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De collaboração:
A publicar:
LIVRARIA' F R A N C I S C O A L V E S — E D I T O R
R. do Ouvidor, 1 3 4 — R i o da Janeiro <• R. de S. Bento, 65 — S . Paulo
Rua da Bahia — Bello Horisonte
IQOS
NOTA :
T Y P . DA EMPRESA L I T T E R A R I A E TYPOGRAPHICA
184, Rua de D.Pedro, 187— PORTO
•vyv «-'
tos.
A INTRUSA
— Q113 temporal !
— E um friosinho! Conhecem vocês nada
mais gostoso do que ouvir-se o barulho forte
da chuva quando se está agazalhado ? E u estou-
me regalando í
— Sempre o mesmo egoísta! Como estás
em tua casa !... mas... desalmado, lembra-te
de nós! São quasi horas de me i r recolhendo
aos meus penates. E alli o padre Assumpção,
caso não fique pelo caminho, terá também que
marchar um bom pedaço a pé. Ao Telles, esse
o bond leva-o até ao quarto de d o r m i r ! Nasceu
impellicado.
Por essa feia noite de chuva, conversavam
em casa do advogado A r g e m i r o Cláudio, no
Cosme Velho, o seu grande amigo padre As-
sumpção, o deputado A r m i n d o Telles e o Adol-
pho Caldas, homem de quarenta annos, sem
6 A INTItUSA
I
do jantar. Não quero fazer-te a injustiça de
suppôr que te alimentas a leite e a agua de
— Acho...
— Concorda em que seja assim ?
— Concordo.
— Pense na responsabilidade que vae assu-
mir.
— Já pensei...
— E u sou exigente. Quero sentir na minha
casa a influencia de uma pessoa moça, saudável
e ordenada. Não quero vêr essa pessoa, por
motivos que expuz e por outros particulares e
que não vêem ao caso, como também já disse.
26 A INTRUSA
m i n i s t r o , c u j a pasta apanhára no a r q u a n d o v i -
nha a t i r a d a ás m ã o s do P e d r o s a !
A r g e m i r o , sem r e t i r a r o binóculo :
— Então, B e n j a m i m , você gostou m u i t o do
p r i m e i r o acto?
— Absolutamente!
— H o m e m f e l i z . ..
— P o r q u e ?!
— P o r q u e pôde g o s t a r absolutamente de a l -
g u m a coisa... q u a n d o p a r a toda a gente tudo
no m u n d o t e m restricções...
— Pois olhe, a c u d i u a Pedrosa sem poder
disfarçar u m a p o n t i n h a de i n v e j a ; pela sua i n -
sistência e m o l h a r p a r a a V i e i r i n h a , dir-se-ia
que ella, ao menos p a r a o senhor, não t e m res-
tricções.
A Pedrosa t i n h a geito para d i z e r as coisas
m a i s d u r a s como se as tivesse f e r v i d o e m m e l .
F a l o u r i n d o . B e n j a m i m riu-se t a m b é m e o advo-
gado respondeu c o m u m s u s p i r o :
— E que aquella senhora não p e r m i t t e c o m
facilidade que a gente a veja de p e r t o . . .
— S i m ? ! Deve s e r para que não lhe v e j a m
os d e f e i t o s . . . o u talvez tivesse estado n u m
convento. A propósito, m i n h a filha d e i x a á m a -
nhã d e f i n i t i v a m e n t e o coilegio das Irmãs de
Sião. V o u buscal-a a P e t r o p o l i s . E s t o u velha,
com u m a filha já m o ç a !... Sabbado quero apre-
sental-a aos m e u s amigos. E l l a t e m g r a n d e
predilecção pelo s r . d r . A r g e m i r o !
38 A INTRUSA
— Não...
— Gloria !
— Não...
— Esta menina!
A r g e m i r o olhava para a filha com desgosto.
A baroneza i n t e r v e i o :
— Depois do jantar teremos tempo ; ella esta
com vergonha .. manda botar o jantar na me-
sa, Gloria ; depois tocarás ..
Gloria aproveitou o ensejo e correu para o
interior, onde d'ahi a instantes soavam as suas
gargalhadas fortes, muito barulhentas.
O pae informou-se, voltando-se para o sogro:
— Como vae ella na leitura ?
O velho abanou a cabeça, s o r r i n d o ; mas a
avó exclamou, dirigindo-se ao Caldas:
- Se ella quizesse! não imagina o talento
que aquella menina tem ! aprende tudo com uma
facilidade espantosa, de relance!
— Mas o diabo é que ella não quer! asseve-
rou o avô, rindo.
— O r a l não é tanto assim; o sr. Caldas e
capaz de pensar que a nossa Gloria é uma anal-
phabeta!
— Quasi.
— Ora, não digas isso ! Ella lê... e escreve...
e demonstra muito geito para a musica. Afinal,
não se educa para doutora nem para professo-
ra. No meu tempo não se exigia tanto...
— Não é razão. A mulher hoje precisa ser
A INTRUSA 51
*
56 A INTRUSA
d i s s o . . . O logar de M a r i a é insubstituível no
meu coração, bem o sabe, melhor que ninguém.
Quanto a eu morar aqui, isso é absurdo; preci-
so viver na cidade: os meus negócios não me
permittem este luxo do campo .. Agora só lhe
peço uma coisa: tomar esta minha resolução
como irremediável e acceital-a, ao menos, por
algum tempo...
Gloria assistira a toda a scena com m u i t a
attenção. O avô só no fim se lembrou da conve-
niência de a afastar. Caldas, um pouco cons-
trangido, demorava-se a descascar a sua laran-
ja, conservando um silencio discreto, e foi só
depois do jantar que elle pôde convencer o ba-
rão a vender as suas terras ao ministro para a
formação da colônia suissa, exploradora dos la-
cticinios.
A baroneza retirou-se para o seu quarto, de-
clarando uma enxaqueca súbita. A r g e m i r o apro-
veitou o momento para conversar u m bocado
com a filha.
— Escuta, meu amôr, porque é que t u não
modificas esses teus modos de rapaz? Já estás
crescida.
Ella abraçou-o com frenesi pelo pescoço.
— Olha que me amarrotas o collarinho ! dis-
se elle rindo. Não me respondes ?
— E u não s e i ! . . .
_ Gostas de i r jantar commigo todos os sab-
bados ?
A INTRUSA 57
•
A INTRUSA
60
— É aqui.
— De quem é esta cama?
— Sua.
— E aquella t
— Minha.
— E u quero d o r m i r sozinha; não sou me-
drosa. Arrange outro quarto para mim. Agora,
tire-me o chapéu !
