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Negação das formas:

matemática e ontologia nas humanidades


RENATO IZIDORO SILVA*

Resumo: Este ensaio apresenta como objeto de estudo a epistemologia da matemática e suas
implicações teórico-metodológicos nas Ciências Humanas modernas e contemporâneas.
Precisamente, estabelecemos como recorte histórico e filosófico o desenvolvimento da aritmética
pitagórica na esteira da polêmica com a geometria platônica às voltas dos limites da racionalidade
numérica em face da irracionalidade ontológica que envolvem o conhecer e o ser. Nossa hipótese
fundamental consiste em dizer que os questionamentos positivistas e neopositivistas sobre o
estatuto científico das humanidades entre os séculos XIX, XX e este primeiro quarto do XXI têm
suas raízes e remontam o princípio conceitual do termo número. O presente texto, portanto,
percorre os desafios etimológicos dessa palavra objetivando demonstrar que sua origem
estabelece fórmulas lógicas e técnicas responsáveis por excluir (despojar ou descartar) do
pensamento partes da realidade que lhes são cognitivamente irracionais, mas, empiricamente
reais.
Palavras-chave: Aritmética; Ritmo; Morfologia; Técnica; Irracional; Neopositivismo.
Denial of the forms: mathematics and ontology in humanities
Abstract: This essay presents as an object of study the epistemology of mathematics and its
theoretical and methodological implications in modern and contemporary human sciences.
Precisely, we established as a historical and philosophical cut the development of Pythagorean
arithmetic in the wake of the controversy with Platonic geometry around the limits of numerical
rationality in the face of ontological irrationality that involve knowledge and being. Our
fundamental hypothesis is to say that the positivist and neopositivist questions about the scientific
status of the humanities between the 19th, 20th centuries and this first quarter of the 21st have
their roots and go back to the conceptual principle of the term number. The present text, therefore,
goes through the etymological challenges of that word in order to demonstrate that its origin
establishes logical and technical formulas responsible for excluding (divesting or discarding)
parts of reality from the thought that are cognitively irrational, but empirically real.
Key words: Arithmetic; Rhythm; Morphology; Technique; Irrational; Neopositivism.

*
RENATO IZIDORO SILVA é Doutor e Mestre em Educação (PPGED/UFBA); Pós-Doutor
em Ciências do Ambiente (PPGCASA/UFAM); licenciado em Educação Física (UEL) e líder do grupo de
pesquisa "corpo e política" (corpolítica).

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Introdução passado, que serão abordadas
tangencialmente devido aos limites
Transferindo o projeto aritmético de extensivos da publicação. Nossa
Pitágoras para o emblema cartesiano do hipótese da suplantação da filosofia
enunciado “Penso, logo sou”, como Ontologia (clássica, moderna e
verificamos, na modernidade, o contemporânea) pela ciência como
movimento da ciência para suplantar a Lógica e Matemática (linguística e
filosofia; sobre a qual Platão investiu aritmética) encontra apoio em “O que é a
defesas pelo eixo ontológico do filosofia”, de Deleuze e Guattari (apud
impensável. Deleuze (2017, p. 29) nos ALLIEZ, 1994, p. 32), por revelar o
alertou sobre as contradições entre cruzamento empiria-razão no período
matemática e ontologia ao diferenciar a que abarca Descartes e Kant e seus
“distinção numérica” da “distinção real” sucessores positivistas e neopositivistas.
em seu “Espinosa e o problema da Esse processo pode ser retratado na
expressão” (1968). Torna-se geometria cartesiana e na lógica kantiana
imprescindível alertar sobre o amparadas pela aritmética.
significativo nível de dificuldade
intelectual imposto pela investigação
proposta, especialmente porque as
correlações filosóficas entre os clássicos Conquanto não seja nosso foco,
e os modernos são historicamente permanecerão subscritas algumas
distantes; exigindo um exercício transversalidades da fenomenologia de
hipotético-dedutivo e imaginativo1 Hegel, de Husserl e de Heidegger,
generoso diante de certas lacunas especialmente na filosofia francesa do
preenchidas por inferências conceituais século XX, como vetor de combate ao
pautadas em resultados de pesquisas neopositivismo em prol de uma
epistemológicas construídas sobre retomada da ontologia; principalmente
fragmentos arqueológicos do por Deleuze (HARDT, 1996, p. 37) e
pensamento humano registrado pela Merleau-Ponty (FERRAZ, 2009, p. 18).
escrita grega pré e contemporânea à Nas palavras neopositivistas de Nartop,
oralidade socrática. erguidas sobre a herança Descartes-
Kant, (apud ALLIEZ, 1994, p. 34) trata
Didaticamente adiantamos que o de afirmar “[...] a potência soberana do
percurso informativo à frente é longo, pensamento sobre o ser [...]”, reduzindo
detalhado e majoritariamente “[...] o dado [sensível] aos data da análise
concentrado no desvendamento dos [lógico] matemática no desenvolvimento
nexos tecidos entre os meandros e os do a priori [...]” da razão (WAGNER,
percalços etimológicos da emergência 2009, p. 100). Vale ressaltar que não nos
do número grego, ao passo de algumas alinhavamos com as críticas de Foucault
concatenações com a modernidade, mais voltadas à superação da filosofia do
especificamente com a influência da sujeito mediante exames da
aritmética de Frege no discurso fenomenologia e destacando o
científico promovido pelo Círculo de “positivismo lógico” e o
Viena (OUELBANI, 2009, p. 54) “estruturalismo” como as principais
durante o primeiro terço do século perspectivas analíticas que buscaram
1
Granger (1967, p. 69) comenta, sobre o variam no curso da história. Assim progride a
“dinamismo da razão matemática”, que: “A razão razão matemática que, longe de ser um corpo
evolui no sentido em que o ideal de ordem e o fechado de princípios, é imaginação regrada, mas
processo de construção dos conceitos novos criadora.

