fósforo e não
tá absorvendo o zinco, ela vai ficar uma planta mais o quê? Mais suscetível
a um ataque de praga. Ou de doença. Ela não vai ter a defesa própria dela,
vai tá mais fragilizada.
25
Produto inseticida e acaricida de contato e ingestão do Grupo Químico Organofosforado, altamente
tóxico. Nome comum: parationa metilica. Produzido pela Agripec. Ver indicações em
http://www.agripec.com.br/2007/produtos/Fispq/FISPQ_FOLISUPER600BR.pdf
70
modo de ação diferente naquela praga. Aquele cinqüenta por cento vai
sobrar só vinte. Aí depois cê usa um outro produto voltado só pra aquela
praga. Específico. Quer dizer, daqueles vinte vai sobrar um por cento. Existe
hoje em dia tecnologia, conhecimento, voltado a isso. Ao controle
populacional.
É. E esse tipo de informação que no caso aqui ele como técnico tá passando
pra gente, eu presencio todo dia, essa informação tinha que chegar ao
produtor de forma simples. Então [é] a assistência técnica. Esse apoio
técnico aqui [em Sumidouro] ao produtor é muito insuficiente. Porque
assim, o número de técnicos é muito pequeno em relação a grande
quantidade de produtores rurais não é? Que trabalham nesse tipo de coisa,
o ano inteirinho, todos os dias.
71
A paisagem vislumbrada pelo viajante vindo de Teresópolis, assim que,
ultrapassada a divisa entre Sapucaia e Sumidouro, inicia a descida em direção ao
Vale do Paraíba, é de uma área densamente cultivada com vestígios de mata, a
exemplo da imagem registrada por satélite apresentada na página 71.
Falar de agricultura em Sumidouro significa referir-se praticamente a
olericultura.
Olericultura é uma denominação genérica do cultivo de legumes ou
hortaliças cujo ano agrícola acompanha o civil. Por ser uma atividade realizada
durante todo o ano, requer uma dedicação de trabalho permanente.
Em condições de solo e clima favoráveis, é possível obter, numa mesma
área, de acordo com Oliveira e Campos (2006, 7),
72
QUADRO 7
VARIAÇÃO SAZONAL DA PRODUÇÃO 1989-1990 EM PORCENTAGEM
Produção Jul Ago Set Out Nov Dez Jan Fev Mar Abr Mai Jun
Repolho 8,11 11,41 12,01 9,61 9,01 9,01 12,01 6,31 6,01 4,50 4,50 7,51
Vagem 12,73 8,05 7,92 4,81 3,49 8,77 9,34 5,66 4,53 7,27 9,90 12,73
Pimentão 4,27 2,67 2,67 2,13 6,40 10,67 14,93 16,00 10,67 10,92 10,67 8,00
Tomate 5,42 7,83 6,02 4,82 7,23 6,63 11,45 12,05 10,24 10,84 9,04 8,43
Cenoura 12,94 21,53 14,39 5,76 5,76 6,47 5,76 5,04 5,04 5,04 5,76 6,46
Batata-doce 9,23 6,93 7,69 7,69 6,93 6,25 6,15 12,31 9,23 6,15 7,69 13,85
Abobrinha 11,75 15,67 10,44 10,44 10,44 6,30 9,92 4,70 3,13 3,13 5,22 8,36
Pepino 13,49 13,49 13,49 7,14 10,32 3,17 8,73 7,94 5,56 5,56 3,97 7,14
Jiló 2,67 2,57 3,57 3,57 6,25 5,36 10,50 15,18 15,18 11,61 11,61 8,93
Alface 9,52 11,90 11,90 9,52 7,15 7,15 4,76 5,95 5,95 7,15 7,15 11,90
73
Para entender a olericultura como prática econômica é necessário situar as
evidências oriundas dos depoimentos dentro de um contexto mais amplo, tendo
presente as transformações ocorridas na agricultura e na sociedade no período
compreendido pela vida dos entrevistados.
A organização dos “cinturões verdes” nas regiões metropolitanas durante os
anos 1968-1984, quando o Brasil se encontrava sob o regime militar, propiciou o
desenvolvimento da olericultura como atividade agrícola especializada. As Centrais
de Abastecimento (CEASA) organizadas nos anos 1970 impulsionaram a
sustentação deste processo. No Estado do Rio de Janeiro dizia-se que Teresópolis,
Sumidouro e Nova Friburgo constituiriam o “Triângulo Verde” que, de acordo com
Nilton Salomão, em discurso na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
(Salomão, 1997), contou com o apoio do Banco do Estado do Rio de Janeiro
(BANERJ).
Estudo de Belik e Paulillo (2001) sobre a importância do crédito na
“modernização da agricultura” propõe a hipótese de que, na década de 1980,
quando a política de juros subsidiados da década anterior teve de ser abandonada,
alguns setores específicos da agropecuária brasileira já dispunham de “maturidade
e estabilidade” para se auto-sustentar, contando “com formas de financiamento e
sustentação paralelas”. Mas no caso da pequena produção agrícola e especialmente
da olericultura da Região Serrana do Rio de Janeiro, esta forma de financiamento
foi garantida pelo Banerj.
Em entrevista não gravada com o senhor Antonio Lavourinha26, soubemos
que a carteira de crédito rural representava 50% dos negócios do Banerj e que em
Sumidouro o financiamento agropecuário era grande e a juros mais baixos do que
os praticados no mercado. O sistema funcionava assim: o agricultor apresentava a
proposta ao banco; a Emater visitava a propriedade para elaborar uma avaliação;
depois, de acordo com o agricultor, elaborava um projeto técnico para a lavoura a
ser financiada.
O financiamento voltava-se praticamente para o custeio, pago no prazo da
lavoura, feito por pequenos proprietários, arrendatários e meeiros. Os grandes
proprietários solicitarem financiamento para investimento em pecuária. A falência
destes27 por ocasião do Plano Cruzado aprofundou o processo de parcelamento da
propriedade da terra com dedicação a olericultura.
A importância e o interesse do financiamento ao custeio agrícola – isto é, à
compra dos insumos como sementes, fertilizantes, agrotóxicos, de mecanismos de
irrigação e de material de embalagem dos produtos – pelo Banerj foi também
26
Entrevista realizada em 11/08/2006. O senhor Lavourinha ingressou como funcionário do banco em
1978 e mais tarde assumiu a gerencia da agência local do Banco Itaú, incorporador do Banerj.
27
Fazendeiros das famílias Veloso, Ramos, Mendes, Serafim, Pinheiro.
74
ressaltada por uma das depoentes, Irani da Rocha Charles.28 No trecho transcrito a
seguir, ela faz referência à apresentação de Joaquim, técnico da Emater, para o
marido, José, pelo gerente do banco:
“... altos investimentos por área explorada (alto ‘input’)” que traz, em
contrapartida, “elevada produção e maior renda líquida por área, quando
comparada a grandes culturas (alto ‘outpu’), em termos de atributos
econômicos”.
28
Entrevista prestada em 12/10/2007.
29
Uma análise mais detalhada do setor será realizada adiante, no tópico 5 – Interpretação dos achados
da pesquisa.
75
Agroanalysis (1981, 17) pode ser generalizada na medida em elucida a prática
econômica na agricultura:
“A maior queda [da área plantada] se fará sentir na safra das águas, a
maior das três, cujo período de comercialização é quase coincidente em
todos os grandes estados produtores. Esta simultaneidade ocasiona uma
oferta muito grande, pressionando demasiadamente os preços para baixo e
reduzindo de forma significativa a remuneração do produtor. Por esse
motivo, os agricultores têm optado por incrementar as safras da seca e de
inverno, cuja quantidade produzida é bem inferior à da safra das águas,
embora estas produções demandem maiores investimentos e um uso mais
intensivo de mão-de-obra durante o ciclo produtivo”.
Rodrigo – Hoje em dia ali se trabalha mais com folhosas. Por quê? O ciclo de
produção é menor, aí quer dizer, o movimento financeiro é mais rápido, é
mais intenso.
Eduardo – Mas também a renda...
R – A circulação...
E – ...costuma (ser) menor também?
R – Não necessariamente.
Adilson – Não necessariamente.
E – Não necessariamente.
R – Não necessariamente. É. O quê que caracteriza? As folhosas são, são
culturas que produzem o ano todo. No inverno não há chuva e todos eles
utilizam da irrigação. Adubação química, irrigação, defensivos agrícolas.
Todos eles utilizam disso. A produção no inverno é uma beleza, que não tem
problema climático. Agora, no verão, devido principalmente e chuva, há
problema fitossanitários, por causa do excesso de umidade, o quê que
acontece? Ele perde produção. Perdendo a produção, o mercado... É a lei de
mercado não é? Abaixa a oferta. Abaixando a oferta, a procura é a mesma,
o preço sobe. Geralmente as folhosas dão dinheiro quando? No verão.
E – No verão.
R – Na época chuvosa. No inverno não dá. No inverno o cara é a
subsistência. É só para ele se alimentar. No verão que ele faz um
76
dinheirinho para ele comprar um carro, uma moto, uma bicicleta, melhorar
a casa...30
30
Entrevista com Adilson da Rocha Charles e Rodrigo de Castro Pereira, em 25/10/2007.
31
Informação prestada por Fátima Curty Moura em 08/12/2006.
32
Entrevista não gravada em 14 de dezembro de 2006.
77
compreensível à luz da situação ocupada na teia de relações em sua localidade ou
“bairro rural”.
Geralmente, o ‘avaro’ é um camponês pobre para quem o sobre-uso do
agrotóxico significa uma safra salva da praga ou da doença. O ‘manejo integrado de
agrotóxicos’ é praticamente uma prerrogativa dos camponeses mais ricos.
Dispor de uma terra mais fértil, numa área plana e melhor de ser lavrada ou
controlar a comercialização dos produtos da lavoura distingue um camponês rico,
capaz de estabelecer relações de parceria e mesmo, por ocasião da colheita, de
empregar diaristas, com os camponeses mais pobres33.