Gloria sentou-se na cama, brutalmente. Alice
tirou-lhe o chapéu e endireitou-lhe o cabello. A
menina foi ao espelho, achou-se bem penteada
e lá no fundo da sua consciência concordou que
jámais sentira pousar sobre a sua cabeça mãos
mais habilidosas. Voltando-se, contemplou Alice
de alto a baixo, e perguntou:
— Quantos annos tem ?
— V i n t e e tres.
— Parece mais velha.
Alice sorriu.
— E u tenho doze...
— Parece mais criança...
— Hein ?! toda a gente diz que já pareço
uma moça! É myope ?
— Parece criança no juizo, minha amigui-
nha, e é por eu ver muito bem que lhe digo
i s t o . . . Não seja má... venha lavar as mãos;
seu pae espera-a para j a n t a r ; não está ouvindo
o tympano ? É o signal ..
Gloria tremia, sem atinar com a resposta para
semelhante affronta. Depois, n u m desabafo:
A INTHUSA 65
I r i s tanto?
— Por nada... átoa !
— Átoa! como é bom r i r átoa!
Como eu preciso da tua innocencia ao pé de
] m i m ! R i sempre, meu amôr !... Olha o guarda-
t napo... Estás contente?... aqui tens o teu
ij pãozinho... E' a p r i m e i r a vez que jantas sózi-
í nha com teu pae... que te parece? Olha a tua
sopinha... Está a teu gosto ?
— Eu não quero sôpa.
— Estás sem apettite?
— E u não gosto de sôpa.
— Ah, aqui é preciso gostar de tudo, minha
senhora! uma pessoa de educação nunca diz a
j uma mesa: — eu não gosto d'isto, eu não gosto
ai d'aquillo... toma a tua sopinha... E agora
dize-me : como achaste a D. A l i c e ?
— Horrenda.
Feliciano sorriu, s o r r i u com tamanha i n -
5
66 A INTRUSA
I f i a n a m e s a d o
J a n
^ r um candelabro de prata
»J tosca, que A r g e m i r o reconheceu com difficul-
Ldade, tal era o tempo em que esse objecto vivera
gsegregado no fundo escuro de um armário Na
j v e r d a d e , Alice caprichára em adornar a mesa !
dbena uma homenagem a esse jantar de festa
f o de dois talheres, para um homem quasi
•velho, e uma menina quasi moça?
I Quando o Feliciano offerecia a Gloria uma
Jfatia de coelho assado, ella exclamou, batendo
Jcom o cabo do garfo na mesa :
— D. Fuás morreu, papae!
A INTRUSA.
68
estava no seu e s c r i p t o r i o a m u l h e r do M i n i s -
t r o ! . , elle ageitou o nó da g r a v a t a e f o i rece-
bel-a á p o r t a . E l l a e n t r o u logo, c o m o o l h a r
reprehensivo, o busto i m p e r t i g a d o e u m s o r r i s o
a m i g o na bocea descorada. Atrás d'ella v i n h a
a filha, m u i t o espigada, m a i s alta do que a m ã e ,
com u m a r z i n h o petulante no rosto c l a r o , de
feições miúdas.
— Seu m a u ! então é preciso que a gente o
venha v e r aqui ? !
— Oh, m i n h a senhora...
— N ã o se desculpe, n e m me agradeça a
visita.
D a h i r o m p e u a f a l l a r , queixando-se de não
ter o m a r i d o u m m i n u t o de descanço que l h e
p e r m i t t i s s e t r a t a r dos seus negócios p a r t i c u l a -
res, vendo-se ella na contingência de i n t e r v i r ,
como fazia agora, a contragosto .. I a c o n s u l t a r
o advogado e o a m i g o . . .
A r g e m i r o agradeceu.
E m q u a n t o a Pedrosa r e m e x i a na sua bolsinha
de camurça, p r o c u r a n d o u m d o c u m e n t o qual-
quer, o advogado olhou p a r a a Sinhá, q u e não
desviava o o l h a r de c i m a d'elle, n u m a expressão
p e r t u r b a d o r a , de m u l h e r amorosa.
— D i a b o ! pensou elle comsigo.
A consulta representava u m p r e t e x t o . O ne-
gocio d i s p e n s a r i a a intervenção do a d v o g a d o ;
todavia, a P e d r o s a p a r e c i a não se i m p o r t a r de
passar p o r estúpida: r e p e t i a as p e r g u n t a s c o m
A INTRUSA 81
r a v a s a l v a g u a r d a r os d i r e i t o s da sua casa de
j o g o encapado em disfarces, c o m que espoliava
incautos e viciosos. A r g e m i r o i n d i c o u u m colle-
ga m a i s hábil no assumpto. O o u t r o s a h i u , elle
poz-se a l e r , á espera do Caldas p a r a u m ne-
gocio de v a l o r .
Razão t i n h a m aquellas paredes p a r a pare-
c e r e m desgostosas e estarem enxovalhadas. Só
a t o r p e z a que r o l a v a entre ellas !
VI
112 A INTItUSA
— Ha de gostar.
— Hum...
— Mais tarde; dá tempo ao tempo.
— Por que é que papae não quer vêr D. Alice ?
— Oh, filha, é... é porque teu pae... receia
avivar as saudades de tua mãe...
Já me tardava esta pergunta, disse elle de
si para s i .
1
i — Não entendo...
— Tua mãe não era a dona da casa ?
— Era.
— D. Alice não está desempenhando o papel
de dona da casa?
— Ah, mas não é mulher d'elle!
— Ah!...
— Nem come á mesa, nem apparece ás v i -
sitas. .. é, afinal, uma espécie de c r i a d a !
— Não. Ella governa os criados. E' diffe-
rente...
— Tenho pena d'ella. Agora tenho pena
d'ella...
— Agora ?
— Antes não tinha... linha raiva.
— Mas... porque? ella queixou-se?
— Não... não sei porque ! mas acho aquillo
exquisito! M a l sente os passos de papae, zás!
foge 1 chega a ser engraçado !
Realmente é uma situação de comedia, pen-
sou Assumpção, rindo involuntariamente com
Maria.
i (
A INTEUSA 113
— Estação do Corcovado !
Sinhá, sentando-se a seu lado, indagou curio-
samente :
— Vamos ao Corcovado 1 a esta hora 1 fazer
o que?
— Almoçar...
— Sozinhas? E papae?
— Teu pae não almoça hoje em casa.
— Mas elle sabe?
— Ha de saber, quando eu lhe disser.
— E se elle não gostar ?...
— Tolinha... vejo que não tenho outro re-
médio senão ir-te dizendo já o que adiava para
mais tarde. Não sahiste a m i m na perspicácia...
Sinhá olhava para a mãe com uma linda ex-
pressão de estupidez.
— A razão por que vamos almoçar ás Pai-
neiras não pôde ser desagradável a teu pae. E
esta:
Está lá em cima no hotel o encarregado dos
negócios da Inglaterra. Fui-lhe apresentada ha
dias rapidamente: convém fazer-me lembrada ..
