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Cidadania, movimentos

sociais e religião:
abordagens contemporâneas
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Reitor
Ricardo Vieiralves de Castro

Vice-reitor
Paulo Roberto Volpato Dias

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho Editorial
Antonio Augusto Passos Videira
Erick Felinto de Oliveira
Flora Süssekind
Italo Moriconi (presidente)
Ivo Barbieri
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Cidadania, movimentos
sociais e religião:
abordagens contemporâneas

Organização
João Marcus Figueiredo Assis
Denise dos Santos Rodrigues

Rio de Janeiro
2013
Copyright  2013, dos autores.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer
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Capa Carlota Rios
Projeto e Diagramação Emilio Biscardi

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

C568 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens con-


temporâneas/ organização João Marcus Figueiredo
Assis, Denise dos Santos Rodrigues. – Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2013.
252 p.

ISBN 978-85-7511-303-5

1. Movimentos sociais – Brasil. 2. Igreja e problemas


sociais - Brasil. I. Assis, João Marcus Figueiredo.
II. Rodrigues, Denise dos Santos.

CDU 304(81)
Imagem da capa: acervo do Arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu.
Sumário

Prefácio...................................................................................................................9
Maria Teresa Toribio Brittes Lemos

Apresentação....................................................................................................... 11
João Marcus Figueiredo Assis e Denise dos Santos Rodrigues

A Igreja e a ditadura militar........................................................................... 17


Ivo Lesbaupin

Parte I
Religião e movimentos sociais: artigos

Religiosidade jovem: reflexo da crise do pertencimento


institucional nas fileiras do alistamento militar........................................ 39
Denise dos Santos Rodrigues

Favela e pacificação. Religião e Estado no ordenamento do


espaço social........................................................................................................ 57
João Marcus Figueiredo Assis

Ideologia político-religiosa x político-pragmática: o caso


dos movimentos sociais no Brasil................................................................. 79
Nadir Lara Júnior
Valores religiosos na organização da luta pela terra:
estudo sobre os assentamentos de Sumaré-SP........................................... 97
Vitor Barletta Machado

Uma análise do pluralismo e o diálogo inter-religioso


como instrumento das lutas sociais em comunidades
de Petrópolis.....................................................................................................117
Luci Faria Pinheiro

Indivíduo solidário e colaborador: notas sobre a construção do


conceito de cidadania em tempos neoliberais.........................................131
Gisele dos Reis Cruz

Parte II
Religião e movimentos sociais: comunicações

Militância de jovem: Pastoral da Juventude e a ideologia


petista na diocese de Nova Iguaçu..............................................................145
Ronald Apolinário de Lira

Espionagem, inculpações e repressão na Baixada Fluminense:


a Igreja Católica e a rede de subversivos....................................................163
Abner Francisco Sótenos

A secularização do Brasil na Primeira República e a


criminalização do espiritismo......................................................................193
Adriana Gomes

Subjetividades de mulheres negras cearenses: um olhar


sobre suas histórias e memórias...................................................................211
Maria Saraiva da Silva
A reestruturação social a partir de uma manifestação religiosa
no interior paulista.........................................................................................231
Mariana Vieira

Sobre os autores...............................................................................................247
Prefácio

Maria Teresa Toribio Brittes Lemos* 1

Este livro, fruto dos estudos empreendidos pelos autores em


torno do tema religião e movimentos sociais, é uma das mais recentes
contribuições latino-americanas sobre práticas sociais e religião.
Organizada pelos professores João Marcus Figueiredo Assis
e Denise dos Santos Rodrigues, a publicação reflete a preocupa-
ção deles com a complexidade dos problemas da América Latina,
destacando-se os relacionados a políticas públicas, movimentos
sociais, articulações políticas e religiosas, cidadania, direitos hu-
manos e identidade.
O mérito desta obra decorre da análise do tema, mas so-
bretudo do registro valioso da documentação e da continuidade
dos trabalhos sobre esse eixo temático, que começaram em 2010,
quando o grupo de professores iniciou as pesquisas sobre religião
e movimentos sociais na América Latina.
Como coordenadora do Núcleo de Estudos da Américas,
congratulo-me com os autores pelas pesquisas realizadas, que de-
monstram o interesse pelos estudos latino-americanos em suas di-
versas dimensões.

*
Professora titular de História da América da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ).
10 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Assinalo, ainda, que os textos reunidos neste volume supe-


raram as expectativas propostas nas comunicações do simpósio
Cidadania, Movimentos Sociais e Religião, durante o III Con-
gresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas – Amé-
rica Latina: Processos Civilizatórios e Crises do Capitalismo Con-
temporâneo, ultrapassando o universo da academia e alcançando
uma comunidade mais ampla, interessada no conhecimento de
práticas culturais e representações, especialmente as dedicadas à
religião e aos movimentos sociais, que conduzem à construção da
cidadania e dos direitos humanos.
Apresentação

João Marcus Figueiredo Assis* 1

Denise dos Santos Rodrigues** 2

Esta publicação congrega artigos de participantes da segun-


da edição do simpósio Cidadania, Movimentos Sociais e Reli-
gião, no III Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das
Américas – América Latina: Processos Civilizatórios e Crises do
Capitalismo Contemporâneo, realizado em agosto de 2012, na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Congrega
ainda textos de autores convidados. O evento deu continuidade
ao nosso trabalho, iniciado em 2010, reunindo pesquisadores de
diversas áreas de conhecimento com interesse nos estudos sobre
processos e práticas sociais de construção de cidadania e constru-
ção de identidades no campo religioso, assim como o debate sobre
a emergência de redes de mútua ajuda e ações de intervenções so-
ciais nesse campo. São abordagens que relacionam tais práticas ao
universo religioso, entendendo que estes se constroem em íntima

*
Professor adjunto do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
**
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ).
12 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

relação com as necessidades contemporâneas, o que os torna, em


vários aspectos, indissociáveis.
Nessa perspectiva, estão contemplados aqui resultados de
pesquisas empíricas, levantamentos bibliográficos e registros de
acontecimentos relevantes para a memória das cidades, onde se des-
tacam temáticas como políticas públicas, formas de organização e
mobilização social, articulações políticas e religiosas, reivindicações
de direitos de cidadania, direitos humanos, além da consolidação de
identidades religiosas e não religiosas na contemporaneidade. Trata-
-se do produto de atividade intelectual na forma de uma produção
coletiva de trabalhos científicos pertinentes ao campo das Ciências
Sociais e Ciências Sociais Aplicadas, constituindo-se como referen-
ciais epistemológicos necessários à compreensão de diversos proble-
mas e subjetividades dos tempos atuais.
O livro está organizado em torno do eixo temático Religião
e Movimentos Sociais, em toda a sua abrangência. A divisão da
coletânea segue as apresentações de artigos de professores e pes-
quisadores da área e de comunicações de mestrandos e doutoran-
dos de diferentes instituições.
O artigo de abertura, “A Igreja e a ditadura militar”, é do
conceituado sociólogo Ivo Lesbaupin. Nele, o autor busca conci-
liar a religião e as articulações sociais registrando período impor-
tante da história nacional. Apresenta o posicionamento da Igreja
Católica durante a ditadura militar, constituindo um processo
gradual ocorrido, principalmente, na década de 1960.
Em seguida, iniciamos com o texto “Religiosidade jovem:
reflexo da crise do pertencimento institucional nas fileiras do alis-
tamento militar”, de Denise dos Santos Rodrigues. Os estudos
sobre a juventude apresentam as complexidades de uma fase de
transição, de questionamentos, de construção de identidades. Se
os jovens parecem mais livres para romper com o passado, pro-
tagonizando movimentos transformadores, também podem per-
petuar costumes, o que sinaliza maneiras diferentes de ser jovem:
Apresentação 13

reproduzindo ensinamentos ou buscando um estilo particular, in-


clusive no terreno religioso. Aqui encontramos o caso dos jovens
sem religião, categoria em ascensão nos recenseamentos desde
1960, apresentada como emblemática da crise do pertencimento
institucional, o que vai ao encontro da tendência de privatização
da religião e, ainda, das reivindicações atuais de liberdade de ex-
pressão.
O artigo “Favela e pacificação. Religião e Estado no orde-
namento do espaço social”, de João Marcus Figueiredo Assis, abre
o debate conciliando religião, políticas públicas e movimentos
sociais. O autor busca compreender as lógicas justificadoras das
incursões de religiosas católicas e da Polícia Pacificadora em uma
favela carioca, as estratégias de convencimento e a organização
efetivada, assim como as reações a tais intervenções por parte de
moradores e suas estratégias para a manutenção de seu conjunto
de crenças, pensamentos e práticas. Visa entender as interações
que se estabelecem entre os agentes externos, os quais transportam
seus valores e metas, e os moradores, os quais também apresentam
categorias estabelecidas de autoentendimento e entendimento da
realidade na qual se inserem cotidianamente.
O artigo seguinte é “Ideologia político-religiosa x político-
-pragmática: o caso dos movimentos sociais no Brasil”, de Nadir
Lara Júnior. O autor recorre a uma análise psicossocial sobre a
influência dos elementos religiosos na constituição da ideologia
política do Movimento Sem Terra. Na tentativa de ampliação da
pesquisa, o autor recorre também a dois outros movimentos so-
ciais: Movimentos de Moradia (São Paulo, SP) e Movimento de
Mulheres Camponesas. Expõe, assim, os dados que demonstram
certa mudança na estruturação desses movimentos e na forma
como participam do cenário político.
A luta pela terra aparece no artigo seguinte: “Valores reli-
giosos na organização da luta pela terra: estudo sobre os assenta-
mentos de Sumaré-SP”, de Vitor Barletta Machado. O autor rela-
14 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

ta o caso do primeiro assentamento da cidade paulista de Sumaré,


formado através do trabalho realizado por sacerdotes e seminaris-
tas em uma Comunidade Eclesial de Base (CEB). Nos seus en-
contros, as pessoas puderam resgatar um passado rural comum
e identificar suas necessidades através das imagens religiosas da
luta do povo hebreu. Ainda que a intensidade da participação re-
ligiosa tenha diminuído com o passar dos anos, os valores típicos
formados na vivência religiosa e na luta pela terra continuaram
presentes nas decisões ali tomadas coletivamente.
Outra comunidade é contemplada no texto “Uma análise
do pluralismo e o diálogo inter-religioso como instrumento das
lutas sociais em comunidades de Petrópolis”, de Luci Faria Pi-
nheiro. Nesse caso, a autora apresenta o debate do ecumenismo
como um movimento de caráter político-religioso, claramente
ético, com a possibilidade de contribuir por meio de um projeto
específico para as ações de cunho ecológico e educativo. Assim,
expõe elementos conceituais, origem histórica e as questões em-
píricas e teórico-metodológicas que desafiam o objeto, ou seja, o
diálogo inter-religioso como instrumento de luta social.
Em “Indivíduo solidário e colaborador: notas sobre a
construção do conceito de cidadania em tempos neoliberais”,
Gisele dos Reis Cruz analisa a construção da noção de cidada-
nia, a partir da década de 1990, no Brasil. Na década de 1980
a participação popular na elaboração e implantação de políticas
tornou-se o discurso governamental. Ela tem sido canalizada
para a colaboração entre sociedade e governo através de progra-
mas governamentais cujos princípios reforçam a lógica liberal. A
cidadania está vinculada à cooperação e à conservação, refletin-
do uma democracia condizente com o neoliberalismo e com a
administração do capitalismo.
O bloco das comunicações é aberto com o artigo “Militân-
cia de jovem: Pastoral da Juventude e a ideologia petista na dioce-
se de Nova Iguaçu”, de Ronald Apolinário de Lira. O autor abor-
Apresentação 15

da a movimentação da Pastoral da Juventude, através da lógica da


Teologia da Libertação, na diocese de Nova Iguaçu, na Baixada
Fluminense. Por meio de um recorte diacrônico, ele apresenta a
caminhada da diocese rumo ao ideal do catolicismo progressista
e a história da PJ, principalmente seu desenvolvimento político
na formação do Partido dos Trabalhadores naquela área. A partir
dessa junção de ideias religiosas e políticas, surgiram quadros ati-
vos na política partidária local, nos níveis executivo e legislativo,
em Mesquita, outro município da Baixada Fluminense.
O artigo seguinte, “Espionagem, inculpações e repressão na
Baixada Fluminense: a Igreja Católica e a rede de subversivos”,
de Abner Francisco Sótenos, faz uma análise das relações entre
movimento social popular, Igreja Católica, Estado e sociedade
brasileira durante o período da “abertura política” (1974-1985)
no Brasil. Tal abordagem parte da documentação produzida pelos
órgãos de repressão e/ou informações, tendo como foco a diocese
de Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, e a atuação política
do bispo, Dom Adriano Mandarino Hypólito.
O próximo artigo, “A secularização do Brasil na Primeira
República e a criminalização do espiritismo”, é de Adriana Go-
mes. A autora apresenta a secularização republicana, demonstran-
do que o Estado não distinguiu, no quadro de religiosidades da
população, o que era religião e, portanto, com direito à proteção
legal, daquilo que era considerado prática antissocial, anônima e
crime contra a tranquilidade pública. Aos adeptos do espiritismo,
grupo religioso destacado, coube o ônus da busca de representa-
tividade no espaço público através de disputas simbólicas, para
que suas práticas fossem reconhecidas como religiosas e não cri-
minosas, legitimando-se nos princípios da liberdade individual e
de consciência.
Em “Subjetividades de mulheres negras cearenses: um olhar
sobre suas histórias e memórias”, Maria Saraiva da Silva apresenta
a história social da população afrodescendente que não está pos-
16 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

tulada como história oficial na produção literária. A oralidade ba-


seada em memórias é uma fonte de investigação de subjetividades
que permite reconstruir essa história oculta a partir de parâmetros
individuais extensíveis ao coletivo. O relato de uma mulher negra
velha mostra sua compreensão da realidade social opressora e a
superação de limites preconceituosamente impostos. Novas luzes
sobre a história social são lançadas, portanto, a partir de sujeitos
antes não considerados seus protagonistas.
O artigo que fecha o bloco de comunicações é de Mariana
Vieira, intitulado “A reestruturação social a partir de uma mani-
festação religiosa no interior paulista”. O trabalho versa sobre uma
manifestação religiosa no oeste paulista. A suspensão da ordem
trazida por essa manifestação extraordinária trouxe a necessidade
de incorporação do fato em uma estrutura de ordem cosmológica,
fundante dessa sociedade rural.
Esperamos que o material aqui reunido possa servir de base
e estímulo para outras produções, registrando as reflexões mais re-
centes sobre o campo da religião e dos movimentos sociais. Apro-
veitamos para agradecer pelo apoio que temos recebido do Núcleo
de Estudos das Américas (Nucleas), em especial pelo carinho de
sua coordenadora, professora Maria Teresa Toribio Brittes Le-
mos, e de Elisabeth Nazareth. Agradecemos por sempre estarem
de portas abertas.
A Igreja e a ditadura militar

Ivo Lesbaupin*
1

A Igreja Católica no Brasil teve uma posição bastante cora-


josa frente à ditadura militar instalada em 1964, mas essa posição
não foi tomada desde o início, foi um processo gradual, precedido
de vários episódios. E tal posição só pode ser explicada pelos ante-
cedentes, no decorrer dos anos 50 e início dos 60.

Os antecedentes

Até os anos 50, a Igreja no Brasil era bastante semelhante


à Igreja de outros países: uma atuação religiosa tradicional, pou-
co presente na questão social, marcada pelo entendimento com
as classes dominantes e, no campo, pela boa convivência com a
oligarquia rural. A relação com os governos era caracterizada pela
busca da afirmação dos privilégios da instituição católica, no que
dizia respeito às escolas e às rádios católicas, e à defesa de seus
princípios morais.
No entanto, no decorrer dessa década, em razão da agita-
ção no meio rural, motivada pelas duras condições de vida e de
trabalho dos agricultores, surgem pouco a pouco pronunciamen-

*
Doutor em Sociologia pela Universidade de Toulouse-Le-Mirail.
18 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

tos episcopais críticos, especialmente quanto à questão do campo.


Destaca-se nesse período a figura de Dom Hélder Câmara, bispo
auxiliar do Rio de Janeiro, que em 1952 fundou a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Dom Hélder foi seu
secretário-executivo nos doze primeiros anos e reuniu em torno
de si um grupo de bispos comprometidos com a renovação da
Igreja. De 1954 a 1964, Dom Hélder recebeu um grande apoio
do Núncio Apostólico do Vaticano, monsenhor Armando Lom-
bardi. Durante essa década, foram nomeados mais de cem bispos
e a influência de Dom Hélder se fez sentir na sua escolha.
O contexto social vai ter um papel importante aqui: é um
período de forte efervescência, particularmente no campo. Em
1955, surgem as Ligas Camponesas no Nordeste, movimento que
vai se espalhar por várias regiões do país. Também o movimento
operário e sindical tem um grande impulso e pouco a pouco as
centrais sindicais se tornam mais poderosas. Cresce o movimento
de educação popular, de um lado pelo Movimento de Educação
de Base (MEB), que tem origem na Igreja em 1961 e inspiração
de enfrentamento dos comunistas no campo. Mas, na prática, será
um movimento de conscientização e organização dos camponeses
e aproximará cristãos e comunistas. Por outro lado, é o momento
em que aparece Paulo Freire e seu método revolucionário de al-
fabetização. Ele se baseia numa pedagogia do oprimido que terá
ampla divulgação, tanto entre os estudantes quanto entre os seto-
res mais comprometidos da Igreja.
Finalmente, a vitória da Revolução Cubana, no início de
1959, foi um acontecimento com muita repercussão nas esquer-
das e nos movimentos sociais do continente, inclusive do Brasil:
ela significava que a mudança era possível, que a ruptura com a
dominação imperialista dos Estados Unidos era viável. Ela gerou
uma grande esperança no meio dos cristãos de esquerda.
Outro fator importante foi a Ação Católica, em especial os
movimentos juvenis, a Juventude Universitária Católica (JUC) e
A Igreja e a ditadura militar 19

a Juventude Estudantil Católica (JEC). Esses movimentos tinham


um perfil marcadamente sacramental e litúrgico até os anos 50,
mas na virada de 1959 para 1960 deram uma guinada para o en-
gajamento social. Vários militantes da JUC foram atuar no MEB,
junto aos camponeses, tomando contato, pela primeira vez, com
suas condições de vida.
É indubitável a influência do catolicismo francês sobre essa
parte da Igreja mais sensível à questão social: a experiência dos
padres operários, os pensadores leigos Jacques Maritain, Emanuel
Mounier, o padre Lebret – sociólogo, voltado para os problemas
do Terceiro Mundo –, os teólogos Yves Congar, Marie-Domini-
que Chenu, Teilhard de Chardin, a Revista Esprit. Tanto a vivên-
cia prática quanto as reflexões teóricas dos católicos franceses vão
repercutir sobre os jovens cristãos, uma parte do clero e dos bispos
brasileiros.
Completa esse quadro a atuação do papa João XXIII, ele-
vado ao pontificado em 1958 e que revolucionou a Igreja com
a convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965).
Ele será responsável por um empenho cada vez maior dos bispos
latino-americanos pelos pobres do continente, graças a duas car-
tas escritas diretamente a eles, uma em 1958 e outra em 1961.
Por outro lado, nos cinco anos em que governou a Igreja, lançou
duas encíclicas sociais, Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris
(1963). O concílio, que durou quatro anos – três meses por ano
–, teve um forte poder de mudança. Ele está na raiz de profundas
transformações ocorridas na Igreja tanto em nível internacional
quanto no Brasil. Vários bispos deram início às comunidades de
base em suas dioceses, a partir da inspiração do concílio.
Em consequência do concílio, outro evento muito impor-
tante para a Igreja latino-americana foi a II Conferência do Epis-
copado Latino-Americano, em Medellín (1968). Esse encontro,
pensado originalmente para adaptar a Igreja do continente ao
concílio, foi muito mais do que isso. Especialmente em dois dos
20 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

dezesseis documentos, o Documento sobre a Justiça e o Documento


sobre a Paz, Medellín inicia uma nova reflexão teológica, dando
lugar central ao pobre e àquilo que passou a se chamar o “pecado
estrutural”. É uma primeira expressão daquela que vai se chamar,
três anos depois, Teologia da Libertação.1 No Documento sobre a
Justiça, os bispos afirmam:

É o mesmo Deus que, na plenitude dos tempos, envia seu Filho


para que, feito carne, venha libertar todos os homens, de todas as
escravidões a que o pecado os sujeita: a fome, a miséria, a opres-
são e a ignorância, numa palavra, a injustiça que tem sua origem
no egoísmo humano (Jo 8, 32-34).

Esse quadro evidencia a existência de um setor renovador


na Igreja do Brasil, tanto na cúpula – a direção da CNBB – quan-
to no seio do clero e em algumas bases. Isto não deve nos fazer
perder de vista que a maioria da Igreja, a maioria do episcopado,
é conservadora. Assim, quando a agitação social cresce e os cris-
tãos leigos se envolvem diretamente na ação política, esses setores
mais conservadores se alarmam. A mídia, dominada pelas elites,
desenvolve uma campanha de incriminação do governo populista
de João Goulart (1961-1964), acusando esses movimentos de se-
rem pró-comunistas e criando a impressão de que o país caminha-
va rapidamente para o comunismo. Duas campanhas católicas,
desencadeadas poucos meses antes do golpe, foram cruciais para
criar um clima favorável aos golpistas: a Cruzada do Rosário em
Família e, em seguida, as Marchas da Família com Deus pela Li-
berdade. Ambas eram caracterizadas por um forte teor anticomu-
nista e de desmoralização daqueles que se mobilizavam exigindo
justiça social.

1
Cabe observar que o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, iniciador da Teologia
da Libertação (1971), estava nessa conferência, como assessor teológico.
A Igreja e a ditadura militar 21

A Igreja e o golpe militar

Quando o golpe militar foi desencadeado, uma parte da


Igreja sentiu-se como se suas preces tivessem sido ouvidas. Este é
praticamente o teor do documento episcopal emitido dois meses
depois do golpe:

Atendendo à geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro,


que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do
poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e evitaram que
se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa
terra. [...] De uma a outra extremidade da pátria, transborda dos
corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito
incruento de uma revolução armada.

O documento contém também críticas ao novo regime, re-


jeita acusações contra a Igreja e movimentos como a Ação Católi-
ca e o MEB, exige o respeito aos direitos humanos, especialmente
o direito de defesa, e insiste na busca da justiça social. Mas a mar-
ca fundamental dessa primeira declaração oficial do episcopado é
de aprovação.
Na verdade, no mesmo momento em que a direita toma o
poder do Estado, no interior da Igreja também a direita assume
a direção. Dom Carlos Carmelo Mota, então arcebispo de São
Paulo, é transferido para uma diocese do interior, Aparecida, e
Dom Hélder Câmara é transferido para Recife, onde pensavam
que ele incomodaria menos. Nesse mesmo ano, a CNBB elege
como seu presidente a Dom Agnello Rossi, que se torna arcebis-
po de São Paulo, e, como secretário-geral, Dom José Gonçalves,
outro conservador. Essa direção vai conviver pacificamente com
o regime ditatorial.
No entanto, se há calmaria na cúpula, surgem e crescem
conflitos nas bases. Militantes e padres assistentes de movimen-
22 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

tos da Ação Católica, particularmente JUC, JEC e JOC, além da


ACO, vão ser presos ou ameaçados nesses primeiros anos do golpe
(1964-1968). Em vários lugares do país, padres serão alvo da re-
pressão por proferirem sermões críticos à ditadura, e os estrangei-
ros sofrerão processo de expulsão. Vários bispos entram em confli-
to com autoridades militares em razão da repressão: os casos mais
conhecidos foram os de Volta Redonda, cujo bispo é Dom Waldir
Calheiros, e de Recife, que tem por bispo Dom Hélder Câmara.
As manifestações contra a ditadura se desenvolveram sobretudo
no movimento estudantil. Foi a época das passeatas, sempre repri-
midas pela polícia. Em 1968, porém, numa dessas manifestações
no Rio de Janeiro, um estudante foi morto. Formou-se um corte-
jo de mais de vinte mil pessoas. Em reação à repressão, setores da
Igreja apoiaram os estudantes. Poucos dias depois, em missa pelo
jovem morto, a cavalaria investiu sobre padres, estudantes e ou-
tros participantes. O protesto culminou na passeata dos 100.000,
em junho, a maior manifestação de massa até então.
O que se observou nesse primeiro período foi que mesmo
bispos conservadores foram pouco a pouco levados a apoiar seus
colegas em confronto com os responsáveis pela repressão: o dis-
curso da caserna contra membros do episcopado levou a que o
espírito de corpo falasse mais alto. Governantes ou simples autori-
dades militares se arvoraram em professores de teologia, querendo
ensinar à Igreja qual era sua missão, onde deveria atuar e onde não
deveria estar. O episcopado reagiu. Os conflitos eram localizados,
mas levavam a reações mais amplas.