A complexidade das relações de propriedade e de trabalho ficou visível para
nós no início da pesquisa. No escritório local da Emater tivemos a oportunidade de
assistir34 ao atendimento de um jovem agricultor por um técnico, cujas informações
iriam compor o projeto para o pedido de financiamento junto ao Banco do Brasil.
Anotamos o seguinte diálogo:
33
Registramos algumas histórias de vida que retratam os dramas vividos por esses camponeses (Anexo
III).
34
Sumidouro, 28 de dezembro de 2006.
35
A definição legal da agricultura familiar para fins de financiamento da atividade agropecuária comporta
os seguintes critérios: a) explorem parcela de terra na condição de proprietário, posseiro, arrendatário
ou parceiro; b) residam na propriedade ou em local próximo; c) não disponham, a qualquer titulo, de
área superior a quatro módulos fiscais, quantificados segundo a legislação em vigor; d) obtenham renda
familiar oriunda da exploração agropecuária ou não-agropecuária do estabelecimento; e) tenham o
trabalho familiar como base na exploração do estabelecimento. (Banco Central, 2008)
78
O controle sobre a comercialização dos produtos é uma forma de acumular
capital e aumentar o controle sobre a produção de terceiros, sob as formas da
parceria (meação) ou arrendamento e, ainda, empregar diaristas.
Segundo informações do escritório local da Emater (1990), a
comercialização era organizada por meio de intermediários (comprador na roça) ou
encaminhada direta (proprietário) ao Mercado de Água Quente (Teresópolis),
Mercado Municipal de Nova Friburgo, CEASA – Rio de Janeiro, CEASA de Colubandê
(São Gonçalo).
79
QUADRO 8
SISTEMA DE COMERCIALIZAÇÃO – 10 PRINCIPAIS PRODUTOS OLERÍCOLAS DO MUNICÍPIO - 1989
80
Em 2007, aproximadamente 1/6 do mercado fluminense (região litorânea,
supermercados e rede hoteleira) de folhagens era abastecido por um único
comerciante. Interessante a observação de que a compra, feita de acordo com
padrão de qualidade (tamanho, cor da folha, quantidade de folhas), implica, além
de uso de muito agrotóxico, elevado desperdício (descarte da folhagem fora do
padrão)36.
Estudo relativo à bacia do Rio Paraíba do Sul realizado em meados dos anos
1990 aponta a região serrana como aquela caracterizada pela maior expressão de
remanescentes florestais (26% da cobertura inicial). Contudo esta sobrevivência
deve-se muito mais às dificuldades do relevo montanhoso (íngreme, rochoso) para
a agricultura e a pastagem do que a uma ação preservacionista.
36
A ideologia de que o ‘mercado’ exige este padrão desloca a responsabilidade do comerciante para o
consumidor.
FIGURA 6
IMAGEM DE DESMATAMENTO
82
adubando com tal intensidade suas lavouras, estariam tendo sua
rentabilidade reduzida e que poderiam plantar as mesmas espécies sem
adubação por vários anos, sem queda na produtividade agrícola” (Idem,
20-21).
83
centro; de uma unidade de Pronto Atendimento em Campinas; do Centro de Saúde
Dr. Carolino; do Hospital Municipal Dr. João Pereira; e do Centro de Vigilância em
Saúde.
Os dados abaixo coletados junto ao serviço de Vigilância em Saúde da
Secretaria Municipal de Sumidouro, serviram de base para uma entrevista informal
com um profissional de saúde.
84
QUADRO 9
REGISTROS DE ATENDIMENTOS POR UNIDADE DE SAÚDE
PERÍODO 1 DE JANEIRO DE 2005 A 31 DE DEZEMBRO DE 2006
Condiloma acuminado - 1 3 1 0 5
Aids - 0 0 3 1 4
Hanseníase - 2 1 0 0 3
Doenças exantemáticas - 1 1 1 2 5
Herpes genital - 2 0 0 0 2
Tétano acidental - 0 0 1 0 1
Coqueluche - 0 0 1 0 1
Hepatite viral - 1 0 0 0 1
Varíola - 0 0 1 0 1
Síndrome da úlcera - - - 1 - 1
Uma análise inicial dos dados do SINAN a partir de conversa com técnico
responsável pelo registro e encaminhamento das planilhas da SMS-Sumidouro para
o Sistema Nacional de Agravos por Notificação indica um quadro de sub-notificação
de doenças associadas a estigma e preconceitos sociais. Notável, neste sentido, a
ausência de casos doenças sexualmente transmissíveis (DST), o registro de apenas
um (1) caso soropositivo de HIV-AIDS, o baixo número de casos de
esquistossomose numa área historicamente endêmica e mesmo o pequeno número
de intoxicação por agrotóxicos quando é conhecido o sobre-uso dos mesmos pelos
agricultores.
Os agrotóxicos mais usados37 em Sumidouro eram, em 2006, os seguintes:
37
Informações prestadas por Fátima Moura, em 10/02/2006.
85
QUADRO 10
AGROTÓXICOS MAIS CONSUMIDOS EM SUMIDOURO
86
O profissional relatou também o caso trágico de uma criança natimorta, sem
cérebro e pernas; a mãe, uma agricultora de mais ou menos 30 anos, teria falecido
devido a câncer na mama.
Observou, nos casos psiquiátricos atendidos no Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS) elevado número de pacientes oriundos da área rural. Um dos
casos foi o de uma agricultora com apenas 25 anos que se queixava de intoxicação
por agrotóxico no Hospital em 2005 e tinha um grave processo alérgico a herbicida
e larvicida. No CAPS ela alegava que o marido a obrigava a ir para a lavoura.
Há casos de intoxicação por acidente, como nos relata Vivian da Conceição
Zão, agricultora, 33 anos. Plantava tomate, pepino, berinjela e repolho, com uso de
todos tipos de ‘veneno’. O acidente ocorreu no momento da manipulação de um
herbicida:
87
- Tava difícil de trabalhar?
- Sim.
- E você acredita que tenha acontecido alguma coisa com eles por causa do
remédio ou eles nasceram perfeitos?
- Tem, acredito. Porque meu menino tem problema de rins, tem pressão
alta, o médico falou comigo. Ela nasceu com problema no sangue.
- Foi o médico que falou isso?
- Foi a doutora Leila, lá no Carmo. Pediatra.
- E hoje em dia ela tem 13 anos e tem esses problemas todos. Você deixaria
ela trabalhar com esse tipo de remédio?
- A gente deixar não é o caso, né. O caso é a necessidade.
- Eles vão pra lavoura com você hoje em dia?
- Às vezes vai.
88
apresenta como “de uns tempos para cá” – e a instituição de um outro tempo,
“antes”, “naquele tempo” em que praticamente inexistiam doenças e pragas. Então
se percebe também a associação ao tipo de agricultura ‘tradicional’ relatada no
tópico anterior.
- E a senhora lembra de ter dado em alguma lavoura que deu assim alguma
praga mais séria?
- A praga foi aumentando dia pra dia. Cada dia, eles falava que um
remédio que era bom, um veneno que era bom. Mais eu sei dizer que
a praga estar aí até hoje e não acabou (risos).
- Mas então teve uma época que não tinha, né?
- Isso no começo, que a gente começou a trabalhar, não existia muita
praga não, as pragas foram aumentando, aí...
Tempo que não tinha foi época em que era solteira, trabalhava com o pai na
lavoura:
Quando resolveu assumir uma lavoura por conta própria, contou com a
ajuda do filho, Daniel. Então assumiu de modo absolutamente natural o modo como
se praticava a agricultura em Sumidouro. Perguntada se usava ‘veneno’, palavra
que expressa a consciência prática do camponês em toda a região, respondeu
negativamente. Na verdade, negava que um dos produtos por ela usados para
combater ácaros (fungos) fosse ‘veneno’, confundindo-o com fertilizante:
89
-Ah, daquele tempo usava muito pouco, usava só o Manzate38 que é um pó.
- Hum.
- E veneno, lembro se usei não.
- Manzate era pra quê?
- Manzate era pra folha, pra folha, pra segurar a vagem, pra segurar...
- Mas pra quê, pra evitar alguma praga, algum bicho?
- Não, isso era veneno não, isso era pra fortalecer a folha.
- Ah, como se fosse um fertilizante.
Fica evidente que ela conhecia o perigo do produto 39, tanto que o qualifica
de ‘veneno’. A distinção entre o Manzate e o Folidol pode ser do grau de toxicidade,
mas também pode ser uma interpretação da orientação técnica do uso preventivo
38
Manzate, fungicida do grupo dos ditiocarbamatos (manganês com íon de zinco) é um agrotóxico de
Classe III – medianamente tóxico para os seres humanos (irritante para a pele e olhos, pode causar
problemas renais e neurológicos) e o ambiente, principalmente cursos de água, esgoto e subsolo
segundo a ficha de segurança de produto químico da Du Pont do Brasil S.A.
39
O Folidol tem a denominação técnica de Paration Metílico, um organofosforado proibido nos EUA e em
seguida no Brasil, em 1999, por sua aguda toxicidade.
90
do Manzate para fungos como equivalente a uma medida de proteção da planta.
Ocorreu então, no diálogo com o entrevistador, a apropriação da palavra
‘fertilizante’ para evitar o de ‘veneno’ ou agrotóxico.
Por outro lado, o uso dos agrotóxicos foi visto como uma atividade ‘natural’,
uma vez que na época ninguém falava nada contra a manipulação desses produtos.
A frase – “Naquele tempo não ouvia falar nada” – expressa uma atitude espontânea
que se desenvolve pelo compartilhamento do sistema agrícola com os demais
agricultores, o qual pode incluir uma atitude defensiva comum (Guivant, 1987).
Houve um momento, contudo, em que uma tentativa de manejo mais
cuidadoso chegou a acontecer, de acordo com o receituário agronômico. Eis o que
conta a senhora Rosa Noguchi a esse respeito:
91
floricultura especializada em crisântemo, na localidade de Córrego Bonito, distrito
de Dona Mariana.
- Que indicou seu nome, indicou a Dona Irani, Dona Delia, falo do seu
Natalino do Caramandu, como pessoas que foram homenageadas pela
Emater pelo o seu cuidado no manejo agrícola, né, e disse que o senhor fez
um aprendizado de diminuir o uso de defensivo agrícola, né, conta pra nós
como foi isso.