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“[...] sair da filosofia do sujeito” silenciado ou invisibilizado devido aos
(CANDIOTTO, 2013, p. 19). espetáculos técnico-científicos da
contemporaneidade que proclama o fim
Quanto a Lacan (2012), uma das do humano (mente e corpo biológicos) e
referências condutoras desta reflexão ao o começo dos robôs (mente/corpo
lado de Bachelard (2004), de maneira artificial) (DANOWSKI et al., 2014, p.
ambígua, adotou a lógica-matemática 14; GORZ, 2005, p. 94).
durante a segunda fase de seus
seminários, enquanto o segundo deixou O projeto científico do mundo mobiliza
um legado epistemológico em nome de uma sociologia que visa “[...] liberar a
um caminho dialético intermediário inteligência de suas limitações
entre filosofia e ciência. Mais um ponto biológicas e da contingência do
de ancoragem deste percurso, ressoa o patrimônio genético [...]. A técnica [...]
enfrentamento fenomenológico- deve ser compreendida como a natureza
existencial-ontológico de Heidegger criando-se a si mesma por intermédio do
(MACDOWEL, 1993, p. 15) contra o homem [...]. A diferença entre o Ser e o
neopositivismo e o fim da ontologia Pensamento [...] desaparece” (GORZ,
mediante a tentativa de tomada absoluta 2005, p. 95). Com isso recortamos a
do ser pelo pensamento (lógico- trama em que se insere e se atualiza a
matemático). “O verdadeiro Cogito não linha nevrálgica de nosso percurso no
substituí o próprio mundo pela mancal etimológico do número, tradução
significação mundo” (MERLEAU- latina de aritmética, então derivada da
PONTY, 1999, p. 9). O mundo não é negação do termo ritmo: arrítmico
nossos modelos lógico-matemáticos ou (arythmós/α-ριθμός). Ritmo
os limites de nossa linguagem (rythmos/ρυθμός) “[...] refere-se à
(WITTGENSTEIN, 1987, p. 114). experiência visual das formas”
(ROMEYER-DHERBEY, 1986, p. 92);
Para Deleuze e Guattari, em “O que é a de modo que aritmética ou número pode
filosofia?”, a “máquina de guerra” contra significar “negação da forma”; ao
a filosofia analítica consiste em libertar mesmo tempo em que pode afirmar
os conceitos da alienação para com o morfologias (SILVA, 2013, p. 31).
telos da ciência. Nesse momento, “[...] a
Diferenças entre rythmós, eîdos,
palavra ‘filosofia’ passa a indicar apenas
morphé: tékhne e morfologias
o alvo visado pela lógica das
aritméticas
proposições: pois ‘É um verdadeiro ódio
que anima a lógica na sua rivalidade Enfrentamos uma série de dificuldades
contra a filosofia’” (apud ALLIEZ, assentadas pelas significações em torno
1994, p. 32). Nosso desígnio com esse de rythmós e arrythmiston em antipatia
quadro condensado e complexo incide para com as acepções contraditórias
sobre a tarefa de indicar um caminho modernas e dos períodos antigo e
epistemológico que apresente os nexos clássico das filosofias pré (séc. VII a.C)
pitagóricos da ebulição filosófica gerada e contemporânea a Sócrates (séc. IV a.
pelo processo de domínio lógico- C.). Os obstáculos para compreensão do
matemático acerca da epistemologia, termo ritmo (rythmós) aludem a um
filosofia da ciência e da teoria do processo histórico de inversões de
conhecimento durante os dois primeiros sentido pelos significados do conceito de
terços do século XX cujos efeitos se forma, então associado a “modelo”,
intensificaram ao longo dos anos até os “contorno”, “desenho”, “estrutura”,
dias atuais, embora significativamente “disposição”, “figura”, “esquema” ou