Aquelle homem pôde ser muito u t i l a teu pae.
Apparecendo lá, como por acaso, elle forçosa-
mente virá cumprimentar-nos. Almoçaremos
talvez á mesma mesa e terei ensejo de lhe repetir
o offerecimento de nossa casa. E' uma relação
u t i l . A vida, minha filha, é como uma caixa va-
sia que os soffregos e os tolos enchem com
A INTRUSA 123
— P e t r o n i l h a ! e x c l a m o u ella n u m a r r a n c o
enternecido.
A Pedrosa levantou-se c o m u m s o r r i s o ce-
r i m o n i o s o e u m a r de q u e m não a t i n a v a c o m o
nome da o u t r a . . .
— N ã o se l e m b r a da M a r i a n n i n h a Serpa !
das irmãs? O diabrete azul, como me chama-
vam?
— A h ! s i m !... o diabrete a z u l . . . l e m b r o -
me !... Desculpe-me... mas estava tão longe !...
— M e s m o depois d'isso encontrámo-nos va-
r i a s vezes em casa do...
Mas a M a r i a n n i n h a interrompeu-se para
apresentar o marido.
Pedrosa apresentou, p o r s u a vez, a filha e
os o u t r o s v o l t a r a m p a r a o seu l o g a r ; faltava-
lhes o café.
— A v i d a é u m a comedia... c o m m e n t o u a
m i n i s t r a . V á a gente fiar-se... E u não te disse?
V i u que tínhamos acabado e não q u i z d e i x a r -
nos s a h i r sem se apresentar. E agora teremos
de i r c u m p r i m e n t a l - a s . Mas vão esperando que
lhes offereça a casa... não p o r m i m , que afinal
não desgosto d'ella... A M a r i a n n i n h a é p i a n i s -
ta, e n t r e t e m ; mas p o r causa da sociedade !
R e u n i r a m - s e depois, passeando ao longo do
aqueducto; e r a preciso fazer horas p a r a descer.
M a r i a n n i n h a t i n h a v i v a c i d a d e , falava m u i t o .
O m a r i d o c o l h i a avencas que Sinhá d e i x a v a
c a h i r dos dedos d i s t r a h i d o s . A' h o r a da p a r t i -
A INTRUSA 133
m ras.
A insistência da idéa penetrava-a de crenças
novas. Debateu-se em vão, concentrada no seu
II
,1' I
canto, com os olhos no retrato da filha, que o
tempo ia desvanecendo num descolorido suave.
Assim se attenuasse na sua alma a dôr, como
aquella sombra no papel I Por que ha de haver
coisas eternas na vida transitória? Já v i u al-
guém reílectir-se uma imagem com fixidez em
águas de grande correnteza? A vida não faz
outra coisa senão passar, e a d'ella então i m -
mobilisara-se num momento de horror ? Uma
noite, em sonhos, a filha appareceu-lhe lavada
em pranto. Seus olhos, como dois ramos de
myozotis inundados, vinham varados pela t r i s -
teza moça do amor. Não houve outra queixa.
A mãe comprehendeu-a. E r a tempo de agir.
Consultaria os espíritos, já que na terra não a
ajudava ninguém.
Lembrou-se de uma tal D. Alexandrina, da
estação do Rocha. Contavam-se d'ella maravi-
lhas, revelações estupendas 1
Preparou-se cedo. Vendo-a sahir do quarto,
A INTRUSA 139
— N ã o me esqueço...
— Se não te esqueces, dize a verdade : A r g e -
m i r o não fala c o m essa m u l h e r ?
— A m i n h a v i s t a não, senhora. .
— Julgas que se f a l e m ?...
A baroneza parou, envergonhada. O negro
começou :
— Ante-hontem, m a l o patrão s a h i u , eu en-
t r e i d e v a g a r i n h o na sala de v i s i t a s e v i D.
A l i c e espiando, p a r a o vêr, p o r detráz da cor-
t i n a . . . O u t r a vez, e n t r e i no e s c r i p t o r i o e ella
estava encostada no c o f r e . . .
— N o c o f r e ! E' b o m v e r i f i c a r s e m p r e se o teu
patrão se esquece de fechar o c o f r e . . .
— N ã o e r a c o m o sentido no cofre, não, se-
n h o r a ; ella t i n h a t i r a d o da parede o r e t r a t o de
D. M a r i a e estava olhando de perto p a r a elle !...
— Que sacrilégio! c o m o r e t r a t o de m i n h a
filha nas m ã o s !
— Já p o r duas ou tres vezes eu pilhei-a as-
s i m . .. parece que ella t e m i n v e j a . . . ou ciume...
— P o r que não c o n t o u isso ao seu patrão ?
— Deus me l i v r e ! Seu doutor parece que
está enfeitiçado... não a d m i t t e que a gente d i g a
nada. T a m b é m , ella pôde fazer o que q u i z e r !
Desde que aquella senhora e n t r o u lá e m casa,
não f u i m a i s senhor de a r r u m a r u m a c a m i s a do
patrão nas gavetas, n e m de mecher nos seus
papeis. E u tenho de l e v a r o t a b o l e i r o da r o u p a
p a r a perto da c o m m o d a e é ella q u e m ageita
A INTRUSA 145
— Então não a v i u ?
— Não, senhora.
— Mas ao menos não lhe perguntaste o nome ?
— Não quiz dizer...
— Era fino... bonito ? Ha de ser o t a l !
Estavam a curta distancia da casa quando
Gloria sahiu correndo:
— Vovó! Por que não me levou ! Venha de-
pressa ! Vovô não quer-me deixar abrir o em-
brulho que veio no carro e eu sei que é para
m i m 1 Adeus, Feliciano. Como está D. Alice?
— Em vez de perguntar por teu pae, per-
guntas pela... criada ! A n d a ; vamos ver o teu
presente!
— Papae virá logo... mas a D. Alice...
— Basta! não quero que me tornes a fallar
nessa creatura .. ouviste ?
— E u gosto d'ella... É bem boa !
— Para o fogo.
— E u gosto d'e!la muito !
— Mas D. Gloria lá em casa trata a D. Alice
com seccura... Observou o negro.
— É m e n t i r a ! Você é um mentiroso! pro-
testou a menina, com raiva.
— Gloria!
— Que é, vovó ?
A baroneza não podia mais. E n t r o u e fe-
chou-se no seu quarto. Arrependia-se já d'aquel-
las acções que praticara. Deus a livrasse de
condemnar uma innocente, mas lhe désse forças
A INTRUSA 147
p a r a p u n i r u m a culpada. O que a a f f l i g i a e r a m
os meios de que lançara m ã o para conhecer a
verdade. A espionagem do negro. .. a i n t e r v e n -
ção da c a r t o m a n t e . . . o h ! como isso l h e repu-
g n a v a agora, bem a sós com a sua consciência!