O endurecimento do regime

O protesto crescente na sociedade civil contra o regime di-


tatorial levou os generais a endurecerem: perceberam que só man-
teriam o poder pela força, calando a oposição. A 13 de dezembro
de 1968, decretaram o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que fechava
A Igreja e a ditadura militar 23

o Congresso e suspendia as liberdades constitucionais. Daí por


diante, a tortura, que já era utilizada contra prisioneiros políticos,
mas esporadicamente, se tornou uma prática sistemática nos in-
terrogatórios.
O número de prisões cresce enormemente, e começam a
ocorrer casos de mortes sob tortura ou de desaparecimento. E as-
sassinatos também: no caso da Igreja, começou com um auxiliar
de Dom Hélder, o padre Henrique Pereira Neto, que trabalhava
com a juventude. Em dez anos (1968-1978), sete padres ou se-
minaristas foram assassinados. Houve inúmeras outras formas de
repressão, sendo uma das mais comuns os ataques difamatórios e,
muitas vezes, a imprensa se prestou a essa forma de ataque. Dez
padres estrangeiros foram expulsos do país. Vinte e nove bispos
foram atingidos de uma ou outra maneira. Nenhum deles chegou
a ser levado à prisão, mas alguns tiveram suas casas invadidas ou
metralhadas (caso de Dom Hélder), documentos expropriados,
e um bispo foi sequestrado (Dom Adriano Hypólito). Casas e
prédios pertencentes a entidades ligadas à Igreja foram invadidos,
publicações foram apreendidas, às vezes na gráfica.
Em novembro de 1969, sete religiosos dominicanos são
presos e torturados, por ligação com a organização revolucioná-
ria Ação Libertadora Nacional (ALN), dirigida por Carlos Ma-
righella. Marighella é morto pela polícia dois dias depois. A mí-
dia desencadeia ampla campanha contra “a Igreja terrorista”, “os
padres comunistas”, os “traidores do Evangelho”. A Ordem dos
Dominicanos, particularmente visada nesses ataques, no entanto,
apoia seus membros. O caso tem ampla repercussão no exterior.
Três meses depois, um dos frades, frei Tito de Alencar Lima, é
novamente levado para interrogatório, na Operação Bandeirantes
(Oban), e barbaramente torturado. Depois de três dias, para in-
terromper as torturas, frei Tito tenta o suicídio. É levado para um
hospital militar e consegue se recuperar. Seu relato sobre esses dias
acaba saindo da prisão e é publicado em muitos lugares no Brasil
24 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

e no exterior.2 Frei Tito foi solto junto com outros prisioneiros


políticos, quando do sequestro do embaixador suíço. Depois de
passar pelo Chile, ele se estabelece na França, onde, como sequela
psicológica das torturas, vem a se suicidar em 1974. É considera-
do um mártir da Igreja.
A postura favorável à ditadura, presente logo após o gol-
pe e nos primeiros anos do regime, cedeu lugar a posições mais
críticas. Em 1968, já é eleito um secretário-geral da CNBB mais
aberto, Dom Aloísio Lorscheider. Em 1970, na Assembleia Geral
dos Bispos, o documento final denuncia as torturas, mas é escrito
de modo a não aumentar as tensões com o governo. Mas, até esse
momento, predominava na direção da Igreja uma preocupação de
manter o diálogo com os militares, de não romper, não entrar em
conflito direto.
A mudança de postura vai ocorrer em outubro de 1970,
impulsionada pelo papa Paulo VI. Um dia depois de um duro
discurso contra a tortura no mundo – interpretado pela mídia in-
ternacional como sendo voltado para o Brasil –, o papa promoveu
o arcebispo de São Paulo, Dom Agnelo Rossi, a uma Congregação
do Vaticano, e nomeou Dom Paulo Evaristo Arns para assumir
o seu lugar. Foi a maneira diplomática encontrada pelo Vaticano
para afastar Dom Agnelo de São Paulo – um dos lugares onde a
repressão era mais virulenta – e da direção da CNBB. Dom Agne-
lo era considerado por muitos como um bispo pouco firme frente
ao regime militar.
Em pouco tempo, Dom Paulo mostrou a que veio. Três
meses depois de assumir a arquidiocese, um padre e uma assis-
tente social foram presos. O bispo foi avisado e imediatamente se
apresentou ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS),

2
Naquele ano, recebeu o prêmio de melhor reportagem da revista Look, dos EUA.
O relato do frei Tito e sua história é longamente abordado no livro Batismo de
sangue, de Frei Betto (2006), lançado em 1982.
A Igreja e a ditadura militar 25

para onde eles tinham sido levados, e pôde vê-los com marcas de
tortura no corpo. No domingo seguinte, mandou publicar, em
todas as igrejas da arquidiocese, um sermão em que denunciava as
torturas e fazia um contundente pronunciamento contra o caráter
ditatorial do regime. A postura mudava radicalmente: em vez da
busca de conversa, a denúncia; em vez do segredo, a publicidade.
A atitude de Dom Paulo provocou uma profunda mudan-
ça na maneira de a Igreja agir a partir de então. Pouco a pouco,
começaram a aparecer declarações públicas de bispos e de con-
juntos de bispos denunciando os atentados aos direitos huma-
nos, não apenas contra membros da Igreja mas contra qualquer
pessoa, e exigindo a volta à democracia. O primeiro documento
nesse sentido é do episcopado do estado de São Paulo, Testemu-
nho de paz, de 1972.

Não é lícito utilizar no interrogatório de pessoas suspeitas, com


o fim de obter confissões, revelações ou delação de outros, mé-
todos de tortura física, psíquica ou moral, sobretudo quando
levados até a mutilação, quebra da saúde e até a morte, como
tem acontecido. [...] Ouçam os responsáveis por essas ações: “Eis
que a voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra”
(Gen 4, 10).

Em 1971, Dom Pedro Casaldáliga, bispo de origem espa-


nhola recém-nomeado para a prelazia de São Félix do Araguaia,
inaugura uma nova maneira de escrever carta pastoral, com a pu-
blicação de Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e
a marginalização social. O próprio título da carta pastoral já apon-
ta o adversário dessa Igreja: o latifúndio. O texto é dividido em
duas partes: na primeira, apresenta uma análise da realidade social
da prelazia, relata o que tem sido feito e qual a proposta de ação;
a segunda é uma documentação sobre todos os grandes proprietá-
rios de terra e empresas da região (com nome, endereço e telefone)
26 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

e relatos testemunhais de casos de exploração de posseiros e traba-


lhadores da região por essas empresas.
A preocupação da Igreja com a situação dos povos indí-
genas leva à criação, em 1972, do Conselho Indigenista Missio-
nário (Cimi), órgão vinculado à CNBB. Constituído por mis-
sionários e bispos vinculados a esse trabalho pastoral, o Cimi
vai ter um papel muito importante durante o período ditatorial,
posto que a posição do regime militar é de que “os indígenas não
podem impedir o progresso”. Com a sua concepção desenvolvi-
mentista e expansionista, apoiando grandes projetos agropecu-
ários no Centro-Oeste e na Amazônia, as terras e os povos in-
dígenas não tinham lugar enquanto tais no projeto da ditadura.
O Cimi contribuirá para a auto-organização e a autodefesa dos
povos indígenas.
1973 foi um ano rico em publicações. Comemorando os
25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em três
regiões/realidades sociais se organizaram e vieram a público os
seguintes documentos: Eu ouvi os clamores de meu povo – docu-
mento de bispos e superiores religiosos do Nordeste (assinado por
14 bispos e 4 provinciais); Marginalização de um povo – o grito
das Igrejas – documento de bispos do Centro-Oeste (assinado por
6 bispos); e Y-Juca-Pirama – o índio: aquele que deve morrer –
documento de urgência de bispos e missionários (assinado por 6
bispos e 6 missionários). Esses textos marcaram a história da
Igreja do Brasil durante a ditadura: eles são, em primeiro lu-
gar, uma denúncia das condições de vida do povo, mas também
apontam e analisam a causa dessa situação – que estaria no capi-
talismo, sustentado pela ditadura militar – e conclamam à ação.
O documento do Centro-Oeste inovava em mais um elemento:
o texto foi escrito em linguagem simples, cheio de imagens, para
ser acessível também aos setores populares. Concluindo o docu-
mento, dizem os autores: “É preciso vencer o capitalismo. É ele
o mal maior, o pecado acumulado, a raiz estragada, a árvore que
A Igreja e a ditadura militar 27

produz esses frutos que nós conhecemos: a pobreza, a fome, a


doença, a morte da grande maioria”.
Em 1975, surge a Comissão Pastoral da Terra (CPT),
para ajudar a organizar e a defender os trabalhadores rurais,
eles também vítimas da política agrária e agrícola da ditadura.
O apoio aos grandes projetos agropecuários deixava posseiros
e agricultores à mercê dos interesses dos grandes proprietários
– desejosos de suas terras e de mão de obra barata. Polícia e
Judiciário no campo colocavam-se a serviço dos grandes. Os
pequenos proprietários e demais agricultores não tinham seus
direitos respeitados. A CPT foi um grande apoio para sua luta.
O Caderno Conflitos no Campo, publicado anualmente, é o mais
completo levantamento dos conflitos envolvendo os trabalha-
dores rurais no Brasil.
1976 talvez tenha sido o ano mais pesado para a Igreja:
nesse ano, foram mortos dois padres – o padre João Bosco Peni-
do Burnier, assassinado ao lado de Dom Pedro Casaldáliga, em
São Félix do Araguaia, e o padre salesiano Rodolfo Lukenbein,
missionário – e um índio, Simão, em Merure, Mato Grosso;
além disso, um bispo, Dom Adriano Hypólito, de Nova Iguaçu,
foi sequestrado, deixado nu e pintado de vermelho à noite, num
lugar afastado; na mesma noite, seu carro, vazio, foi explodido
em frente à sede da CNBB, no Rio de Janeiro. Os fatos gera-
ram forte reação por parte dos bispos, inclusive um documento,
Comunicação pastoral ao Povo de Deus, que analisa os fatos e faz
uma longa reflexão teológica sobre o papel da Igreja.
Por que a repressão se abate sobre certos setores da Igre-
ja, sobre grupos de leigos, sobre alguns padres, irmãs, bispos?
Por causa de sua postura ativa em defesa dos direitos humanos,
dos pobres, dos indígenas, dos trabalhadores, dos posseiros, dos
oprimidos. A partir de 1971, a CNBB, tendo à frente Dom Alo-
ísio Lorscheider, presidente, e Dom Ivo Lorscheiter, secretário-
28 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

-geral,3 assume uma posição firme pelos direitos dos presos políti-
cos, contra a perseguição, a tortura.
Em 1977, na Assembleia Geral do Episcopado, os bispos
aprovam um documento, Exigências cristãs de uma ordem política,
crítico à ditadura, cuja novidade consiste em ter sido assinado
pelo conjunto dos bispos. Até então, já tinham sido lançados ou-
tros documentos, alguns mais críticos do que esse, mas assumidos
apenas por parte do episcopado.
Em 1979, outro atentado é cometido pelos militares contra
Dom Adriano Hypólito, bispo de Nova Iguaçu. Explodiram uma
bomba embaixo do altar-mor da catedral da diocese. Em reação
a esse ato, dez dias depois dez mil pessoas participaram de uma
procissão em desagravo a Dom Adriano.
O episcopado continuou a publicar documentos coletivos
sobre questões sociais nos anos seguintes, que foram discutidos
e aprovados por ocasião de cada Assembleia Geral da CNBB.
Em 1980, o documento se intitulava Igreja e problemas da terra
e denunciava a concentração da propriedade da terra no Brasil,
as condições de vida e a exploração dos trabalhadores do campo,
a violência exercida contra eles e o modelo político a serviço da
grande empresa.

A responsabilidade maior cabe aos que montam e mantêm, no


Brasil, um sistema de vida e trabalho que enriquece uns poucos
à custa da pobreza ou da miséria da maioria. [...] O modelo de
desenvolvimento adotado favorece o lucro ilimitado dos grandes
grupos econômicos (CNBB: 1980, parágrafos 35-6).

3
De 1971 a 1979, por dois mandatos, Dom Aloísio e Dom Ivo serão mantidos
nesses cargos. Em seguida, Dom Ivo foi presidente nos dois mandatos seguintes,
1979-1983 e 1983-1987.
A Igreja e a ditadura militar 29

O texto faz uma distinção, que se tornou paradigmáti-


ca, entre “terra de exploração” e “terra de trabalho”. “Terra de
exploração é a terra de que o capital se apropria para crescer
continuamente, para gerar sempre novos e crescentes lucros. [...]
Terra de trabalho é a terra possuída por quem nela trabalha”
(parágrafos 84-5).
Em 1982, foi a vez de Solo urbano e ação pastoral, onde no-
vamente, a partir da situação das cidades, se denunciava o sistema
vigente:

A disparidade das condições socioeconômicas determina a dis-


paridade de condições de posse e uso do solo urbano. É muito
difícil para as populações carentes tornar realidade seu direito
à moradia, uma vez que vivem na permanente insegurança das
remoções, dos desmoronamentos e inundações, do medo do de-
semprego, na angústia pelos aumentos de preços e de aluguéis
(CNBB: 1982, parágrafo 89).

Aqui tocamos no ponto mais sensível da questão. Uma larga ex-


periência social e pastoral nos leva à convicção de que os obstá-
culos a uma solução humana dos problemas relacionados com o
uso e posse do solo urbano provém radicalmente do nível polí-
tico, ou seja, de uma opção contrária aos legítimos interesses do
povo (parágrafo 95).

Em 1984, a preocupação se voltou para o Nordeste, moti-


vada pela grande seca do ano anterior: Nordeste: desafio à missão
da Igreja no Brasil. Aqui também, o episcopado aponta a respon-
sabilidade:

As causas da precariedade da situação do Nordeste devem ser


procuradas, antes de mais nada, na história sócio-econômico-
-política do Brasil, no contexto da economia mundial. Portanto,
30 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

não são o resultado da fatalidade, do destino, da natureza, mas


o resultado da ação ou omissão política dos homens e da for-
ma através da qual se apropriam e usam dos recursos naturais
e estabelecem relações entre si. Neste sentido, o seco e pobre
Nordeste é, sobretudo, uma produção política (CNBB: 1984,
parágrafo 24).

Falamos até agora de posicionamento dos bispos, da CNBB,


mas é preciso mostrar o que está acontecendo nas bases da Igreja,
onde o mais importante é o surgimento e o crescimento das Co-
munidades Eclesiais de Base (CEBs). As CEBs nascem do forte
movimento de renovação da Igreja, no início dos anos 60. Havia
uma crítica, que não era recente, à pastoral baseada nas paróquias,
e um dos principais elementos dessa crítica era o fato de que a
paróquia não formava comunidade. Foi-se formulando a propos-
ta de comunidades de base, onde os fiéis tivessem um papel ativo,
como leigos, e pudessem se conhecer. O Concílio Vaticano II veio
dar um forte impulso a esse movimento de renovação. O Plano de
Pastoral de Conjunto (PPC) feito pelos bispos brasileiros ao final
do concílio, e divulgado em 1966, fala pela primeira vez nessas
comunidades.
Em livro publicado em 1967, Comunidade eclesial de base:
uma opção pastoral decisiva, o teólogo Raimundo Caramuru de
Barros relata a experiência de vinte comunidades no Brasil. Elas
surgem primeiramente nas áreas rurais, mas logo em seguida em
zonas urbanas, crescem e se espalham rapidamente por todo o
Brasil. Ao ponto em que, em 1975, já se realiza o Primeiro En-
contro Intereclesial de Comunidades de Base, em Vitória – uma
diocese que apoiava a formação de CEBs –, reunindo sobretudo
bispos e teólogos. No ano seguinte, ocorre o 2º encontro, também
em Vitória. É só no 3º encontro, em João Pessoa, em 1978, que
a grande maioria dos participantes são lideranças e representantes
das próprias comunidades. Ao final dos anos 80, calculava-se em
A Igreja e a ditadura militar 31

cem mil o número de comunidades em todo o país, atingindo


cerca de dois milhões de pessoas.
Uma iniciativa que teve importância crescente na ativida-
de de conscientização dos setores populares e também de classe
média ligados à Igreja Católica foi a Campanha da Fraternidade.
Essa campanha teve começo em 1964: trata-se de um conjunto
de atividades desenvolvidas durante a Quaresma (fevereiro-março
a abril-maio, conforme o ano), cerca de dois meses. A assembleia
anual da CNBB aprova um tema, em seguida se elabora – com a
ajuda de especialistas – um texto-base que serve de subsídio para
toda a campanha. A partir desse texto, elabora-se uma série de
outros materiais – círculos bíblicos, liturgias etc. – tanto em nível
nacional como em nível regional ou local, para serem utilizados
para as reuniões semanais dos grupos. A partir de 1973, os temas
se tornaram nitidamente sociais, como, por exemplo: “Repartir o
pão” (1975); “Trabalho e justiça para todos” (1978); “Preserve o
que é de todos” (1979).
Outra iniciativa a assinalar é a elaboração de cartilhas de
formação política, em linguagem popular. Elas são feitas geral-
mente por ocasião das eleições, como uma forma de preparação.
O ponto de partida parece ter sido a cartilha ABC das eleições,
elaborada pela arquidiocese de Fortaleza em 1976. Em 1982 ocor-
reram as primeiras eleições diretas para governador desde 1966.4
Foi a ocasião para a publicação de mais de quarenta cartilhas, pro-
duzidas em nível diocesano ou por um regional da CNBB.
A atuação da Igreja do Brasil no período da ditadura militar
ficou marcada também pela intervenção do Vaticano, a partir do
pontificado de João Paulo II, eleito em 1978. A postura do novo
papa começa a ficar evidente quando do seu discurso de abertu-
ra da III Conferência Episcopal Latino-Americana, em Puebla,

4
O Ato Institucional n° 2, de 1965, suspendera as eleições diretas para gover-
nador.
32 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

México (1979). Pouco tempo depois, em 1983, em visita à Nica-


rágua – governada pelos sandinistas desde a vitória da revolução,
em 1979 –, o papa João Paulo II recriminou em público um dos
quatro ministros padres, Ernesto Cardenal. João Paulo II, origi-
nário da Polônia, um país do bloco soviético, não compreendeu a
luta da Igreja latino-americana contra a injustiça social, que tinha
raízes no sistema capitalista e na dominação imperial dos Esta-
dos Unidos. Seu pontificado criou sérias dificuldades para bis-
pos, padres e leigos comprometidos com a libertação das maiorias
oprimidas do continente. Sendo a CNBB a conferência episcopal
mais importante da região, foi sobre ela que se exerceu a maior
pressão. Assim é que, de um lado, a CNBB se encontrava sob a
pressão do regime militar e, de outro, do Vaticano. Ao menos 30
bispos sofreram alguma forma de advertência oficial do Vaticano,
em razão de sua atuação no campo sociopolítico.
A ofensiva maior foi contra a Teologia da Libertação (TL).
A preocupação com a influência da análise marxista nos textos de
seus autores levou a uma condenação pela Congregação da Dou-
trina da Fé (ex-Santo Ofício), intitulada Instrução sobre alguns
aspectos da Teologia da Libertação, escrita pelo cardeal Ratzinger
(1984). Nesse mesmo ano, abriu-se um processo contra o teólo-
go Leonardo Boff, o maior expoente dessa teologia no Brasil. O
processo resultou na sua redução ao silêncio por um ano (proibi-
ção de dar aulas e de publicar), determinado pela mesma congre-
gação em 1985. A pressão de vários bispos brasileiros em favor
do teólogo conseguiu a suspensão do silêncio um mês antes do
prazo determinado. Seguiu-se uma nova instrução da congrega-
ção, publicada em 1986, mais branda. No entanto, a Teologia da
Libertação continuou sendo perseguida, suas publicações foram
dificultadas ou suspensas, vários de seus autores sofreram processo
do Vaticano, como recentemente ocorreu com o teólogo jesuíta
Jon Sobrino (2007), já no pontificado de Bento XVI.
A Igreja e a ditadura militar 33

Considerações finais

A postura da Igreja Católica frente à ditadura militar pas-


sou, como se acaba de ver, por diferentes fases: uma fase inicial de
aprovação, durante a qual ocorrem conflitos localizados, onde já
se prenunciam embates maiores (1964-1970); uma fase de oposi-
ção aberta (1970-1976); e uma fase que dá continuidade à oposi-
ção, mas onde se observa um maior engajamento junto aos setores
populares (1977-1985).
A partir da intervenção do Vaticano e da nomeação de
Dom Paulo Evaristo Arns para a arquidiocese de São Paulo, as
tentativas de conciliação dão lugar a uma postura mais firme, ca-
racterizada pela defesa dos direitos humanos, em particular dos
presos políticos, dos trabalhadores, rurais e urbanos, dos indíge-
nas. Nascem, durante esse período, duas instituições que foram
muito importantes durante a ditadura e continuam com um papel
significativo até hoje: o Cimi e a CPT.
Pode-se dizer, grosso modo, que o episcopado brasileiro era
constituído por três grupos principais: a maioria moderada, um
grupo restrito de conservadores e um grupo um pouco maior de
bispos progressistas.5 Os conservadores conseguiram liderar a Igre-
ja logo após o golpe (1964-1968), mas sua hegemonia foi sendo
progressivamente contestada, em boa parte por causa da agressi-
vidade do regime militar. A partir de 1970, a liderança vai sen-
do tomada pelo grupo progressista, que se torna hegemônico nos
anos seguintes: isto se percebe claramente pelas posições tomadas

5
Utilizo esta nomenclatura – moderados, conservadores, progressistas – no sen-
tido descritivo, sem preocupação conceitual: progressistas seriam os bispos mais
críticos ao regime militar e também mais comprometidos com a renovação da
Igreja e com os setores populares; conservadores seriam os bispos mais favoráveis
ao regime e à manutenção da Igreja tradicional; moderados seriam os que se si-
tuam entres esses dois grupos, aceitam alguma renovação mas não demais e têm
alguma crítica ao regime militar.
34 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

pela direção da CNBB, pelos documentos lançados por grupos


regionais de bispos e pelos documentos aprovados nas assembleias
anuais. A maioria, mesmo não tendo as mesmas posições dos pro-
gressistas, acaba seguindo a sua orientação.
O mais significativo no caso da Igreja do Brasil foi o seu
enraizamento nas bases populares, especialmente com as comuni-
dades de base. E não houve sérios conflitos entre as CEBs e a hie-
rarquia episcopal graças a algo original da experiência brasileira,
que foi o fato de que as CEBs se iniciaram, em muitas dioceses,
por iniciativa de bispos: elas não foram, aqui, uma iniciativa de
leigos contra bispos, mas de um setor de bispos, padres e leigos
juntos, numa mesma direção. Essa presença popular na Igreja vai
se refletir no teor dos documentos, que, pouco a pouco, vão ser
escritos em linguagem acessível, pensando nos leitores populares.
Esse momento extraordinário da Igreja brasileira não vai
durar eternamente. Findo o regime militar, não havendo mais a
pressão da ditadura, podendo a sociedade civil se expressar ple-
namente, através dos movimentos sociais, dos sindicatos e outras
entidades, e, sob a pressão do Vaticano para limitar sua presença
política, a Igreja vai pouco a pouco se tornar mais tradicional.
Permanece um setor comprometido com as classes populares e
com a transformação da sociedade no sentido da justiça social: as
comunidades de base, as pastorais sociais, a Campanha da Fra-
ternidade e tantas outras iniciativas. Mas esse setor não tem mais
a hegemonia, são outras as preocupações centrais, os interesses
principais não são mais os mesmos.