- Isso ai é troço que foi também a cabeça da gente olhando, a gente
diminuiu ai também adubação talvez de 70 a 80 por cento, ai atrás
disso veio o defensivo que caiu também uns 70 por cento. Porque usa
pouco adubo, usa adubo adequado, não se precisa...
- E como é que o senhor percebeu isso?
- Apanhando.
- Conta, assim como o senhor foi...
- Apanhando, bota adubo, aí vem à doença, vem praga, come tudo, (a)caba
tudo. Aí o Alexandre da Emater, diariamente vem ai tomar um
cafezinho com o sujeito e orientando “o adubo puxa isso assim,
puxa doença”, a gente foi diminuindo, hoje se jogamos adubo orgânico,
com um pouco de farinha de osso, farelo de mamona e capim moído, no
passado metia adubo aí de qualquer maneira.
- Adubo químico inclusive.
- Químico e mais nitrogenado que... que ver cresce, nós não precisamos
ver uma planta crescer muito rápido, ela tem que crescer dentro do padrão.
- Da natureza?
- Da natureza, um pouquinho de comida nós temos que botar é a mesma
coisa que nos pega e come muita gordura ao que vai fazer? Vai mata nós.
- É.
- Né.
- Aí o senhor foi percebendo isso na sua pratica.
- Porque isso aí você usando muito produto químico, muito adubo químico, a
seiva da tua planta vai estar mais rica com... se eu não me engano são
aminoácidos mais livres, que são açucares e são os que as pragas gostam.
Entendeu?
92
- E aí, aí para combater a praga...
- Aquilo atrai a praga. Aquela planta atrai a praga. Aí... tem que usar mais
defensi... Mais inseticida.
- E hoje em dia ela tem 13 anos e tem esses problemas todos. Você deixaria
ela trabalhar com esse tipo de remédio?
- A gente deixar não é o caso, né. O caso é a necessidade.
- Eles vão pra lavoura com você hoje em dia?
- Às vezes vai
- Às vezes vão. Hoje em dia você planta mais o quê?
- A mesma coisa: tomate, pepino...
- O que tiver na época, né?
- O que tiver na época e o que a gente achar que vai dar dinheiro, né. Vai
dar alguma coisa, aí a gente planta.
- E a sua família falou alguma coisa, de você ficar doente, tentou te tirar do
trabalho?
- Minha mãe mesma. Várias vezes. Mas a gente mora na zona rural, não
tem como, né. A gente não tem serviço. Você vem lá de onde eu
moro, pra vir trabalhar aqui, é mais de meia hora a pé até chegar no
asfalto pra vir trabalhar aqui, é difícil. Você não consegue serviço
aqui fácil.
93
Apesar das opiniões dominantes (Governo do Estado do Rio de Janeiro,
1998; Veiga, 2005) sobre a falta de escolarização do agricultor como possível
explicação para o sobre-uso de agrotóxicos (dosagem elevada, mistura de
diferentes ingredientes ativos, etc.), a nosso ver esse problema está associado à
prática econômica. O objetivo material aparece de modo ambíguo no depoimento
de Dona Irani:
– Assim, conversando com pessoas que mexem assim com, com lavoura,
dizem que sem o uso de agrotóxico não tem como você competir. O produto
não fica grande, não fica bonito, não vende. Então pelo que a senhora tá
dizendo assim, isso não é a quantidade do agrotóxico que via influenciar?
– Não. Hoje o que acontece? As praga tão mais resistente ao agrotóxico,
vocês sabe disso.
– Hum, hum.
– ... Isso até na nossa saúde mesmo... Se você não tomar a dose correta do
antibiótico, o quê que vai acontecer?
– Ele não faz mais o efeito da...
94
– Ele não vai mais, não vai eliminar a bactéria da infecção né? Não vai
eliminar, a bactéria vai criar resistência, depois você vai tomar uma
quantidade dobrada e o mal vai continuar.
– Elas evoluíram junto com o agrotóxico.
– Isso aí. Entendeu? E isso que aconteceu...
– E o problema é esse, que vai sendo lançado o agrotóxico mais pesado...
– É isso. É.
–...mais forte...
– É isso...
– ... e as pessoas continuam usando né?
– É isso que tá acontecendo. Tá havendo né? Porque na nossa época,
aquele, você plantava aqui deixava, plantava milho aqui, amanhã você
plantava lá. Era uma... Você tinha diversidade de, de área de terra. Como
hoje, tô falando de Campo Leal. Hoje Campo Leal é subdividido, é uma
rotação. Eu conheço pessoas que herdaram um... Não chega nem a ter
herdado um alqueire re terra, ele planta o ano inteiro. Ele planta três,
cortes, quatro, de lavoura. Plantou aqui, plantou aqui, plantou aqui, plantou
aqui. Quando a daqui tá colhendo a daqui já ta boa, ele já preparou ali já
plantou, a daqui já ta acabando, a daqui... quer dizer, o quê que acontece
com aquele solo? Todas as epidemia da lavoura que tiver na raiz ela vai
continuar ali. Não deu tempo de podrecer!
– Hum, hum.
– Não deu tempo de fazer uma outra cultura, não dá tempo de descansar.
De descansar. Veio uma época a orientação que deveríamos plantar uma,
uma leguminosa, e cada área de terra para ela repor as necessidades
extraída. A pessoa não dá tempo. Né?
95
Na terra, a gente trabaiava com esse negócio de tomate. A gente, aquela
época preparava uma terra, roçava, ia arrancar toco, ficava três
meses arrancando toco, lavrava, levava outros três meses para
bater a enxada. O tempo tava chovendo, a gente pra plantar era difícil,
pra sulfatar era o dia inteiro com a máquina francona nas costa sulfatando e
era difícil. A gente colhia o tomate, ainda dava um dinheirozinho. Mais hoje
em dia a felicidade tá demais, porque lavra hoje, amanhã já planta.
No tempo nosso era o boi, batendo enxada, fazendo sementeira, lá não
tinha estufa, não tinha nada. Vigiar o passarinho tico-tico, era desgraçado
pra comer a sementinha, coitado, carregava aquilo lá pra fora, tentando se
bota ali ficava. E hoje em dia tá tudo bom, se planta na estufa, chegou ali,
bota na terra, tá pegado, né?´
96
Memorizar é uma forma de lutar contra a opressão: as metamorfoses do
campesinato em Sumidouro.
O texto apresentado a seguir é uma versão atualizada da comunicação “Memória, saúde e ambiente:
Um projeto de pesquisa-ação com agricultores e familiares de sumidouro, RJ” - Eduardo Stotz / Anna
Beatriz de Almeida. Comunicação apresentada no dia 7 de novembro de 2007, no GT “Meio Ambiente”
do VII Encontro Regional Sudeste de História Oral, realizado no campus da Fiocruz.
Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz\ (COC/Fiocruz). E-mail:
bela@coc.fiocruz.br
97
No dia 29 de junho de 1944, as tropas de ocupação alemã praticaram uma
verdadeira chacina ao fuzilarem 115 civis do vilarejo aparentemente em represália
ao assassinato de três soldados alemães por membros da Resistência local. Este
evento trágico dividiu as lembranças e interpretações dos moradores de Civitella
Val di Chiana, cidadezinha montanhesa situada nas proximidades de Arezzo, na
Toscana. A chacina gerou o fenômeno da “memória dividida”: “memória oficial” que
comemora o massacre como um fato significativo na resistência ao nazi-fascismo e
outra, a dos sobreviventes, centrada nas perdas e no luto, marcada
paradoxalmente pela culpabilização da Resistência.
Portelli teve a oportunidade de entrar em contato com as duas e antagônicas
memórias ao participar de um colóquio internacional em 1994. O esforço por captar
as representações da dor e do sofrimento, leva o autor a refazer investigações,
fazendo uma leitura crítica das entrevistas dos sobreviventes do massacre.
Também no caso de Sumidouro temos um processo semelhante de
“memória dividida” que remete ao duplo aspecto da lembrança e do esquecimento.
Refiro-me aos depoimentos de José da Silva e de Altivo José da Silva, irmãos que
foram separados ainda crianças e acabaram por trilhar, cada um, respectivamente,
os caminhos da agricultura e da pecuária, trajetórias de vida (parceiro, campeiro)
que expressam, na condição de trabalhadores, níveis de autonomia maior ou menor
face aos proprietários de terras e, ao mesmo tempo, revelam traços da própria
história, econômica, social e política do município.
O tema é o da escravidão, ora ressaltado, ora diminuído nos depoimentos de
José e Altivo, vivida pelos pais José Jovito da Silva e Maria Helena da Silva. José
deu a entrevista quando tinha 96 anos, pouco antes de falecer. Era o irmão mais
velho e, quando criança, tinha levado o mais novo, Altivo, para ser criado pelo
capataz de uma fazenda, o senhor Chermouth. Conviveu com o pai, mas não com a
mãe. Indagado sobre o tempo da escravidão, o senhor José declarou que a mãe
não viveu o período da escravidão, apenas o pai.
98
FIGURA 7
FOTO DO SENHOR. JOSÉ DA SILVA
FIGURA 8
FOTO DO SR. ALTIVO DA SILVA
99
Mas sua memória do escravismo se confunde com a da situação de pobreza
em que viveu durante a infância. Eis o trecho da entrevista:
Eduardo - E a sua mãe, ela contava pro senhor da época em que ela era mais
moça? Ela contou dos tempos mais antigos dela?
José - Não senhor, não deu tempo, adoeceu...trem daqui, trem dacolá, já foi
embora.
Fátima - Ela morreu nova, o senhor lembra?
J - Não morreu nova não senhora, morreu já com bastante idade.
E - Ela nunca falou pro senhor dos tempos mais antigos?
J - Não senhor.
E - Não falava do tempo da escravidão, nada disso?
J - (pausa) Ela não era daquele tempo.
E - Não? Só a mãe e o pai que foram.
J - O meu pai que foi daquele tempo.
E - E ele contou?
J - Ele contava.
E - E o que ele contava pro senhor?