V a l e r a a pena v i v e r toda u m a vida p u r a e no-
bre, para na velhice fazer aquelles desatinos ?
O r e t r a t o da filha, suspenso á cabeceira da
cama, absolvia-a d aquella culpa, sorrindo-lhe
docemente d e n t r e a onda pallida dos cabellos
sollos.
A baroneza sentia nojo pelas a r m a s que i a
p r e p a r a n d o p a r a o combate. Repugnava-lhe t e r
de servir-se da a d i v i n h a e do Feliciano. Receava
a c r e d i t a r demasiadamente na p r i m e i r a ; temia
fazer-se echo dos despeitos do segundo... e t o -
d a v i a acceitava as indicações da cartomante,
espantada de lhe ter o u v i d o referencias tão v e r -
d a d e i r a s . . . e déra o passo repugnante de i n -
d u z i r o c r i a d o á espionagem I
- N o d i a em que eu receber a carta, revela-
r e i tudo a meu m a r i d o , decidia e l l a ; e se nada
receber... não t o r n a r e i a voltar á D. A l e x a n -
d r i n a . .. Que poderá aquella fraca c r e a t u r a con-
t r a as disposições do d e s t i n o ? V e l h a tonta que
eu s o u !
A' h o r a do j a n t a r , quando a avó de G l o r i a
appareceu na sala, notou toda a gente que ella
estava p a l l i d a , com olheiras pizadas e u m sor-
r i s o forçado que não conseguia levantar-lhe os
148 A INTItUSA
— Sério ? Sério ?!
- Já te dei a m i n h a p a l a v r a de h o n r a ! Que
m a i s queres ?
. ~ f N 0
<J
u e r o
nada, filho, estou e n t u -
s i a s m a d o ! Basta-me o espanto, que é dos maio-
res que tenho tido em m i n h a v i d a . É adorável.
G l o r i a , já n s o n h a , veio puxal-os p a r a a mesa
que o avô e n f e i t a r a toda de m a r g a r i d a s bran-
cas. D r . Telles d i s c u t i a política c o m o barão. A
baroneza, afiástando-se do padre, com quem
conversava, d e s i g n o u o l o g a r a cada u m dos
c o n v i v a s e sentou-se á cabeceira.
»
XI
p
152 A INTRUSA
aauella? , ' ^ ^
aUSa d e,,e PUZera nas
Sinhá c u m p r i m e n t o u - o , a d m i r a d a da h a b i l i -
dade dá m ã e ; ella c o n s e g u i r a o seu desejo !
A l l i estava n a sua sala o h o m e m p o r q u e m
ella s u b i r a i n u t i l m e n t e ao Corcovado. B e m o
dissera e l l a : realizo todos os m e u s emprehen-
dimentos 1
A t t e n d e n d o ás v i s i t a s que r o d e a v a m a m ã e ,
Sinhá p r e s t a v a attenção, a vêr se d i s t i n g u i a á
voz de A r g e m i r o e n t r e as vozes dos h o m e n s
que p a l e s t r a v a m no gabinete do pae.
A h i , e n t r e os l i v r o s de d i r e i t o e de economia
|[ p o l i t i c a , a r r u m a d o s em estantes de canella o u
espalhados sobre a secretária e a mesa, con-
v e r s a v a m a n i m a d a m e n t e A d o l p h o Caldas, A r -
g e m i r o , d r . Sebrão, o Conselheiro I s a i a s e o
dono da casa.
— Fallem-me de t u d o ! e x c l a m a v a o P e d r o s a
s u p p l i c e , menos da politica 1 Vocês não i m a g i -
n a m ! não lhes d i r e i que estou f a r t o d ella até
aos cabellos, p o r que sou c a r e c a ; mas u l t r a -
passa a m i n h a força atural-a até nos cavacos
entre camaradas.
| Conselheiro Isaias, lembrando-se lá comsigo
| d
empenho de Pedrosa p a r a alcançar a pasta,
o
^7 ElX
S
M
qU
, 6 V0Cê é um homem
corajoso.
ído,p r a.d
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° - °' "° p£ erapo dr sebrã V0,ta
da serr™ °° °^ ^ 3 U t r n a s fío
í1
levantando-se do seu canto. E depois, para ó
Argemiro :
- E tempo de irmos prestar as nossas ho-
menagens ás senhoras ; não lhe parece ?
A INTRUSA 159
I —Tu?!
— Que querias que eu fizesse ? Crias uma s i -
tuação de comedia e impões seriedades de me-
lodrama ?
160 A INTRUSA
Elle sorriu.
— F o i pena que não tivesse o u v i d o Sinhá
desde o p r i n c i p i o . . . ella toca c o m m u i t o senti-
mento... anime-a... diga-lhe, e m b o r a men-
t i n d o . . . "que a a p r e c i o u . . . as suas p a l a v r a s
são o m e l h o r i n c e n t i v o p a r a e l l a . . .
A Pedrosa p r o c u r o u a filha c o m a v i s t a ,
p a r a a p p r o x i m a l - a de A r g e m i r o , mas já a m o ç a
desapparecera d a sala.
A r g e m i r o percebeu-lhe a c o n t r a r i e d a d e no
olhar e apressou-se em dizer m e i a dúzia de ba-
nalidades, á espera do m o m e n t o de se despedir.
M a s a Pedrosa t i n h a que d i v i d i r a sua atten-
ção. Estava c o m a casa cheia, e as moças mos-
t r a v a m desejos de dançar...
Por f o r t u n a , as s o b r i n h a s , as tres filhas do
dr. Adão, ajudavam-n'a a a r m a r as quadras
p a r a os lanceiros, t i r a n d o pares e i n f l u i n d o os
moços, que se d e i x a v a m a r r a s t a r , p o r compla-
cência, p a r a o m e i o da casa...
Como faltasse o pianista, foi mesmo a Pe-
drosa p a r a o piano, r o m p e n d o c o m força os
p r i m e i r o s compassos da q u a d r i l h a . A r g e m i r o
a p r o v e i t o u aquelle instante de alegria, p a r a i r
buscar o chapéu e o sobretudo ao pavilhão j a -
ponez e s a h i r p a r a a r u a sem ser visto.
O pavilhão estava a meia luz, p a r a que toda
a força do gaz convergisse p a r a a sala. N a s pa-
redes f o r r a d a s de e s t e i r i n h a as japonezas dos
k a k i m o n o s requebravam-se entre os setins das
11
162 A INTRUSA
*
XII
« B e m d i z e m os r o m a n c i s t a s , que os r o m a n -
ces se fazem por s i . Creada a personagem, pos-
ta no m e i o em que terá de a g i r , ella caminhará
por seus pés até ao ponto final do u l t i m o capi-
tulo.