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A Igreja e a ditadura militar 35

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Parte I
Religião e movimentos sociais:
artigos
Religiosidade jovem: reflexo da crise
do pertencimento institucional nas
fileiras do alistamento militar

Denise dos Santos Rodrigues* 1

Os estudos sobre a juventude começaram a se definir a par-


tir dos anos 1970, quando os cientistas sociais despertaram o in-
teresse pela variável idade e, assim, passaram a considerar aspectos
de fases como infância, adolescência ou juventude. As pesquisas
demográficas, antropológicas e as produções americanas sobre os
ciclos de vida proporcionaram uma aproximação sociológica da
juventude e, assim, a transição da infância para a idade adulta se
tornou objeto de estudo, sendo considerada como um processo
que envolve complexidades (Campiche: 1997, 15). A determi-
nação dos limites de idade compreendidos no termo “juventude”
não é consensual, sendo a mais utilizada aquela estipulada pela
Organização Internacional da Juventude (OIJ), indicando a faixa
dos 15 aos 24 anos, o que, conforme dados do Censo 2010 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), correspon-
de a 15,07% da população brasileira em área urbana, especifica-

*
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ).
40 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

mente 15,54% dos habitantes do estado do Rio de Janeiro, nosso


campo de estudo.
Percebemos a juventude como uma construção social, cul-
tural e relacional, que pode se expressar na sua forma mais ou
menos transformadora. Em geral, os jovens são destacados como
questionadores, promotores da mudança social na sua tentativa
de construir sua própria identidade, diferenciada daquelas de seus
pais, o que a história pode comprovar registrando sua presença
em vários movimentos sociais. Os jovens marcaram presença no
movimento abolicionista do século XIX, na Semana de Arte Mo-
derna e no Movimento Tenentista de 1922, entre outros, propon-
do uma nova concepção de nação. Na década de 1970, diante da
ditadura militar, as manifestações da juventude se tornaram me-
nos evidentes, mas na década de 1980 elas voltaram a se expandir
através de tribos como punks e darks, na sua revindicação de outro
estilo de expressão. A partir da década de 1990, num resgate da
causa social e política, jovens se movimentaram como os “caras
pintadas” pelo impeachment do então presidente Fernando Collor
de Mello e também participaram do Movimento dos Trabalha-
dores Sem Terra (Caccia-Bava: 2004). A juventude do início do
século XXI, por sua vez, continua atenta às causas políticas, mas
também parece se empolgar com grupos religiosos diversos, con-
forme comprovou a Jornada Mundial da Juventude, ocorrida em
2013, no Rio de Janeiro, 27 anos depois da sua primeira edição,
em 1986, na cidade de Roma, Itália.
É senso comum que os jovens são menos resistentes a mu-
danças que os adultos, que têm modelos extraídos das experiências
já vivenciadas e estão sempre preocupados com a repercussão de
suas decisões. Assim, os jovens parecem mais livres para romper
com o passado, promover mudanças e modas, que são incorpo-
radas por seus pares. Mas isso não é uma regra, uma vez que há
aqueles que preferem perpetuar costumes, seguir modelos prees-
tabelecidos, provenientes de orientações familiares ou de perso-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 41

nalidades marcantes em suas vidas, o que nos leva a considerar,


sempre que necessário, o peso da interferência intergeracional.
Então podemos dizer que há maneiras diferentes de ser jovem, o
que abrange desde aquele que reproduz a tradição até aquele que
desvia desse caminho, buscando uma trajetória particular, criati-
va. Esses jovens, ora transformadores, ora conservadores, têm um
espaço garantido dentro dos recenseamentos, incluindo as amos-
tras sobre religião, o que nos motivou a desenvolver uma pesquisa
sobre a situação de religiosidade de uma faixa etária de 18 a 20
anos, considerada aquela na qual predominam ateus e agnósticos,
aparentemente secularizados (Novaes: 2004, 322).

A situação espiritual dos jovens apurada no


alistamento militar

A fim de investigar a situação de religiosidade de rapazes


residentes em várias localidades fluminenses, recorremos às fileiras
do alistamento militar buscando as juntas instaladas na 1ª Região
Militar – que compreende todo o estado do Rio de Janeiro – no
início de 2009. Assim, conhecemos não só as características demo-
gráficas, mas as principais motivações no campo da religião desses
jovens do sexo masculino habitantes da Região Metropolitana do
Rio de Janeiro. Preparamos 500 questionários destinados àqueles
que retornavam às comissões de seleção para a retirada do Certi-
ficado de Alistamento Militar (CAM). Para atingir um universo
diversificado, os instrumentos foram distribuídos, em proporções
iguais, entre as oito seções militares mais abrangentes,1 agrupan-
do diversas áreas. Aproveitamos 465 entrevistas, o equivalente a
93% do total, com uma perda de apenas 7% de questionários que
voltaram incompletos. Lembramos que a Constituição Brasileira

1
Os questionários foram encaminhados às 1ª, 5ª, 7ª, 8ª, 11ª, 14ª, 16ª, 17ª seções
da 1ª Região Militar.
42 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

de 1988 obriga todos os brasileiros do sexo masculino, natos ou


naturalizados, ou por opção, à prestação de serviço militar nas
Forças Armadas. Com isso, no ano em que completa 18 anos o
jovem deve comparecer para alistamento na junta mais próxima
de sua residência. Aqueles alistados são encaminhados a organi-
zações militares, submetidos a exames físicos ou psicológicos ou
mesmo dispensados, dependendo de cada caso. Depois desses
procedimentos, o candidato deve retornar ao local de inscrição
para retirar o documento comprobatório de seu comparecimento
para a prestação do serviço militar. Foram esses os jovens que res-
ponderam nosso questionário, que combinava aspectos da demo-
grafia, geografia, economia e religião, nos permitindo estabelecer
relações mais precisas entre as características dessa população.2
A maior parte dos nossos entrevistados (77%) tinha 19
anos, mas também contamos com outros representantes da faixa
etária dos 17 aos 21 anos e alguns poucos com 23, 26, 35, 39, 41
anos, em busca de uma segunda via do documento, o que não ul-
trapassou 0,2% do total. Identificamos, em diferentes proporções,
jovens de todas as cores ou etnias: parda (37%), branca (36%),
preta (18,5%) e até mesmo amarela (3,7%) e indígena (3,7%). O
mapa da região metropolitana revela que nos bairros onde há ele-
vado nível de renda e escolaridade, há maior presença de pessoas
da cor branca, especialmente no Rio de Janeiro e Niterói. À medi-
da que se afasta dessas áreas aumenta gradativamente a população
não branca (Jacob et al.: 2006, 154), o que, se combinado com in-
formações sobre área de residência, pode explicar o elevado núme-
ro de pessoas que declararam a cor parda, o que vai ao encontro de
nossos resultados. A maior parte do grupo era solteira (98%), ób-
via interferência da faixa etária recortada, com raras variações. Sob
a mesma influência, no que se refere ao grau de escolaridade, os

2
Convém ressaltar que os formulários oficiais do recrutamento militar não apre-
sentam campo para coleta de informação sobre religião.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 43

maiores percentuais estavam entre aqueles que declararam ensino


médio completo (41,4%) ou incompleto (41,2%). Entre os de-
mais, 11,5% apresentavam apenas ensino fundamental completo
ou incompleto, 5% ensino superior em curso e 0,2% não tinham
instrução. Como esperado, mais da metade (51%) se declarou
estudante, mas outros se definiram como desempregados (31%)
ou empregados (15,5%). Nos critérios censitários, os jovens são
comumente enquadrados dentro da população economicamente
inativa, ou que não trabalha, mas, mesmo se trabalha, não é res-
ponsável pelo sustento da família. Entretanto, resultados do Cen-
so 2010 revelaram que cerca de 661,2 mil jovens brasileiros entre
15 e 19 anos respondiam pelo sustento de seus domicílios, sendo
50,3 mil residentes no estado do Rio de Janeiro. Muitos atuavam
no mercado informal como engraxate, vendedor ou, ainda, tra-
balhavam na separação de lixo. No nosso grupo de entrevistados,
que inclui jovens das camadas mais desfavorecidas, também loca-
lizamos uma parcela representativa que contribuía para a renda
familiar com sua força de trabalho, muitas vezes abandonando os
estudos. Isso é reforçado quando constatamos que mais da metade
dos informantes (66,5%) vivia em famílias com renda entre 2 e
5 salários-mínimos, ficando um percentual menor em famílias de
renda entre 5 e 10 salários-mínimos (12,7%). Lembramos que a
escola surge como um facilitador da mudança social, permitindo
o acesso a melhores oportunidades de emprego e consequente au-
mento da renda mensal e dos padrões de consumo.
Se avaliarmos as áreas de moradia, constatamos que a maior
parte do grupo residia em áreas de baixa renda, portanto de bai-
xo poder aquisitivo, não só na cidade do Rio de Janeiro, em su-
búrbios das zonas Norte e Oeste (53%), mas em toda a Região
Metropolitana Fluminense, na seguinte distribuição geográfica:
Niterói (15%), Nova Iguaçu (9%), São Gonçalo (8%), Belford
Roxo (6%), Queimados (5%), Mesquita (3%), Duque de Caxias
(0,6%), Japeri e Nilópolis (0,4% cada), Itaboraí e Maricá (0,2%
44 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

cada). Com exceção de Niterói e Rio de Janeiro, nossos entrevis-


tados residiam em cidades de médio Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH).3 No que tange à religião, encontramos entre os
jovens do alistamento militar tendências variadas, o que espelha,
de certa forma, os grupos destacados nos mapeamentos do Censo
do IBGE4 de 2000 e 2010.
O panorama geral do cenário religioso brasileiro mostra
que, do recenseamento de 1991 para o de 2000, os católicos
declinaram de 83,8% para 73,8% da população, enquanto
evangélicos subiram de 9,1% para 15,5% de representatividade
e os sem-religião, de 4,8% para 7,3%. Dados mais recentes, do
Censo 2010, mostram que, a despeito de toda a revitalização
propiciada principalmente pela Renovação Católica Carismáti-
ca, a queda dos católicos se acentuou para 64,63%, enquanto os
evangélicos subiram para 22,16% e os sem-religião para 8,04%.
Somente nessa edição o IBGE reconheceu a necessidade de des-
membrar os sem-religião em tipos diferenciados, de acordo com
o grau de secularização, não mais agregando-os e interpretando-
-os como se todos formassem uma categoria homogênea, o que
criticamos em nossa tese.

3
O IDH é um instrumento criado pelo Programa das Nações Unidas para o De-
senvolvimento (PNUD), resultante da combinação de vários indicadores de saú-
de e sobrevivência, além do acesso ao conhecimento e a recursos monetários. O
IDH varia de zero a um, definido como alto (IDH > 0.8), médio (0.8> IDH
>0.5) e baixo (IDH <0.5). Estes podem, ainda, ser subdivididos: médio-baixo
(0.6> IDH >0.5), médio-médio (0.7> IDH >0.6) e médio-alto (0.8> IDH >0.7).
Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); Índice de Desenvol-
vimento Humano (IDH). Rio de Janeiro, 2000. Disponível em: <http://www.
ipeadata.gov.br>. Acessado em 30/04/ 2008.
4
O XII Censo Demográfico (2010) contou com 191.972 recenseadores, que per-
correram os 8.514.876,599 km² do território nacional, nos 5.565 municípios
brasileiros. Seus resultados foram divulgados paulatinamente, sendo que os da-
dos sobre religião só foram liberados em julho de 2012. Fonte <http://www.
sidra.ibge.gov.br/cd/cd2010CGP.asp>.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 45

Lembramos aqui que propomos a distinção de dois tipos de


sem-religião. Um deles era composto por ateus ou agnósticos,5 to-
talmente descrentes ou duvidosos da crença no transcendente, que
enquadramos como indivíduos “sem-religião sem religiosidade”;
enquanto o outro era constituído por aqueles que mantinham sua
fé em Deus ou equivalente, os quais denominamos “sem-religião
com religiosidade”. No primeiro tipo, reunimos aqueles sem vín-
culos com o mágico ou religiões; de modo geral, eles adotavam
uma postura absolutamente materialista para todas as coisas. No
segundo tipo, juntamos indivíduos que não rejeitam o transcen-
dente, apenas deslocaram sua religiosidade para uma esfera muito
privada, estabelecendo uma relação particular ou mesmo íntima
com suas representações. Estão nesse tipo as seguintes variações:
a) aqueles que passaram por muitos trânsitos, por experiências
religiosas variadas, sem, porém, vincular-se a nenhuma delas; b)
aqueles que creem em alguma força divina, mas não estão vin-
culados a nenhum grupo religioso; c) integrantes de ordens mís-
ticas ou filosóficas que não consideram como grupos religiosos;
d) consumidores esporádicos de bens religiosos como se fossem
produtos terapêuticos. Se um deles se remete ao existencialismo,
ao materialismo histórico, que já teve o seu momento de destaque
na história, com a rejeição de elementos religiosos, o outro sina-
liza uma mudança de comportamento no campo da religião, des-
prendendo crenças e práticas das instituições, confirmando que o
indivíduo que se declara ou é declarado sem-religião se caracteriza
principalmente pela desvinculação institucional.
Enfim no Censo 2010 encontramos 0,32% de ateus e 0,07%
de agnósticos – que classificamos “sem-religião sem religiosidade”

5
Alguns indivíduos manifestaram confusão entre as definições de ateu e agnósti-
co, incompatíveis com o comportamento que apresentavam. Contudo, não nos
propusemos a verificar os limites do ateísmo ou agnosticismo de cada um neste
trabalho, o que foi resolvido com a reclassificação do grupo como “sem-religião
sem religiosidade”.
46 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

–, ao lado de 7,65% de “sem-religião” – que classificamos como


“sem-religião com religiosidade”, tipo que predominou entre os
candidatos ao alistamento militar, apresentando um estilo de vida
alternativo, composto por 91 indivíduos que não tinham religião,
mas acreditavam em Deus. Ou seja, o número de pessoas sem-
-religião que acreditavam em Deus ou em alguma força superior
era muito maior do que daquelas que se afirmavam descrentes. Se
agregamos a esse grupo aqueles que se declararam ateus, agnósti-
cos, judeus, budistas ou membros da Igreja Messiânica Mundial,
contamos, ao todo, com 146 entrevistados sem-religião (31,4%).
Dos outros grupos, contamos com 144 evangélicos (31%), 157
católicos (34%) e demais grupos (3,6%), que incluem 11 segui-
dores do espiritismo kardecista e 4 de cultos afro-brasileiros.6 Dois
não assumiram nenhuma condição de religiosidade.
Tanto os judeus quanto os budistas, também aqui identifi-
cados, podem ser interpretados pelo viés das religiões étnicas; con-
tudo, mesmo esses indivíduos, neste estudo, se definiram como
sem-religião. O primeiro só vê o judaísmo como uma referência
cultural, mas sem caráter religioso, enquanto o segundo encara
o budismo como uma filosofia de vida e não uma religião. No
caso dos judeus, convém ressaltar que essa identificação poderia
enquadrá-los, dentro dos recenseamentos oficiais, no espaço reser-
vado para a religião Judaica/Israelita; entretanto, os judeus aqui
localizados às vezes se classificavam como ateus, agnósticos ou, no
máximo, sem-religião. Eram judeus laicos, criados sem orientação
religiosa, que se tornaram tema de pesquisas na França – onde
estão organizados em associações. No nosso estudo, a discreta pre-
dominância católica não sobressaiu mais que a quase equiparação

6
Especificamente entre os nossos jovens sem-religião, 91 disseram que não tinham
religião, mas acreditavam em Deus; 38 agnósticos; 13 ateus; 11 seguidores do
espiritismo kardecista; 4 de cultos afro-brasileiros; 3 judeus; 1 membro da Igreja
Messiânica Mundial e 1 se declarou budista.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 47

dos evangélicos e sem-religião, reproduzindo, mesmo num uni-


verso menor e direcionado, transformações contemporâneas no
campo religioso plural brasileiro. Isso evidencia o processo de des-
tradicionalização já anunciado, que pode ser compreendido como
um movimento de desencaixe e reencaixe, ou desenraizamento de
sistemas sociais aparentemente estabelecidos, assim como o exercí-
cio das liberdades individuais de expressão, pensamento e crença.

Traços de destradicionalização no cenário globalizado

A destradicionalização pode ser percebida a partir de um


conjunto de transformações que interferem na subjetividade indi-
vidual, possibilitando a desconstrução de verdades absolutas, até
então concebidas indestrutíveis, contidas nos dogmas, que passam
a ser questionáveis. Explicações fundadas em cosmologias religio-
sas são substituídas por outras que incluem aquelas científicas,
mas igualmente provisórias ou relativizadas. Emerge a radicaliza-
ção das incertezas, decretando o fim de modelos instituídos, sub-
vertendo a razão. Tudo pode mudar, uma vez que a subjetividade
na contemporaneidade é marcada pelo conhecimento reflexiva-
mente aplicado, introduzido na base da reprodução dos sistemas
sociais. Nessa perspectiva, podemos inferir que, no cenário re-
ligioso, as tendências secularizantes desestabilizaram a tradição,
facilitando rupturas inconcebíveis antes do Estado laico e, então,
prepararam o terreno para o surgimento de um novo modelo de
conduta, mais autônomo nas suas escolhas e manifestações, como
aquele dos sem-religião. Dotado de uma secularização subjetiva
que nem sempre o desprende totalmente de crenças, mas sem-
pre o desliga nitidamente das instituições religiosas, as quais julga
desnecessárias, o sem-religião se sente livre para exercer todas as
suas liberdades civis, entre as quais a de culto, de consciência.
Pode escolher seu próprio caminho e, assim, construir sua biogra-
fia, percebendo-se como indivíduo dotado de direitos. Desde que
48 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

afirmar-se como católico deixou de ser obrigatório, os cidadãos


passaram a assumir outras afiliações que não a majoritária, dei-
xando transparecer enfim a diversidade religiosa brasileira. Gra-
dativamente as mentalidades vêm se modificando e, do final do
século XX para o início do XXI, foi refinada nos recenseamentos
demográficos uma nova categoria, que reinterpreta a religião à
sua maneira. A religiosidade, que algumas vezes é percebida como
um estágio anterior à religião institucional, ou simplesmente um
“agir religioso”, parece ter sido priorizada entre certos indivíduos,
o que denuncia uma crise do pertencimento institucional, o que
também pode ser percebido no âmbito da política.
Em sua produção, o sociólogo Flávio Pierucci (2004, 18-9)
enfatizou bastante essas transformações com o declínio das re-
ligiões tradicionais no Brasil, destacando o catolicismo, o lute-
ranismo7 e a umbanda.8 Ele utilizou a metáfora “Bye bye, Bra-
sil tradicional” para demarcar essa transição religiosa da qual os
evangélicos e os sem-religião aparecem como principais benefi-
ciários, recebendo principalmente ex-católicos. Importante res-
saltar que essa retração também ocorre no cenário internacional,
como no caso do hinduísmo, que perdeu terreno para a expansão
muçulmana na Índia. Para Pierucci (2004, 19), nas sociedades
pós-tradicionais está ocorrendo um movimento de desencaixe de
laços religiosos que resulta num processo de desfiliação religiosa.
Aumenta a dificuldade de estabelecer vínculos, o que parece uma
marca registrada da sociedade globalizada, racionalizada e extre-
mamente individualizada ou, mais precisamente, privatizada. Essa
marca também sobressai quando Pierucci (2006) apresenta a reli-
gião universal como solvente de laços consolidados, como aqueles
das conhecidas religiões étnicas. Entendemos, então, que a natu-

7
Protestantismo de imigração, a primeira das formações do protestantismo.
8
Por sua natureza sincrética, pode ser considerada uma “religião brasileira por
excelência”.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 49

reza dinâmica da modernidade promoveu alterações profundas da


intimidade do indivíduo, de suas relações interpessoais, logo, da
ordem social global, as quais interferiram em vários domínios, o
que inclui o da religião. Nesse contexto, a apropriação reflexiva
do conhecimento permite que o indivíduo revise antigas teorias
e postulados e reavalie suas relações conforme suas expectativas,
colocando à prova mesmo instituições e ideias até então conso-
lidadas. A partir disso é possível promover alterações de rumos,
romper laços com associações já instaladas que, até então, eram
acreditadas como confiáveis e provedoras de significados. As pos-
sibilidades de mudanças são multiplicadas, soltando as amarras
dos hábitos e das práticas locais.
Nos espaços religiosos plurais, diversificados, o indivíduo,
no exercício de suas liberdades, pode trafegar entre várias ofertas,
consumindo aquelas que mais correspondem às suas expectativas,
construindo sua identidade a partir de outros vínculos de socia-
bilidade e concepções de religiosidade que nem sempre foram co-
gitados. Os processos de secularização, acompanhados da laiciza-
ção, em certos cenários deslocaram estruturas sociais tradicionais,
permitindo a flexibilização da ordem vigente e o consequente
desenraizamento dos indivíduos, o que é visível não só na movi-
mentação censitária, mas em pesquisas diversas sobre o campo re-
ligioso. Acontece, então, uma reacomodação do lugar da religião
e, também, da maneira de ser religioso, quando, no nosso enten-
dimento, a contemporaneidade não se constitui como um estágio
“menos religioso”, mas outra forma de ser religioso. Diante das
perspectivas aqui apresentadas, declarar-se sem-religião ou aderir
a uma religião oriental na atualidade, por exemplo, como aqueles
que na nossa pesquisa se declararam budistas ou membros das no-
vas religiões japonesas, pode significar outra forma de adaptar-se
às novas condições e de lidar com sua própria identidade. Nesse
sentido, acreditamos que a evidência dos indivíduos sem-religião
em certas sociedades pode sinalizar não só a instauração de uma
50 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

crise de pertencimento institucional enraizada nas próprias carac-


terísticas desses tempos, mas a apropriação dos direitos civis. Tra-
ta-se de uma nova configuração que valoriza o respeito aos direitos
humanos, fazendo aflorar as reivindicações do exercício pleno da
cidadania, que faculta ao indivíduo migrar de um grupo religioso
para outro com mais facilidade ou, ainda, afirmar-se sem-religião,
diferenciando-se da maioria, expressando-se livremente.

Especificidades dos sem-religião jovens na atualidade

Outros autores nacionais e internacionais têm dedicado es-


tudos aos sem-religião, com destaque para os jovens. Entre eles, a
socióloga francesa Sylvette Denèfle (1997, 122-3) lembrou que,
em todos os lugares da Europa, os anos 80 ficaram marcados por
uma baixa do sentimento de pertencimento religioso, quando os
jovens franceses, junto com os holandeses e britânicos, se mostra-
vam aqueles menos religiosos, ao contrário dos irlandeses, consi-
derados os mais religiosos. Esses dados são corroborados por uma
enquete feita nos anos 90, ressaltando a importância das ligações
intergeracionais. No caso francês, um grande número de estudos
tem tratado das atitudes dos jovens em relação à religião, verifi-
cando que eles estão cada vez mais desligados de suas instituições.
Para ilustrar a situação, a autora reproduz uma série de estatís-
ticas publicadas pelo jornal La Vie, de 1967 a 1994, mostrando
o crescimento dos jovens que se afirmam sem-religião. Mas esse
afastamento cada vez maior, a cada geração, dos jovens da religião,
conforme a autora, ocorre não só entre os franceses, mas também
com os filhos dos imigrantes. Isso é tratado como um fenôme-
no percebido tanto através dos percentuais ascendentes daqueles
que se declaram sem-religião, quanto do aumento daqueles que
passam da condição de praticantes a não praticantes e, ainda, da
não transmissão das crenças e práticas religiosas no interior da fa-
mília. Sylvette Denèfle (1992) também escreveu um artigo sobre
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 51

crenças e valores de estudantes que se declaravam sem-religião.