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“limite”; enquanto que, logicamente, “a- Antífon4, de arrythmiston como “rebelde
ritmo” (arritmo/arrythmiston) diz à forma”, corroborada pelas traduções
respeito, pela partícula “a”, às operações modernas “livre de estrutura”
negativas da forma e, portanto, do (Heidegger); “fundo” (Schelling),
“modelo”, do “contorno” [...] do aponta que rythmós se desenharia sobre
“limite”. Contudo, nossa hipótese aponta uma superfície amorfa: arrítmica
que a aritmética nega a forma rítmica (ROMEYER-DHERBEY, 1986, p. 95).
(natural), mas afirma a estrutural Porém, somos aderentes à abordagem de
(artificial) na expressão técnica na Brague (2006, p. 146) baseada no
matéria. Urge desligar o termo ritmo de arrythmiston de Aristóteles;
sua significação moderna, e obliquamente, sem descartar Antífon.
desassociarmos as noções de “contorno”
e de “limite” do conceito de estrutura Será necessário compreender
(morfológica). arrythmiston como unidade (Antífon) e
como conjunto (Aristóteles). O
Segundo Romeyer-Dherbey (1986, p. arrythmiston nega o ritmo duplamente.
93), o desvio da interpretação primitiva Primeiro, conforme sua identidade
ocorre pelo apoio gramático na antifoniana, registra a suposição de
conotação musical2, fazendo “[...] unidades “rebeldes à forma”. Segundo:
derivar do verbo rhein [ρέω], que “Um arithmos é sobretudo uma
significa ‘correr’ [fluxo]”. Conforme o estrutura, um agrupamento”5
autor, Jaeger (2010, p. 161), em seu (BRAGUE, 2006, p. 150). Nossa
“Paidéia”, foi um dos pioneiros da crítica compreensão diz que o arrythmiston
etimológica ao encontrar ocorrências de apenas pode negar a forma rítmica
rythmós (ou rhysmós) em textos absolutamente se estiver como unidade
filosóficos cujo significado pode ser solitária; ao passo que, como unidade
considerado oposto a “fluir” (série solidária, continua a negar rythmós, mas
linear), pois designa a visão de traçados produzindo novas morfologias. Mas,
definindo limites herméticos. como é possível algo arrítmico (“sem
Concordamos em parte com essa crítica, forma”) gerar morphé (“formas”)? O
pois Jaeger atribui rigidez a esses primeiro erro de Antífon sobre o
limites3. Peixoto (2012, p. 38), baseada arrythmiston está em considerá-lo como
em Demócrito, diz serem dinâmicos (não uma espécie de “fundo” amorfo e
estáticos). A interpretação do sofista passivo sobre o qual: “Todas as figuras
2 4
Embora Romeyer-Dherbey (1986) não As informações sobre o sofista são escassas e
mencione a influência pitagórica sobre os chegou a ser confundido com outro sujeito
gramáticos da palavra ritmo, em Jaeger (2010, p. homônimo aristocrata chamado Antífon de
206) as referências são fortes sobre a relação Ramnos (orador, logógrafo e político). Adepto da
matemática-música ter determinado, doravante, a democracia, nasceu em Atenas e viveu
noção de ritmo atrelada à sucessão numérica aproximadamente entre 480 a 410 a. C., anterior
linear como o correr de um rio. a Platão e Aristóteles, comentado por esse último
3
Jaeger (2010, p. 161-162) se pauta nos mesmos na “Metafísica”, ficou mais conhecido
textos que Peixoto (2012), sobre Demócrito, e modernamente por seu texto sobre “interpretação
que Galimberti (2006), sobre Ésquilo, mas com dos sonhos” (ROMEYER-DHERBEY, 1986, p.
abordagem diametralmente oposta, pois 91).
5
compreende a noção de forma rítmica como Não encontramos referências de objeções de
“atadura”, “amarração” e “rigidez”. Urge Aristóteles acerca do arrythmiston em seu
reinterpretar a noção de fluxo rítmico associado estatuto de unidade sem forma, mas apenas que o
à dança como secundário. O ritmo da dança não numérico diz respeito à estrutura;
é apenas seriado, mas circular, geométrico. diametralmente se opondo a Antífon.

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do universo não são mais do que os O terceiro erro de Antífon foi tomar o
diversos contornos (rhythmos) arrythmiston como sendo “[...] o real e o
[estáticos] que ele adquire [...]” profundo, o rhythmos o superficial, o
(ROMEYER-DHERBEY, 1986, p. 95). aparente [...]” (ROMEYER-DHERBEY,
1986, p. 101); tal como, simétrica e
Veremos que as figurações sobre o inversamente, Platão considerará
arrythmiston não são os rythmós, mas as verdadeiramente real a Idéa, que possuí
morphés; do contrário, ele negaria e um eîdos (forma) geométrico; sendo as
afirmaria simultaneamente o rythmós. formas numéricas secundárias e
As operações arrítmicas funcionam intermediárias (RICOEUR, 2014, p. 8).
como barreiras para os fluxos rítmicos Galimberti (2006, p. 335) comenta que:
naturais, de modo que as estéticas “O ápeiron de Anaximandro [...] não é
morfológicas possam aflorar pelo designado por nenhum número em
diálogo entre figura e fundo na matéria. sentido platônico-aristotélico, porque
O segundo equívoco de Antífon, não tem nenhuma grandeza apreciável
decorrente do anterior, atribui ao [sensível ou visível], não se deixa ver
arrythmiston uma natureza metafísica (ideîn) em nenhum limite, nem se
equiparada ao ápeiron de Anaximandro, submete a medida alguma”. O número
bem como semelhante à concepção (arrythmiston) não mede as formas
pitagórica de número ao ser considerado suprassensíveis e suas essências, mas
“[...] estável e permanente, indestrutível apenas a matéria sensível, o mensurável
e imortal; sendo substrato, está, pois, e não o incomensurável, conforme Platão
fora do tempo e, inversamente, o tempo, critica os pitagóricos (POPPER, 2014, p.
que é passagem, não pode ser 303). Embora a origem da matemática
substrato”6. Ao arrythmiston é conferida associe o número ao mito, assim como a
uma consistência ontológica, a palavra, seu desenvolvimento aritmético
“verdadeira realidade”, por sobre a qual se manteve limitado a dispersas e gerais
todos os mortais e suas múltiplas formas aplicações nas grandezas físicas finitas,
(rythmós) perecem (ROMEYER- positivas e racionais7 (GALIMBERTI,
DHERBEY, 1986, p. 98-99). Antífon 2006, p. 334-336), incluindo o governo
confundiu o fato de o arrythmiston ser do espaço político da pólis (VERNANT,
capaz de produzir formas (morphé) 1990, p. 291) como tékhne da
materiais como o “ser primeiro” amorfo proporcionalidade alma/cidade
de onde emanam todas as formas (RICOEUR, 2014, p. 35).
eidéticas; diferente do que mais tarde
Paulatinamente, a dessacralização
propôs Platão sobre as formas sensíveis
conceitual do arrythmiston pitagórico de
serem deduções das Formas Antífon permite aproximarmos os
Suprassensíveis.
números das atividades humanas ligadas
6
Jaeger (2010, p. 198) oferece outro dado sobre geométrica do cosmos, não podemos perder de
a dificuldade em associar o número pitagórico, vista o que diz Popper (2014, p. 301) sobre a
que supomos ser o fundamento de Antífon, ao aritmetização da geometria, veementemente
ápeiron de Anaximandro: “A concepção da Terra combatida por Platão.
7
e do mundo [desse último] é uma vitória do De acordo com Ricoeur (2014, p. 35), “[...]
espírito geométrico”; que posteriormente, por segundo Aristóteles, todas as Ideias teriam sido
Platão, será oposto ao espirito aritmético dos números no final do platonismo, que teria se
pitagóricos. Ainda segundo Jaeger (2010, p. tornado uma metamatemática”, revendo as
204), embora o próprio Pitágoras tenha investido referências míticas do número; contradizendo
aproximações com a “teoria” de Anaximandro, “[...] a pejoração relativa dos seres matemáticos
apoiando seu conceito de número à simetria nos Livros VI e VII da República [...]”.