J - Os proprietários eram muito ruim. Naquele tempo não tinha regalia não,
meu nego. Naquele tempo o pobre era fraco de posse e passava muito mal.
(...)
E - E o seu pai falava dos proprietários que o senhor estava falando aqui?
J - Como assim?
E - Ele contava como era viver na época dele?
J - Naquele tempo as pessoas pobre eram muito castigada, não é meu senhor?
E - Ele contou alguma coisa pro senhor?
J - Contava. Eu era muito criança, mas contava (interrupção para sentar).
Naquele tempo, meu senhor, naquele tempo da escravidão, pelo que dizem, só
o rico que era gente. O rico tinha tudo, compreendeu o senhor? O coitadinho do
pobre nada tinha (interrupção para se firmar).
Em contraste com as lembranças do irmão mais velho Altivo disse não ter
conhecido o pai, José Jovito, mas apenas aquele que foi o de sua adoção e criação,
Diogo Chermouth. Ressaltou as lembranças da mãe que teria vivido a escravidão.
Eis o trecho do depoimento:
Altivo – Minha mãe falava, a gente era criança na época, mas ela
conversava com os meus pais Chermouth que me criou abaixo de Deus, ela
100
dizia: que ela foi escrava, ela e uma companheira dela, com o nome de
Balbina. A dona Balbina teve por aqui, morando por aqui depois da
escravidão, daquele tempo de escravo. Então, na fazenda da Piedade, aqui
atrás, então mamãe aprendeu a bordar, né, fazer crochê, né, ou crochet,
como se fala. Ela tinha que fazer dois quadros assim, à noite, pra depois ir
dormir. E a dona Balbina, a companheira dela, ficava nos buracos da parede
catando baratas com espeto de bambu; catando barata e botando numa
cuia e depois tinha que apresentar aquilo ao patrão e a patroa lá em cima, a
“nhanhá” e o “nhonhô”. Primeiro não tinha patrão nem patroa, era “nhanhá”
e “nhonhô”. Assim minha mãe dizia. Até na hora que eles decidiam botar
elas no porão pra dormir. Elas dormia trancada no porão, pra não ir embora.
Eduardo – Pra não ir embora?
A – É, pra não ir embora.
E – E a sua mãe trabalhava na lavoura também?
A – Mamãe trabalhava na fazenda, era cozinheira, ajudando a dona Balbina.
E aí o “nhonhô” descia, abria o porão, cá embaixo, no baixo da fazenda,
onde elas dormiam. Elas entravam para o porão, ele fechava a porta e ia
embora. Elas ficavam trancadas no porão. Quando eram três horas ou três e
meia da madrugada, batia o sino, ele descia, abria a porta pra elas saírem
para ir trabalhar. Assim minha mãe contava. Isso foi nos velhos tempos, né,
naqueles tempos...
E – E quando veio a lei Áurea e a liberdade?
A – Ah, bom, aí...
E - Ela continuou lá, ou saiu?
A – Não, aí saiu. Aí a minha mãe mais meu pai saíram da fazenda, quando
teve a liberdade, né, foi aonde eu fui nascido lá em Ubá, que eles foram pra
lá, venderam a fazenda aqui, compraram lá e levaram o meu pai e a minha
mãe.
E – Ah, mas os mesmos...?
A – É, os mesmos donos.
E - Mais aí já deixaram de ser Nhonhô e Nhanhá.
A - Já deixaram de ser então os escravos, como se dizia.
101
analfabetos e da história familiar imposta pela escravidão. Um fato de impunha: a
pobreza alegada por ele estava na raiz da separação do irmão, entregue pela mãe
para adoção. Contudo, será que a mãe de fato não tinha vivido como escrava? As
lembranças dela, transmitidas ao seu filho Altivo, seria a de outrem, quem sabe sua
própria mãe? Tentamos esclarecer a divergência mediante pesquisa cartorial, mas
não conseguimos localizar nenhuma referência às datas de nascimento, casamento
ou falecimento dos pais dos depoentes nos livros paroquiais, então responsáveis
por este tipo de registro. A certidão de nascimento do sr. José não faz menção às
datas de nascimento dos pais. A do senhor Altivo não foi ainda localizada, pois seu
nascimento foi registrado em Além Paraíba.
Conversei abertamente o assunto com o senhor Altivo e sua filha Maura,
sobre a diferença de pontos de vista nos depoimentos, solicitando-lhes ajuda para o
cálculo aproximado da idade de falecimento de Maria Helena da Silva. Na
oportunidade, o senhor. Altivo acrescentou a informação de que a fazenda onde a
mãe trabalhou como escrava chama-se Piedade, pertencente ao senhor Brüguer
Neves, possivelmente avô do senhor Alaor Brüguer Neves, também entrevistado.
Perguntada sobre a idade que ela, Maura, tinha quando a avô faleceu, disse ter
provavelmente 12 anos. Ou seja, a avó teria falecido por volta do ano de 1957.
Quanto à idade, a avó teria mais de 85 anos na ocasião. Fazendo as contas chega-
se ao ano de 1872 como data de nascimento da avó. Ou seja, Maria Helena da
Silva seria nascida de Ventre Livre e teria 16 anos quando a escravidão foi abolida.
Admitimos, contudo, em favor do depoimento do senhor José, a hipótese de
que estávamos raciocinando com base em datas imprecisas. Procuramos localizar
certidões de nascimento, casamento ou falecimento nos cartórios de Sumidouro e
Além Paraíba. Finalmente, conseguimos no Cartório do 1º. Ofício de Justiça da
Comarca de Sumidouro a certidão de casamento dos pais dos senhores José e
Altivo da Silva. Consta na certidão lavrada aos 03 de abril de 2008, que Jovito Jose
da Silva, brazileiro, solteiro, lavrador com 35 annos de idade filho natural de
Ephygenia de tal e Maria Helena, brazileira, de serviços domésticos com 18 annos
de idade filha natural de Helena Maria da Conceição já fallecida, casaram-se aos 21
de fevereiro de 1904, conforme registro do Cartório de Paz de Villa de Sumidouro,
Comarca de Nova Friburgo.
Então constatamos, pelas datas, que Maria Helena da Silva tinha apenas
dois anos de idade quando a escravidão foi abolida. Provavelmente as lembranças
dela, transmitidas ao seu filho Altivo, seriam as de sua mãe, Helena Maria da
Conceição, já falecida em 1904, como consta no mesmo documento cartorial.
Mas como entender esta assunção das memórias da mãe por Maria Helena
da Silva? Uma possibilidade é a de que para ela o fim do cativeiro não implicou o
102
uma melhora na sorte dos recém libertos, a par da permanência da atitude dos
fazendeiros para com os trabalhadores. Trata-se de uma situação comum, como
demonstra o estudo de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos, acima citado, ao faz
referência à continuidade da experiência de privações e injustiças vivenciada pelos
ex-escravos nas áreas cafeeiras do Rio de Janeiro e de Minas gerais, no Vale do
Paraíba40.
Quem eram os maiores fazendeiros em Sumidouro? Nesta época, contou-me
o senhor Antonio Moura, havia a família Mendes, da fazenda São Lourenço, com
lavoura de café e criação de gado leiteiro.41 O registro fotográfico da fazenda
mostra as senzalas que ficavam no porão da casa grande (Anexo 2). Havia também
os da família Melo, donos da fazenda Boa Mente, em São Caetano. Outros
proprietários importantes eram os membros da família Wermelinger, descendentes
de Xavier Wermelinger que, com outros colonos suíços, abandonara o projeto de
colonização oficial de Nova Friburgo para explorar as terras conseguidas do Príncipe
Regente em 1821 na região de Cantagalo – numa vasta área atualmente
compreendida nos limites dos municípios de Carmo, Duas Barras e Sumidouro –
para plantar café com o braço de trabalho escravo. Praticavam a escravidão como
seus contemporâneos brasileiros. Nas memórias de von Tschdi (1980), aparece o
nome de Jakob van Erven, administrador de nada menos 11 fazendas do Barão de
Nova Friburgo, sendo co-proprietário de algumas delas. Ora, o Antonio Clemente
Pinto, Barão de Nova Friburgo era conhecido como um dos homens mais ricos do
império graças à especulações bem sucedidas na compra e venda de escravos e
outros negócios.
Outro grande proprietário, sem dúvida o mais ilustre de todos em
Sumidouro, era José de Aquino Pinheiro, Barão de Aquino. Filho do Barão e
Baronsea do Paquequer, respectivamente Tenente-Coronel Joaquim Luiz Pinheiro e
Querenciana Maria de Souza Pinheiro, nasceu em Duas Barras a 7 de março 1837
na Fazenda do Ribeirão (atual Duas Barras). Foi o maior produtor e escoador de
café de Sumidouro. Foi delegado de polícia do Carmo, vereador, presidente de
Intendência e Juiz de Paz em Sumidouro, benfeitor da Santa Casa de Misericórdia e
membro da irmandade dos Passos de Juiz de Fora, faleceu a 20 de agosto de
192142.
40
Ouvi de um zelador de uma igreja em Diamantina a seguinte frase: “Eles (os fazandeiros) tiraram a
escravidão das contas mas não da cabeça”.
41
Conversa informal com Antonio Moura, realizada em Sumidouro no dia 30 de junho de 2006.
42
Prefeitura Municipal de Sumidouro. Memorial do Barão de Aquino inaugurado no dia 7 de junho de
2002.
103
E – E as pessoas que trabalhavam na lavoura, como é que era a situação?
A – Ah, isso a minha mãe contava que de madrugada batia o sino, o sino
que tinha na varanda da fazenda, minha mãe contava isso, batia o sino,
quando amanhecia o dia a já tava negrada tudo em volta do terreiro,
esperando o cafezinho, esperando o café com a enxada na mão e tomando
café com outra, caneca de folha. Já saía pra turma já com arzinho ainda de
escuro.
E – É, três horas tá escuro, né.
A – É. E dali, meu velho, só saía de lá de noite, quando o administrador, né,
o tomador de conta falava “tá na hora”. Ali ia s’embora. Quer dizer, pegava
de noite e largava de noite.