Foi uma pesquisa realizada com 26 estudantes sem-religião, reti-
rados de uma enquete com 200 indivíduos residentes na região de
Nantes, França, os quais opinaram acerca de vários temas, como
instituições religiosas, existência de Deus, escolhas morais, amor à
família, casamento, confiança na ciência e na medicina. Tal qual
em pesquisa anterior, muitos jovens demonstravam um anticleri-
calismo radical; a despeito disso, compartilhavam certos valores
sociais e morais, os quais a autora se dispôs a investigar.
No contexto nacional, Regina Novaes (2002, 2004) publi-
cou uma sequência de artigos relacionando juventude e religião,
destacando, sobretudo, a nova religiosidade, observada em muitos
indivíduos sem-religião. Dados produzidos pela pesquisa Perfil da
Juventude Brasileira9 (Novaes: 2004, 321) mostram que dos 10%
de jovens sem-religião ali identificados, a maioria pertencia ao
grupo que sustentava um conjunto de crenças (9%), sendo apenas
uma pequena parte (1%) constituída por ateus e agnósticos. Eram
dois grupos diferenciados entre jovens na faixa dos 15 aos 24
anos: um deles formado por aqueles com um “ideário secularizan-
te (presente entre ateus e agnósticos)” e outro, por representantes
do que ela define através da metáfora “espírito do tempo”. Esses
são os jovens que acreditam em Deus, mas rejeitam instituições
religiosas, que transitam entre várias religiões ou que se mostram
simpatizantes dos sincretismos. Entre eles é possível identificar
desde a múltipla pertença até a adoção de práticas orientais, o que
é agilizado pelos avanços da tecnologia e das técnicas de comu-
nicação. No mundo globalizado, as crenças circulam e são apro-
priadas e reapropriadas pelos indivíduos, de uma forma inédita.
Há um “consumo de bens religiosos sem as clássicas mediações
institucionais... como uma alternativa de vida e de expressão cul-

9
A pesquisa faz parte do Projeto Juventude/Instituto Cidadania, disponível em:
<http://www.projetojuventude.org.br>.
52 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

tural” (Novaes: 2004, 328), o que ratifica uma mudança no perfil


religioso. Como já antecipado, a religião torna-se uma opção em
meio a inúmeras alternativas, o que inclui a prerrogativa de ficar
sem-religião. Remetendo essa situação à nossa tipologia, podemos
classificar como “sem-religião com religiosidade” aqueles jovens
que, embora não estivessem vinculados a uma instituição religio-
sa, apresentavam uma variedade de crenças.
Em consenso com outros estudiosos da religião (Pierucci:
2004; Jacob et al.: 2003; Mariz: 1998), Regina Novaes também
recorreu aos recenseamentos para mostrar a redução dos católicos,
em contraposição ao aumento dos evangélicos e dos sem-religião,
donde conclui que sopram ventos secularizantes na sociedade atual.
Tentando explicar a baixa do pertencimento religioso, a autora
alega que quando menos adultos em idade reprodutiva se decla-
ram católicos, por exemplo, consequentemente menos crianças
recebem essa formação, daí o declínio, o que convida a uma ava-
liação da influência intergeracional.

Influências relevantes na construção das trajetórias


dos jovens

Segundo Roland Campiche (1997, 170), a família é o lugar


privilegiado da aprendizagem cultural, constituindo o contexto
da primeira identificação com um modelo religioso e, conse-
quentemente, da formação de um patrimônio religioso. A famí-
lia desempenha papel fundamental nos primeiros anos de vida,
quando a criança é muito suscetível a influências externas e ao
prestígio de seus pais. Dessa forma, o ambiente doméstico inter-
fere na transmissão religiosa, fazendo com que filhos tendam a se-
guir a orientação de seus pais. Ao fazer sua análise da transmissão
intergeracional da religião, Carlos Steil e colegas (2001, 19-20)
demonstraram que, em média, 64,1% dos seus entrevistados dis-
seram que foram influenciados pela família na escolha da religião,
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 53

42,3% por motivos pessoais, 8% por amigos e 6,1% por agentes


religiosos. No entanto, Marcelo Camurça (2001, 41-2) consta-
tou um peso menor da influência familiar entre universitários das
ciências sociais, dos quais 56,3% se definiram como religiosos,
contrariando a suposição de que jovens de camadas médias, em
áreas urbanas, no ensino superior, aparentemente seriam menos
religiosos. Mas, em seu grupo, somente 38,9% admitiram que foi
a família que influenciou na escolha da religião, 27,8% afirmaram
que foram motivos pessoais, 9,7% amigos, 4,2% agentes religio-
sos e 5,6% outros. Nessa pesquisa, o autor ainda identificou pais
predominantemente católicos, havendo uma pequena diferença
da religião dos filhos, algumas vezes explicada pela diversidade re-
ligiosa do país, mas reconhecendo, nesse caso, o reforço da opção
voluntária, consciente, reafirmando a ligação desses jovens minei-
ros com sua religião de batismo (Camurça: 2001, 48). Quando
tentamos verificar, entre os nossos entrevistados, a possibilidade
da influência intergeracional, constatamos que a maior parte dos
pais era de religião cristã: ou católicos ou evangélicos. Do total,
39,6% disseram que a mãe era católica, 34,7% evangélica, 5,6%
espírita kardecista e 12,5% não souberam identificar a religião da
mãe. No lado paterno, em percentuais próximos, 38,5% disseram
que o pai era católico, 27,6% evangélico, 2,4% espírita kardecista
e 18% não souberam identificar a religião do pai. Afinados com
a religião dos pais, 75,7% dos entrevistados disseram que rece-
beram alguma formação religiosa, enquanto 24,2% não recebe-
ram, sendo que a maior parte recebeu orientação cristã de origem
católica (36,8%) ou evangélica (34,2%). Entre os demais, 24%
declararam que não receberam nenhuma orientação, 0,4% orien-
tação agnóstica. Do grupo, somente 9% revelaram que mudaram
de religião, em geral por interesse por novas crenças, problemas
emocionais ou espirituais, que são as respostas mais frequentes.
Quando indagados se dariam religião aos filhos, 58% afirmaram
que sim, 26,5% manifestaram dúvida e 11% disseram que não
54 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

dariam uma religião aos filhos, mas deixariam que eles próprios
escolhessem. Lembramos aqui que os conflitos geracionais por di-
ferentes visões de mundo também podem ser percebidos de for-
ma positiva, como facilitadores da construção de identidades e
de adaptação ao grupo no qual o jovem está inserido. São esses
embates na juventude que impulsionam transformações, não tão
evidentes em adultos, que tendem a apresentar valores mais cris-
talizados, portanto mais resistentes a mudanças.
Quando indagamos nossos entrevistados fluminenses sobre
os motivos que podem levar uma pessoa a buscar uma religião,
nossos resultados indicaram um caminho diferente, onde a in-
fluência da família não superou a motivação pessoal da busca do
bem-estar. O ranking das justificativas foi o seguinte: busca de
conforto (23%), busca de equilíbrio (18,9%), força da educação
familiar (18,7%), busca de explicação para a vida (17,7%) e medo
da morte ou da solidão (6,5%). Também questionamos sobre as
práticas religiosas, localizando 46% que declararam que frequen-
tavam culto religioso, mas bem próximos 48,8% que não fre-
quentavam. Ainda que consideremos que as instituições religiosas
podem proporcionar espaços de agregação social, principalmente
para jovens, com possibilidade de compartilhar atividades varia-
das e usufruir de benefícios sociais, nem todos as percebem desse
ângulo. Assim, se encontramos grupos jovens católicos, evangé-
licos, espíritas ativistas de ações sociais diversas, também temos
aqueles que se afastam desses vínculos e suas redes, muitas vezes
por insatisfação com os serviços oferecidos pela instituição que co-
nheceram. Isso pode ser reforçado quando verificamos que 21,7%
dos nossos entrevistados declararam que não precisavam estar
vinculados a uma religião para acreditar em Deus e 2,2% que
não gostavam de vínculos com religiões. A despeito do percentual
expressivo de entrevistados que não frequentavam cultos religiosos
nem queriam afiliações institucionais, 52,7% admitiram que cos-
tumavam rezar, 0,2% que rezavam às vezes, 30,1% que não reza-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 55

vam e 16,9% não responderam. Se há algum tempo exercer uma


prática religiosa rejeitando aproximação com religiões poderia
apresentar-se como uma contradição, hoje isso é percebido como
uma transformação do pensamento religioso, onde o indivíduo
sente-se livre para exercer sua religiosidade sem intermediações,
como reivindicam os sem-religião. Como já sugerido, mais do que
sintoma de descrença, a presença dos sem-religião no cenário na-
cional sinaliza uma crise do pertencimento religioso pela baixa do
grau de confiança nas instituições conhecidas.

Considerações finais

No caso da juventude, o afastamento da religião pode reve-


lar-se como uma faceta do comportamento de certos indivíduos
nessa fase da vida: aqueles em busca de sua própria identidade,
independente daquela de seus pais. Situados entre a infância e o
início da vida adulta, num processo de descoberta e afirmação,
os jovens parecem mais suscetíveis à possibilidade de mudança
de opinião, de convicção, portanto, de trânsito, sentindo-se mais
livres, por exemplo, para experimentar os bens religiosos em ex-
posição. Consideramos, então, a juventude, como uma categoria
intermediária, em construção, mas igualmente atrativa na análise
dos dados censitários, onde pode se constituir como as primeiras
fotografias de tendências que se consolidarão no futuro. É, assim,
uma representação instantânea de um momento que pode repro-
duzir-se por outras gerações, ainda que em escala diferenciada, em
sintonia com a evolução no campo religioso brasileiro.

Referências

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Favela e pacificação. Religião e
Estado no ordenamento do
espaço social

João Marcus Figueiredo Assis* 1

Minha primeira experiência com a favela carioca foi a partir


de uma visita assistencial. Como frade franciscano em formação,
me cabia, entre outras coisas, desenvolver trabalhos pastorais junto
a pessoas ou grupos que considerássemos carentes. Nesse sentido,
embora o foco fosse o que entendíamos como carência econômica,
outros elementos estavam em jogo, como o que podia ser entendi-
do por carência cultural, religiosa ou moral. Portanto, à carência
econômica se ajuntavam ou se evidenciavam para nós, envolvidos
nesse universo religioso, outros elementos. Tal visão nos colocava
na posição de quem possuía as condições de interferência em seu
cotidiano a fim de modificá-lo segundo a ótica cristã.
Tentarei aqui uma digressão pela memória para recompor
as primeiras impressões e primeiros contatos com a favela, seus
moradores e seu cotidiano. A finalidade é reconstruir um pano-
rama do interesse desta pesquisa, ou seja, aspectos religiosos e so-

*
Professor adjunto do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
58 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

ciopolíticos do trabalho religioso na favela e a interpretação de


seus agentes sobre a presença e a atuação das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs). Buscarei direcionar meu relato da aproxima-
ção para com as ações desenvolvidas pelas religiosas em uma favela
vizinha àquela em que atuei durante cerca de três anos. A relevân-
cia desses relatos está na apresentação do trabalho desenvolvido
por elas há aproximadamente trinta e dois anos naquele espaço.
Sua atuação é significativa e marca a presença religiosa católica,
assim como a busca de implementação de um ordenamento ou
direcionamento religioso para os moradores, em especial aqueles
por elas assistidos.
No que tange à memória, pode-se destacar que, conforme
um dos primeiros estudiosos dos seus qualificativos sociais,
Halbwachs (1990), recordamos o passado a partir das interferências
exercidas por nós no presente. Os grupos sociais, familiares,
políticos e acadêmicos dos quais fazemos parte influenciam nossa
observação do passado e sua reconstrução.
Dessa forma, minhas impressões sobre o passado estarão
carregadas de múltiplas intenções vinculadas às questões acadêmi-
cas que propus abordar, em especial sobre a atuação religiosa nesse
espaço e os agentes religiosos que se propõem a efetuá-la, estando
alguns atuantes até o presente momento. A memória é, portan-
to, não só um instrumento de narrativa sobre o passado, mas de
inserção do narrador na própria narrativa por meio de elementos
por ele inseridos. Aqui o narrador é também coautor da narrativa
(Benjamin: 1986).
O acesso à favela na qual atuei junto a outros frades e alguns
leigos foi proporcionado, entre outras coisas, pelo conhecimento
prévio de moradores com os quais convivia no trabalho pastoral
e também pelo fato de, naquele morro, na segunda metade dos
anos oitenta, o tráfico armado não se apresentar como empecilho
para o trabalho pastoral. Minha circulação era facilitada por tais
fatores. Em outros trechos da mesma favela, entretanto, o tráfico
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 59

ganhava evidência e se encontrava estruturado. Sendo assim, só


podíamos nos locomover ali na companhia de algum morador.
Era um universo bastante diferente e distanciado do que eu já ha-
via vivenciado, mesmo em outros lugares em situação de pobreza:
ruas estreitas e sujas, escadarias intermináveis, dissimulações nos
olhares, residências emaranhadas e localizadas em lugares impro-
váveis, labirintos indecifráveis, indiferenciação do espaço público
e do privado.
A favela em questão apresenta uma divisão “invisível” entre
três partes de um mesmo morro, talvez seguindo, em parte, uma
divisão administrativa. O conjunto dessas três favelas é entendi-
do como um complexo. Um observador desavisado não saberia
identificar os limites estabelecidos. Tais fronteiras, no entanto,
são bastante nítidas para os moradores. Aos poucos fui me acos-
tumando e observando melhor essas divisões, as quais marcam
(im)possibilidades de trânsito, acessos e trocas. Há, todavia,
inúmeras subdivisões internas, que marcam e são marcadas por
relações mais diretas e pessoais dos moradores. Traduzem espa-
ços ocupados em diferentes épocas, locais com menor ou maior
assistência pública e com ou sem obras de infraestrutura, como
escadas, esgoto etc. Demonstram ainda relações sociais hierarqui-
zadas. De uma forma geral, quanto mais próximo da entrada da
favela, mais bem localizado também estará o morador quanto à
hierarquia social do local. O inverso também costuma se dar com
os locais mais afastados das entradas, os quais serão, em geral,
menos assistidos.
Uma identificação significativa quanto ao espaço são nomes
recorrentes em diversas favelas, destinados a práticas ou a simbo-
lizações positivadas. Em diversas favelas com as quais tive conta-
to há um “Tanque” ou um “Pedacinho do Céu”. No primeiro
caso, são espaços onde, em geral, há algum encanamento ou “bica
d’água” onde se abastecem as famílias mais próximas e servem
também de espaço para lavagem de roupa. É também um espaço
60 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

de socialização. Meu colega de moradia se utilizou, em diversas si-


tuações, desse espaço tanto para lavar roupas como para partilhar
o cotidiano das mulheres e crianças do morro. No segundo caso,
correspondem a regiões de novas posses, iniciadas sem estrutura,
mas que projetam uma nova vida para os que ali residem, uma
identificação com o lugar sonhado, o “pedaço do céu”.
Durante aproximadamente dois anos, subíamos o morro
aos domingos e em alguns sábados para celebração e visitas a al-
guns moradores. Após esse período, solicitamos a nossos superio-
res que pudéssemos residir no local. Foi um período de intensa
negociação e ponderação. Seria a primeira vez que isso ocorreria
naquela circunscrição da Ordem Franciscana.
Nesse período de residência – aproximadamente um ano –,
iniciamos um relacionamento mais estreito com os demais religio-
sos inseridos em meios populares1 da cidade e da região metropoli-
tana. Começamos a manter contato com as perspectivas da inserção
em meios populares. Sabíamos da presença das irmãs na favela vi-
zinha, mas o contato era restrito, porque o trânsito entre as favelas
tinha que ser mediado. Pela fala dos moradores com os quais man-
tínhamos contato, percebíamos que a presença das irmãs já estava
consolidada naquele período. Elas eram referências na localidade.
Nesse recordar de meu primeiro contato com a favela, que-
ro ressaltar a obra A alma encantadora das ruas, de João do Rio. O
autor inicia seu texto afirmando que a rua tem alma, ou seja, ela
não é pura e simples definição ou conceito. “Nós somos irmãos,
nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos
povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei
e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua”.2

1
Tratarei desse aspecto da vida religiosa católica – a inserção em meios populares
– mais adiante.
2
Cf. em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000039.pdf>.
Acessado em 6/10/2011.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 61

Minha experiência revelou, em relação à favela, essa alma


da qual fala João do Rio em relação à rua, mesmo porque a fave-
la não diferencia a casa e a rua, que parecem se complementar.3
Havia um sistema de informação muito interessante, pois no caso
de qualquer distúrbio, como batidas policiais ou confrontos entre
traficantes, éramos informados logo na subida. As informações
passavam de boca em boca e havia uma preocupação dos mora-
dores das entradas em informar aos visitantes ou aos moradores
que voltavam do trabalho sobre a situação de perigo. Difícil ser
desconhecido no morro ou passar impune às notícias sobre no-
vos moradores e casos de desvio de conduta conjugal. Mesmo as
crianças que brincavam nos becos e ruelas não estavam soltas por
completo. Havia sempre algum adulto, vizinho ou parente, que
“tomasse conta” da criançada.4
Essa realidade foi ficando mais evidente a cada semana que
passava como morador da localidade. Esses fatos foram deline-
ando para mim essa alma encantadora da favela. Foram demons-
trando uma ordem cotidiana onde antes, por notícias externas,
em especial dos moradores do entorno da favela e dos jornais, em
minhas impressões havia desordem tanto espacial quanto moral.
No período de um ano em que lá morei, poucas vezes presenciei
ali a ação direta do tráfico armado. Assim, tive oportunidade de
observar o ordenamento manifestado pelos próprios moradores,
que resolviam suas contendas, rixas e problemas de forma direta
ou mediada pela associação de moradores ou por vizinhos. Pode
ter existido, mas em nenhum momento durante aquele ano pre-
senciei ou tive notícias da necessidade da intervenção policial
nesses casos.

3
Cf. o interessante trabalho de Santos, C. N. F. dos & Vogel, Arno (orgs.). Quan-
do a rua vira casa: a apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro
(1985).
4
Esses adultos que “tomam conta” são semelhantes aos “olhos da rua” enunciados
por Jane Jacobs (2000).
62 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Imagens idílicas me vêm à memória do convívio desse ano,


como a vista esplêndida de nossa casa, onde era possível admirar
o Estádio do Maracanã e a Ponte Rio-Niterói, do papo com um
confrade em visita, na laje da casa, observando as luzes da cidade e
a casa sempre cheia de crianças, carentes de atenção. Guardo uma
imagem surreal de uma noiva, devidamente caracterizada, descen-
do as escadas para o casamento, seguida dos pais e parentes e uma
infinidade de crianças barulhentas da vizinhança.
É lógico que questões não tão mágicas se apresentavam, tais
como a pobreza, o abandono em relação aos aparelhos públicos, a
falta de saneamento, a violência, a manipulação política local pela
associação de moradores e por políticos oportunistas externos à
favela, entre outros. Uma imagem nada bucólica ou idílica é a da
minha travessia, junto com outro frade, no meio do fogo cruzado,
para chegarmos a casa, em um período em que o tráfico lutava
pelo domínio espacial. No caminho, a pior imagem foi a de um
garoto de doze ou treze anos, conhecido nosso, portando duas
armas talvez mais pesadas que ele.
Meu relato busca ressaltar que a favela não se encontra
abandonada à própria sorte mais do que outras regiões do país.
Havia uma vida ordenada e pacificada: trabalho, lazer, crenças em
convívio, alegria, riso, problemas e soluções, estratégias e táticas
cotidianas de sobrevivência.

Religiosas inseridas e cotidiano na favela

Imprescindível para esta análise é o entendimento da ex-


periência pessoal dessas religiosas na favela vizinha à qual residi
durante o período de um ano. Apesar do afastamento involun-
tário pelo período intermitente de aproximadamente cinco anos,
elas convivem com os moradores locais há mais de trinta e dois
anos. São duas religiosas e uma delas fez-se presente desde o
início da inserção.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 63

Devido a essa presença durante um período de tempo signi-


ficativamente longo é que destacamos a relevância de suas consi-
derações sobre as intervenções externas estatais, em especial as re-
centes intervenções via Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Elas já observaram inúmeras intervenções governamentais, assim
como as tentativas de trabalho ou cooptação por parte de grupos
e de políticos da cidade. Sua presença, em certa medida, acaba se
confundindo com o cotidiano dos moradores.
Identificaremos tais irmãs5 por um modelo simbólico re-
ligioso, o alfa e o ômega (A, W), ou seja, o início e o fim (A-Z),
designados à presença escatológica da divindade junto à realidade
humana. Portanto, as identificaremos pelas letras A e Z.
As irmãs A e Z são provenientes de um estado da região Sul
do Brasil. Duas senhoras com mais de 70 anos de idade. Irmã Z
encontra-se com 75 anos. Demonstram ser bastante dinâmicas
e envolvidas com diversas atividades, apesar de suas fragilidades
físicas e de seus problemas de saúde. Ambas possuem uma forma-
ção religiosa bastante acurada, pertencendo a famílias de tradição
eminentemente católica. A irmã Z é a única religiosa da família,
enquanto a irmã A tem irmãos e irmãs que abraçaram a vida re-
ligiosa e a vida sacerdotal. Um questionamento que ouvi diversas
vezes de algumas de suas irmãs de congregação e mesmo de alguns
leigos é como essas duas pessoas, com formação esmerada, com
certa fragilidade física, vindas de famílias de posses, se aventuram
a morar em um ambiente perigoso e insalubre como a favela.
Justamente esse aspecto da fragilidade é que chama a aten-
ção das pessoas. Como conseguem conviver em um ambiente mo-
ralmente fragmentado, é o que muitos comentam, em um misto
de admiração e repulsa por sua opção. Em sua narrativa, irmã Z
aponta para a chave da questão. Ela se identifica como uma mu-

5
Religiosas, freiras e irmãs são termos tomados como correlatos quanto ao seu
significado.
64 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

lher persistente quando narra sua ida para o convento, aos vinte
anos, a contragosto do pai:

Deus sempre colocou ao meu lado pessoas muito boas, muito


tranquilas, colegas! Que sempre me ajudaram a equilibrar. Por-
que eu sou assim... tiro e queda. Decido logo! Sou intuitiva, e aí
também me queimo bastante, mas eu ajo do jeito que acho que
tenho que fazer.