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à tékhne (τέχνη) de formas (morphé) na τέχνη visa produzir em uma matéria um
matéria (hýle); nas quais a matemática είδος [...]”, sendo que arte ou técnica dita
aritmética terá participação relevante, o modo de uso de uma força em termos
principalmente na ciência moderna. A de limites. “Este είδος não é uma
relação fundamental entre o número e a ‘invenção humana’, que o operário
técnica pode ser encontrada em poderia criar [...] sua fantasia”. Ele deve
Galimberti (2006, p. 269) ao mencionar ser submisso e servo dessa ordem,
Ésquilo atribuindo “[...] a Prometeu a estranha à natureza humana, descendente
descoberta do ‘número, a mais excelente do Mundo das Formas ou Idéias. A
das invenções [kaì mèn arithmón, conexão do artesão com o eîdos ocorre
éxochon sophismáton]’”. Proposição pela alma (psykhé/ψυχή), fonte da tékhne
replicada em outra tragédia de Ésquilo, e epistéme, em oposição ao seu corpo
“Palamedes”, mítico inventor de técnicas sensível executor da obra (GOBRY,
graças à sua ‘primeira descoberta: o 2007, p. 124 e 142), essa, uma impressão
número, a mais excelente das invenções imperfeita da morphé na hýle.
[prôta mèn tòn pànsophon arithmòn
Ricoeur (2014, p. 8) ensina eîdos ou idea
heúrek’éxochon sophismáton]’”. O mito como um conceito que, no platonismo,
de Prometeu ficou conhecido como o apreende “[...] uma mutação, um salto da
“mito da técnica” ou do “domínio da mente, para passar do plano da
técnica”8 e o desafio que esse coloca dos enumeração para o plano do ‘mesmo’
homens para os deuses. Essa associação [identidade], da extensão para a
ao número (arrythmiston) corrobora com compreensão”. Quanto ao sentido de
nossa hipótese de a aritmética negar o forma, cujo vocábulo tem como fonte a
rythmós em favor da impressão tékhne da
cultura popular grega, a ontologia
morphé na hýle.
platônica se inspirou na geometria de
Apesar dos registros da relação entre modo a entender eîdos tanto como
tékhne e arrythmiston e suas implicações contorno (limite) externo de uma figura,
indiretas na produção de morphé na hýle, quanto de sua estrutura interna. Eîdos,
ainda nos falta incluir na reflexão outra em termos de contorno visível, não pode
palavra que também traduz forma em ser tomado, em Platão e em Aristóteles,
grego: eîdos9. Consequentemente, no plano da visibilidade física dos
veremos que se o arrythmiston mantém objetos, mas sim na “[...] visualização do
com rythmós uma relação de negação, inteligível e o esboço das sucessivas
enquanto com morphé uma afinidade de sublimações do ver (a contemplação),
produção; com eîdos a analogia será de uma transcrição platônica do visível para
imperfeição devido a uma falha que lhe o inteligível” (TAYLOR; DIÉS, segundo
é própria para com o Mundo das Ideias RICOEUR, 2014, p. 8). Nesse sentido,
ou Formas (RICOEUR, 2014, p. 39). Gobry10 (2007, p. 95) observa que
Segundo Vernant (1990, p. 344), “[...] a morphé (μορφή) é um sinônimo de eîdos,

8
Vernant (1990, p. 313-324) levanta alguns “[...] deriva do verbo arcaico e poético
problemas, contradições e limites documentais eídomai/ειδομαι: apareço (sou visto); donde o
para a perpetuação do senso-comum moderno sentido primeiro de eidos: aspecto, aparência. O
sobre Prometeu ser uma divindade da técnica perfeito do inusitado eído/είδος: ver, oída/οίδα,
ligada ao fogo. Porém, desta vez deixaremos tais adquire um sentido presente: sei” (GOBRY,
objeções em suspenso e nos manteremos na linha 2007, p. 49).
10
de nossa tradição. Todos os destaques de palavras (itálico e
9
Eîdos (είδος) pode receber diferentes traduções: negrito) incluídas nas citações diretas (entre
essência, ideia, forma, gênero, espécie. O termo aspas) são dos autores, porque mantemos a forma