E – Quer dizer então quando escurecia... que voltava
A – É, que voltava pra fazenda. Isso era ordem dos patrão, né. Quando o
patrão dá uma ordem, tem que ser executada, não tem?
E – Mas tinha gente que não queria obedecer?
A – Não, mas naquele tempo não tinha esse negócio de não querer não,
tinha quer ir mesmo. É igual a boi na canga. Botou a canga, botou a brota,
mete o ferrão no suvaco, tem que ir.
E – A turma seguia o capataz... até o lugar onde iam fazer o trabalho?
A – Isso. Exatamente.
E – E era o que, era café?
A – Era café, era tudo naquela época, era café, milho, arroz, feijão, enfim, a
fazenda tinha tudo.
E – A turma dos escravos trabalhava em todas as lavouras?
A – Em tudo.
104
A escravidão é o fundo comum dos “casos” de uma cidade de belas lendas e
histórias romanesca, das verdes lavouras de café, de milho e de cana-de-açúcar
que abarrotavam os vagões da composição ferroviária.
Casos como o da nomeação do filho da negrinha Maria das Dores, ignorante,
semi-analfabeta, criada por Dona Theodomira na Fazenda Conceição; do preto
velho Conrado, da Fazenda Boa Vista, contado por Altivo, sempre alegre, simpático
e falador 43
; o do preto Manoel Panela, da Fazenda Boa Fé, muito ignorante, mal
sabendo escrever seu nome mas, mesmo assim, era metido a poeta; o de Pedro
Grande da Fazenda Conceição que, nos idos de 1885, viu balançar ao vento da
manhã o corpo inanimado de um negro escravo, ainda moço, enforcado por uma
corda de linho.
O acesso à documentação pessoal do Barão de Aquino é um dos achados da
pesquisa de campo realizada durante o ano de 2006. Uma leitura inicial dos livros
de fazendas manuscritos pelo Barão de Aquino permite inferir a relativa
estabilidade das relações de trabalho nas fazendas, o que parece diferenciar
Sumidouro no contexto do fim do escravismo no Vale do Paraíba fluminense,
principalmente na maior região produtora (Vieira, 2001). Mas as idéias devem
corresponder de algum modo às relações sociais vigentes na agricultura no período
decorrido entre o escravismo e a exploração do trabalho livre até os nossos dias.
Descobrir como se dá esta homologia é a tarefa do historiador. Santos e Mendonça
(1987) afirmam que a parceria foi a forma predominantemente adotada pelos
fazendeiros para enfrentar o problema do fim do trabalho escravo perceptível uma
década antes da abolição.
É interessante a seguinte passagem do depoimento do senhor Altivo:
A –...Aí a minha mãe mais meu pai saíram da fazenda, quando teve a
liberdade, né, foi aonde eu fui nascido lá em Ubá, que eles foram pra lá,
venderam a fazenda aqui, compraram lá e levaram o meu pai e a minha
mãe.
E – Ah, mas os mesmos...?
A – É, os mesmos donos.
E - Mais aí já deixaram de ser Nhonhô e Nhanhá.
A - Já deixaram de ser então os escravos, como se dizia.
A propósito, vale transcrever a notícia das comemorações do primeiro
aniversário da abolição registrada na imprensa44 da época, comemorações que
envolveram mais de 2.000 libertos, com destaque para o caráter ordeiro das
43
Trata-se de Altivo da Silva, depoente citado.
44
O Carmense, Villa do Carmo (Província do Rio de Janeiro), no. 2, de 16 de maio de 1889: Notícias.
Festejos realisados no 1º. Anno do aniversario da gloriosa lei no. 3.353. Arquivo pessoal de Mônica
Pinheiro.
105
manifestações. Os festejos – o terço á tarde, levando em procissão imagens de São
Benedicto e Nossa Senhora do Rosário; a visita, com música e muitos fogos do ar,
ás pessoas gradas d’esta villa, o baile – foram presididos pelo Barão de Aquino na
qualidade de delegado de polícia recém nomeado45. Então aparece uma referência
importante para entender as relações sociais instituídas com a abolição do trabalho
escravo:
J - Peguei a rondar, trabalhei um bocado pra um, ali não se achava bem,
mudava pra outro, ia assim. Eu rondei bastante. Bastante, mas bastante
mesmo...Olha aqui, quer ver? ... (pausa) Eu, em 1930, saí de uma
propriedade aqui, chamava...o patrão (era) um homem chamado José
Pequeno.
45
Importante registrar que o delegado despachava de sua residência na Fazenda Santa Mônica; sua
atuação como delegado se dá num contexto marcado por roubo de café, praticado por libertos a mando
de terceiros, um dos quais, Agostinho da Rocha, era citado, em O Carmense de 16 de maio de 1889,
como proprietário de uma casa de negócios.
46
Conversa mantida em Sumidouro no dia 14 de setembro de 2007.
106
A – Campeiro. Eu era tirador de leite, tirei muito leite pra fazendeiros.
Depois os fazendeiros começou a transportar boi pra fora, então mandava a
gente levar. Levei muito boi lá em São Gonçalo. Tempo em que o boi
andava a pé. Hoje não!
47
Aquele que faz canjerê (2); feiticeiro, mandingueiro.
107
“A maioria, no entanto, encontro serviço nas mesmas fazendas onde
continuaram a viver nas mesmas senzalas (agora livre dos cadeados que os
trancavam a noite) e passaram a trabalhar lado a lado com colonos
estrangeiros que nos últimos anos tinham entrado em massa no Brasil. Os
libertos sofriam freqüentemente dupla discriminação, por parte dos patrões
e de trabalhadores estrangeiros”.
José – Não. A minha situação de família? Não, era pobrezinho, meu nego.
- Morava nuns trecho, casa de colono para aqui, casa de colono pra acolá,
tudo era colono, compreende o senhor?
108
J –... os proprietário eram muito ruim. Naquele tempo não tinha regalia não,
meu nego. Naquele tempo o pobre era fraco de posse e passava muito mal.
Dona Rosa Noguchi diz que ela e sua família trabalhavam como meeiros de
um outro proprietário de origem japonesa, o senhor Kaçuga, em Dona Maria. Aos
10 anos já trabalhava na roça. A roupa era manufaturada de saco de adubo:
É a roupa a gente fazia, minha mãe fazia, a gente fazia, os vizinho fazia... a
família Kitano....a esposa dele tinha uma maquinazinha, a roupa era de
saco, né? Só de sair que não era de saco, tudo era de saco tingido, pelo
menos nós era pobre, então a gente usava muito saco que vinha com
adubo...
O infortúnio podia ser também o caminho que conduzia muitas pessoas para
a mesma situação de pobreza e de dependência. Foi o caso de Maria José Storani
Gonçalves, por conta do falecimento do pai e da inexperiência da mãe em cuidar
dos negócios deixados pelo marido. Ela afirma:
- ....que com dez anos eu comecei a pegar duro, enfrentar a vida, a vida!
Eduardo – Com dez anos de idade não deu, a infância acabou.
MJ – Acabou. Parou no segundo ano primário.
Dedicou-se inicialmente a lavar roupa e mais tarde aprendeu o ofício de
costureira.
As razões mais profundas da situação de pobreza têm a ver com a forma de
remuneração do trabalho prestado aos poucos fazendeiros com capitais investidos
na cafeicultura. A forma de trabalho predominante então era o colonato. Colono era
o trabalhador permanente com o contrato de trabalho de cuidar de 5 a 10.000 pés
de café, em troca de uma remuneração variável, o direito à moradia e de uma área
para subsistência no interior da fazenda.
109
Uma das grandes fazendas, ao lado daquelas de propriedade das famílias
Wermelinger e Pinheiro, era a do Encanto, de Abel de Jesus Gonçalves, herdada
pelo filho Geraldo que se casou depois com Dona Maria Storani. Nela trabalhavam
40 famílias que, além de cuidar de café e de cana de açúcar, plantavam milho no
meio daquelas lavouras; o milho era trocado por fubá.
MJ: Ele trazia, por exemplo, uma quarta e milho e levava uma quarta de
fubá e a quarta de milho dava quarta e meia de fubá, então não cobrava,
trocava.
E: Ficava elas por elas, né.
MJ: Elas por elas.
E: Ham... ham...
E o fubá era usado...
MJ: Na fazenda.
E: Na fazenda, não vendia não.
MJ: Não. Pra cozinhar pra empregado, porque a fazenda, dois dias na
semana, os colonos dava o dia de serviço a fazenda. Eu tinha que dá comida
pra quarenta pessoas, usava o fubá em casa.
E: Ah!
MJ: E pra dá porco também, né, que eu tinha muito porco.
E: Tinha criação de porco, também?
MJ: Pensão. Engordava uma ceva enorme com muitos...
110
...e houve a queda do ciclo do café ...de repente foi aquela quebra geral e
ele quebrou nessa queda do café (...) Não vendia nada, foi uma época
terrível aqui em Sumidouro.
Eduardo – E o que aconteceu a partir daí?
Alaor – Daí ele vendeu a fazenda (...) comprou um sítio grande na Serra do
Pamparrão, mas ficou praticamente reduzido só a uma vida modesta...
MJ: Sabe o que aconteceu? Aqui! Sabe o que aconteceu? Todos os colonos
foram embora, ia viver de quê? A terra não era dele, comprar boi não podia
porque não tinha onde botar. Foram embora pro Rio, acabou.
48
Entrevista não gravada concedida a Eduardo Stotz em 23 de março de 2006. De acordo com o sr.
Manoel Antonio, a parceria desenvolve-se a partir de 1950, com o desaparecimento do café. O antigo
colono toma conta da mesma gleba, recebe parte dos insumos e entrega 25% da produção de café e
50% em outras culturas (milho, arroz de sequeiro, mandioca para farinha). Para ele, o parceiro somente
aparece na estatística na condição de produtor se ele for independente, ou seja, se tem o negócio, se ele
for o que vende, se ele recebe em vez de pagar.
111
José – A gente trabalhava, vendia mercadoria, a metade porque o patrão
dava alimento, a metade do capital era do patrão e o capital era da gente
que trabalhava, era tudo dividido direitinho.
Eduardo – Era uma espécie de meação, né? Meeiro...