A motivação principal da presença dessas irmãs na favela foi


a mudança crucial na estrutura eclesial católica conhecida como
Concílio Vaticano II (CV-II), ocorrido entre os anos de 1962 a
1965. Tal evento motivou mudanças radicais na estrutura católi-
ca, principalmente no contato com questões da sociedade moder-
na antes descartadas ou negligenciadas como irrelevantes para a
atuação católica no mundo.
Irmã Z destaca que houve uma confluência de interesses
em sua ida para a favela. Nos anos 1970, a Igreja Católica inten-
sificou sua investida no que foi denominada “opção preferencial
pelos pobres e pelos jovens”. Alguns documentos pós-conciliares
voltaram-se para a difusão das ideias do Vaticano II e sua imple-
mentação nos diversos âmbitos da Igreja Católica. Dentre esses
documentos, os mais relevantes foram o documento de Medellín
(1968) e o documento de Puebla (1979), os quais deram contor-
nos mais claros à opção pelos pobres e pelos jovens. Tais docu-
mentos estavam sendo amplamente estudados nesse período por
vários agentes religiosos (bispos, padres, religiosos/as, leigos/as),
em vista à modificação ou adaptação das ações pastorais da Igre-
ja Católica nos países latino-americanos. Estavam também sendo
estudados pela congregação das irmãs em questão.
No período de estudos desses documentos, as irmãs rece-
beram um convite para trabalhar na favela atendida pela escola.
O então pároco da localidade onde elas moravam foi ao colégio
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 65

atendido por elas, para verificar a possibilidade de alguma irmã


que pudesse desenvolver um trabalho catequético. O convite foi
avaliado e prontamente aceito. Irmã Z foi uma das primeiras a
se dispor. No calor dos estudos e do envolvimento com as ques-
tões sociais propostas pelos documentos, decidiram então que só
aceitariam o convite se pudessem residir no local. A religiosa, que
já havia investido em duas formações em nível superior, fora pro-
fessora em diversos colégios e diretora em vários outros, iniciava
um novo trabalho, ao qual dispensaria as próximas décadas de sua
dedicação à vida religiosa.
Uma interrogação me surgiu ouvindo a narrativa das irmãs
sobre sua atuação junto aos moradores. Como religiosas motiva-
das pela opção preferencial pelos pobres e pela Teologia da Liber-
tação, eu esperava ver aparecer em suas narrativas projetos e ações
de organização popular para reivindicação de direitos, de serviços
públicos, mobilização para passeatas e discursos inflamados sobre
revoluções urbanas. Embora algumas dessas questões não estives-
sem completamente ausentes, não foi tal quadro que surgiu. Pela
fala das irmãs, o projeto de inserção foi efetuado pelo comparti-
lhamento do cotidiano com os moradores.
O trabalho desenvolvido por elas primou pelo acompanha-
mento educativo das crianças, expectativa relacionada com a pro-
posta de sua congregação. Hoje propõem o acompanhamento das
famílias como um todo e não somente das crianças. Essa também
é uma proposição básica da congregação. No início, tentaram
uma organização burocrática dos problemas das pessoas. Motiva-
das pela ansiedade do conhecimento sobre aquela realidade social,
começaram a elaborar e preencher fichas sobre as pessoas, suas
famílias e principais problemas a serem resolvidos. Aos poucos
foram abandonando essa prática. Talvez o abandono de tal meto-
dologia se deva ao fato de começarem a dominar o conhecimento
sobre o espaço e as ações ali desenvolvidas.
66 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

O que chama a atenção nos relatos apresentados pelas ir-


mãs é que eles prescindem de teoria e se atêm a experiências di-
retas e concretas. Constantemente indicam exemplos tirados do
conhecimento cotidiano. Há sempre os nomes ou, pelo menos,
os detalhes físicos, os traços psicológicos dos moradores ou a
localização de sua residência. Tal atitude fixa o cotidiano, as pe-
quenas atitudes e os detalhes dos acontecimentos, apresentando
certo pragmatismo na conduta das irmãs.
As narrativas apresentam também agentes que pautam os
projetos de inserção no acompanhamento de casos pessoais tal-
vez com o mesmo empenho, ou maior, do que se ocupam de
causas coletivas. Pode ser que isso indique uma indiferenciação
de perspectivas nesse sentido.
Por outro lado, quando irmã Z apresenta a polícia e sua
atuação no morro, desaparece tal aproximação que direciona a
nomes, fisionomias etc. Em seus relatos, os policiais não “apare-
cem” como os moradores, com rostos ou com proximidade por
parte das religiosas. Quando os policiais surgem em suas narra-
tivas, estão comumente em situação conflituosa com os morado-
res, ou tentando se aproximar delas como meio de aceitação por
parte dos moradores.
Tal diferenciação nesse tratamento discursivo possibilita
perceber os canais de comunicação e de aceitação, assim como
as opções de relacionamento dessas irmãs. O que transparece
é a visão sobre a dignidade humana e o respeito, pensamentos
voltados para a perspectiva cristã.
Nesse sentido, os projetos das religiosas atende à lingua-
gem do respeito, conforme apresenta Dominique Vidal (2003).
A exigência do respeito faz parte das exigências do brasileiro
pobre residente das grandes cidades. Tal exigência transcende os
fatores meramente econômicos, pois passa antes pelo reconheci-
mento. Segundo ele,
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 67

para o citadino pobre, o sentimento de pertencer à humanidade


é muito mais importante que a redução da desigualdade
social. Esse homem quase nunca condena a desigualdade
social em si, mas sim o modo pelo qual, na vida cotidiana, os
membros das camadas médias e superiores o fazem sentir-se
socialmente inferior, seja nos espaços públicos ou no trabalho
(p. 267).

Conforme o pensamento desse autor, é necessário não só


a instituição da justiça social, mas que essa sociedade não hu-
milhe seus cidadãos. Lembrar a condição de inferior provoca o
sentimento de humilhação. Em sua pesquisa, dentre as atitudes
que surgem sobre a injustiça social, está a brutalidade policial.
A humilhação aparece como a recusa de formas específicas de
vida pelas quais se exprime a humanidade. No relato das irmãs,
a autoridade policial aparece constantemente como brutalidade,
desrespeito, ou simples desconsideração para com os moradores
da favela. Mesmo no cumprimento do dever em nome do Es-
tado, a ação policial não atende completamente as exigências
de respeito.
Podemos perceber que, mesmo hoje, a partir da ação da
Polícia Pacificadora, a favela deve se submeter às determinações
do Estado. Este representa a fala autorizada sobre aquela po-
pulação. Embora diversos movimentos sociais que surgiram das
lutas por moradia nas cidades avancem em projetos reivindica-
tórios e participativos, a favela ainda é entendida como “caso de
polícia”. É de uma “solução” apresentada hoje pelo governo do
estado do Rio de Janeiro – as UPPs – que iremos tratar adiante.
É necessário, entretanto, um remodelamento das representações
sobre a polícia de um modo geral. Um relevante trabalho de
convencimento vem sendo apresentado, sobretudo pelas relações
imagéticas do público com a polícia pacificadora.
68 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

O ordenamento policial e as perspectivas religiosas na favela

Dois dias após a intervenção policial, no final do ano de


2010, no Complexo do Alemão, no bairro carioca da Penha, eu
estava em visita à favela campo de nosso estudo para participar de
uma missa católica. Pude perceber que o clima era de expectativa
intensa. Estava no morro para participar de uma celebração na
capela do local. Minha intenção era também observar como seria
tratado o caso da intervenção policial que havia ganhado notorie-
dade internacional.
Antes do começo da celebração, fiquei alguns minutos na
porta da capela para observar os movimentos e as falas. Chamou-
-me a atenção uma jovem que se despedia de alguns colegas, re-
jeitando o convite para sair, justificando que iria para casa assis-
tir à ocupação pela televisão. Percebi como a distância do caso
era mediada pela informação televisiva. Havia virado programa
de TV para um domingo de sol (“Domingão do Alemão?”). Tal
mediação parecia transformar o caso em mera imagem televisiva.
Sem contestação, sem receios, sem reclamações. Simples expec-
tação midiática. A favela aparecia novamente na ordem do dia
como um problema e o que me impressionava naquele momento
era a facilidade com que os eventos passaram a ser aceitos mesmo
por parcelas de seus moradores. Uma nova intervenção armada do
Estado parecia se fazer necessária, aceita e desejada.
A entrada da Igreja Católica em meios populares antecede
os anos 1970 e os documentos pós-conciliares. Juntamente com o
Estado, a Igreja percebia na favela a desagregação social, cultural
e moral a ser restaurada. Desde os anos 1920, a favela aparece
publicamente como problema.
Uma primeira ideia é a de que a repressão e o controle de-
vem ser utilizados para a correção dos desvios oriundos da degra-
dação física e moral dos moradores da favela. A outra é a de que só
a repressão policial garante o controle daquela população, a qual
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 69

poderia se insurgir a qualquer momento. Esta remete para as preo-


cupações que podem ser observadas nos textos de Dodsworth e de
Lacerda (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: 2005). Embora
demonstrem isso de modos diferentes, é evidente a preocupação
com uma realidade que pode se alastrar, contaminar e contagiar.
Há um perigo que deve ser contido ou, pelo menos, ordenado
para não se voltar como algo prejudicial ao “restante da cidade”.6
Segundo Victor Valla (1986), o discurso de Lacerda apre-
senta diferenciações em relação aos discursos proferidos anterior-
mente por outras autoridades públicas. Seriam motivadas pelo
processo de redemocratização após o período de ditadura varguis-
ta e pelo trabalho realizado pela Fundação Leão XIII, organis-
mo ligado à Igreja Católica. Segundo Valla, o discurso e a ação
autoritária não cabiam mais em uma situação de investimento
democrático. Partes do projeto da Fundação Leão XIII, ao se-
rem comparadas com o texto de autoria de Carlos Lacerda, dele
se aproximam consideravelmente. O autor afirma ser ocasionado
por uma tendência que, naquele período, se fazia evidenciar: um
novo posicionamento frente às favelas.
Ao discorrer sobre as representações em torno da população
das favelas projetadas nos discursos das autoridades públicas, em
especial contrapostas aos projetos da Fundação Leão XIII e de La-
cerda com “A batalha do Rio”, Valla (1986) ressalta as preocupações
com os perigos que pudessem advir daquele espaço e daquela popu-
lação, como é o simbolismo do contágio como apresentamos acima.
Nesse discurso, as soluções para o “problema da favela” eram apon-

6
Para melhor compreensão das ideias aqui apresentadas, queremos destacar que os
textos em análise foram produzidos por duas autoridades políticas. Por um lado,
Henrique Dodsworth, o qual, entre outros cargos, foi interventor no Distrito
Federal, então o Rio de Janeiro, indicado por Getúlio Vargas. Por outro lado,
Carlos Lacerda, jornalista e político, opositor a Getúlio. As séries de textos foram
selecionadas por tratarem especificamente sobre as favelas do Rio de Janeiro e os
projetos dos dois para essa “problemática” urbana.
70 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

tadas com uma relevante carga de autoritarismo. Propunham um


refreamento do aumento populacional para aquelas áreas, barreiras
à entrada de novos indivíduos e, principalmente, a ideia de que a
solução estava na extinção daquelas moradias – pensadas como pro-
liferadoras de doenças. “De um modo geral, pode-se afirmar que
todas as doenças incidem com gravidade e percentagem maiores na
favela. É óbvio justificá-lo com os fatores da desnutrição, promis-
cuidade, falta de higiene e desintegração social do ambiente” (Valla:
1986). Portanto, a favela representa, nesses discursos, tudo o que
deve ser extirpado da vida social urbana.
Valla aponta que, entretanto, escamoteados pelo discurso
higienista, encontram-se os interesses de configuração de uma
cidade apropriada para a elite da época, como podemos dizer que
ainda o é para nós hoje. O interesse para com o problema da favela
é menos para com os “faveleiros”, na designação de Dodsworth,
do que para com o bem-estar dos que não se encontram na favela.
O que realmente estava em jogo naquele período era o bom
andamento do processo de acumulação capitalista, o processo
industrial das cidades em curso. A favela é vista naquilo que
menos perturba a ordem social promovida pelas elites e mesmo
no que obscurece a visibilidade de tal ordem: a desorganização
promovida pela habitação popular, pela autoconstrução das casas
da favela. Por outro lado, o processo capitalista e industrial que
promove a desigualdade de renda, de acesso a serviços públicos e,
principalmente, à moradia, não salta aos olhos, aos discursos e aos
projetos estatais.
Aspectos interessantes sobre o projeto de Dodsworth dos
Parques Proletários são apresentados por Valla. Seu funcionamen-
to visava, nas palavras do prefeito, à “recuperação do indivíduo,
deformado pela promiscuidade macabra da favela” (Prefeitura:
2005, 5). O Estado via como sua missão, portanto, promover
uma ação educativa em vista de sua recuperação. Tal ação estava
alicerçada no controle sobre as ações dessa população. Para tal,
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 71

nos Parques Proletários deveriam estar presentes a Igreja, o posto


policial e a escola – todos esses com a função de implementação
de uma nova perspectiva ideológica na vida dos assistidos. A se-
guir, apresentamos a descrição da estrutura de um Parque Prole-
tário identificada por Leeds e Leeds.

Todos os moradores tinham carteiras de identificação que apre-


sentavam à noite nos portões guardados que eram fechados às 22
horas. Toda noite, às nove, o administrador (um agente externo)
dava um “chá” (“chá” das nove) quando ele falava num micro-
fone aos moradores sobre acontecimentos do dia e aproveitava
a oportunidade para lições “morais” que eram necessárias (apud
Valla: 1986, 39).

O registro civil também fazia parte do discurso de Lacer-


da, assim como a ideia de uma degradação física e moral daquela
população, a ser combatida e solucionada. O registro civil é uma
forma de controle do cidadão pelo Estado. Pode ser visto como
uma forma de existência civil, e por consequência, necessário à
participação social e política, mas também como uma forma de
controle burocrático. Ambos os projetos aqui identificados par-
tem do pressuposto da necessidade de registros da população, ou
seja, constituição de dados estatísticos (registros documentais) so-
bre aqueles moradores e suas condições, uma vez que se propõe
a diferenciação entre os bons e os maus cidadãos. De qualquer
forma, a ideia de uma população não só atingida, uma vez que
Lacerda indica a falta de capacidade do governo para fazer com
que eles tenham sua casa própria em “condições dignas”, mas que
simboliza a desumanização do povo brasileiro como um todo, a
parcela a ser resgatada, em cima da qual deve repousar nossa bon-
dade e amor. A problemática da favela, portanto, exige como res-
posta uma atitude “cristã”.
72 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

A presença da religião, nesse aspecto não só ideológico


mas também físico, interessa-nos pessoalmente. Tendo em vista
o enfoque da vinculação da religião com os movimentos sociais,
é interessante entender a presença da Igreja Católica em meios
considerados periféricos. A assistência à população da favela cor-
responde à representação de um espaço degradado. As relações
humanas seriam como que condições internas consequentes de
condições externas. Por isso, a mudança de espaço é fundamen-
tal para a mudança moral. Mesmo que o projeto imediato não
seja deixar a favela, como no caso de Lacerda, o indivíduo deve
se distanciar do espaço degradado pela melhoria nas condições
de vida. Deve ainda se distanciar moralmente por intermédio de
instituições que permitam implementar em sua consciência um
modelo de vida que o torne apto a conviver com o restante da hu-
manidade. A Escola e a Igreja apresentam tal modelo, enquanto
instituições tradicionalmente vinculadas à concretização e perma-
nência do poder do Estado, gerando comportamentos modelares
de cidadão, de filhos, pais, família etc. Tal modelo cívico-cristão,
uma vez assumido ou, ao menos, exposto pelo indivíduo, o torna
aceitável ao convívio e abre as portas para os relacionamentos so-
ciais amplos. É preciso, portanto, como projeto estatal, remodelar
o comportamento da população das favelas.
A eficácia do trabalho desenvolvido há aproximadamente
32 anos naquela favela, por nossas entrevistadas, irmãs A e Z, re-
mete à ideia de uma dicotomia se comparada às intervenções es-
tatais. Relembro aqui o que apontamos acima, em relação ao meu
estranhamento sobre o sentimento de ausência de um discurso
ou uma prática mais afinada com ideais radicais revolucionários
presentes no imaginário sobre a Teologia da Libertação. Quere-
mos traçar algumas considerações sobre as informações por elas
passadas a nós.
Inicialmente, nas diversas falas de moradores conhecidos
das irmãs, a UPP tem modificado positivamente suas vidas e seu
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 73

cotidiano. Há uma nova ordem que não existia há décadas. Hoje


é possível receber visitas e parentes de outros bairros ou localida-
des, sem receio. Segundo a fala das irmãs, as pessoas aparentam
estar mais calmas e tranquilas. Relembro aqui a pesquisa de Victor
Valla (2006) sobre a relevância dos agentes comunitários de saúde
para a vida da população. Segundo ele, tais agentes se diferenciam
dos demais agentes de saúde e, em especial, do médico, pois com-
partilham do cotidiano dos assistidos. Pode-se pensar no contrá-
rio da “medicalização” promovida por médicos que não compre-
endem as adversidades pelas quais passam os moradores, como a
falta de dinheiro, as brigas entre vizinhos, as dificuldades com os
filhos, as noites mal dormidas devido aos tiroteios ou à música dos
bailes em alto volume. O distanciamento de tal realidade levaria a
tratar o paciente isolado de seu contexto.
O próprio discurso das irmãs demonstra aprovação das mo-
dificações trazidas pelas UPPs. Durante algum tempo de nossa
pesquisa, entendemos tal aceitação como um problema para com
nossas exigências de uma visão crítica por parte das religiosas. Um
aprofundamento da questão nos conduziu para uma visão menos
simplista de seu posicionamento. Os papéis do Estado e o delas
estava definido por atribuições de tarefas distintas. Ao Estado ca-
bem determinadas funções que se dirigem à organização pública
em seus vários aspectos e consequências. Portanto, a manutenção
da ordem e da segurança dos cidadãos é uma atribuição do Es-
tado e visa possibilitar que os acontecimentos se desenvolvam de
maneira ordenada e que os serviços urbanos sejam executados.
Dessa forma, nada deveria ser mais corriqueiro do que as ações
nesse sentido.
Podemos compreender essa diferenciação de papéis entre
Estado e religião tomando como base o paradigma da dádiva con-
forme apresentado por Marcel Mauss, mais especificamente no
estudo proposto por Alain Caillé (1998).
74 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

O texto de Caillé sobre o holismo e o individualismo me-


todológicos expõe as condições do pensamento contemporâneo
do entendimento sobre as ações humanas. Segundo o autor, há
uma lacuna deixada por essas duas formas analíticas que só pode
ser ultrapassada pelo paradigma da dádiva de Marcel Mauss. Na
verdade, seu texto realiza uma defesa dessa forma do pensar antro-
pológico sobre as relações humanas.
O autor apresenta as dificuldades relativas tanto ao indivi-
dualismo quanto ao holismo pelas ideias desenvolvidas por pensa-
dores vinculados à Antropologia, tais como Durkheim. Segundo
Caillé, nenhuma dessas formas consegue, em última instância,
chegar às motivações fundamentais das ações humanas. O que faz
com que o indivíduo desenvolva suas ações individual ou coleti-
vamente. O que faz com que concorram coletivamente para de-
terminados fins ou desempenhem essas atividades isolados (indi-
vidualizados) dos demais seres humanos. Explicações recorrentes
advêm do pensamento utilitarista, o qual, para o autor em foco, é
insuficiente como possibilidade de resposta.
Na sua visão, somente o paradigma da dádiva e sua dinâ-
mica podem resolver a questão. O ser humano não agiria pura e
simplesmente impulsionado pelos benefícios advindos das rela-
ções com outros seres humanos. É evidente que a necessidade e o
desejo de obter algum benefício também se encontram presentes
na dinâmica da dádiva, porém de forma diferente. Tais benefícios
encontram-se fundamentados menos no lucro financeiro do que
na satisfação da realização do ciclo próprio do paradigma da dádi-
va: dar, receber, retribuir.
Se lembrarmos as proposições de Mauss, o objeto carre-
ga em si o “espírito da coisa dada” e só a conclusão do ciclo faz
com que a coisa retorne ao seu senhor. O que Caillé parece estar
ressaltando é essa dinâmica que foge aos moldes do utilitarismo
recorrente nos pensamentos holísticos ou individualistas das ex-
plicações sobre as ações humanas. Segundo o autor,
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 75

os interesses estritamente econômicos ou materiais são secundá-


rios em relação ao que se poderia chamar de interesses de forma
ou de apresentação de si (Selbstdarstellung), que os interesses es-
tritamente econômicos ou materiais são secundários em relação
aos interesses de glória ou fama, dir-se-ia ainda pouco tempo
atrás (1998, 11).

Portanto, pela exposição do autor, a questão não é a ine-


xistência de interesses, mas a redução da condição de interesse ao
retorno econômico ou de privilégios. Haveria, dessa forma, uma
simplificação no pensamento utilitarista. As proposições do para-
digma da dádiva, por outro lado, identificam um posicionamento
antiutilitarista.
A inovação identificada por Caillé é que, no pensamento de
Mauss, a dinâmica tríplice e inseparável da dádiva (dar-receber-
-retribuir) apresenta uma realidade que, embora contraditória,
não é oposta. Embora a dinâmica só se realize nos encaminha-
mentos dos três momentos, a obrigação (de retribuir) encontra-
-se vinculada à liberdade. Dessa forma, há uma abertura ou uma
ampliação nas possibilidades das relações humanas em torno da
dádiva. Assim sendo, as tensões sociais podem ser solucionadas
pela possibilidade da liberdade.
A dádiva, portanto, não conduziria estritamente ao fecha-
mento da obrigatoriedade, mas também possibilitaria a abertura
da liberdade. Na verdade, parece haver um equilíbrio entre a obri-
gatoriedade e a liberdade, entre o interesse e o desinteresse. Ha-
veria, nessa dinâmica, a compreensão das possibilidades de equi-
líbrio entre rivalidade e colaboração, entre disputas e cooperação.
Nesse sentido é que o paradigma da dádiva pode ser entendido
como um elemento explicativo das relações humanas que comple-
menta as proposições do individualismo e do holismo.
A atuação dessas religiosas se distancia da do Estado, de
modo especial, embora não único, pela perspectiva da dádiva.
76 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Entre a ação “interessada” das políticas públicas e as ações huma-


nísticas religiosas, haveria uma considerável diferença. As ações
religiosas contribuem para constituir uma rede de relações e de
ajuda mútua (Mariz: 1991). Essa rede não substitui, mas ultrapas-
sa a rede familiar e de vizinhança, uma vez que amplia geográfica
e socialmente as possibilidades de enfrentamento da pobreza e da
sobrevivência. Produzem três tipos de estratégia: material, política
e cultural.
No primeiro caso, conduzem à constituição de geração de
recursos, produção de novos empregos e criação de grupos de aju-
da mútua. No segundo, visam à instituição ou participação em
movimentos sociais e organizações políticas diversas, assim como,
aparentemente de forma contrária, à constituição de práticas de
clientelismo, marcadas especialmente pela troca de votos e favo-
res. Por fim, o terceiro tipo de estratégia atua no subjetivo, a partir
da constituição ou reafirmação de valores, da implementação ou
reforço da moral e da motivação individual.
De forma diferenciada, a atuação das irmãs tende a pro-
duzir ou a reforçar tais laços de solidariedade. Quanto ao Estado
garantir a segurança, isso não aparece nas narrativas como proble-
ma, mas como obrigação. Dessa forma, as ações dessas irmãs e de
outros grupos podem se intensificar. Isso não acontece somente
no interior das práticas católicas, mas também em consonância
com agentes de outras denominações cristãs. Elas contam o caso
de uma senhora que necessita de assistência na medição diária de
sua pressão arterial e no controle de seus remédios. As irmãs divi-
dem esse trabalho cotidiano com outra pessoa de pertencimento
evangélico.
Outro caso interessante é o de um rapaz que foi capturado
pela polícia, após ter sido ferido em um confronto. Contaram que
os moradores – parentes, amigos ou vizinhos – se agruparam para
acompanhar os policiais para evitar que houvesse qualquer abuso,
violência ou mesmo a morte do rapaz. Elas também fizeram parte
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 77

desse grupo e a mobilização surtiu efeito. Há ainda a tentativa de


fazer com que os moradores controlem as ações dos presidentes
da associação de moradores e mesmo o incentivo para que esses
desenvolvam ações de melhoria no morro e que também prestem
contas de sua gestão.
Esse conjunto de relatos, e outros que não expusemos aqui,
ajudam a compreender a ordem por baixo do caos proclamado
muitas vezes pela imprensa e por determinados meios governa-
mentais. Nossa argumentação segue em torno dessa temática. A
política de segurança pública por intermédio das UPPs nos parece
uma forma não somente de controle do tráfico, mas faz parte de
uma retomada constante do controle sobre a situação da orga-
nização cotidiana de moradores. Uma das críticas às UPPs é de
que elas intervêm no processo de formação de lideranças locais. O
capitão da corporação apareceria como um líder supralocal.
Por esses relatos, podemos perceber que a Polícia Pacifi-
cadora ou outras políticas públicas para a favela são entendidas
pelas irmãs como necessárias e, mais ainda, como obrigação do
Estado. Por outro lado, as ações individuais ou coletivas no morro
nunca deixaram de existir. Os moradores, apesar e para além das
políticas públicas, desenvolvem táticas e estratégias cotidianas de
suplantação da pobreza, do abandono e da humilhação.

Referências

BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Lescov”.