A c o n t e c e p o r isso que o a u c t o r t e m ás vezes
v e r d a d e i r a s s u r p r e z a s , como se todos os actos
dos seus heróes não fossem o b r a sua ! Conce-
b i d a a idéa f u n d a m e n t a l do l i v r o , está creado o
s o p r o de v i d a que o animará. A d i f f i c u l d a d e
está toda no p r i m e i r o i m p u l s o ! H e i de s e m p r e
l e m b r a r - m e de u m a noite e m que f u i e n c o n t r a r
o Thadeu, pallido, passeando a g i t a d i s s i m o pelo
e s c r i p t o r i o , com u m v e r d a d e i r o a r de fúria.
— Que tens t u ? ! perguntei-lhe assustado, de
entre portas.
V o l t o u p a r a m i m os olhos esgazeados e disse,
com uma sinceridade commovedora:
A INTRUSA 165
— P s i u ! falia b a i x o . . .
- Receias que ella esteja atráz d a p o r t a ?
— Quem sabe . .
— N ã o duvides ! u m a governante de casa de
u m v i u v o só, v i n d a p o r a n n u n c i o de j o r n a l . . .
deve ter ao menos u m defeitozinho, e olha que
o da c u r i o s i d a d e ó quasi v i r t u o s o . . . A n t e s
do que me disse a Pedrosa, eu suppuz que
vocês estivessem a m a n g a r c o m m i g o , e que a
tua m u l h e r z i n h a fosse p o r a h i u m a m a t r o n a
g o r d a , de cabellos pintados e v e r r u g a no queixo.
M a s a Pedrosa, m a i s a f o r t u n a d a do que eu, es-
b a r r o u de cara c o m ella, e pela r a i v a c o m que
lhe ficou, deduzi que a r a p a r i g a deve ser bo-
n i t a . ..
— A Pedrosa disse-te isso?
— Disse que e r a feia.
— Então!
— P o r isso mesmo fiquei sabendo que o não
é. A s m u l h e r e s nesse assumpto são s e m p r e
c o n t r a d i c t o r i a s . P a r a experimenta!-a, exclamei
com a r de desgosto:
— Oh, m i n h a senhora, u m a v e l h a ! E ella
logo, m u i t o i n d i g n a d a :
— V e l h a ? ! m o ç a ! e toda presumpçosa, c o m
a sua g r a v a t i n h a a z u l !
— Pensou, talvez, que a g r a v a t a fosse m i -
nha !
— E d'ahi!,.. O' diabo, c o r r e aquelle re-
posteiro!
170 A INTRUSA
k mance inglez. A m i n h a g o v e r n a n t e l i a i n g l e z !
m 1| foi a sua p r i m e i r a revelação. Depuz o l i v r o fe-
chado sobre a mesa e v i o nome d'ella e s c r i p t o
na capa.
P a r a s y m p a t h i z a r c o m ella b a s t a r i a talvez
isso ; p a r a respeital-a, o m o d o p o r q u e t e m sa-
bido c o r r i g i r G l o r i a das suas b r u t a l i d a d e s de
menina malcriada...
— Como terminará tudo isto !
— N ã o terminará. E m q u a n t o ella se s u j e i t a r
a este papel* e u ficarei m u i t o b e m naquelle e m
que estou. Se não... ir-se-á e m b o r a e t r a t a r e i
de a r r a n j a r o u t r a pelo m e s m o processo escan-
daloso, mas commodo.
— H u m !...
— A f i n a l , talvez seja fácil...
— É impossível, digo t'o e u ! E s s a m u l h e r
deve t e r v i n d o acossada por u m a g r a n d e miséria!
li Lembra-me u m a garça marítima que v i caçar n a
floresta do alto da S e r r a ! T i n h a f u g i d o á tem-
pestade sozinha, branca, até áquellas p a r a g e n s
desconhecidas e inhospitas. P o b r e ave d o m a r 1
A INTRUSA 173
— Mataram-na ?
— E empalharam-na.
— Esperemos que esta não tenha a mesma
sorte.
— Pelos desejos da tua sogra !
— Que ciumenta! como se pudesse haver
alguém neste mundo que me fizesse esquecer
Maria!
— Ha...
— O tempo?
Caldas não respondeu, e sorriu.
E depois:
— Dizem que fama sem proveito faz mal ao
peito. A tua governante morrerá tisica!
— Coitada... defende-a quando se te offere-
cer ensejo. Eu sou tão mau que a sacrifico ao
meu bem estar. E á minha imperfeição ! Igno-
minioso! não achas?
— Humano. Ella veio ao encontro d'esse de-
sastre. Tinha obrigação de prevêl-o. Talvez o
desejasse... Que somos nós todos? Poços de
mysterio! Que pôde esperar uma mulher que se
aluga — p o r mais que te repugne a expressão,
ella é corrente aqui — para tomar conta e gover-
nar a casa de um homem só? O teu egoísmo
explica-se; t u pagas esse direito; agora a sua
sujeição, meu Argemiro, é que não tem duas
faces por onde possa ser encarada. Para mim,
ella é, única e simplesmente, uma especuladora.
— Não digas isso!
174 A INTRUSA
— Por que te i n d i g n a s ?
— Não...
— Acaba...
— Sem t e r posto os olhos n u n c a em c i m a
d'esta pobre moça, eu parece que a conheço já
ha m u i t o . . . E l l a fiava-se n a t u r a l m e n t e na s u a
altivez para defender-se de q u a l q u e r assalto.
P o r q u e não a c r e d i t a r que tenha, como t u d i s -
seste, v i n d o acossada pela miséria, estonteada-
mente, até á m i n h a p o r t a ? A única impressão
que tenho d'ella, no d i a em que a c o n t r a t e i , f o i
a de lhe v e r as botinas esfoladas... N ã o lhe v i
o rosto, que o t r a z i a v e i a d o ; mas vi-lhe os pés.
C a p r i c h o s a como revela ser em tudo, bem vês
que só p o r grande necessidade se s u j e i t a r i a a
andar assim...
— P o r q u e só u m a pobre se sujeita a t a l po-
sição, n a t u r a l m e n t e ; mas as pobres honestas
têm o u t r o s meios de g a n h a r o pão, menos sus-
peitos e sobretudo menos a r r i s c a d o s . . . T u a
sogra t e m u m a c e r t a p o n t i n h a de razão na i n -
sensatez do seu ciume... De fóra ninguém pôde
a c r e d i t a r que esta situação não seja senão u m a
fantasia.
— M a s que têm c o m i s s o ?
— N ó s outros, n a d a ; mas t u a s o g r a talvez
tenha a l g u m a coisa, p o r causa da t u a filha ! *
— N ã o é p o r causa de M a r i a . . . é p o r m i m !