J - E o patrão ainda emprestava a condição, o patrão ainda emprestava
dinheiro pro fulano, jogava aquelas carga lá na cidade e o dinheiro vinha
limpo: o capital que dava dividia no meio.
E - E vendia lá em Friburgo.
J - Vendia em Friburgo.
E - E quem ia vender?
J - Era a gente que era mesmo dono da mercadoria.
E - O senhor levava, vendida, dava a metade pro patrão.
J - É sim senhor.
E - Então era uma espécie de meeiro?
J - É sim senhor.
49
Ser campeiro era ser assalariado, ganhar 30 a 40 mil réis, com as tarefas de tirar leite das vacas,
ferrar cavalos, tocar boiada. A mais pesada era, de fato, a ocupação de tirar leite das 04:00 às 07:00
horas da manhã, num volume de 100 a 200 litros – o que fez diariamente durante 32 anos. Vez por
outra, tocava boiada, como a que fez de Sumidouro a São Gonçalo na mesma época. Saiu no domingo,
chegou no final da semana, sexta-feira. Dormiu na estrada, alimentando-se de pão com lingüiça. Ao
voltar para o ponto de partida, o dono da boiada perguntou apenas: algum boi caiu?
112
registramos numa excursão em busca das nascentes do rio Paquequer, a seguinte
lápide:
50
Entrevista não gravada concedida a Eduardo Stotz em 30 de junho de 2006. Antonio de Moura
corroborou o ponto de vista de Maria Storani de que decisão de queimar o café, tomada por Getulio
Vargas, apesar de valorizar o café, atrapalhou o país porque levou os colonos embora para as cidades.
113
defesa da regulamentação da jornada de 8 horas por Miguel Gaspar, seu pai, então
proprietário da Fazenda Santa Cecília, nos contratos com trabalhadores pagos por
diária ou semana, poderia ter sido o motivo das acusações de ser um ‘comunista’
lançadas contra o pai, por ocasião do golpe militar de 1964.
Nos anos subseqüentes, a luta social refluiu das formas coletivas para os
conflitos individuais relatados pelos depoentes e também registrados nas demandas
por direitos na Vara Única de Sumidouro.
Transcrevemos aqui trechos do relatório final de pesquisa de Gabriel
Sanches Borges:
...então muitas vezes o caso de uma porteira, sai uma briga, sai até morte;
saía até morte naquele tempo. Um pedaço de terra que não valia nada, um
tanto de cerca, uma briga, uma água que desviava o sujeito dava pra tirar
uma, uma polegada... a pessoa ia lá e fazia uma ‘banquetazinha’. Então daí
surgia brigas.
114
também alcançou Sumidouro, um dos milhares de pequenos municípios desse
imenso país, como um personagem tranqüilo, socialmente aceito mas avesso à
ordem opressiva51. Reconhecido na cidade por sua sociabilidade (foi leiloeiro em
festas), desenvolveu uma forma peculiar de resistência devido ao gosto por contar
histórias. Sua vida é um exemplo de que memorizar é desenvolver uma forma
peculiar de luta contra o esquecimento da opressão – que ainda persiste.
51
Somente nos anos 1960 Altivo da Silva passou à condição de empregado da Prefeitura na qualidade
de trabalhador da limpeza pública (vassouração) e na cozinha para os trabalhadores que construíam
estradas. Aposentou 13 anos depois nesta condição. Apenas em 1973 conseguiu juntar recursos
financeiros suficientes para comprar o terreno de 14 x 25 metros e edificar a casa onde reside com sua
esposa, Isabel, e seus filhos Maura e Altair.
115
INTERPRETAÇÃO DOS ACHADOS DA PESQUISA
116
lutar contra a opressão: as metamorfoses do campesinato em Sumidouro),
de repetir a proeza de extrair, das 4 às 7 horas da manhã, entre 100 e 200 litros de
leite diariamente, ao longo de 32 anos52. Pensemos no trabalho de um campeiro em
nossos dias, dedicado a vigiar a ordenha mecânica das vacas.
No caso da lavoura, o depoimento do senhor Christiano (Ver A consciência
dos limites da agricultura ‘moderna’ e as razões de sua persistência) deixa
patente o esforço físico acarretado pelo sistema agrícola ‘tradicional’.
Admitir o desgaste físico como categoria implícita nas narrativas significa
conferir um sentido ao esforço despendido que, geralmente afastado com um gesto
de mão pelos camponeses (isso “faz parte”, portanto “não me queixo”), vincula
atos a expectativas, estas a sonhos. Uma colheita, não apenas à sobrevivência,
mas igualmente à aquisição de uma motocicleta - desejo realizado pela maioria dos
jovens agricultores com o resultado de seu trabalho, infelizmente marcado por
muitas conseqüências trágicas (mortes, mutilações).
Em outros termos, no cálculo camponês, o sistema da agricultura
convencional precisa dar conta das necessidades da reprodução do grupo social.
Mas o futuro sob as condições da agricultura convencional tampouco lhe
parece promissor, na medida em que constata o aumento das despesas com
agrotóxicos sem resolver o problema das pragas e doenças, como assinalam Julia,
Irani e João Batista em seus depoimentos (Ver A consciência dos limites da
agricultura ‘moderna’ e as razões de sua persistência).
Como explicar o aparente paradoxo da persistência de elementos da
agricultura tradicional e o reconhecimento dos limites da agricultura convencional,
do ponto de vista econômico, sanitário e ambiental, com a manutenção dessa
última? Para entender – e resolver – esse paradoxo, temos de analisá-lo como um
processo real, o que implica situar as contradições do processo de produção e de
trabalho na agricultura. Uma vez que nosso estudo volta-se para a problemática da
saúde e do ambiente dos camponeses de Sumidouro, é por este aspecto que
devemos começar.
52
Conversa com Altivo da Silva em 11/02/2006.
117
QUADRO 11
QUADRO ANALÍTICO DA PERCEPÇÃO DO USO DE AGROTÓXICOS
118
religiosidade, na qual a individualização dos riscos como probabilidade propugnada
pelos técnicos é descartada pelos expostos ao risco porque a sua lógica é a da
exclusão de si como possível alvo desgraça.
A construção do saber sobre o uso dos agrotóxicos é uma reconstrução do
saber do outro (técnico, vendedor) à luz do seu saber anterior, numa clara
expressão da “ancoragem” das informações num sistema de crenças prévio, a
requerer um estudo das “representações sociais” Moscovici (1978).
Essa construção implica a adaptação do trabalho ao risco (Dejours, 1987;
Douglas & Wildavsky, 1982), ou seja, a admissão do risco e a avaliação de
situações de perigo.
A adaptação ao risco no processo de trabalho agrícola, contudo, somente é
eficaz sob o pressuposto do comportamento coletivo, “compartilhado pelos
agricultores da região, cada um dos atores sociais encontrando no seu vizinho um
espelho de confirmação.” (53) A própria memória social constitui um repertório de
lembranças, mas também de esquecimentos ou de silêncios convenientes, a
exemplo dos casos de comprovação do risco que inviabilizariam para o grupo o uso
de agrotóxicos.
Ressaltemos, na caracterização feita pela autora, a forma de controle social
direta exercida pelo grupo sobre os indivíduos identificada também como um
atributo dos camponeses da Romênia por Moscovici. Retomemos aqui a passagem
do tópico Marco Teórico (Ver A identidade social do camponês no sistema
capitalista) que explicita este sentido:
119
Cultura do bairro significa principalmente falar em parentesco, compadrio e
vizinhança, a rede das relações inter-pessoais que constituem a forma do grupo
exercer tanto o controle social sobre as atitudes e os comportamentos individuais
como a circulação de informações a respeito das regras de uso dos agrotóxicos
dentro do saber empírico dos camponeses.
A propósito do bairro rural como unidade territorial camponesa ou espaço de
sociabilidade e de identidade sociais do campesinato, é interessante o destaque
dado pelo IBGE ao laço de parentesco na definição do pessoal ocupado. Em
Sumidouro, 4.460 pessoas têm laço de parentesco com o produtor, enquanto
apenas 934 foram classificadas como pessoas sem laço de parentesco com o
produtor (IBGE, 2004).
Bombardi (2004) refere-se à troca de experiências entre as famílias sobre
cultivos de frutas que permitiam auferir maior renda da terra:
“...é lembrar que o perigo existe, está presente, mas isto tornaria as tarefas
mais difíceis, carregadas de ansiedade” (54)
120
“A perspectiva da lucratividade não só leva a desconsiderar esses riscos,
mas também a aumentá-los objetivamente com o sobre-uso de agrotóxicos
e a falta de cuidados com seu manejo.” (55)
121
forma concreta no caso da couve-flor “boa de neve”, plantada no inverno. Como
esta variedade tem um ciclo de 65 dias, permite ao camponês a obtenção de duas
safras:
122
“renda de monopólio”, traz uma contribuição para o entendimento do processo
econômico aqui sumariamente apresentado:
53
Anotações de conversa realizada no Rio de Janeiro, em 12 de março de 2006.
54
A depender “das condições de produção, da divisão do trabalho familiar, do tamanho da família e da
distribuição de sexo e idade”, observa Roberto José Moreira (1981, 53). Um aspecto importante que
pode ser incluído nas condições de produção é o grau de endividamento sobre o patrimônio.
123
A questão da escolarização na percepção do risco à saúde
55
Projeto da Editora Ática e a Editora Scipione, com o apoio da Fundação Victor Civita.
124
últimos oito anos provavelmente houve uma alteração positiva no indicador da
escolaridade em Sumidouro mas para os trabalhadores adultos a situação pode ter
se mantido pois as escolas rurais onde, à noite, funcionava o Programa Educação
de Jovens e Adultos, foram fechadas e todo o ensino se concentra nas escolas da
sede do município.
Apesar da instrução não passar necessariamente pelo ensino formal, pois o
termo instrução significa “conhecimento adquirido”, equivalente aos de cultura,
saber e erudição, o uso consagrado de instrução é o de escolaridade. Veja-se, por
exemplo, a seguinte passagem da Nota Técnica da Comissão Técnica de
Agrotóxicos (CTA, 2008, 5):
125
Exatamente por causa disso é que se faz necessário uma adequação cultural
da linguagem técnica, como apontam Peres e Rozemberg (2003) a propósito da
discrepância de significados contidos e atribuídos nos pictogramas e rótulos de
produtos agrotóxicos.