In: ______. Magia e técnica, arte e política; ensaios sobre literatura e história
da cultura. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 197-225.
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Mauss e o paradigma da dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13,
n° 38, out. 1998.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice/Editora dos
Tribunais, 1990.
78 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

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JOÃO DO RIO. A alma encantadora das ruas. Disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000039.pdf>. Acessado em
6/10/2011.
MARIZ, Cecília Loreto. “A religião e o enfrentamento da pobreza no Brasil”.
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VALLA, Victor Vincent & GUIMARÃES, Maria Beatriz. “A busca da saúde
integral por meio do trabalho pastoral e dos agentes comunitários numa fa-
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Porto Alegre, ano 8, n° 8, out. 2006, pp. 139-54.
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tido da cidadania nas democracias modernas”. DADOS – Revista de Ciências
Sociais. Rio de Janeiro, v. 46, n° 2, 2003, pp. 265-87.
Ideologia político-religiosa x
político-pragmática: o caso dos
movimentos sociais no Brasil1

Nadir Lara Júnior* 2

Ao longo dos últimos anos, nos dedicamos a fazer uma aná-


lise psicossocial da influência dos elementos religiosos na cons-
tituição da ideologia política do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). Este ano, na perspectiva de ampliar
esses dados, buscamos outros dois movimentos sociais: o Movi-
mento de Moradia, de São Paulo, e o Movimento de Mulheres
Camponesas (MMC), de Passo Fundo (RS), que trazem em sua
gênese a influência do cristianismo e do marxismo.
A finalidade dessa pesquisa foi perceber como esses elemen-
tos político-religiosos estão sendo articulados por esses atores so-
ciais depois de alguns eventos históricos importantes no Brasil, tais
como: enfraquecimento da teologia da libertação; advento das igre-
jas pentecostais; governo Lula; desenvolvimento do capitalismo.

*
Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
1
Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
Grande do Sul (FAPERGS).
80 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

O objetivo deste texto é expor, a partir dessa investigação,


os dados que demonstram certa mudança na estruturação desses
movimentos e na forma como participam no cenário político, pois
os elementos religiosos que antes serviam como um amálgama
ideológico que motivava esses atores sociais na busca por mudan-
ças sociais, agora vão sendo substituídos por certo “pragmatismo
político” que nega qualquer perspectiva de projeto político futu-
ro, lançando esses atores em um imediatismo em que as demandas
devem ser sanadas no presente, sem muita crítica.
Nesse sentido, apresentaremos, em um primeiro momen-
to, uma contextualização dos movimentos em questão para que
o leitor saiba, mesmo que brevemente, algo do percurso histó-
rico deles. Ao longo dessas apresentações, colocaremos algumas
indicações de bibliografia nas quais constam mais profundamente
essas dimensões contextuais.
Em um segundo momento, veremos que há pontos em
comum entre o MST, o Movimento de Moradia de São Paulo
e o MMC. Destacaremos que o cristianismo e o marxismo in-
fluenciaram a constituição e a estruturação da ideologia política
desses movimentos. Veremos que o contato com o cristianismo
ocorreu principalmente por meio das Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), pois essas comunidades eram o ponto de encontro
daqueles que buscavam um processo de mudança do cenário po-
lítico, especialmente nas décadas de 70 e 80, época marcada pela
repressão da ditadura militar. O contato com o marxismo ocorreu
pela influência dos partidos políticos, dos intelectuais e da própria
teologia da libertação. Constatamos isso por meio da literatura
pesquisada, assim como através das entrevistas realizadas nos três
movimentos, pois a maioria dos informantes começou sua mili-
tância política influenciada pelas CEBs.
Por fim, veremos como esses elementos político-religiosos
estão sendo articulados por esses atores sociais depois de alguns
eventos históricos importantes no Brasil, entre os quais daremos
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 81

enfoque especial à ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao governo


federal, pois pensamos que, a partir desse fato, esses movimentos
deixaram de refletir sobre suas próprias ideologias políticas,
reconstruindo sua identidade coletiva numa relação “amistosa” com
o Estado e não na oposição amigo x adversário. Nesse sentido, nos
perguntamos até que ponto essa relação amistosa com o Estado não
afeta a função do movimento social, como diz Melucci (2001), de
denunciar e apontar as injustiças que acontecem na sociedade e que,
muitas vezes, são patrocinadas pelo Estado.

Breve contextualização dos movimentos estudados

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) -


Autores como Fernandes (1999), Medeiros (1999), entre outros,
afirmam que o marco simbólico de surgimento do MST se deu
na Encruzilhada Natalino, Ronda Alta (RS), onde se localizou um
primeiro conflito agrário importante, no início dos anos 80. Nes-
se local, os militares foram destacados para dissipar os trabalhado-
res rurais que se encontravam acampados à beira da rodovia. Esse
local pode ser considerado um marco também porque, segundo
Fernandes e Stédile (2001), na Encruzilhada cerca de 30 mil pes-
soas se reuniram em plena ditadura militar. Desde 1981, os Tra-
balhadores Rurais Sem Terra foram se organizando e reunindo-se
no Brasil todo, para ocupar as terras improdutivas. Porém, foi
somente em 1984, em Cascavel (Paraná), que os trabalhadores
rurais conseguiram seu primeiro Encontro Nacional, quando ofi-
cializaram o MST e, logo depois, no ano de 1985, em Curitiba
realizaram o I Congresso Nacional do MST. É importante desta-
car que, em sua gênese, o MST está ligado à Comissão Pastoral
da Terra (CPT), assim como a outras organizações populares e
partidos políticos. Hoje o “Movimento Sem Terra está organiza-
do em 24 estados nas cinco regiões do país. No total, são cerca de
82 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

350 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e da


organização dos trabalhadores rurais”.2 1

Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) – A participa-


ção das mulheres nos movimentos sociais rurais começa na década
de 80, com a estruturação dos movimentos sociais, impulsionados
pelo momento político que o Brasil vivia, de luta contra a dita-
dura militar e a opressão no campo. Além dessas questões, essas
mulheres se viram impulsionadas a se organizar visto que, além da
opressão econômica, política e social, havia a opressão de gênero,
em que o machismo imperava até mesmo no momento de con-
quista da terra.

Com este processo, sentimos a necessidade de articulação com


as mulheres organizadas nos demais movimentos mistos do
campo. Em 1995, criamos a Articulação Nacional de Mulheres
Trabalhadoras Rurais, reunindo as mulheres dos seguintes mo-
vimentos: Movimentos Autônomos, Comissão Pastoral da Terra
(CPT), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Pastoral da Juventude Rural (PJR), Movimento dos Atingidos
pelas Barragens (MAB), alguns sindicatos de trabalhadores rurais
e, no último período, o Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA).3

Diante disso, o MMC tem como eixo de estruturação o


gênero e a classe, a partir dos quais consegue reunir toda a diversi-
dade de movimentos. Dessa forma, se colocam na sociedade como

2
Disponível em: <http://www.mst.org.br/taxonomy/term/330>. Acessado em
19/07/2012.
3
Disponível em: <http://www.mmcbrasil.com.br/menu/historia.html>. Acessado
em 19/07/2012.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 83

mulheres e trabalhadoras. Para construir esse pertencimento ao


movimento, afirmam que faz parte de sua identidade

uma mística feminina, feminista e libertadora, cujo conteúdo se


expressa no projeto popular com que o movimento está com-
prometido, que articula a transformação das relações sociais de
classe com a mudança nas relações com a natureza e a construção
de novas relações sociais de gênero. Essa mística se expressa em
símbolos do movimento e, ao mesmo tempo, na práxis coletiva
do movimento das mulheres camponesas inseridas nele.4

No entanto, foi com a realização do Curso Nacional (de 21


a 24 de setembro/2003), que surgiu oficialmente o Movimento
de Mulheres Camponesas. O MMC/Brasil está presente em pra-
ticamente todos os estados. Na cidade gaúcha de Passo Fundo,
encontra-se a sede da secretaria nacional do movimento, de onde
se organizam as práticas coletivas das mulheres camponesas (Fran-
chi: 2011).

Movimentos de Moradia de São Paulo – Os movimentos so-


ciais ligados à questão da moradia são bastante plurais na cidade
de São Paulo. Dessa maneira, criaram duas organizações: Frente
de Luta por Moradia (FLM) e União dos Movimentos de Mora-
dia (UMM), como forma de organizar esses movimentos e con-
centrar esforços para sanar as demandas que possuem. A UMM
foi fundada em 1987, com o objetivo de articular e mobilizar os
movimentos de moradia que atuam na área de favelas, cortiços,
sem-teto, mutirões, ocupações e loteamentos.

4
Disponível em: <http://www.mmcbrasil.com.br/menu/historia.html>. Acessado
em 19/07/2012.
84 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Sua atuação iniciou-se pela capital (São Paulo) e região metro-


politana e hoje atinge outras regiões do estado. Sua forma de
organização tem uma forte influência da metodologia das Co-
munidades Eclesiais de Base, de onde se originam grande parte
de suas lideranças. Trabalha-se com grupos de base local, que se
articulam regionalmente ou em nível municipal e se fazem repre-
sentar nas instâncias estadual e nacional do movimento.5

De uma ação focalizada na cidade de São Paulo e região


metropolitana, a UMM passa, a partir de 1992, a atuar em várias
cidades do estado de São Paulo. Atualmente, busca se aproximar
da União Nacional por Moradia Popular, como uma forma de se
articular nacionalmente.
A FLM foi criada em 2002 por militantes do movimento de
moradia que até então faziam parte da UMM, mas que, devido a
divergências, optaram por deixá-la. A FLM atua na cidade de São
Paulo, assim como na região metropolitana (Blikstad & Tatagiba:
2010). Em 2003, a FLM coordenou uma série de ocupações no
centro da cidade de São Paulo que deram bastante visibilidade a
essa nova articulação de movimentos que surgia. “Em fevereiro
de 2004, os movimentos oficializam a articulação e organizam
o primeiro encontro da Frente de Luta por Moradia (FLM), em
Ribeirão Pires”.6 A proposta é realizar ações mais diretas, ou seja,
coordenar ocupações de prédios desocupados no centro da capital
paulista, especialmente edifícios públicos. Dessa forma, a FLM
busca mostrar para a sociedade que os pobres também têm direito
de morar na região central da cidade e não somente nas periferias
distantes.

5
Disponível em: <http://sp.unmp.org.br/index.php?option=com_content&view
=article&id=391&Itemid=>. Acessado em 24/07/2012.
6
Disponível em: <http://www.portalflm.com.br/luta-historico>. Acessado em
19/07/2012.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 85

A ideologia político-religiosa

No Brasil, a partir de 1960, com o advento da teologia da


libertação, constituíram-se as CEBs como estratégia política de
organização popular que mesclava elementos marxistas e cristãos
na formação da consciência política. Fé e luta pela libertação da
opressão marcaram o início das comunidades no campo e na ci-
dade. “Já não é novidade o envolvimento que a Igreja Católica
vem mantendo com os movimentos sociais no Brasil – a partir
da década de 70 –, desde o movimento operário, passando pelos
movimentos do campo, até as organizações por local de moradia”
(Doimo: 1984, 32).
Inspirados pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), os bis-
pos da América Latina produziram alguns importantes documen-
tos que levaram o nome das cidades onde foram realizadas as con-
ferências – Medellín (1968) e Puebla (1979) –, nos quais afirmam
a opção preferencial da Igreja Católica pelos pobres, e as CEBs
seriam a maneira de organizá-los. Esse apoio dos bispos deu um
impulso importante para que as CEBs se tornassem a principal
forma de organização desse povo marginalizado, que passou a ver
nessas comunidades uma possibilidade de lutar por seus direitos.

As comunidades eclesiais de base oferecem aos pobres uma expe-


riência social nova, pois esse povo, como marginalizado, nunca
havia participado em nenhum tipo de organização e nas CEBs
passa a experimentar em sua própria vida os benefícios da união
popular (Martin-Baró: 1998, 215).

Com o decorrer das décadas de 60, 70 e 80, as CEBs se


tornaram um espaço para celebrações religiosas, festas populares,
educação de crianças, jovens e adultos, centro de referência das
reuniões de mobilização política, cursos de formação política, cur-
sos bíblicos etc. Enfim, um ponto de encontro das pessoas interes-
86 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

sadas em propor mudanças políticas, especialmente no Brasil, que


vivia sob a ditadura militar.
A teologia da libertação fundamentava as práticas pasto-
rais das CEBs. Essa teologia tratou os pobres como aqueles que
deveriam ser atendidos preferencialmente, devido à situação de
abandono e miséria. Deveriam lutar por sua libertação apoiados
pelos cristãos, pois, para essa teologia, Jesus Cristo veio ao mundo
para libertar os pobres e oprimidos do jugo da exploração social
dos romanos, e os teólogos atualizavam essa lógica dizendo que os
romanos eram as ditaduras militares, latifundiários etc...
Nessa lógica, os pobres saem do papel de objeto da aten-
ção caridosa e passam a ser protagonistas de sua própria história
de libertação. A organização dos pobres deve provocar mudanças
substanciais na sociedade, pois essa não deve favorecer as elites
que historicamente governaram os países latino-americanos. Para
sustentar essa visão de classe social, os teólogos da libertação bus-
cam no marxismo um instrumento socioanalítico a fim de enten-
der as contradições do capitalismo e propor uma luta de classe
(Lara Junior: 2010).
Dessa maneira, a presença das CEBs nas regiões mais po-
bres do continente e sua clara opção político-religiosa contra a
opressão (encarnada principalmente no regime militar), por meio
de suas pastorais, foram ajudando a estruturar os principais mo-
vimentos populares na América Latina, especialmente no Brasil,
como, por exemplo, os movimentos de trabalhadores rurais (Mo-
vimento Sem Terra), os movimentos de trabalhadores urbanos
(Central Única dos Trabalhadores) e até partidos políticos (Parti-
do dos Trabalhadores – PT).
Assim sendo, podemos afirmar que a influência do cristia-
nismo e do marxismo apresentada pelas CEBs/teologia da liber-
tação ajuda a estruturar a ideologia político-religiosa de alguns
movimentos sociais no Brasil. Nesse sentido, nos diz João Pedro
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 87

Stédile, respondendo a uma pergunta de Bernardo Mançano Fer-


nandes a respeito da relação do MST com a religiosidade:

É um aspecto interessante que deve chamar a atenção da socie-


dade. Como é que nós, que somos de esquerda, vamos sempre
à missa? Para nós, não existe contradição nenhuma nisso. Ao
contrário: a nossa base usa a fé religiosa que tem para alimentar
a nossa luta, que é uma luta de esquerda, que é uma luta contra
o Estado e contra o capital (Fernandes & Stédile: 2001, 131).

Também pudemos constatar que nesses movimentos estu-


dados em nossa pesquisa ainda há elementos político-religiosos
presentes em certas práticas coletivas, tais como: mística, ocupa-
ções, debates, encontros etc. Destacamos aqui nos movimentos
rurais (MST e MMC) a presença da mística como um elemento
preponderante.
A mística é uma ação coletiva que conjuga, em sua estrutu-
ração, cantos de contestação, religiosos, músicas regionais; danças
(em geral, danças típicas de cada região); rituais (procissões, ca-
minhadas etc.); encenações (performances que, em geral, repre-
sentam um personagem importante da história de luta social);
símbolos do movimento (bandeira, boné, camiseta, entre outros),
símbolos da luta pela terra (ferramentas, frutos da terra), discur-
sos políticos (em geral, com conteúdo marxista), orações e preces
religiosas (Lara Junior: 2010).
Não existe uma ortodoxia imposta pelos movimentos, a
obrigação de se ter um único modelo de mística, não há um câ-
none, como, por exemplo, o da missa católica, que segue o mes-
mo padrão em qualquer parte do mundo. Dessa maneira, a ação
coletiva realizada nesses movimentos se estrutura com contornos
específicos, dependendo dos objetivos do movimento e do grupo,
da realidade local em que é feita e, principalmente, se estrutura a
partir das características das pessoas que participam da mística.
88 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Já na FLM e na UMM, a mística existe, mas de maneira de-


sarticulada, e o contato com a religião se move da Igreja Católica
para as igrejas evangélicas. A mística passa a dar lugar às deman-
das imediatas do movimento e seus participantes. As religiões são
parceiras para realizar ações pontuais. Como nos diz Marina ao
ser questionada se ela e os demais militantes rezam durante ações
coletivas coordenadas pela FLM, a parceria com as religiões não
supõe debater conteúdos ideológicos políticos:

Olha, depende muito do andamento de cada comunidade, an-


tigamente a gente tinha uma coisa mais forte, na realização das
místicas... Isso é uma das coisas que a Frente nunca conseguiu
avançar muito, então é uma fragilidade. [...] Ao mesmo tempo
em que tem uma ligação informal com a Igreja (Católica) em
função das lideranças, a gente (hoje) tem muito apoio das igrejas
evangélicas [...]. Lá na Zona Norte, a maior parte do trabalho
da Frente é feita por comunidades evangélicas. E como tem um
distanciamento da Igreja Católica com os movimentos, e espe-
cificamente a Frente teve problemas com a Igreja (Católica) [...]
Mas a gente ainda tem relações com alguns grupos da Igreja [...]
Mas a gente faz as lutas, as orações...

Dessa maneira, pudemos perceber que os militantes dos


movimentos rurais, para construir sua ideologia política, ainda
preservam em suas ações coletivas certa influência dos elementos
político-religiosos. Nesse sentido, Löwy mostra que “a emergên-
cia do cristianismo revolucionário e a teologia da libertação na
América Latina (e algures) abre um novo capítulo histórico e co-
loca questões novas e estimulantes às quais não se pode responder
sem renovar a análise marxista da religião” (1991, 7).
Já os movimentos urbanos sentem mais o declínio da teo-
logia da libertação, o recuo da Igreja Católica em relação às ques-
tões políticas, e que sua opção preferencial pelos pobres vai se
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 89

tornando distante daquilo que se vivenciava em décadas passadas.


A presença das igrejas evangélicas nesses movimentos mostra uma
configuração organizativa em que há uma teologia neopentecos-
tal, cujo conteúdo não prima pelo debate político influenciado
pelos elementos marxistas, mas sim por elementos pragmáticos,
ou seja, conseguir a casa sem debater conteúdos ideológicos de
esquerda. Dessa maneira, abre-se a possibilidade de se pensar ou-
tra forma da ideologia política: o religioso sustentando uma ação
coletiva pragmática.
Por isso, ao se tratar de religião no Brasil, é preciso conhecer
também os diferentes discursos teologais que a estruturam, pois
isso define não somente a crença, mas também a prática religiosa
e a opção política. Aderir a uma religião e sua correspondente te-
ologia é, em última instância, uma opção político-religiosa (Lara
Junior: 2007).

Ideologia político-pragmática

Com a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao governo


federal (2003-2010), muitas lideranças dos movimentos sociais e
sindicais foram chamadas para ocupar os cargos administrativos
do Estado brasileiro, criando, assim, uma situação inusitada: os
antigos militantes que organizavam greves e mobilizações contra o
governo se tornam o próprio governo, negociando com os colegas
que permaneceram no movimento.

Hoje, ao chegar no quarto e último ano de mandato, o governo


Lula da Silva não só não se constituiu nessa possibilidade, como
optou em dar continuidade à aplicação e defesa de uma política
econômica neoliberal. E, consequente com a base ideológica e
política do neoliberalismo, vem atuando no sentido de desmo-
bilizar os movimentos sociais, de anular a força autônoma e in-
dependente do movimento sindical, através de uma permanente
90 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

cooptação de suas direções e de um processo de “estatização” das


organizações dos trabalhadores (sindicatos e partidos, especial-
mente o Partido dos Trabalhadores) (Druck: 2006, 330-1).

Isso gerou certa crise nos movimentos, pois por um lado


estavam no poder o Lula e muitos militantes que ajudaram a
estruturar os movimentos sociais e sindicais no Brasil; por outro
lado, esses ex-militantes/governantes se alinharam, segundo Druck
(2006), a uma política neoliberal que favoreceu de maneira explícita
os donos do capital. Além disso, eles foram acusados de corrupção,
cujo escândalo mais emblemático foi o do “mensalão”, tornando-
se, assim, alinhados também da antiga direita política, que sempre
praticou esse tipo de ação. Com isso, os militantes/governantes
encarnaram as ideologias que tanto refutavam enquanto eram
“apenas” militantes.
Assim, os movimentos sociais mergulharam numa dificul-
dade de mobilizar pessoas ao seu entorno e que essas se identi-
ficassem de fato com uma proposta política de mudança social,
política e econômica. Afinal, aqueles que lideravam suas lutas ago-
ra encarnavam a própria contradição do discurso, criando assim
certa aversão às identificações com bandeiras de oposição e críticas
ao sistema, pois, nesse período de governo Lula e também Dilma
Roussef, não se sabe ao certo a diferença entre o neoliberalismo
do governo Fernando Henrique Cardoso e o neoliberalismo de
Lula e Dilma.
Acrescenta-se a isso o fato de que muitas demandas dos mo-
vimentos sociais se tornaram políticas públicas, ou seja, a causa da
luta de muitos movimentos se tornou gerência do Estado. Aquele
que era o adversário político passa, agora, para a categoria de ami-
go/companheiro, destituindo as fronteiras políticas que serviam
como referencial identificatório para os diversos atores sociais.
Dessa maneira, muitos movimentos passaram a existir em função
das políticas públicas, desvencilhando-se de seu papel inicial de
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 91

críticos da administração do Estado. Diante disso, resta uma dú-


vida a esses movimentos sociais: em que “nós” somos diferentes
“deles” que faziam parte de nós?
Em nossas pesquisas, os dados mostram que houve certa
especialização das lideranças dos movimentos sociais, de modo a
participarem das “agendas” das políticas públicas colocadas pelo
governo. Se não participarem, ficam de fora das decisões e perdem
os espaços políticos conquistados, portanto precisam estudar e se
especializar nos trâmites burocráticos.
Nesse contexto, afirmamos a legitimidade de se disputar os
espaços políticos dentro do Estado e de se buscar a legalização das
demandas dos movimentos sociais. Porém, o que queremos de-
monstrar aqui é que houve uma mudança substancial na maneira
como esses movimentos estão se relacionando com o Estado. Isso
fica explícito na informação de Marina, ao explicar as motivações
de alguns militantes para romper com a UMM e criar a FLM:

Aqui em São Paulo mesmo, não se fazia ocupações porque a pre-


feitura era do PT. E isso é completamente inadmissível, porque
independente da convicção política, a necessidade das pessoas da
base continuava. E ideologicamente, até hoje a Frente continua
preservando essa coisa de que só com a luta direta a gente vai
conseguir mudar a política. Acho que é isso.

Outra mudança que constatamos foi o que denominamos


de “especialização” dos militantes em políticas públicas. Nesse
sentido, Dora, que participa da UMM de São Paulo, ao ser ques-
tionada sobre como se davam as formações políticas do movimen-
to, afirma que é justamente uma instrumentalização para gerir as
políticas públicas do governo:

Quando você está no processo de formação numa ocupação,


numa manifestação, você tem que saber o porquê está fazendo
92 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

parte dessa participação política... Mas também quando você


está numa sala de curso falando de orçamento, de tudo isso,
é justamente para aprender a lidar com o poder público e, ao
mesmo tempo, aprender a elaborar propostas de políticas pú-
blicas, que a gente chama de propostas propositivas. Assim, o
movimento sai daquela parte só de reivindicações e começa a
pensar em propostas. Hoje quando a gente chega numa mesa de
negociação com o poder público, a gente não apresenta somente
uma lista de reivindicações, mas, ao mesmo tempo, surpreende-
mos o governo com propostas. [...] Então por isso é importante
a questão da formação, capacitação, para que se possa interferir
diretamente nas políticas públicas.

