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A pós-verdade da fé e da razão

Wendel de Holanda Pereira Campelo

A cultura moderna ocidental é historicamente marcada por


narrativas acerca da falência da razão no que diz respeito à
sua capacidade de sustentação de crenças e de valores que
orientem os seres humanos no mundo e na sociedade. Essa
crise não deixa de estar ligada ao fenômeno recente da pós-
verdade, insuflada dentro do âmbito da internet
e assimilada por essa nova onda conservadora no Brasil e
em outros países. Neste contexto, não importa tanto o
quanto você esteja racionalmente justificado a defender
uma crença, mas o quanto de seguidores você é capaz de
aglutinar em torno dela: sua verdade ou sua falsidade
tornou-se tão somente uma questão secundária ou até
mesmo supérflua.
Esse quadro reforça que o ambiente da pós-verdade se
retroalimenta de situações propiciadas pelas redes sociais
de compartilhamento de ideias e notícias, muitíssimas vezes
pouco embasadas ou mesmo mentirosas, embora com
bastante potencial de serem seguidas por um grande número
de usuários da internet. Mas o que precisamente esse
fenômeno da pós-verdade tem a ver com a fé religiosa? O
ponto é bastante simples: notícias inventadas, tomadas
como verdadeiras, tendem a ofender ou incitar emoções de
pessoas que comungam de determinada crença ou valor.
Neste contexto, o apelo às emoções e às crenças se sobrepõe
ao compromisso com fatos ou provas. Disso resulta uma
fissura entre fé e razão, na qual as redes sociais formam um
ambiente fértil para a disseminação de concepções políticas
assaz conservadoras aliadas a fé religiosa, de modo que
posições racionalmente embasadas - não necessariamente
progressistas - são amiúde desprestigiadas em prol de
preconceitos arraigados na sociedade. Consequentemente,
a fé religiosa torna-se não só um alvo, mas também um
poderoso instrumento para disseminação de fake news e de
formação dos "ciber-rebanhos".
Não obstante, não devemos, com isso, reforçar o ponto de
vista de que a fé seja inconciliável com o lado racional do
ser humano. Pelo contrário, um bom contraexemplo a essa
noção é que uma das características mais importantes da
teologia católica, desde o medievo, está no modo de tomar
a razão como base de sustentação da própria fé religiosa. O
que é, por conseguinte, inteiramente diferente de enxergar
os produtos genuínos da razão como coisas quase que
estritamente vinculadas à técnica e à ciência, reduzindo a
religião - e também outros saberes não-científicos - ao total
irracionalismo.
O que realmente ocorre não é que os religiosos tenham
exatamente ficado mais ferrenhos ou fundamentalistas.
Pelo contrário, não se pode deixar de considerar que subjaz
em boa parte das posições conservadoras ou reacionárias
princípios que, muitas vezes, estão mais próximos do
secularismo do que da própria religião. Nestes casos, a
religiosidade é vista como algo assaz distante do
conhecimento científico-filosófico e amiúde associada a
valores anacrônicos à sociedade atual. Mas isso é apenas
uma caricatura grosseira que, de um lado, vincula a religião
ao obscurantismo e, de outro, enxerga o saber científico-
filosófico como um conhecimento privilegiadamente
racional. Com isso, muitos religiosos vestem a carapuça
criada pelos seus próprios detratores, ao ver a si mesmos
através de preconceitos seculares. Sem, no entanto,
considerar que fé e razão, por meio de um esforço cognitivo
e prático, poderiam se complementar de forma mútua.
A razão dessa caricatura grosseira prevalecer - esse crente
existencialmente cindido entre sua fé e seu lado racional - é
que culturalmente aceitamos que os produtos da razão
humana quase sempre contradizem o que diz a religião e
pouco nos preocupamos em formas de conciliação entre
ambas. Pessoas religiosas, assim como não-religiosas, nem
sempre têm condições de estarem imunes a essas narrativas
tão amplamente difundidas. Não obstante, a história nos
ensina que a fé desamparada de bases racionais amiúde abre
espaço para posições fundamentalistas; ao passo que a
razão impetuosa, fria e calculista, leva os seres humanos a
cometerem atrocidades tão vis quanto a que vemos hoje em
dia por parte de grupos fanáticos e extremistas. Portanto,
onde as contradições entre fé e razão são quase sempre
agravadas e reforçadas, onde posições preconceituosas e
intolerantes proliferam de modo a não só contaminar o
debate público, mas também o próprio bem-estar social, é
sempre importante que estejamos bem precavidos para
buscarmos meios de mitigar a fé com base na razão e vice-
versa.
Dentre outras coisas, isso significa evitar seguimentos ou
grupos sectários na internet que aparentemente defendem
aquilo que acreditamos, mas sem qualquer crivo, base
factual ou refinamento argumentativo. Por conseguinte, é
preciso sopesar que, naquilo que compartilhamos em
nossos grupos sociais, não esqueçamos que a verdade é um
valor fundamental que não pode simplesmente ser escapado
por nós. Não estou evidentemente me referindo aos que
afirmam dogmaticamente suas respectivas crenças ou
valores como se fossem verdades absolutas, mas sim
aqueles que recorrem à razoabilidade da dúvida e a um certo
ceticismo sempre que necessário - e, portanto, ainda presam
e zelam, de fato, pela verdade.
*Acesse também esse texto na Coluna Anpof.

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