M i n h a s o g r a é u m a s e n t i n e l l a s e m p r e álerta n a
defesa do m e u coração. E l l a não se i m p o r t a que
A INTRUSA 175
O relógio do e s c r i p t o r i o m a r c a v a seis h o r a s
quando o d r . Telles e o padre Assumpção en-
t r a r a m em casa de A r g e m i r o . Telles r e s p l a n -
decia. T i n h a falado nessa q u a r t a - f e i r a n a Câ-
m a r a . Via-se-lhe na cara, núa de pêllos, a v a i -
dade, e todo o corpo emproado n u m terno de
sobrecasaca côr de avelã, parecia i m p e r t i g a r - s e
com m a i s satisfação. De vez em quando elle
o l h a v a com u m s o r r i z i n h o p a r a as unhas r e l u -
zentes, como se relesse nelías o seu discurso
famoso e sensacional...
Assumpção v i n h a t r i s t e , com u m a r fatigado,
que m a l d i s s i m u l a v a , dizendo-se amollecido p o r
u m a g r a n d e c a m i n h a d a a pé. E m q u a n t o os ou-
tros, com o c a l i x de v e r m o u t h na m ã o , d i s c u -
t i a m o u l t i m o escândalo da câmara, elle, recos-
tado no d i v a n , levantou o olhar p a r a o r e t r a t o
de M a r i a , suspenso na parede em frente, cora
o seu doce p e r f i l de l o i r a a esvair-se já no era-
branqueciraento das tintas.
A belleza... a bondade... a j u v e n t u d e . . .
tudo com o tempo se esvae, como o f u m o dele-
vel. N a c u r t a passagem da vida, confundem-se
á d i s t a n c i a todos os traços, os que m a r c a m os
c a m i n h o s da alegria, como os que v ê m da t r i s -
teza. .. A saudade do passado é o nevoeiro que
envolve tudo na m e s m a claridade enganadora
e opaca...
12
XIII
seu castigo, z u r z i d o c o m m ã o de f e r r o , na h o r a
m a r c a d a pela sua justiça.
O a r r e p e n d i m e n t o e n t r a r i a então no coração
de A r g e m i r o .
O bond t a r d a v a e A l i c e não diminuía o
r y t h m o dos passos. Antes a s s i m ; elle gostava
de i r andando a pé, atrás d'aquella f i g u r i n h a
nervosa e f u g i d i a .
Q u e m tanto se apressa, c o r r e p a r a a f e l i c i -
dade, que p a r a o a b o r r e c i m e n t o o passo é t a r -
do. Pensava o n e g r o : ella v a i p a r a a l g u m a en-
t r e v i s t a de amor...
Isso c o n t r a r i a v a - o . . . e crescia-lhe com essa
idéa a r a i v a pela u s u r p a d o r a dos seus regala-
dos descanços e da sua a u t o r i d a d e de c h e f e !
E l l a m a t a r a o seu p r e s t i g i o . Viesse quem
viesse depois d'ella, e n c o n t r a r i a lançada na casa
a semente da desconfiança. Fôra u m d i a o Fe-
l i c i a n o , que l i a j o r n a e s nas cadeiras do amo,
c o m deliciosos c h a r u t o s entalados entre os bei-
ços 1
U m bond 1 E o bond p a r o u a u m gesto de
A l i c e , que s u b i u p a r a u m dos bancos da frente,
conchegando c o m u m a r r e p i o o casaco côr de
m e l ao corpo f r i o r e n t o .
F e l i c i a n o , e m pé na plataforma, não a p e r d i a
de v i s t a .
N o l a r g o do Machado ella desceu e passando
pela frente da i g r e j a tomou a direcção da r u a
Bento L i s b o a .
182 A INTRUSA
I
A INTRUSA 183
v i d o ás janellas ou p e n e t r a r no c o r r e d o r , can-
çado de esperar, n u m a impaciência que o adoe-
cia.
E r a m quasi dez horas quando o u v i u r u m o r
de vozes e reconheceu a de A l i c e . Depois a
m o ç a reappareceu, p u x a n d o a p o r t a sobre s i .
A casa, impenetrável, g u a r d a v a o seu se-
gredo. A l i c e deslisava na s o m b r a com o mesmo
passo apressado. Dir-se-ia que i g u a l desejo a
levava ao ponto de onde p a r t i r a tres horas
antes!
Desnorteado, F e l i c i a n o hesitava se d e v e r i a
a c o m p a n h a r A l i c e , cujo destino conhecia, se
ficar m a i s a l g u n s instantes esperando alguém
que p o r v e n t u r a sahisse d'aquella casa. A l i c e
n u n c a e n t r a v a nas suas quartas-feiras depois
das dez h o r a s ; logo, ella m a r c h a v a para o
Cosme Velho. Interessava-o a g o r a quem ficava
a l l i . C o m e ç a r a m a c a h i r grossos pingos de
c h u v a e a escuridão era apenas d i s s i m u l a d a pe-
los lampeões de gaz. Já sem receio de ser s u r -
prehendido, F e l i c i a n o v e r i f i c o u o n u m e r o da
p o r t a p o r onde A l i c e s a h i r a , mas só se afastou
quando o u v i u que a f e r r o l h a v a m de dentro.
« Q u e m estava, fica... logo, vou-meembora».
E elle v o l t o u , i n t r i g a d o , aborrecido, c o m m a i o r
odio ainda p o r aquella m u l h e r que se lhe esca-
p a v a de entre os dedos fracos quando j u l g a v a
prendel-a p a r a toda a v i d a !
E m f i m já sabia a l g u m a c o i s a : a p r e n d e r a o
9
184 A INTRUSA
— Da vaquinha V i c t o r i a ?
— Sim... Que te diz ella?
— Tantas coisas... Hontem fomos ao Jardim
Zoológico. Vóvó ha-de crer? Ella contou-me a
vida d'aquelles bichos todos !
— Mentiras... Que pôde ella saber !
— E u contei a papae e elle affirmou que era
verdade !
— A h ! t u contas a teu pae tudo que ella te
diz ? Bem disse eu I é a tal historia dos sapati-
nhos de f e r r o . . . U m dia ha-de enterrar-te como
a madrasta fez á outra,
— Mas se ella nào é minha madrasta! Nem
diz nada de mal... Vóvò pergunte só ao padre
Assumpção. Elle também gosta de conversar
com ella. Hontem estavam muito tristes...
— Ambos ?!
— Ambos.
A baroneza riu-se.
— De que se r i , vóvó?
— De nada... achei graça! I a bem vestida
a tua D. Alice?
— Assim... assim... ella anda quasi sem-
pre com o mesmo vestido, quando sae. E' po-
bre ...
— Ella usa anneis ?... tem alguma joia ?...