Pensamos que essas mudanças acabam gerando certa di-


ficuldade de os movimentos estabelecerem ideologias políticas
que os auxiliem a refletir a respeito da fronteira política entre
eles e o Estado (limites e possibilidades), para evitar a rota de
uma simbiose com o neoliberalismo, que pouco se interessa pela
manutenção de movimentos que se coloquem contra as ações do
governo.
Nesse sentido, Druck (2006) mostra que o ex-presidente
Lula, apesar de ser ex-sindicalista, não interfere na estrutura
ideológica do Estado brasileiro, deixando-o bastante alinha-
do com uma proposta neoliberal. Sabemos de autores críticos,
como Slavoj Žižek (1999), que diz que esse Estado neoliberal
tem como maior estratégia ludibriar oferecendo mentiras com
estatuto de verdade para que, assim, as pessoas tenham a ilusão
de participarem, quando apenas contribuem para que a realida-
de continue a mesma.
Pensamos que participar tão intimamente do Estado, sem
o estabelecimento de fronteiras políticas, é confundir a ação
política de contestação e questionamento com uma pragmática
política na qual todas as ações se justificam em nome da gover-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 93

nabilidade (“ruim com o PT, pior sem ele”, como me disse um


dos entrevistados). Ou atender de maneira imediata e irrefleti-
da às demandas dos participantes, apostando simplesmente na
manutenção do movimento, que, se assim for, perde sua for-
ça significante de movimento que sugere não estar estagnado
e acaba assumindo o significante oposto – permanente; está-
vel; regrado –, passando, assim, a ser sociologicamente tratado
como instituição.
Ainda nessas pesquisas, pudemos verificar que houve uma
mudança significativa na trajetória da participação e na forma-
ção dos militantes desses movimentos sociais, especialmente nos
últimos anos. Por um lado, se tinha aqueles militantes que pas-
saram pelo processo de mobilização e formação da consciência
por meio das CEBs, sindicatos ou do próprio PT, trazendo, por-
tanto, alguns pressupostos ideológicos do marxismo-cristão; de
outro lado, temos os participantes que nunca passaram por essas
ou outras escolas de formação política, nem nas igrejas nem em
sindicatos. A única formação que tiveram foram aquelas propi-
ciadas pelo próprio movimento. Assim, nos diz Dora, que pas-
sou pela CEBs, a respeito dessas pessoas que receberam forma-
ção política propiciada pelo movimento:

Então esse é um estilo completamente diferenciado, eu não diria


que tem menos utopia e já não seriam as mesmas ideologias,
mas que esse público vem com um olhar diferenciado que não
tínhamos na época. Por exemplo, a gente tinha um sonho de
transformar a sociedade, um sonho daquela coisa mais coletiva,
uma coisa mais fraterna. Hoje o que eu percebo é que a grande
maioria dessas novas lideranças vem em busca de um objetivo
muito rápido [...]. Hoje as pessoas estão muito individualistas,
pois pensam algo somente para si e não conseguem compartilhar
com outras pessoas. A gente também está pensando em como
lidar com isso.
94 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Baseado nessa constatação de Dora, parece que existe algo


gerando certo estranhamento em relação às novas lideranças. Pa-
rece que há uma dificuldade evidente em verificar naqueles que
não passaram pelas formações políticas das CEBs uma ideologia
política que sirva como base para sustentar o movimento social.
Por outro lado, podemos pensar se o próprio pragmatismo do
movimento não está formando “novas lideranças” pragmáticas,
focadas em seus próprios objetivos. Talvez aí os movimentos te-
nham que refletir sobre a passagem da história, com seus atores e
cenários, na qual a ideologia neoliberal pode estar mais perto do
que se queira reconhecer.
Nesse sentido, podemos dizer que, diante da interpelação
do Estado, os movimentos sociais estão abandonando o discurso
religioso, utópico, marxista-cristão, e assumindo o discurso prag-
mático-capitalista neoliberal. Como vimos, parece que há uma
tendência, por parte de alguns militantes, em praticar uma políti-
ca pragmática, embora muitas vezes eles nem se deem conta disso.
Pensamos que esse pragmatismo pode levar os movimentos sociais
a uma reprodução dos modelos de opressão do Estado neoliberal.
Assumir o pragmatismo na prática política tem seu preço, por isso
se faz mister saber que ideologia se está reproduzindo. Quando se
assume, nesse contexto específico, um discurso neoliberal, depõe-
-se contra esse processo histórico de formação dos movimentos e
se favorece as oligarquias, o Estado capitalista e o mundo desigual.

Referências

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populares para o Conselho Municipal de Habitação de São Paulo: limites,
potencialidades e tensões presentes nas imbricações do movimento de
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III Seminário Nacional e I Seminário Internacional. Florianópolis: UFSC/
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Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 95

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Valores religiosos na organização da
luta pela terra: estudo sobre os
assentamentos de Sumaré-SP

Vitor Barletta Machado*


1

O trabalho aqui apresentado é resultado das pesquisas que


realizei nos assentamentos rurais da cidade paulista de Sumaré,
analisando o papel da fé religiosa na formação e organização dos
mesmos. Uma conversa tida com um morador do Assentamento
I de Sumaré, o qual empregava uma linguagem e imagens religio-
sas ao falar sobre a história do grupo, serviu com estímulo inicial
ao meu estudo, visando compreender as interações existentes en-
tre a fé religiosa e a mobilização social e política. Minha questão
inicial era descobrir quais são os fatores que motivam um grupo
de pessoas a se organizar e lutar pelos seus direitos, que, nesse
caso, diziam respeito à posse da terra. O linguajar do assentado e
o histórico do grupo sugeriam-me, como veremos, que a vivên-
cia de uma religiosidade como valor havia tido um grande papel.
Fazia-se necessário entender como o grupo havia se organizado
no assentamento e visualizar o lugar da religião nele. O discurso
cooperativista, característico do Movimento dos Trabalhadores

*
Professor do Centro Universitário de Volta Redonda (UniFOA).
98 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Rurais Sem Terra (MST), também havia existido inicialmente no


grupo, mas fora abandonado. Preocupei-me então em compreen-
der a dinâmica dos processos decisórios daqueles assentamentos, a
representatividade das decisões tomadas em nome do grupo. Foi
justamente a análise da vida religiosa da comunidade que forne-
ceu os elementos para o entendimento de tais questões.
A primeira etapa da pesquisa ocorreu durante meu mestra-
do, quando optei pelo modelo de entrevistas semiestruturadas,
que eram gravadas e transcritas. Tratava-se de meu primeiro con-
tato com o grupo de assentados, de modo que cada entrevistado
me apresentava ao próximo. Produzi também um diário de cam-
po, ressaltando as impressões tidas em cada conversa, os gestos e
expressões do assentado, o espaço em que a mesma havia ocorri-
do. A segunda etapa corresponde ao trabalho realizado para meu
doutorado, quando me concentrei em acompanhar os momentos
dos encontros religiosos nos assentamentos, como as celebrações
e os momentos de estudo da Bíblia, realizando uma observação
participante e escrevendo um diário de campo.
Apresento primeiramente o histórico de formação dos
assentamentos de Sumaré, enfocando a participação ativa de agentes
religiosos na sua organização, e descrevo alguns dos momentos
marcantes nos quais seus moradores acreditaram que sua crença
estava sendo testada. Destaco também o retrato mais atual do
grupo no que se refere à vida religiosa.

O início das lutas pela terra em Sumaré

A história dos assentamentos de Sumaré começa em 1982,


nos anos finais da ditadura militar no Brasil. Tal período foi mar-
cado por intenso êxodo rural, aumentando a concentração fun-
diária, com populações deslocando-se para as regiões mais indus-
trializadas. A cidade de Sumaré, próxima de Campinas (SP), foi
um desses polos de atração populacional, sendo duramente afe-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 99

tada pela crise econômica do começo da década de 1980. Havia


ali uma grande população de migrantes, entre os quais muitos
haviam fugido de uma vida de dificuldades no meio rural e ago-
ra se encontravam novamente em uma situação complicada pelo
desemprego (Martins: 2004). Parte dessa população morava em
Hortolândia, então distrito de Sumaré. Foram os alunos do se-
minário de freis capuchinhos de Sumaré que lançaram a proposta
de organização de uma Comunidade Eclesial de Base (CEB) no
Centro Comunitário Nossa Senhora de Fátima, no bairro Jardim
Rosolém, em Hortolândia, no ano de 1982. A principal tarefa a
que se propunham, além da evangelização, era buscar meios para
melhorar as condições de vida daquelas pessoas. Eram inspirados
pelos autores da Teologia da Libertação, com os quais haviam
tido contato através das aulas dos padres mais progressistas do
seminário. Primeiramente buscavam conseguir melhorias gerais
para o bairro: rede de água e esgoto, energia elétrica e asfalto. Mas
elas não resolviam o problema do desemprego na comunidade,
que já dificultava a alimentação de algumas famílias. Para supe-
rar tal situação, criaram uma horta comunitária, que serviu tanto
para produzir alimentos como para empregar alguns moradores.
Foi no trabalho com a horta que alguns moradores redescobriram
suas raízes rurais. Construía-se ali uma identidade que passava
pela situação comum de carência, pela fé religiosa e pelo passa-
do rural. Mas tudo foi catalisado pela vivência religiosa na CEB,
onde as pessoas puderam não somente organizar as suas reivin-
dicações, mas também fortalecer seus laços de união ao redor de
uma fé comum, cujas características serão aqui detalhadas.
Ver, julgar e agir. Tais são as palavras que resumem o mé-
todo da Teologia da Libertação no que se refere ao trabalho pre-
ferencial entre os pobres, preconizado pela Igreja Católica desde
a conferência de Puebla, em 1979. Na CEB do Jardim Rosolém,
tal método foi empregado para estimular a formação de um mo-
vimento que começou para transformar uma realidade imediata,
100 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

mas se desdobrou em uma luta que resultou na formação dos três


assentamentos de Sumaré, além de outros em regiões diferentes,
estando alguns desses assentados até hoje envolvidos na organiza-
ção de novos grupos de sem-terra. Os seminaristas capuchinhos
começaram seu trabalho realizando um levantamento das princi-
pais necessidades dos moradores do Rosolém, as quais eram inter-
pretadas através de uma linguagem religiosa e com o emprego de
imagens bíblicas. As reuniões na CEB giravam ao redor de leituras
da Bíblia, particularmente do Gênesis e do Êxodo, com os relatos
sobre a história do povo de Israel, sua fuga da escravidão do Egito
enfrentando o faraó. Nessa fase dos encontros, a comunidade es-
tava visualizando sua própria história. Uma história individual, de
cada família, mas que possuía muitos pontos em comum com as
vividas por todos ali. Puderam identificar-se com os hebreus: pas-
sando dificuldades em uma terra que não era sua e movidos pela
promessa de uma vida melhor, representada pelo cumprimento da
promessa original do seu Deus, de que seriam um povo numeroso
e com uma terra própria. A história partilhada de saída do campo
para a cidade, fugindo das dificuldades e encontrando outras ainda
piores, permitia uma identificação com o relato bíblico. Passaram
a partilhar o desejo de resgatar o passado, porém não mais como
trabalhadores nas terras de outros, mas cobrando a promessa de
igualdade e reivindicando o direito à terra para a subsistência. Em
tal contexto, chegou ao grupo a notícia de que algumas famílias
de posseiros na cidade de Andradina (SP) haviam tido sucesso na
conquista de terras através de um movimento coordenado pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT). Começaram então as discus-
sões visando organizar um movimento semelhante em Sumaré.
Inicialmente, em janeiro de 1983, os encontros contaram
com um número pequeno de participantes – doze pessoas –, mas
logo a ideia se espalhou entre outras famílias da região, de modo
que em agosto do mesmo ano as reuniões eram acompanhadas por
cerca de 600 pessoas. Sempre apoiado pelo trabalho dos seminaris-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 101

tas, como Iram de Rezende, Ângelo Perugini e Antônio Segura, o


grupo procurou um advogado da CPT e a então deputada estadual
Irma Passoni, do Partido dos Trabalhadores (PT), para descobrir
como conquistar sua própria terra. A proximidade com o PT deveu-
-se a que em 1983 se fundou um diretório desse partido em Sumaré,
com a participação de diversos membros da comunidade do Roso-
lém. O trabalho na CEB permaneceu sendo organizado pelos semi-
naristas e alguns moradores, que se dedicaram a encontrar o local
adequado para a realização da primeira ocupação. Escolheram as
terras da Usina Tamoio em Araraquara, sendo a primeira ocupação
realizada por 47 famílias em 3 de novembro de 1983, consolidando
o chamado grupo I de Sumaré. Foram necessários alguns meses de
negociação até as famílias serem assentadas em terras do Horto Flo-
restal de Sumaré, de propriedade da Ferrovias Paulista Sociedade
Anônima (Fepasa), em janeiro de 1984. Nascia o Movimento dos
Sem Terra de Sumaré, que logo se aproximou do MST através do
envio de alguns de seus membros para participarem do Primeiro
Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, em Cascavel-PR.
O sucesso da primeira ocupação estimulou a continuidade
da mobilização, de modo que o grupo II começou a ser organi-
zado já em 1984. Em janeiro de 1985 representantes do grupo
tiveram reuniões com o secretário de Agricultura do estado de São
Paulo e também com o diretor do Instituto de Assuntos Fundi-
ários (IAF), nas quais foram orientados a escolherem terras mais
próximas a Sumaré. Em fevereiro, o grupo II escolheu para ocu-
pação as terras do Horto da Boa Vista, em Sumaré, também de
propriedade da Fepasa.

“Nós lutamos com fé no Coração”

Realizei com o grupo II a maior parte de minhas pesquisas


e sua história pode ser melhor ilustrada através de um poema feito
102 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

por uma de suas moradoras, já falecida, Dona Tereza, com o su-


gestivo título de “A esperança é a última que morre”:1

[...] Eu tomei esta decisão.../ Passá fome e frio com Deus no meu
coração./ Não podia contá pra ninguém porque ninguém me
dá atenção./ [...]/ Meu filho ficou desempregado, foi mandado
embora pelo patrão.../ Foi mandado embora sem direito a nada
porque não era registrado, porque o patrão disse que ele não
tinha direito não.../ [...]/ Eu tomei uma atitude e também uma
solução.../ Participar de uma terra e também de uma reunião,/
Para ver se a gente plantava arroz e feijão,/ Para matar a fome dos
meus filhos que eu tinha compaixão,/ [...]/ Eu ia para o Rosolém
de pé lá do Matão,/ Com meu pezinho no chão,/ Eu ia com fé
em Deus e Jesus no coração,/ [...]/ Eu largava os meus filhos,
pareciam que estavam abandonados, mas não era isso não.../ Eu
estava procurando uma solução para a gente matar a fome dos
meus filhos e também do nosso irmão,/ [...].

A história de Dona Tereza foi como a de tantos outros mo-


radores do Assentamento II. Veio do Paraná, onde trabalhava na
lavoura com sua família, com a qual mudou para São Paulo em
busca de novas oportunidades. É o que ela nos conta no início do
poema, de sua decisão de buscar uma vida melhor mudando-se
com sua família para o bairro do Matão, na periferia da cidade
de Campinas, próxima de Sumaré. Mas a situação na cidade não
foi fácil e, com os filhos desempregados, ela chegou a precisar
pedir comida aos vizinhos. Quando soube das reuniões na CEB
do Jardim Rosolém, decidiu participar, mesmo sem contar com o
apoio inicial de sua família. Mas, com “Deus no coração”, enfren-
tou a distância que a separava da CEB, cerca de dez quilômetros

1
A íntegra do poema e uma análise mais detida do mesmo podem ser encontradas
em Machado: 2002; 2009.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 103

percorridos quase sempre caminhando. Em entrevista para Del-


boni (2008), Dona Tereza afirmou que percorria cerca de quinze
quilômetros para chegar no Rosolém. Afirma então que sua fé
fortaleceu o desejo de buscar uma solução para as dificuldades da
família, ainda que precisando fazer o sacrifício imediato de deixá-
-la. Logo as reuniões transformaram sua luta em luta coletiva, afir-
mando que a terra que buscava também seria para outras pessoas
com as mesmas dificuldades. Lutavam para cumprir o desígnio
divino de trabalhar para sustentar suas famílias, elemento que aju-
dava a justificar o movimento que estavam iniciando.
Dona Tereza afirma que tomou “uma atitude e uma solu-
ção”, ressaltando primeiramente sua atitude, a vontade interior de
fazer algo para melhorar sua situação, participando das reuniões
da CEB. Gaiger aponta para a existência de um estado anterior de
frustração nos membros do MST, em que as pessoas ficam can-
sadas de tentar melhorar de vida trabalhando para outras pessoas:
“Da análise dos depoimentos, depreende-se que é justamente esta
frustração que provoca, no íntimo dos sem-terra, uma atitude de
abertura aos discursos que tencionam motivá-los com outras for-
mas de ação” (Gaiger: 1999, 75). Afirma que entrar para o MST
implica “entrar em conflito com quem se imagina ser o responsá-
vel pela privação, de afrontar o poder e a estrutura social vigentes”
(p. 86), aceitando que será necessário enfrentar forças resistentes
à reivindicação do direito à terra. Os participantes do Grupo II
percebiam nas reuniões que coletivamente poderiam superar suas
dificuldades a atingir a meta comum. Era uma possibilidade que
se confirmava com a leitura das histórias bíblicas sobre o povo he-
breu. É em tal sentido que sua caminhada revela a busca da liber-
tação, que ao final do poema adquire um sentido transcendente
em nome da coletividade.
Na continuação do poema, destaco a ordem como as pa-
lavras aparecem no seguinte verso: “Participar de uma terra e
também de uma reunião”, revelando que o interesse maior de
104 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

sua mobilização era participar da conquista de uma terra, dentro


desse objetivo ela precisava participar das reuniões da CEB, mas
sempre preocupada em alimentar os seus filhos. Não era ainda
a busca pela transformação política da sociedade brasileira pre-
conizada pelo MST (Stédile & Fernandes: 1999), mas era uma
preocupação mais cotidiana, de inclusão imediata: seus filhos
estavam passando fome e ela precisava fazer algo. Em seu estudo,
Caume destacou:

O comum de todos esses diferentes relatos é que a decisão de


acampar não se dá de forma isolada e nem como decorrência
natural das necessidades econômicas. Ela constitui o resultado de
todo um intenso trabalho desenvolvido por agentes de pastoral e
sindicalistas do norte do Rio Grande do Sul que apresentam aos
agricultores uma alternativa à difícil situação vivida: a estratégia
da mobilização social, da luta através da ocupação de terras con-
sideradas improdutivas (2002, 172).

Os assentamentos de Sumaré também comprovam a im-


portância dos agentes religiosos organizando a luta pela terra. Mas
é preciso destacar que a mobilização não ocorreu somente através
dessa força externa aos indivíduos, como se tivessem sido levados
a participar de um movimento cujos ideais lhes eram estranhos.
Os que foram assentados em Sumaré são aqueles que persistiram
contra todas as dificuldades. Construíram uma identidade cole-
tiva com base nos fundamentos gerais de uma fé comum,2 per-
mitindo-lhes localizar na história dos hebreus os pontos comuns
com sua própria vida. Se na Bíblia os hebreus se consolidam como
povo na fuga pelo deserto buscando a terra prometida, os mem-

2
Lísias Nogueira Negrão fala em um mínimo denominador comum na cultura
religiosa popular do brasileiro “capaz de ser identificado pelo homem religioso
nos diferentes cultos integrantes do campo” (1997, 70).
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 105

bros dos grupos de Sumaré também se uniram contra todas as di-


ficuldades para lutar pela terra. Se os primeiros tinham a situação
de escravos e a fé como elementos comuns, os futuros assentados
tinham a situação presente de pobreza, o passado rural e elemen-
tos de uma fé cristã como pontos de unidade.
O poema de Dona Tereza descreve o momento em que o
Grupo II entrou nas terras do Horto da Boa Vista, ação que já
havia sido negociada com a Fepasa:

[...] Depois nós conseguimos as terras e no dia 17 de maio nós


colocamos o pé nesse terrão.../ Nós já conseguimos este boato,/
De entrar neste mato.../ [...]/ Não tinha comida e bebida, por
isso nós tomamos esta decisão,/ Nós acendemos fogo em cima
dos torrão.../ Para ver se a gente esquentava a água pra ver se
chegava feijão.../ Quando foi 11:00 da noite nós vimos aquele
claridão,/ A gente se levantamos e fomos encontrar.../ E encon-
tramos o Ivan Costa e com cinco polícia na mão,/ Nós ficamos
todos assustados mas nós não estava sozinho, nós estava com
Deus no coração...

Ela utiliza as palavras “terrão” e “mato”, indicando as condi-


ções da área naquele momento: uma terra de baixa produtividade
tomada pelo mato, como é a maior parte das terras destinadas aos
projetos de reforma agrária no Brasil (Girardi: 2008). Improvisa-
ram um fogão “em cima dos torrão”, ou seja, dos cupinzeiros, es-
quentando água na espera dos alimentos doados pelos moradores
do Assentamento I, remetendo ao relato bíblico dos hebreus no de-
serto, que precisaram contar com o maná enviado por Javé para
sua alimentação. Às 23h foram acordados pelo clarão dos faróis da
Polícia Militar. Os versos de Dona Tereza nos revelam a tensão de
tal momento, confirmada no relato de outros moradores. São pas-
sagens que indicam o papel da fé em momentos de grande medo.
Estavam reunidos no meio do mato, indefesos e surpreendidos pela
106 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

polícia, que escoltava um funcionário da empresa exigindo que o


grupo se retirasse. Os próximos eventos testaram de maneira defi-
nitiva a solidariedade entre os membros do grupo. O poema afirma
que o medo foi vencido pela certeza de que não estavam sozinhos,
pois “nós estava com Deus no coração...”. A estratégia adotada era
a da resistência pacífica: famílias unidas, alimentando-se coletiva-
mente, orando em conjunto e entoando cantos, visando inibir a
ação repressora direta dos agentes da polícia.3 Foram momentos em
que as lideranças do grupo buscaram alternativas, negociando com
os representantes do governo do estado de São Paulo e da Fepasa.
Em outra passagem do poema, encontramos a descrição da situação
geral do grupo naquele momento:

[...] Então com muita fé e coragem e muita gente sofrendo do


coração,/ E a gente ia passando frio e dormindo pelo chão.../ E
não tinha sossego para almoçar, todo dia tinha muita agressão.../
Pela polícia do Ivan Costa que não tinha coração.../ Da terra
que Deus deixou querendo expulsar os irmãos,/ Quando Deus
deixou a terra não deixou a escritura nem pra Maria e nem pro
João.../ O Ivan Costa que expulsa os pobres que está lutando por
um pedacinho de pão,/ Nós lutamos com fé no Coração,/ [...]/
Quando três horas da tarde só a gente rezava e chorava e pedia a
Jesus que a polícia tivesse dó e não derrubasse nosso barracão,/
[...]/ Queriam tirar nós com toda judiação,/ [...]/ Todo mundo
rezava e pedia a Jesus a proteção,/ Que nós aguentasse com fé no
coração,/ Cantava hino e tocava violão,/ [...]/ Então tinha duas
ou três pessoas fazendo a negociação,/ Esperando a resposta que
nunca mais chegava não, [...].