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mas de utilização restrita por Aristóteles μορφή, encontramos em Szlezák (2010,
para seres naturais: “A substância é p. 123) o platonismo e o aristotelismo de
composta de matéria e forma”. Notemos Plotino refletindo que as formas
que tanto o arrythmiston quanto a sensíveis “[...] precisam distinguir-se
morphé estão associados ao mundo uma das outras, e cada uma deve ter uma
empírico da hýle mediados pela tékhne. forma própria (μορφή)”.
O rythmós também dá forma à hýle, “Fundamentalmente, essa palavra
porem mediante ação natural [morphé] designa o aspecto da coisa [...],
(phýsis/φύσις). belo, agradável, harmonioso, e se aplica
em geral ao corpo humano11”
Referências aristotélicas afirmam (PELLEGRIN, 2010, p. 32). Desse
morphé como ação da tékhne aplicada à modo, sensibilidade e pensamento
hýle enquanto o eîdos, à metafísica do humanos são contemplados como
demiurgo; permitindo-nos incluir o atividades terrenas cujas formas podem
arrythmiston na produção humana. “Em ser apreendidas não no estado eidético
De anima [...], a alma, na qualidade de platônico (inteligível), mas
forma do corpo, é chamada [...] de eîdos demonstradas ou apresentadas de modos
e morphé” (GOBRY, 2007, p. 50). morfológicos (visíveis) pelas técnicas
Conforme Ricoeur (2014, p. 228), humanas.
embora eîdos seja comum a Platão e a
Aristóteles, como se esse objetivasse
salvar certo núcleo da teoria das Formas, A morphé, forma aplicada à hýle por
“[...] está em causa [na filosofia meio da tékhne, que, de acordo com
aristotélica] mostrar a identidade física e Pellegrin (2010, p. 32), Aristóteles
lógica do eidos com a própria coisa; não justapõe restritamente às coisas
é um modelo da coisa, é a própria coisa sensíveis, mais especificamente às
em sua inteligibilidade própria e em sua formas harmoniosas do corpo humano,
realidade imanente”. Baseado no texto coincide com o ápice do
da “Física”, Gobry (2007, p. 50) diz que: desenvolvimento da tékhne entre os
“É próprio de Aristóteles e [...] tem como escultores precursores da arte grega
sinônimo [de eîdos] morphé/μορφή. [...] inserida em um processo de crise e
As realidades sensíveis [seres da liberação à estatuária religiosa
natureza] [...]”. tradicional antes do século VI a. C.. Com
Vernant (1990, p. 415) lembramos que a
Para Pellegrin (2010, p. 32): “Em idolatria grega evoluiu do kolossós ao
Aristóteles, a palavra morphé tenderá eikós (imagem), passando pelo xóanon.
[...] a ser empregada para [...] coisa mais Espécies de estátuas, a primeira (pedra
superficial do que [...] eîdos, [...] o imóvel) não tinha compromisso com a
principal termo para indicar a realidade semelhança do corpo do morto ou da
formal”. Outra referência rara sobre divindade; o último (madeira móvel)
morphé, escrita apenas na grafia grega apresentava algumas semelhanças; a
11
original do texto citado. Desse modo, as palavras Com Vernant (1990, p. 415) lembramos que a
em língua estrangeira (grega) escritas por nós não idolatria grega evoluiu do kolossós ao eikós
estão em negrito ou em fonte normal, e sim em (imagem), passando pelo xóanon. Espécies de
itálico em cumprimento das normas brasileiras estátuas, a primeira (pedra imóvel) não tinha
para escrita de trabalho acadêmico. As grafias compromisso com a semelhança do corpo do
gregas para as palavras ritmo e aritmética morto ou do deus; o último (madeira móvel)
apresentam diferenças a depender dos autores apresentava algumas semelhanças; a segunda
citados. O termo número é sinônimo de cumpria função estreita de ser idêntica ao
aritmético referente corporal humano, coincidindo