A re-interpretação da linguagem técnica deixa entrever uma motivação mais
complexa para o uso incorreto dos agrotóxicos. Assim, se a construção social do
risco envolve informação a respeito das recomendações no uso dos agrotóxicos - da
dosagem, passando pela avaliação das condições climáticas (temperatura, vento,
etc.) da aplicação até o uso de equipamentos de proteção individual – não se limita
a ela.
Destacamos neste relatório a importância assumida pela prática econômica,
principalmente a avaliação entre custos do insumo e preço esperado pela venda do
produto na época do ano em que se espera aumentar a renda acima do nível de
subsistência. Ultrapassar a dosagem recomendada e misturar produtos são
medidas equivocadas que se aplicam, muitas vezes conscientemente, para evitar a
perda de uma colheita que pode equivaler à fome ou a alienação da propriedade.
Outro aspecto a ser destacado quando pensamos o risco como uma
construção social é o do papel dos vendedores de insumos (fertilizantes,
agrotóxicos, etc.), dos comerciantes e dos técnicos de extensão rural. Na realidade
eles atuam como educadores não formais do agricultor, no sentido de que ensinam
como manusear os produtos.
Limitamo-nos aqui a discutir o papel dos técnicos em agronomia e
veterinária. Um dos achados da pesquisa – presente nos depoimentos e em
documentos (Ver A indução do processo de modernização e A agricultura
como prática econômica e o uso de agrotóxicos) consiste no ensino das
técnicas de manejo de agrotóxicos para controlar pragas e doenças, feito pelos
técnicos em agropecuária do escritório local da Emater. O processo envolveu
inclusive a adoção de demonstração (método, unidade demonstrativa), informação
corroborada pelos depoentes. Os técnicos escolhiam um grupo de agricultores que
eles consideravam propagadores de opinião em seu meio, com base no efeito-
demonstração de uma colheita.
A relação educativa entre técnicos e os camponeses não tem sido ressaltada
nos estudos da área da saúde e mesmo os da área de ciências sociais enfatizam
mais o caráter autoritário e tecnicista da atuação dos extensionistas rurais.
Quando analisamos o discurso de Rodrigo e de Adilson (Ver A indução do
processo de modernização) verificamos as dificuldades do processo educativo,
uma vez que implica uma relação entre um saber científico e um saber empírico
sem as necessárias correspondências.
126
Pode-se afirmar que ocorre na agricultura o problema do caráter
fragmentado da apropriação do conhecimento constatado por Bolstanski (1984) na
relação entre pacientes e médicos.
Em outros termos, quando pensamos no ‘pacote’ da Revolução Verde em
sua complexidade (da qual a análise do solo é um indicador) verificamos que há
problemas na transferência do saber científico mediado pelos vendedores ou pelos
técnicos extensionistas para os agricultores. Ainda que a assistência técnica
pudesse ser mais abrangente, não poderia tornar viável a agricultura como prática
econômica de milhares de pequenos proprietários, uma prática subordinada à lógica
do mercado capitalista na qual o preço de venda do produto define as exigências
para o ciclo de maturação e de colheita da plantação, bem como para evitar as
intempéries do clima. A apropriação empírica de partes do ‘pacote’ segue a lógica
do camponês vender rapidamente para assegurar as oportunidades de preço
elevado, um imediatismo que sacrifica a orientação científico-técnica para o manejo
agrícola dentro do ‘paradigma’ da Revolução Verde. Mas ao agirem desta forma,
são responsabilizados pelos impactos que a manipulação inadequada do ‘pacote’
acarreta para o manejo agrícola, a saúde e o ambiente.
Aqui chegamos à questão da situação-limite da agricultura ‘moderna’ ou
‘convencional’ quando se considera a prática camponesa: ela impede a autonomia
do agricultor, tanto do ponto de vista econômico como do manejo agrícola, é,
portanto, expropriadora de saber e de poder, ao mesmo tempo em que o
culpabiliza pelos seus insucessos. A culpabilização está fortemente associada a uma
prática que dissemina a informação sem considerar o nível sócio-cultural dos
camponeses e, pior ainda, ignorando o seu saber, como destacam Peres e
Rosemberg (2003).
127
A escassa perspectiva de mudança é também referida por um camponês
entrevistado por José Grabois e equipe de pesquisa (Grabois et al, 2005) na
localidade de Centenário, em Nova Friburgo:
De fato, não parece existir alternativa imediata a este sistema agrícola, pelo
menos quando se considera a situação dos camponeses empobrecidos, com pouca
terra e sem recursos monetários para tocar a lavoura com as atuais exigências de
capital, a saber, moto-bomba, aspersores de água, tratores, material de
embalagem, fertilizantes e agrotóxicos.
Esse depoimento para dar razão para autores que, no campo da Saúde
Pública, advogam a defesa do sistema agrícola convencional uma vez que
desempenham a função de compensar o baixo nível de desenvolvimento técnico-
científico na agricultura brasileira:
128
Esta perspectiva de análise corresponde à subsunção da pequena produção
ao chamado agronegócio, confundindo formas de organização, lógicas de
funcionamento e valores distintos.
Um segundo aspecto diz respeito à admissão da injustiça sócio-ambiental
como estrutural a este sistema o que, em princípio é o reconhecimento da
desigualdade inerente ao modo de produção capitalista. O raciocínio economicista
de que há custos, inclusive de saúde, a serem assumidos com o uso de agrotóxicos
para a obtenção de benefícios econômicos leva, porém, à inferência de uma
inevitável disposição a aceitar os riscos potenciais daquele uso.
Evidentemente o argumento implica, de um lado, a informação dos riscos
potenciais do agrotóxico, de responsabilidade da indústria e do comércio, e, de
outro, o acesso a esta informação pelo “produtor rural”. Neste modelo o agricultor
age como um sujeito econômico racional. Contudo, ao admitir diferenças sócio-
culturais na percepção do risco o autor introduz explicações externas à
racionalidade econômica. Mais ainda, na medida em que a pobreza geralmente
implica baixo nível de instrução, a própria capacidade de assumir risco fica limitada
por este “nível de instrução inadequado para o desempenho da função” de preparar
e aplicar agrotóxicos na lavoura (Idem, 147). É o que resulta sua quando aponta o
uso de agrotóxicos pelo pequeno agricultor como garantia da sobrevivência com a
admissão de possíveis prejuízos à saúde e ao ambiente.
129
A crítica ao “determinismo do discurso industrial” que permeia a sociedade e
impregna a fala dos trabalhadores rurais deve ampliar-se, segundo os autores, ao
próprio “modelo agrícola da monocultura exportadora, sustentado pelo uso abusivo
de agrotóxicos e outros insumos químicos” e aos argumentos sobre a alegada
produtividade sistêmica (Idem, 33)
Se há correntes de pensamento que supõe os agricultores como “homens de
negócio” que tomam decisões baseadas em informações recebidas do mercado,
principalmente custos e preços (Müller, 1996) e, portanto, assumem a agricultura
como “agronegócio”, outras, colocadas no lado oposto do espectro, supõem a
agricultura familiar como uma economia camponesa. Afirmam a diferenciação da
chamada agricultura familiar ao apontar a existência de um grau de autonomia no
interior das relações capitalistas dominantes e ao destacar a convivência de “lógicas
da gestão técnica” baseadas no mercado e na reprodução do grupo familiar
(Silveira, 1997; Lamarche, 1997, apud Almeida e Ferreira, 2007).
Parece-nos, contudo, indispensável integrar na análise a dimensão agrária,
de modo a contemplar a heterogeneidade da condição camponesa. A propriedade
do principal meio de produção (a terra) é elemento fundamental para definir o grau
de autonomia frente ao mercado. Neste sentido é importante lembrar a observação
de Fátima Moura, do escritório local da EMATER a respeito da relação entre
disponibilidade de terra e subsistência, assinalada no tópico As transformações
na agricultura em Sumidouro (ver nota 10).
130
AGAPAN. Valeria acrescentar a participação dos engenheiros agrônomos na luta
corporativa pela regulamentação do receituário agronômico (Alves, 2002) que
acabou por implicar uma parte deles na questão da “sustentabilidade ambiental” do
tipo de agricultura praticado.
Os agricultores e ex-agricultores e técnicos entrevistados na nossa pesquisa
têm consciência, em grau e sistematicidade variável, dos problemas acarretados
pelo uso de agrotóxicos na lavoura. Eis o que nos disse Adilson da Rocha Charles,
técnico da Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente:
131
(Ver Da agricultura ‘tradicional’ à ‘moderna’), como sobre perigos e danos
devido ao uso de agrotóxicos na saúde humana e no ambiente, particularmente nas
águas de córregos e rios (Ver Impacto do uso de agrotóxicos sobre o
ambiente a saúde dos trabalhadores).
Mas se trata de uma consciência social “dividida”: de um lado, as técnicas
estão associadas aos usos da terra para plantar e criar gado com o intuito de
garantir a reprodução do grupo familiar. É o que um camponês entrevistado por
Carlos Rodrigues Brandão denominou de “afeto da terra”. O afeto, o enlace entre o
lavrador e a terra tem uma dimensão “civilizatória”, de tornar culto o inculto, quer
dizer, de transformar a floresta em campo e o campo em terra de lavoura, num
processo de domesticação do mundo que implica o “prazer fecundante”, como
afirma Brandão (1999, 64).
É o que se constata no depoimento de dona Julita, citado no item Da
agricultura ‘tradicional’ à ‘moderna’:
Eu sei que meu pai desmatou uma floresta e eu lembro de eu fazer muita
arte. Depois ficou aqueles toco tudo assim, né? Aí eu fui pra lá, depois que
meu pai queimou a ma...o mato, eu fui pra lá...