A neta admirou-se de ver a avó tão córada
de repente; e, antes de responder á pergunta,
exclamou:
— Nunca v i vóvó tão vermelha I E depois, na-
190 A INTRUSA
— Mas v i v o como t a l . . .
— Sabes que m a i s ? ! Deixa-me t r a b a l h a r . . .
lamento-te m u i t o , mas não posso a r g u m e n t a r
comtigo. 3.25... parece-me que e r a este o n u -
m e r o . ..
— Como és f r i o . . .
— Sou velho ; e tenho juizo.
— T a m b é m eu sou v e l h a . . .
— Mas és m u l h e r , e v i v e s m a i s do s e n t i m e n t o
que da razão... A l i m e n t a s a idéa de que t u a
filha sente, soffre, existe, e exiges que ella oc-
cupe u m l u g a r que i n f e l i z m e n t e está bem vasio...
Deleitas-te em r e v o l v e r saudades ; fixas-te e m
pensamentos de que deveras f u g i r ; a m o r t e as-
susta-te ; a idéa do nada apavora-te e crêas en-
tão u m m u n d o á p a r t e para t u a filha, que, se
continú i a v i v e r , é só no t e u cérebro, m a i s
a i n d a do que no teu coração! Reage c o n t r a essa
tortura.. .
— E' a m i n h a consolação...
— E' o teu desespero!
— N ã o é... talvez deva s e r como d i z e s . . .
mas eu agarro-me a esta illusão, p a r a poder
s u p p o r t a r a saudade...
— N ã o chores...
— Sinto-me tão sozinha 1
— E eu ?
— Fugiste-me...
— Não, m i n h a velha, estou e estarei c o n n i g o
até á morte. O que tefizsofírer n a mocidade,
A INTRUSA 199
quero r e d i m i r na v e l h i c e . . . T u a m ã e , s i m , te-
r i a razão de queixa c o n t r a m i m ; t u não a tens
c o n t r a o A r g e m i r o ! Nossa filha, r e p a r a o que
eu digo — nossa filha — gosou emquanto v i v e u ;
já f o i u m a felicidade ! T u esperaste p o r m i m
a l g u m a s vezes até alta noite... lembra-te! E l l a
n u n c a esperou... Fiz-te chorar, dó que me a r -
rependo ; o A r g e m i r o só a fez s o r r i r . . F o i p o r
causa do teu c i u m e de esposa, m u i t o justificado,
que escolheste este e r m o para viver... S u j e i t e i -
me. Venceste. Hoje, a r r e p e n d i d o , v i v o cosido
ao agasalho das tuas saias e acredita que, se
m o r r e r e s antes de mim... creio que me fecha-
r e i v i v o no teu caixão...
O Barão dizia estas coisas r i n d o , m a s com
os olhos afogados e m p r a n t o ; a m u l h e r , cho-
r a n d o francamente, approximou-se e u n i u os
seus lábios trêmulos aos lábios m u r c h o s do
marido.
— V a i descançar ! disse-lhe elle, afagando-a.
E l l a s a h i u ; elle l i m p o u os olhos, esteve a l -
g u m tempo a pensar em coisas distantes ; de-
pois; c o m u m s u s p i r o , v o l t o u ao seu catalogo :
— 325...
P
° S°
i s a r a
como se eu tivesse tomado
f o i
• T~~ ^H^^H
A INTRUSA 227
gUÍr
l Não
m
é preciso: eu sei o caminho I Gloria!
^AÍSSSiiu a porta do corredor e arras-
tando a neta sahiu, acompanhada pelo marido,
que levava as mãos cheias de embrulhos, fln-
oindo-se muito atrapalhado com elles.
Alice sorriu. Certamente a vida e as vezes
bem amarga e dura de ganhar 1... Que deveria
e l t espera*?., fosse o que fosse, esperaria ate
ao fim!
XVI
—Han?!
— Foi, sim. No mesmo dia em que viemos
da chácara elle foi chamado por um telegrammal
Não sabia?
— Não!
Houve uma troca de olhares involuntária en-
tre Alice e Assumpção. Que! pois ella descon-
fiaria ? !...
A moça voltara-se para o terracinho, olhando
agora para o mar, muito azul.
Assumpção pedia desculpas, tinha as mãos
sujas de terra. Correu a laval-as, emquanto D.
Soprtia mandava v i r cadeiras para o jardim.
— Isto sempre é mais bonito que lá dentro.
Casa de uma velha e de u m padre não tem ale-
gria. Sentem-se aqui, olhando para o mar...
assim. A vista é bonitinha, hein? Com que en-
tão, Sr. D. M a r i a da Gloria, está muito adean-
a
tada?
— Qual!
— Não ?! pois é pena: está ficando uma moçal
E voltando-se para Alice:
— Como esta menina cresce! Acho-lhe uma
differença! É o pae !
— Sim... parece-se, confirmou Alice.
Gloria não se sujeitou á cadeira, levantou-se
para revistar os canteiros e uns caixotinhos que
via pregados ao muro. As duas senhoras con-
versavam e tão entretidas pareciam uma com a
outra, que Assumpção ao voltar do lavatorio,
*
244 A INTEUSA
— Por consciência...
— Outros o usam com menos justiça... eu
teimarei em chamál-o doutor... Porque não nos
tem apparecido?
Elle desculpou-se, e, como se tivessem acon-
chegado mais as pessoas do grupo, deixou-se
ficar, envolvido nos perfumes dos vestidos boni-
tos que o cercavam. Sinhá, sempre voltada para
o mar, não perdia de vista uma baleeira onde
um rapaz loiro se condecorára com um ramo de
violetas... A mãe fallava, fallava sempre, se-
meando sentenças, no seu palavreado animado e
imperativo.
O marido não a acompanhara. L á tinha tempo
para se d i v e r t i r !
Os altos negócios do Estado suíYocavam-n'o;
v i v i a numa rêde de conferências, projectos e
estudos de responsabilidade. Se todos tivessem a
sua sinceridade!
— Faziam-lhe justiça... observaram.
— Qual! os sacrifícios eram de tal ordem, que
não transpareciam completamente cá fóra... U m
verdadeiro escravo das suas idéas, o marido! A
politica é despotica... o que lhe valia era não
ter ciúmes... De resto, concluia ella, para dizer
algo em ar de sentença: no amor, quando o
ciume entra pela porta, a confiança salta pela
janella! Em todo o sentido, — e sublinhava com
o olhar a phrase — nunca deixára de confiar no
marido.
A INTEUSA 255
- D . Gloria?
— Que é? respondeu ella de dentro.
— Sua avó está chamando a senhora...
— Diga a vovó que já vou. Estou dese-
nhando!
A baroneza exasperava-se, passeando na sala
de jantar. E como a menina não apparecesse
logo, ella gritou :
— Feliciano !
— Senhora ?...
— Então?