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segunda cumpria função estreita de ser numéricos vão superando os
idêntica (ícone). Entre os séculos VI e V geométricos e, portanto, realizando um
a.C. a estatuária religiosa deixa de ser afastamento cada vez maior dos ritmos
secreta à família e passa a habitar a plena ou formas da natureza e das ideias
visibilidade luminosa (cháris) dos suprassensíveis. Duas perguntas
templos públicos. incontornáveis se mostram: i) por que a
aritmética está fadada a produzir,
As qualidades físicas da imagem
tecnicamente, formas (morphés)
esculpida expressavam valores e poderes
imperfeitas em relação ao eîdos e
superiores aos humanos precários. A
negativas em relação ao rythmós?; ii)
ideia de beleza (callistéia) divina passa a
qual a relação de rythmós com o eîdos de
ser o critério de produção. As referências
modo que, direta ou indiretamente, esteja
visíveis dos artistas eram os corpos dos
envolvido na linha de defesa platônica da
jovens atletas; os únicos a expressarem
geometria ontológica? Responderemos a
aspectos divinos. “A imagem dos deuses
primeira questão por ser mais relevante a
que a estátua antropomorfa fixa é a
este trabalho, principalmente porque é a
imagem dos ‘Imortais’, dos Bem-
compreensão moderna de aritmética que
aventurados, dos ‘sempre jovens’ [...]”
melhor a demonstra.
(VERNANT, 1990, p. 412-414). A
história do antropomorfismo icônico da Partiremos de dois enunciados modernos
estatuária apresenta registros mais sobre a aritmética. O primeiro a ser
fortemente encontrados a partir do final exposto foi elaborado por Lacan (2012,
do século V a.C. em que figuram ícones p. 54), durante seu “Seminário” de 1971-
(imagem/eikós) (Kôuros ou Kóre) nas 1972, intitulado “Da necessidade à
lápides dos mortos na juventude, inexistência”, proferido em 19 de janeiro
guerreiros ou não. Sobre as “imagens de 1972, fazendo menção ao tratado de
antropomorfas de juventude” das Frege sobre aritmética. O segundo é de
estátuas desse período, fruto do autoria de Bachelard (2004, p. 72)
desenvolvimento da tékhne, que quando da escrita de sua tese de
julgamos estar associada à aritmética, doutorado intitulada “Ensaio sobre o
chama nossa atenção a coincidência com conhecimento aproximado”, de 1928. O
a associação de Antífon do arrythmiston primeiro foi lançado após os efeitos
ao estável e permanente da juventude consolidados do Círculo de Viena na
imortal (ROMEYER-DHERBEY, 1986, ciência e o segundo, um ano antes da
p. 98). primeira reunião do Ciclo..., mas após o
Aritmética e as irracionalidades escrito de Frege sobre “Os fundamentos
rítmicas: geometria, ontologia e da aritmética”. Adiante verificaremos o
humanidade significado moderno do pensamento
pitagórico: “[...] não pode subsistir nada
Mantendo nossa hipótese de que que não se possa, em última instância,
aritmetizar significa negar as “formas reduzir a número” (JAEGER, 2010, p.
rítmicas”; mas, afirmar a morphé; 206) e suas consequências
devemos encarar o problema de epistemológicas para as Ciências
considerar rythmós e morphé como, Humanas e sua dimensão ontológica.
ambos, embora diferentes, manifestas no
mundo sensível, ao passo que a segunda Sobre o surgimento do número 1, Lacan
mantém uma relação imperfeita com o (2012, p. 54) diz o seguinte aos ouvintes
eîdos devido a consistir em uma do seminário: “Para que elas [as pessoas
produção técnica cujos cálculos presentes] tenham valor de 1, é preciso,

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como se observou desde sempre, que manutenção de certa homogeneidade da
sejam despojadas de todas as suas quantidade. Para isso é preciso expulsar
qualidades, sem exceção. Então, o que da pesquisa fenômenos parasitos de uma
sobra?”. Bachelard (2004, p. 72) afirma ordem determinada de pequenez”.
que: “Em todos os níveis da experiência,
O quadro abaixo representa um processo
o físico deve sempre indagar: o que
matemático realizado sobre os ícones de
posso desprezar?” Existem limites entre
um objeto, guarda-chuva, em duas
epistemologia e ontologia devido a
situações (modalidades distintas), aberto
contradições aritmética-geometria
e fechado, definido por suas formas
quando a racionalidade daquela tenta
geometrizadas que, então, passaram por
assimilar a irracionalidade dessa. A uma paulatina redução simbólica a uma
aritmética aplicada à física, no sentido de
unidade numérica (arrítmica): o número
ciência da natureza material, busca, por 1.
métodos e instrumentos, “[...] a

Figura 1 Figura 2

Fonte: o autor. Fonte: o autor.


Figura 1 e Figura 2

O primeiro aspecto observado na Figura “guarda-chuva” fechado uma categoria e


1 é que não estamos diferenciando “guarda-chuva” aberto outra categoria,
modalidades: o guarda-chuva aberto ou então, perguntamos, podem ser somados
fechado (primeira e segunda linhas) se não são idênticos nos valores modais
equivale ao mesmo objeto. Conta sempre extensivos, isto é, espaciais e
como uma unidade que pode ser somada geométricos?
à outra unidade, de modo que o resultado A Figura 2 evidencia uma tradução
seja duas unidades de guarda-chuva aritmética ou numérica do eîdos e das
(aberto ou fechado). A terceira linha
morphés (fechado=1gf e aberto=1ga)12
coloca o problema da modalidade das do guarda-chuva. Em termos
formas de um objeto e, assim, uma
aritméticos, o “objeto” foi despojado
dúvida sobre a possiblidade de somatória (Lacan) de toda sua forma, ao passo que
de suas unidades. Ergue-se a
suas dimensões quantitativas extensivas
problemática da identidade. As unidades foram desprezadas (Bachelard). É nesse
só podem ser somadas entre si se forem
sentido que o número (arrythmiston) não
idênticas em essência ou se participarem possui forma (é amorfo) e,
da categoria. Essencialmente, aberto ou consequentemente, pode “tomar” a
fechado, a Figura 1 apresenta ícones de forma de quaisquer outros objetos; ou
guarda-chuva. Desse modo, um guarda- seja, pode simbolizar substituindo toda e
chuva fechado mais outro guarda-chuva qualquer forma; equivalendo, portanto,
aberto equivalem a dois guarda-chuvas como uma “representação” universal
em essência. Contudo, se considerarmos ignorante das diferenças. Caso

12
As letras “gf” juntas, ao lado do número 1, fechado”, ao passo que “ga” significa “guarda-
significam as siglas do termo “guarda-chuva chuva aberto”.