132
Claro que a gente via nessa região, muito desmatamento e queimada
abrindo caminho para as pastagens e agricultura. A floresta era forte e
perspicaz . Bastava virarmos as costas e ela ressurgia forte e fagueira. Mas
essa briga entre o homem e a natureza estava em curso e não havia,
naquela época, quem intermediasse essa briga. As famílias precisavam
manter limpos os espaços outrora desbravados pelos nossos avós.
Era nossa missão, habitar essas áreas, plantar e criar animais. E essa
guerra não era muito desigual. Não se usava moto-serra e não era qualquer
um que possuía trator. A luta se dava de forma limpa, no corpo-a-corpo.
O que eu não consigo entender é quando vejo, ainda hoje, a continuação do
desmatamento ignorando toda essa preocupação atual como o meio
ambiente, e que nos dá a impressão de que não estamos conseguindo pôr
em prática os discursos e a intenção declarada de proteger a nossa Mata
Atlântica. (Fernandes, 2004)
133
CONSIDERAÇÕES FINAIS E PERSPECTIVAS
134
perda do controle sobre as sementes até especialização da produção para mercados
organizados.
O ponto de partida da transição para um sistema agrícola orgânico de base
agro-ecológica é a recuperação da base da agricultura, o solo. Sabemos que o solo,
em decorrência de décadas de uso e sobre-uso de fertilizantes químicos e
agrotóxicos, encontra-se desequilibrado, sujeito a insetos, fungos e plantas
concorrentes. Recuperar o potencial do solo em termos da microbiologia e a
reposição dos nutrientes é trabalho lento, de vários anos.
A maioria dos camponeses não dispõe de recursos financeiros e de
conhecimento suficiente para arcar e assumir esta transição.
Um aspecto importante a ser considerado nessa transição é o da estrutura
agrária, na medida em que implica a convivência entre os dois sistemas e,
portanto, na disposição de terra suficiente e adequada para tal. Não é o que se
observa em Sumidouro e, de resto, na região serrana. Como vimos no Anexo I,
quase 25% dos estabelecimentos agropecuários recenseados no município em 1996
encontrava-se nas classes de até 2 hectares. A sucessão da propriedade encontra
aí um limite. Por isso a epígrafe incluída nestas considerações finais: a frase, fruto
da observação diária dos técnicos da Emater é corroborada nos estudos
monográficos realizados por César Pessôa Côrtes (2005) e Daniela Egger (2006)
que indicam a importância da parceria e não raro, do trabalho assalariado, como
alternativa de sobrevivência dos camponeses em Sumidouro. Outro observador
local, o professor Carlos Tadeu Gomes, citado neste relatório, aponta o fato de que
pequenos proprietários se tornaram comerciantes “atravessando” a produção de
outros que, em busca do menor custo de produção, se especializaram em
folhagens.
Nosso estudo confirma as conclusões da pesquisa de José Grabois em
Campo de Coelho (Nova Friburgo, RJ) na qual se assinala a emergência de
pequenos capitalistas rurais de um lado e a proletarização de parte dos
camponeses de outro (Grabois et al, 2005).
Este contexto cria dificuldades para a superação dos problemas de saúde
decorrentes do uso incorreto dos agrotóxicos que, como vimos não resulta da falta
de consciência dos riscos e da importância de medidas de proteção.
A modificação deste contexto implica, dentre outras transformações, a
adoção de um novo sistema agrícola. Vimos que a ‘revolução verde’ foi um
processo induzido pelo estado, ao se deparar com a necessidade de garantir a
oferta de produtos agrícolas a baixo preço para consumidores urbanos de regiões
metropolitanas. A transição agro-ecológica deve ser, portanto, uma
responsabilidade do Estado, em todos os níveis de governo.
135
A transformação do sistema agrícola vigente não deve ser uma
responsabilidade exclusiva do município, ainda que esta instância de poder possa
assumir, sob a forma de compras governamentais, a sustentação do processo de
mudança: pensamos principalmente na compra de produtos agrícolas (olerícolas,
frutas) de base orgânica e de outros produtos alimentícios a exemplo do mel de
abelhas para a rede de educação e de saúde públicas. Certamente um contrato de
até cinco anos de duração propiciaria aos camponeses a oportunidade, individual e
coletiva, de escolher a transição para uma agricultura orgânica sem o risco de fome
e/ou de perda da propriedade.
Contudo, o poder no nível local é excessivamente dependente dos maiores
produtores e comerciantes, inclusive dos distribuidores locais de agrotóxicos. A
política pública neste nível não alcança os grupos socialmente mais vulneráveis, na
área urbana e, sobretudo, na rural, ou seja, os camponeses pobres. Assim, a
emergência de um novo sistema agrícola depende da intervenção dos governos nos
níveis estadual e federal.
O zoneamento geo-agrário com avaliação dos impactos de mudança
climática, a preservação das matas e dos cursos de água, a implantação de rede de
assistência técnica são algumas das responsabilidades de governo esperadas do
nível estadual.
No nível federal, a formulação, implementação e avaliação da política,
articulada com os sub-níveis nacionais e municipais de governo, precisa equacionar
a política agrícola na perspectiva de resolver a questão agrária ainda pendente. Do
ponto de vista institucional, o caminho da transição agro-ecológica está
formalmente amparado em políticas e segmentos técnicos estruturados, a exemplo
do Programa Nacional de Apoio à Agricultura de Base Ecológica, do Ministério do
Desenvolvimento Agrário e da Embrapa Meio Ambiente (unidade de Jaguariúna)
que articula a Rede de Agroecologia Mantiqueira-Mogiana, envolvendo 39
municípios do leste paulista.
Da mesma forma que no passado, deve-se esperar uma articulação entre a
pesquisa científica e a extensão rural em novas bases. Um dos pressupostos é a
participação direta dos agricultores. É interessante, neste sentido, registrar a
seguinte afirmação constante no documento relativo às linhas de ação, atividades e
metas do Programa Nacional de Apoio à Agricultura de Base Ecológica na página do
Ministério do Desenvolvimento Agrário:
136
estreita relação entre a teoria e a prática, de modo a propiciar a construção
coletiva dos resultados esperados.” (MDA, 2008)
56
Os originais de todo o material serão encaminhados para a Casa de Oswaldo Cruz, unidade técnico-
científica da Fiocruz responsável pela memória institucional.
137
de pesquisa, ensino e cooperação espalhados pelo país, de modo a alterar o rumo
da política pública, abrindo caminho para seu desenvolvimento.
Vamos concluir este relatório da pesquisa a respeito das transformações na
agricultura com a indagação de um dos antigos líderes da Liga Camponesa do
Engenho da Galiléia, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, feita a Robert Linhart
que então o entrevistava:
João da Silva
138
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ordem moral. Anuário Antropológico 87, Editora UnB/Tempo Brasileiro.
WORSTER, Donald, 2003. Transformações da terra: para uma perspectiva
agroecológica na História. Ambiente & Sociedade, v. V, n.2 – vol VI, n. 1: 23 – 44.
153
ANEXOS I a III
154
ANEXO I
Tabela 306 - Número de estabelecimentos por grupos de área total e condição legal das terras
Município = Sumidouro - RJ
Variável = Número de estabelecimentos agropecuários (Unidade)
Ano = 1996
Grupos de área total
155
ANEXO II
http://veja.abril.uol.com.br/numero1/p_044a.html
IDÉIA FÉRTIL
156
o computador eletrônico que vai ser instalado na Escola Superior de Agricultura Luís
de Queirós (Piracicaba—SP) para reunir tôdas as pesquisas já feitas sôbre solos e
adubos. As emprêsas da ANDA têm 3 mil elementos à disposição dos agricultores
para divulgar o uso de adubos e dar assistência técnica. Numa prova de que confia
nos fertilizantes como um bom negócios, a Ultrafértil está investindo 210 milhões
de cruzeiros novos em seus empreendimentos.
157
ANEXO III
Um gole de cachaça
A vida dele era trabalhar e beber, porque a esposa faleceu e restou a bebida como
companheira. Pois nem filhos ela lhe deixara. Muitas vezes se aborrecia por causa
de roubos, desaparecia uma enxada ou outra ferramenta, quando saía da lavoura
para almoçar. Pior quando sumiu a máquina de distribuir água. Desconfiava de um:
se acusasse sabia que a briga podia terminar antes de chegar a polícia, caindo um
deles no chão para sempre. Aí é que bebia mesmo, de emborrachar, tomado pela
raiva da inação. Até que apareceu outra mulher. Namoraram. Apaixonaram-se.
Tinha, porém, como ele, o mesmo vício do álcool. Um dia cometeu a besteira de
crescer o olho numa outra, isso foi numa festa. Já tinha tomado todas as doses de
cachaça que podia. A namorada deu a decisão: a bebida ou eu. Bêbado não tem
consciência nem moral: escolheu a fiel companheira dos tempos atrás. Resultado: a
mulher o deixou. Ficaram separados por um longo tempo, mas o fogo da paixão
não diminuiu com a distância e o tempo. Voltaram, mas nunca mais beberam.
Há outras histórias. Conto uma com final triste: como sempre, pequena nas
palavras mas grande na tragédia. Era um jovem sério, trabalhador, tinha mulher e
filha pequena. O único defeito era gostar da branquinha, embora bebesse apenas
no final de semana. Trabalhava com afinco, a vida ia melhorando devagarinho. Às
vezes, quando tinha plantado muito e o preço estava bom, contratava diarista para
ajudar na colheita. (Por aqui tem muita gente pobre, sem terra ou pouca, vivendo
às custas de trabalhar pros outros.) Então foi o caso de um rapaz que já havia
trabalhado para ele uma vez, era colega de copo e truco, pedir trabalho numa
época difícil. Respondeu que não tinha condição. O outro achou aquilo uma
desfeita, coisa de fominha não querer dividir com quem nada tinha mas calou o
mau pensamento. Tramou, então, com o ódio guardado. Na festa da padroeira, ali
pelas barraquinhas começaram a beber. Acabaram, madrugada adentro, num
botequim. Quando o amigo foi ao banheiro, tirou do bolso uma garrafinha e
despejou umas gotas do herbicida mais comum, o raundaupe, no copo de cachaça.
O jovem só sentiu o corpo arder em fogo, uma vontade de morte a invadir tudo, a
escuridão.
158