O negro sorriu malevolarnente :
— Estão conversando...
— Bata outra vez! Diga que venha já!
Desaforo!
Feliciano voltou a bater, maciamente, sem
impaciência.
— D. Gloria?
— Já vou ! Diga a vovó que espere só um bo-
cadinho...
E r a demais! aquillo precisava ter um fim.
Até a neta lhe desobedecia! Sim, senhores! A
obra da outra estava completa! A não ser o ne-
gro, todos conspiravam contra ella. Até o ma-
rido. .. até a filha da sua filha !
Pela porta aberta da saleta ella via na parede
fronteira o retrato da filha, muito desbotado, es-
vaindo-se, cercado por uma moldura de ébano.
«Emquanto eu viver, meu amor, será lem- ,
brada a tua ultima vontade... não me esqueci;
264 A INTRUSA
— Assumpção!
— Argemiro...
— Fizeste bem em v i r esperar-me; estou doido
por conversar comtigo ; disseram-te lá em casa
que eu chegaria hoje'?
— Naturalmente... eu não poderia adivi-
nhar !... olha a tua mala... Pareces-me magro...
— U m pouco...
— Boa viagem ?
— Regular... Como está a minha gente?
E tua mãe ?
— Dá a mala ao carregador... Conversare-
mos em caminho.
— Tens razão ; e eu estou com pressa de che-
gar a casa. Decididamente, abomino os boteis.
Que desconforto ! que aborrecimento! que noites !
A h ! Assumpção, nunca o meu cantinho me
pareceu tão delicioso como nesta ausência. Isto
A INTRUSA 271
«Meu amigo: ia
Sinhá.»
sejo fallar-lhe...
— Ella está na sala de jantar, com D. Maria
da Gloria...
— Bem, então não a incommode; eu vou lá.
O barão sumira-se atrás do genro, pela escada
acima, e o padre Assumpção seguiu pelo corre-
dor.
Gloria enfeitava uma cesta de flores e fructas,
d i r i g i d a pela governante. E r a para o centro da
mesa do almoço. Assumpção parou entre portas,
ouvindo-as sem ser presentido:
«... tenha o cuidado, Gloria, de combinar
as côres, de modo que umas façam resaltar as
outras... por exemplo, sempre que tiver flores
escuras, como estas rôxas, ponha-as ao lado de
brancas ou de amarellas... Refresque o musgo
com agua todos os dias... não consinta na mesa
284 A INTRUSA
— E u não a comprehendo... m a m ã e !
— A r g e m i r o ! a minha convivência nesta casa
com essa mulher provou-me que as minhas sus-
peitas tinham fundamento. Ella ama-o.
A r g e m i r o não conteve um movimento de sur-
preza:
— E' impossivel!
— Antes eu tinha a intuição d'isso; tive de-
pois as provas, toda a certeza. Encontrei-a mui-
tas vezes aqui, olhando para o seu retrato ; vejo
a ternura com que ella aperta nos braços sua
filha, o desvello exaggerado com que trata tudo
que diz respeito á sua pessoa e como enrubece
ao pronunciar o seu nome. Affirmo-lhe que o
ama. E u nunca me enganei. Certa d'esta verdade,
deliberei despedil-a antes da sua chegada, do
que não me arrependo, por que era tempo de
acabar a comedia, que não podia ser presen-
ceada por minha neta.
— M i n h a senhora!
— A h ! já não diz minha mãe!... E r a ainda...
E m f i m I peço-lhe desculpa se o offendi.
— Fallemos com calma. Não sei em que l i n -
gua hei de dizer, para fazer-me entendido: que
nem sequer sei a côr dos olhos d'essa senhora,
cujas feições ignoro e cuja voz mal tenho ouvido
a distancia! E' bonita ? é feia ? Que me importa!
Nunca a v i . Não quero vêl-a. Para m i m ella não
é uma mulher, é uma alma apenas, que me en-
292 A INTRUSA
— Viste ?
— V i ! U m dia fui chamado a levar soccorros
espirituaes a um doente. E r a a paralytica. F o i
junto á sua cadeira de rodas, que o marido me
contou toda a historia de D. Alice. Conheciam-me
de nome e preferiram-me a outro padre qual-
quer, exactamente para mefallarem d'elJa, e pe-
diram-me que a protegesse ! 0 velho tinha medo;
conhecia as tentações cio mundo e a fraqueza das
mulheres... queria ouvir da minha bocca pala-
vras que o socegassem. Soceguei-o. No dia se-
guinte voltei, a saber da paralytica; tinha me-
lhorado. Estava eu lá, quando, percebendo os
passos de D. Alice, os velhos supplicaram-me
que me occultasse. Ella ficaria vexada se me
visse a l l i ; òccultei-me. F o i do meu esconderijo
que assisti á scena de humilhações a que me re-
feri. Não tinham bastado as minhas affirmações ;
o cego apalpou nervosamente os dedos, os pul-
sos, as orelhas da moça, á procura da joia com-
prometteclora... A paralytica pediu-lhe golosei-
mas. Enjoara tudo. M o r r i a de fraqueza...
Agora, senhora baroneza, creio que não pre-
ciso dizer mais nada...
O barão levantou-se:
— Luiza, não te parece que devemos pedir
perdão a essa senhora?
Mas a mulher não respondeu. Parecia petri-
ficada no seu logar, com os olhos fitos no retrato
mudo da filha.
XXI
— Obrigada...
Ella parecia querer ficar em pé, prompta
para f u g i r !
Elle gaguejou:
— Então...
Evidentemente não sabia como principiar.
De repente:
— Os seus cadernos estão numa ordem admi-
rável. Realmente eu nunca imaginei que uma
senhora entendesse tanto de contas... é um guar-
da-livros ! Comtudo... parece-me encontrar aqui
um pequeno engano...
Alice approximou-se, com um arrepiozinho
de susto.
Elle, indicando-lhe uma cadeira, a seu lado:
— Tenha a bondade de sommar...
Offereceu-lhe a penna, que ella mesma molhou
no tinteiro.
Estavam sós. A casa em silencio.
Alice sentou-se, com afflicta curiosidade, e
levantando o véo baixou os olhos para o caderno,
recomeçando a sommar as parcellas indicadas.
Entretanto, elle contemplava-a pela p r i m e i r a vez.
E r a mais bonita do que pensava: tinha a pelle
suave, os olhos pestanudos e o cabello escuro e
abundante...
A m ã o esguia, branca, movia-se sobre o pa-
pel, num leve tremor nervoso.
A r g e m i r o pensava:
« F u i um estúpido; eu deveria ter apressado
A INTEUSA 299
—Você?...
Elle olhou silenciosamente para a batina, como
para explicar tudo.
Transfigurada, num movimento inconsciente,
alegre, ella apertou-o nos braços e exclamou:
— Meu filho I
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