91
traduzamos a diferença para o símbolo consideradas irracionais, continuarão a
numérico (1gf + 1ga = 2gfa?), como na perturbar a realidade (individual e social)
terceira linha da Figura 2, teremos por conta do estatuto real dessas
dúvidas sobre a soma, de modo que, a contendas, tal como insistiu Deleuze
pequena diferença, estranhará ambos em (2017, p. 29) sobre as “distinções
um mesmo conjunto indubitavelmente. numéricas e reais”.
Não formará um grupo perfeito.
Um questionamento se levanta acerca de
Aplicando o raciocínio aritmético das qual o resultado da seguinte operação
unidades identitárias às Ciências aritmética: 1 humano + 1 humano.
Humanas, veremos imediatamente se Somente reduzindo cada humano ao
manifestar sua dimensão ontológica ao número “1” é que poderemos colocar
implicar problemas para a racionalidade humanos diferentes no interior de um
numéricas. Como vimos, a identidade mesmo conjunto de unidades identitárias
entre duas unidades diferentes (1gf e de tal modo que a única diferença entre
1ga) apenas pode ser produzida se as eles será a da posição na série inclusiva
despojarmos de suas distinções ou subtrativa. No caso de uma pandemia
qualitativas (figurativas) e quantitativas de um vírus mortal, os humanos mortos
(ocupação do espaço) quando as podem ser contados um a um sem
representamos pelo número “1” e pela diferenças (entre dançarinos e
letra “g” (1g), de modo a atribuirmos o cientistas), senão pela posição na ordem
mesmo valor para 1gf e 1ga. Entretanto, seriada, do primeiro ao último. Na senda
ao operarmos do mesmo modo com de Aristóteles, há duas situações
humanos (unidades ou conjuntos), morfológicas de estrutura numérica ao
teremos problemas ao excluirmos suas articular unidades enumeráveis.
diferenças do cálculo, pois essas,

Figura 3 Figura 4 Figura 5:

Fonte: Fonte: Fonte: Mattéi (2000, p. 82).


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Figura 3, Figura 4, Figura 5

A Figura 3 apresenta um desenho com essa técnica, o desenhista não


produzido a partir de coordenadas no necessita ter o “eîdos” em sua
plano cartesiano. Imaginando uma mente/alma e transferi-lo para o sensível
pessoa que não sabe desenhar “à mão do papel, pois o “eîdos” está contido
livre”, basta fornecer-lhe as coordenadas implicitamente na lista de coordenadas;
no plano cartesiano, cujos pontos são o “eîdos” está no instrumento e não no
interseções de retas saídas dos eixos y ser humano. Esse último não passa de um
(vertical) e x (horizontal) a uma dada executar ignorante da tecnologia (plano
distância do ponto zero. Para desenhar cartesiano). Desenhar “à mão livre”

92
estaria para uma operação ontológica limite atribuída ao ritmo da dança por
enquanto desenhar por “coordenadas Jaeger (2010, p. 161), pois ele ignora o
numéricas” está para uma operação movimento ígneo da dançarina em favor
aritmética. A Figura 4 orienta uma no fluxo linear dado em séries de
produção na lógica sequencial dos movimentos e gestos. Demócrito
números, partindo do 1 e finalizando no expressa que: “Por mais idênticos que
210. A técnica se resume em traçar uma eles sejam, esses átomos [alma/fogo] dão
linha contínua ligando todos os origem a uma variedade de compostos
números/pontos da série que define uma diferentes graças à diversidade de seus
figura. rhysmói”. Por um lado: “Impossível seria
[...] o metarhysmein do qual fala o
Os dois modos de produção morfológica fragmento transmitido por Clemente”
(artificiais) negam as formas rítmicas (DK 68 B 33). Por outro: “Os átomos da
(naturais), porque suas técnicas ou alma no corpo metarhysmousin, pois
instrumentos impedem que o desenhista [...], uma vez dispersos em toda a
“à mão livre” imprima suas nuanças e extensão do corpo, eles são a origem do
fluxos ao acaso; aos acontecimentos movimento e das sensações [...]” para
“naturais”. Trata-se de um tipo de Peixoto (2012, p. 38).
técnica capaz de impedir ou anular a
manifestação, por transferências ou Diferente é a forma (morphé) aritmética
transmissão, dos ritmos corporais que, conforme Matttéi (2000, p. 82), a
incontroláveis e irracionais do artista em aritmetização geométrica de Pitágoras
sua obra. Essas técnicas operadas pode ser retratada na seguinte Figura 5.
aritmeticamente executam uma exclusão “Vê-se que número ímpar [...] alinhado
de arestas e contornos mais segundo um ângulo ímpar [1, 3, 5, 7 na
arredondados. Não obstante a facilidade vertical] é representado por uma figura
dessa técnica para desenhos cujos finita, logo perfeita [...]” (MATTÉI,
contornos são retos e não linhas curvas. 2000, p. 82). Os números verticais do
Assim como, no caso de reproduzir um esquema à esquerda correspondem à
“eîdos” curvilíneo, boa parte das nuanças quantidade de pontos, sendo o ponto
não serão captadas pela técnica e pelo ímpar no vértice. O “[...] número par ou
instrumento. Esse argumento vai ao ‘oblongo’ [...], alinhado segundo um
encontro da exposição de Peixoto (2012, ângulo par, é presentado por uma figura
p. 38) sobre a concepção de Demócrito indefinida, ‘heteromera’, logo,
sobre o rhysmós: “Seus átomos [alma] imperfeita, cujos dois lados
‘lisos e redondos” [...], de rhysmós dissemelhantes [...]”. Por determinação
‘esférico’ [...], são ‘ígneos’ [...], isto é, aritmética e instrumental dessas formas
possuem ‘uma potência de fogo’ [...]”. (morfológicas) as formas rítmicas
(rysthmós) são negadas a participarem da
Opostamente, a aritmética de base
figura finita. Mas, excluídas da estrutura
pitagórica permanece limitada à negação
morfológica, permanecem vivas na
das “distinções reais”; nuanças
natureza, cujas formas (rythmós) ou
curvilíneas semelhantes à visão dançante
“distinções reais” nunca são totalmente
que temos de uma chama de uma vela:
racionalizadas. Compreendemos que às
embora seu eîdos possua uma identidade,
Ciências Humanas interessa estudar e
os contornos apresentam fluxo cinético
compreender justamente tudo aquilo que
não linear tal como o corpo de um
o número excluí e não pode contabilizar
dançarino. Por essa interpretação não
ou mesmo perfilar estatisticamente.
podemos concordar com a noção de

93
Considerações finais independem da razão humana; afetam
nossos sentidos e pensamentos
Estudamos os fundamentos incalculavelmente.
epistemológicos da matemática e
pudemos notar em suas origens
aritméticas o princípio da redução Referências
numérica do real em termos de negação ALLIEZ, E. A assinatura do mundo: o que é a
das formas rítmicas naturais. Embora o filosofia de Deleuze e Guattari? Tradução de
número enquanto unidade possua uma Maria Helena Rouanet e Bluma Villar. Rio de
essência arrítmica e amorfa, quando Janeiro: Ed. 34, 1994.
articulado a outras unidades pode BACHELARD, G. Ensaio sobre o
produzir morfologias. Quando aplicados conhecimento aproximado. Tradução de Estela
às Ciências Naturais, os cálculos dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004.
numéricos se mostram efetivos e pouco
problemáticos. Contudo, inseridos nas BRAGUE, R. O tempo em Platão e Aristóteles.
pesquisas das Ciências Humanas causam Tradução de Nicolás N. Campanário. São Paulo:
Edições Loyola, 2006.
perturbações epistemológicas e
ontológicas, pois as exclusões qualitativa CANDIOTTO, C. Foucault e a crítica da
e quantitativa que promovem os limites verdade. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora; Curitiba: Champagnat, 2013.
da razão não impedem que as “distinções
reais” se manifestem nas realidades DANOWSKI, D. et al. Há um mundo por vir?
sociais, políticas, econômicas e culturais. Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis:
Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental,
Isso se deve ao fato conceitual de que os 2014.
humanos não perfilam
morfologicamente suas existências, mas DELEUZE, G. Espinosa e o problema da
expressão. Tradução coordenada por Luiz B. L.
sim se expressam por formas rítmicas. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2017.
Isso significa que nem tudo nas
FERRAZ, M. S. A. Fenomenologia e ontologia
humanidades pode ser racionalizável e
em Merleau-Ponty. Campinas: Papirus, 2009.
tecnicamente manipulável mediante
engenharias físico-matemáticas. GALIMBERTI, U. Psiche e Techne: o homem
na idade da técnica. Tradução de José Maria de
Almeida. São Paulo: Paulus, 2006.
O ser humano em particular e o ser vivo
em geral estão sob a vigência do ritmo, GOBRY, I. Vocabulário grego da filosofia.
ou seja, das formas produzidas Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
naturalmente. Isso deseja dizer que nem
tudo no humano, por mais civilizado e GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e
aculturado que esteja, é produto de suas capital. Tradução de Celso Azzan Júnior. São
Paulo: Annablume, 2015.
ações racionais. A escolha ou a decisão
sobre as nuanças dos traçados artísticos GRANGER, G.-G. A razão. São Paulo: Difusão
ou dos discursos científicos estão no Europeia do Livro, 1967.
plano dos acontecimentos irrepetíveis e HARDT, M. Gilles Deleuze: um aprendizado em
incomensuráveis. A geometria filosofia. Tradução de Sueli Cavendish. São
ontológica de Platão ensina que os Paulo: Ed. 34, 1996.
corpos estão colocados no campo JAEGER, W. W. Paidéia: a formação do homem
irrevogável das experiências sensíveis e greto. Tradução de Artur M. Parreira. 5ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.
inteligíveis; ou seja, que participam da
extensão física do mundo material e da LACAN, J. O seminário, livro19: ... ou pior.
dimensão metafísica do mundo das Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar,
2012.
ideias. São objetivamente reais porque

94
MATTÉI, J.-F. Pitágoras e os pitagóricos. RICOEUR, P. Ser, essência e substância em
Tradução de Constança Marcondes Cesar. São Platão e Aristóteles. Tradução de Rosemary
Paulo: Paulus, 2000. Costhek Abilio. São Paulo: Martins Fontes,
2014.
MACDOWELL, J. A. A. A. A gênese de
ontologia fundamental de Martin Heidegger: ROMEYER-DHERBEY, G. Os sofistas.
ensaio de caracterização do modo de pensar de Tradução de João Amado. Lisboa, 1986.
Sein und Zeit. São Paulo: Loyola, 1993.
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MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Educação Física: ludicidade e racionalidade
percepção. Tradução de Carlos A. R. de Moura. nos movimentos gímnicos. In: DANTAS JR., H.
2ª ed.. São Paulo: Martins Fontes, 1999. S. et al. (Orgs.). Educação Física, esporte e
sociedade: temas emergentes. São Cristóvão:
OUELBANI, M. O Círculo de Viena. Tradução
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gregos: estudos de psicologia histórica.
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Tradução de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro:
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Martins Fontes, 2010.
POPPER, K. R. O mundo de Parmênides:
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ensaios sobre o Iluminismo pré-socrático.
Publicado em 2020-07-21
Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo:
Editora Unesp, 2014.

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