3
Stédile, a mais conhecida liderança do MST no Brasil, confirma a influência de
Ghandi e Martin Luther King para as estratégias não violentas do movimento
(Stédile & Fernandes: 1999, 62).
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 107

A tensão e as incertezas cresciam, levando Dona Tereza a


falar que buscaram na fé a coragem necessária, apesar de muitos já
estarem ficando fisicamente doentes: “sofrendo do coração”. Ivan
Costa, que era diretor de Patrimônio da Fepasa na época, perso-
nifica os inimigos no poema, descritos como pessoas sem coração,
agredindo quem somente estava “lutando por um pedacinho de
pão”. Justifica sua indignação com argumentos bíblicos: estavam
sendo expulsos da terra deixada por Deus para todos, que não
deixou “escritura nem pra Maria e nem pro João...”. Reforça no-
vamente o aspecto pacífico do movimento, afirmando que “Nós
lutamos com fé no Coração”. Mas a tropa de choque chega em
quatro caminhões para cumprir a ordem de reintegração conse-
guida pela empresa. Dona Tereza fica próxima dos seus filhos,
todos no grupo rezam por proteção, com medo do que poderia
ser um despejo violento. Ela ora por mais fé, para acreditar ainda
com mais força no que estava fazendo diante do quadro que se
desenhava. Continuavam cantando hinos religiosos, aguardando
o final definitivo das negociações, uma “resposta que nunca mais
chegava não”. Ocorre então uma das passagens mais marcantes
de toda a história do Grupo II e com um simbolismo religioso
muito forte. O fato não aparece no poema de Dona Tereza, mas
me foi relatado por Cida em uma de nossas diversas conversas.
Vendo seus barracos serem destruídos, Cida tentava não desani-
mar, gritando: “Reforma agrária já, esse país é nosso!”. Contida
pelo padre Israel e pelo oficial de justiça, que temiam que acabasse
agredida pela polícia, ela tentou então organizar um grupo de mu-
lheres para levar o pão que restava aos policiais. Foram barradas
por um sargento e o oficial de justiça. É então que Cida nos conta,
conforme registro de Fernandes: “Uma criança conseguiu varar
a barreira que eles fizeram na nossa frente, foi a Luciana, saiu
correndo e entregou o pão. Teve gente que viu, o soldado chorou
108 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

e não pôde abaixar a mão para aceitar o pão, o pão oferecido”


(1999: 126).4
Existe alguma controvérsia sobre a espontaneidade da cena,
registrada no trabalho de Delboni (2008, 89), mostrando fala do
presidente da associação de moradores do Assentamento II, Luiz
Sinésio, que sugeriu terem pedido à menina que entregasse o pão
ao policial visando desestimular uma ação mais violenta.5 Moreira
(2008), contudo, reforça a versão de Cida: “Os sem-terra relatam
que, nesse momento, o soldado chorou, e ficaram sabendo, poste-
riormente, que esse mesmo soldado havia deixado a Polícia Mili-
tar” (p. 96). Mesmo diante da dificuldade de se esclarecer o quan-
to há de idealização nas descrições da cena pelos assentados, todas
refletem a tensão do momento do despejo, depois de tanto tempo
de preparação. E a cena, espontânea ou não, realmente aconteceu
e reflete o simbolismo cristão da partilha do pão. Dona Tereza
não registrou a cena em seu poema, pois estava cuidando dos fi-
lhos naquele momento. Acampados e policiais militares estavam
atuando ali em diferentes esferas de valores: os primeiros lidando
com os princípios religiosos que ajudaram a organizar o grupo;
os segundos como parte da esfera do poder do Estado. A noção
weberiana de esferas da vida ordena padrões “típicos ideais”6 de

4
A imagem original da menina Luciana diante da tropa de choque da Polícia
Militar pode ser vista reproduzida em Fernandes (1999) e também em Machado
(2009).
5
Também entrevistei Sinésio em minha pesquisa de mestrado e ele era bastante
jovem na época da ocupação do Grupo II, ainda não envolvido com a liderança
da comunidade.
6
Reafirmando que o tipo ideal em Weber (2000, 5) é parte de sua metodologia,
indicando um modelo construído mentalmente para auxiliar na investigação das
conexões de sentido feitas pelos indivíduos que influem nas diferentes formas
de ação social. Não se trata da construção de modelos de comportamento que
devem ser seguidos pelos indivíduos em sociedade, muito menos de padrões de
conduta que devemos procurar na realidade. O tipo ideal é uma ferramenta con-
ceitual de análise social e não de normatização social.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 109

comportamento para os variados segmentos que compõem a to-


talidade da vida individual em sociedade. Nesse sentido, o autor
nos fala em esfera religiosa, familiar, pública, erótica entre outras.
No cotidiano, os valores das diferentes esferas se misturam, com-
pondo um todo muito mais complexo. Foi em tal complexidade
que os membros do Grupo II atuaram no momento do despejo.
Confrontavam os valores que orientavam a ação do batalhão da
polícia com os valores religiosos e familiares que mobilizavam o
grupo, na tentativa de despertar algum tipo de sentimento de so-
lidariedade. Ao exporem claramente os valores próprios da esfera
religiosa em que agiam, principalmente pela oração, esperavam
que isso detivesse os policiais, ao serem confrontados com valores
que provavelmente também lhes eram comuns, dado o forte pre-
domínio do cristianismo, em suas diferentes vertentes, em nosso
país. No poema, Dona Tereza revela a expectativa de algum tipo
de intervenção divina:

[...] E começava a desmanchar os barracos, Só na polícia... uma


gente que ninguém gostava não./ Então nós enfrentou com fé e
coragem no coração,/ E a gente gritando e chorando pedia ao
Sagrado Coração.../ Um falava faz a janta,/ Outro falava não.../
Eu tenho problema de cabeça, aguentei até que pensava não,/ Eu
chorei e rezei, dei entrevista e pedindo a Deus a proteção.../ Não
fiz a janta porque a polícia derrubou o fogão,/ Eu ganhei uma
vitória que eu estava a tempo de perder,/ Meus filhos por falta
de emprego,/ Agora ganhei os meus filhos de volta pertinho do
meu coração.../ Eu peço a Jesus pela nossa união,/ Peço com fé
no meu coração,/ Libertas o meu corpo,/ A minha alma e o meu
coração,/ Eu peço com fé e esperança pelos outros irmãos,/ Para
eles conseguirem as outras terras para defender o pão.../ Que é o
grupo 3 do meu coração...
110 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Era 27 de maio de 1985 e o despejo das famílias foi reali-


zado, mas sem qualquer ato de violência física direta contra eles.
Na situação de grande perigo e dificuldade que passavam, o re-
curso da fé como meio de manter a disposição e união revelou seu
potencial para a maioria daquelas pessoas. Isso, pois, conforme
o assentado Sr. Alcindo relatou-me (Machado: 2002), algumas
pessoas não ficaram para enfrentar a polícia, tendo literalmente
“fugido para o mato”, deixando para trás o pouco que haviam
levado para a ocupação, somente reaparecendo semanas depois,
em busca dos pertences, mas desistindo daquela luta.
Dentro da fé explícita de Dona Tereza e de Cida, temos
um tipo de olhar em que a marca mais profunda foi deixada jus-
tamente pelos eventos que fazem a conexão direta com as ima-
gens religiosas presentes em toda a luta do grupo. Para o Sr. Al-
cindo, que após a conquista distanciou-se do cotidiano da vida
religiosa da comunidade, as marcas foram deixadas pelas ações
de outro grupo de pessoas: as que decidiram não permanecer
na luta. Esse momento de grande confusão, entre os que ficam
e os que fogem, aparece no poema na forma de um desencontro
de informações: “Um falava faz a janta,/ Outro falava não...”,
fazendo Dona Tereza afirmar até mesmo que tem “problema de
cabeça”, por já não conseguir definir claramente o que estava
acontecendo. O poema não aborda os quatro meses em que o
grupo ficou acampado na beira de uma estrada da região, espe-
rando o fim das negociações, retratando somente o momento
da conquista definitiva da terra: “Eu ganhei uma vitória que eu
estava a tempo de perder,/ Meus filhos por falta de emprego,/
Agora ganhei meus filhos de volta pertinho do meu coração...”.
Foi um período em que as lideranças tiveram um papel mais
ativo, pois as negociações ocorriam longe do acampamento. Em
18 de agosto de 1985, o grupo finalmente pôde voltar para as
terras ocupadas, onde moraram até seu assentamento definitivo
em terras próximas ao Assentamento I, em 1988.
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 111

A forte presença dos elementos religiosos é marcante nessa


primeira etapa da luta do Grupo II. Não se tratava de um recurso
acessório, mas de algo que permeava o discurso dos seus membros
e que deixou marcas profundas que ainda podem ser observadas,
particularmente entre aqueles que participaram dessa história. Foi
um processo de formação no qual a teoria, buscada nas leituras
bíblicas inspiradas pela Teologia da Libertação, confrontou-se
com os desafios da luta pela terra. Obter a terra era, entretanto,
somente a primeira etapa a ser superada. A vida no assentamento
precisava ser organizada, com a decisão sobre o que e como plan-
tar, levantar as moradias, obter água e energia elétrica, manter
as famílias alimentadas enquanto não tinham nada para colher
e muitas outras questões. Surgiram então os conflitos dentro do
grupo. Inicialmente tentaram organizar coletivamente o trabalho
com a terra, reservando apenas uma área próxima das residências
para a horta familiar,7 mas os diferentes ritmos, a estrutura fami-
liar, as necessidades e prioridades diversas acabaram por minar o
esforço cooperativo. Haviam lutado em busca da liberdade que a
posse de uma terra pode proporcionar e estavam descontentes por
terem que seguir as determinações de uma liderança que escolhia
o que seria feito. Assim falou o Sr. Alcindo:

E tinha uns fiscais que falava, né, que coordenava. Mas mesmo
assim não dava certo. Pra começar a gente falava assim: Aqui
tudo é nosso. Pra que um vai mandar no vizinho, certo? Tem
muitos nessa cabeça, né? Não é igual a firma. A firma não, cê
é obrigado a cumprir, a respeitar o, como é que fala? o coorde-
nador, né? E aqui não, aqui uns faz de um jeito, outro faz de
outro. É complicado. Então pra não criar mais divergência, né,
falamos: “Se achar melhor vota”. E ninguém queria mais (Ma-
chado: 2009, 87).

7
Os Assentamentos I e II são organizados em sistema de agrovila.
112 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Decidiram então, coletivamente, dividir as terras entre as


famílias, organizando um sistema de produção familiar onde oca-
sionalmente algumas etapas são feitas em conjunto com os vizi-
nhos, como na hora de transportar seus produtos para a cidade.

Considerações finais

Apresento aqui o retrato mais atual do Assentamento II,


tecendo algumas reflexões sobre a vida religiosa do grupo. Tantos
anos após a sua conquista e já com muitos dos que participaram
da luta tendo falecido, vemos hoje na comunidade alguns esforços
no sentido de manter a unidade e o legado de toda essa história.
Existe a celebração anual do aniversário do assentamento, evento
que tomou grandes proporções, sendo atualmente realizado com
uma missa seguida por uma grande festa, com barracas de comi-
das e bebidas, atraindo várias pessoas da região e contando com a
presença de políticos. A festa fornece visibilidade ao assentamen-
to, mas não é o principal elemento na formação da unidade do
grupo. As celebrações religiosas semanais ainda são o principal es-
paço para que a voz dos mais velhos seja ouvida pelos mais jovens.
Invariavelmente os eventos religiosos retomam algum aspecto da
história do grupo, com o qual se traçam paralelos através das leitu-
ras bíblicas, contando sempre com os depoimentos dos moradores
que participaram diretamente da conquista. Nelas também são
cantadas músicas que lembram a trajetória da luta pela terra.
As celebrações são os eventos principais, que contam com
a participação de um número maior de assentados. Mas sema-
nalmente realizavam-se as chamadas Leituras Orantes, conduzi-
das por um ministro da eucaristia de Sumaré em parceria com o
ex-seminarista e assentado Antônio Segura. Tais encontros eram
momentos de oração e reflexão sobre os textos bíblicos que seriam
lidos nas missas de domingo. Começavam com um momento de
silêncio em que uma oração era entoada repetidamente em tom
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 113

cada vez mais baixo, conduzindo todos os presentes ao estado de


espírito necessário para a realização das leituras. O número de
participantes das leituras variava, mas sempre havia um grupo
central presente em todas. Dona Francisca era uma das presen-
ças constantes. Em nossas conversas, enfatizou que a luta do gru-
po começou em torno da religiosidade comum que partilhavam,
afirmando que todos estavam buscando a Terra Prometida por
Deus na Bíblia, justamente por isto lamentava que a participação
nas leituras não fosse mais tão forte. Outro assentado, o falecido
senhor Sidiney, afirmou que mesmo no tempo em que o gru-
po estava se organizando na CEB, a participação de todos não
era idêntica, sendo fundamental a presença dos seminaristas ou
dos padres para que as reuniões fossem realizadas. Mas o fato de
não haver tal participação não indica a ausência de vida religiosa,
mas sim um afastamento de muitos assentados do catolicismo,
em particular os que entraram na comunidade após a conquista,
havendo a presença de outras religiões dentro do assentamento.
Na verdade, alguns dos membros originais do grupo também não
eram católicos, como os senhores Alfredo e Júlio, os quais sempre
participaram das celebrações ecumênicas.
Nas atividades conduzidas pelo grupo católico do assenta-
mento, existe a preocupação permanente em estimular a parti-
cipação dos mais jovens, havendo a proposição da realização de
estudos e celebrações direcionadas para eles. Mas, em todos os
eventos religiosos que acompanhei nos assentamentos de Sumaré,
destacou-se sempre a presença dos relatos da sua história, os mais
velhos tomando a palavra e estabelecendo paralelos com os textos
bíblicos. A religião permanece então com seu papel de construir
uma identidade, que certamente não é a mesma do tempo da luta
pela terra, transformando-se agora no sentido de permitir a per-
petuação dos valores essenciais à manutenção do assentamento.
114 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Referências

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Sumaré II no limiar do século XXI. Dissertação de mestrado em História
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FERNANDES, Bernardo Mançano. MST – formação e territorialização. 2ª ed.
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Abramo, 1999.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, v.
1, 4ª ed. Brasília: Editora UnB, 2000.
Uma análise do pluralismo e o
diálogo inter-religioso como
instrumento das lutas sociais
em comunidades de Petrópolis

Luci Faria Pinheiro* 1

Este texto parte de uma pesquisa que tenta buscar o sentido


das propostas de um conjunto de movimentos sociais que apon-
tavam o ecumenismo como uma das necessidades na viabilização
das lutas democráticas no continente latino-americano. Entende-
-se que a qualidade dessa manifestação coletiva é considerável para
os interessados em aprofundar as complexidades da vida social
contemporânea, das quais o pluralismo religioso, sobretudo no
Brasil, exige novos aportes sobre o ecumenismo, o diálogo inter-
-religioso e outros instrumentos de ação coletiva no campo cul-
tural. Os dados mais recentes aqui empregados são oriundos de
experiências anteriores e contatos com uma comunidade de Pe-
trópolis em vista de aplicação de um projeto de pesquisa e ex-
tensão voltado para a questão socioambiental, a qual se expressa

*
Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal Flumi-
nense (UFF).
118 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

por meio do sentimento da população em relação aos riscos de


deslizamentos nas encostas da serra.
A comunidade concernida foi constituída de experiências
de remoções, pela prefeitura municipal, em períodos marcados
por enchentes devastadoras, como no ano de 1988. Porém, diante
dos acidentes naturais sofridos pelos habitantes dessa região, em
2011 o temor dos deslizamentos se apresenta como um dos prin-
cipais problemas enfrentados no bairro onde reside a comunidade
em observação. O problema da habitação popular em encostas e
vales em altitudes com alto potencial de deslizamento vem expli-
citar mais uma das particularidades dos problemas urbanos no
Brasil, que no caso soma-se a outros, como a violência familiar, o
desemprego, o isolamento do poder público, o consumo de dro-
gas na adolescência, transporte coletivo, educação, famílias nu-
merosas em situação de pobreza extrema etc. Essa comunidade
apresenta um dado surpreendente: a existência de onze denomi-
nações religiosas em seu interior, onde o número de habitantes é
de aproximadamente vinte mil, compreendendo três mil e qui-
nhentas famílias. Nosso estudo empírico visa levantar o potencial
de mobilização que as religiões apresentam e a possibilidade de
constituírem-se em mediadoras ou em recursos da sociedade ci-
vil importantes no apoio às lutas sociais. Para tal, procurar-se-á
explorar, por meio das ações de extensão universitária no local,
a possibilidade de diálogo e tolerância necessária a tais denomi-
nações para que participem de ações de educação ambiental de
forma integrada às demais necessidades da população.

Ecumenismo e diálogo inter-religioso na atualidade.


Definições teórico-metodológicas

Uma característica particular da cultura brasileira é a diver-


sidade religiosa, e ela tem crescido aceleradamente neste início do
século XXI. Porém, diferente de grande parte do século XX, na úl-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 119

tima década se acentuaram as tentativas de diálogo inter-religioso,


o que não parece ser determinado somente pelas religiões e deno-
minações religiosas oficiais, embora elas tenham uma elaboração
e uma prática correspondentes. Essas tentativas ocorrem de forma
espontânea, por meio de outras esferas participativas, levando a
uma nova forma de ação, voltada para os interesses comunitários
e não somente para os interesses institucionais.
O documento Diálogo e anúncio, produzido pelo Pontifício
Conselho para Diálogo Inter-religioso e Congregação para Evan-
gelização dos Povos, denomina o diálogo inter-religioso como:

O conjunto de relações inter-religiosas, positivas e construtivas,


com pessoas e comunidades de diversas crenças, a fim de ten-
tar se conhecerem e se enriquecerem, uns aos outros, ao mesmo
tempo obedecendo à verdade e respeitando a liberdade de cada
um (Fitzgerald: 2008, 25).

O diálogo inter-religioso vem surgindo de forma horizon-


tal, desafiando a competitividade por novos adeptos que nor-
teia as religiões cristãs mais dominantes no Brasil, como a ca-
tólica e a evangélica. Em nossa perspectiva, um fenômeno novo
de investigação estaria situado no resgate das bases populares,
bairros e comunidades, onde se revela um esforço de aproxi-
mação entre as religiões populares por via dos traços comuns.
Esse diálogo não é uma novidade e já perpassava as seitas mais
modernas oriundas do pentecostalismo, assim como a prática
dos dominicanos na tradição católica e da teologia da libertação.
Resgatamos alguns dados que explicam esse fenômeno de forma
aparentemente contraposta, para então situar aspectos históricos
da construção desse fenômeno cultural religioso, sem os quais a
iniciativa de diálogo dos católicos com outras religiões não teria,
por exemplo, sofrido as inovações e as mudanças impulsionadas
pelo Concílio Vaticano II.
120 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Há numerosos desafios para a legitimação dessa abertura da


Igreja Católica, mas eles não são exclusivamente particulares e não
devem ser subestimados. A abertura à religiosidade popular, obje-
to de discriminação histórica, assim como para o conhecimento
de religiões como o islamismo e outras, mostra a possibilidade de
mudanças que a perspectiva inter-religiosa promove. Além disso, a
secularização, entendida teologicamente como aporte da sociologia
francesa e seu legado iluminista, ganha densidade e se aprofunda
sem que a religião desapareça ou sofra uma redução significativa,
em detrimento da ciência na sociedade moderna. Isso permite que
tradições populares sejam preservadas e delas novas gerações pos-
sam se apropriar cientificamente e historicamente, a partir de uma
tolerância construída de forma coletiva, dos valores consequente-
mente afirmados, como a liberdade e a solidariedade. Ora, essa
nova dimensão religiosa é capaz de produzir sentidos que vão além
da vida cotidiana e a ela incorporar uma perspectiva educativa de
paz, em prevenção e combate à violência, de trabalho em benefício
do futuro, ao invés do vazio que leva ao desespero existencial e à
impotência acirrada pela cultura movida por valores de mercado. A
secularização permitiu, ao desviar e criticar o foco da religião, um
resgate da espiritualidade de forma coletiva e plural. Novas formas
de religiosidade e espiritualidade foram surgindo e ocupando es-
paços antes inexistentes, desenvolvendo a capacidade de servir aos
impulsos egoístas do capitalismo, que produziu o mal-estar de uma
civilização frente ao vazio que o mercantilismo precisa criar para ver
seus produtos ganharem valor de consumo.
O ecumenismo é uma das construções culturais, políticas e
religiosas mais relevantes na sociedade moderna, mas o mesmo não
se deve exclusivamente a deliberações oficiais, como se observa no sig-
nificado restrito atribuído pelo Concílio Vaticano II, ao afirmar que

é mister que os católicos reconheçam, com alegria, e estimem


os bens verdadeiramente cristãos, oriundos de um patrimônio
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 121

comum, que se encontram entre os irmãos separados de nós. É


justo e salutar reconhecer as riquezas de Cristo e as obras de vir-
tude na vida dos que testemunham em favor de Cristo, às vezes,
até a efusão do sangue (Fiores: 1999, 45).

Ao contrário, nossa perspectiva de diálogo inter-religioso se


aproxima do ecumenismo, pois visa pensar a ultrapassagem das
religiões restritamente cristãs, em nome de valores éticos que co-
loquem em questão as causas da violência, da intolerância e da
desigualdade social. É verdade que os mais expressivos conflitos
no mundo contemporâneo têm uma explicação religiosa, contudo
não se pode ignorar a evolução histórica ou suas consequências
sociopolíticas na atualidade. No Oriente Médio, cultura e polí-
tica estão diretamente imbricadas, os valores religiosos são fun-
damentais na formação social. Embora grande parte do mundo
árabe, compreendendo países da África, se oriente oficialmente
pelo islamismo, as religiões cristãs – católica e evangélica, além das
orientais – também lá estão presentes, desafiando umas e outras a
enfrentar as divisões existentes e os conflitos sociais e culturais que
se acirram entre os povos.
No Brasil, a religiosidade popular faz parte da vida social.
Devido preponderantemente à luta do Vaticano para imprimir a
cultura ocidental entre nós, uma perspectiva mais democrática foi
introduzida pelo papa João XXIII, ao apelar para a necessidade do
diálogo inter-religioso. Essa recomendação, que levou os católicos
a desenvolverem a tolerância, não foi única; foi também a cultura
autoritária do período de ditadura militar que despertou a soli-
dariedade da Igreja com as lideranças sociais perseguidas e uma
abertura para a necessidade de expressão e organização política
dos pobres.
A teologia da libertação encontrou, no contexto autoritário,
que estava em harmonia com os interesses norte-americanos, ele-
mentos para a sedimentação de uma cultura contra-hegemônica
122 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

na América Latina, a partir oficialmente de 1968, por meio da


conferência do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam),
realizada em Medellín. O encontro de alguns movimentos da
Ação Católica com o marxismo, desencadeando conflitos internos
com a hierarquia, também acentuou essa preferência pelos pobres.
Em Cuba, onde vítimas fatais foram feitas pelo Estado em nome
da emancipação religiosa de suas origens hispânicas, lideranças re-
ligiosas conduzem uma luta pela liberdade de expressão, sendo o
candomblé ou a santeria a religião mais popular.
A partir do final do século XX, o mundo torna-se por com-
pleto dominado pelo capitalismo e a ideologia norte-americana
será responsável por uma homogeneização da política. O libera-
lismo se acentua, prevalecendo os direitos individuais, acirrando
por sua vez a disputa nos diversos aspectos da vida social, e, nesse
contexto, as religiões encontram o desafio de sobrevivência em
face da pluralização das ideologias religiosas e diversos tipos de
espiritualidades que se proliferam a despeito de um vazio pro-
porcionado pela perda progressiva dos valores solidários que uma
democratização da sociedade deveria sedimentar. As religiões
também se pluralizam internamente e, às vezes, se dividem em
correntes e novas denominações.
Desse modo, há que se atentar para a realidade das classes
populares na atualidade, assim como para as mudanças que a re-
estruturação do capital vem causando na sociedade. Os desafios
são, portanto, de ordem social e econômica e não simplesmente
de ordem religiosa. A religião é uma forma de expressão humana
dos sofrimentos do homem no cotidiano, portanto não há como
separar algo intrinsecamente vinculado. Contudo, na medida em
que o cotidiano é uma esfera dominada pela heterogeneidade,
como mostra Heller (2000), nele é possível identificar momentos
de suspensão do meramente mecânico e repetitivo, que dá lugar
ao criativo, esfera de manifestação da humanidade presente em
cada indivíduo e das possibilidades de sua elevação a uma huma-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 123

nidade superior. É nessa interseção entre o fazer sem pensar e os


atos refletidos que o ser social se manifesta, restando-nos verificar
se o diálogo inter-religioso se situa como uma ação de suspensão
do cotidiano da religião para a criação de uma nova forma de
expressão ocasionada pelas lacunas que a formação específica ou
individual não consegue resolver. Não temos, contudo, a ilusão de
que outra realidade se apresente. Consideramos que o cotidiano é
simples apenas aparentemente, pois contém contradições que são
referência de uma contribuição crítica sobre os limites da religião
e suas particularidades num contexto sócio-político, econômico e
ambiental preciso.
O político e o religioso são esferas de objetivação de valo-
res éticos nas quais tanto uma como outra são autônomas para
desenvolver uma intervenção social, de acordo com os seus prin-
cípios e doutrinas. O que levaria essas denominações a uma ação
que transcenda os problemas internos e específicos? O universal
continuaria sendo, num contexto de grandes competitividades re-
ligiosas, objeto de denominações isoladas ou as reflexões éticas
ocupam espaço em suas ações?
De que modo ações específicas poderiam dar lugar a um di-
álogo inter-religioso em nome dos interesses sociais da comunida-
de? Qual seria, enfim, o significado social e político das religiões
para uma população cuja pobreza é apenas uma de suas caracterís-
ticas limitadoras à emancipação social e humana?
Em busca do sentido universal das ações das religiões na
comunidade em destaque, procuramos entender e explicar as cau-
sas que levaram a um número tão expressivo de denominações no
interior de um bairro formado pelas consequências das catástrofes
naturais e vítima de injustiças sociais manifestadas em problemas
urbanos que, como já mencionado, apresentam particularidades.
Um dos elementos conceituais incorporados é a abordagem
das ações ecumênicas determinadas historicamente, tanto pela
força ética interna quanto pelos precedentes de abertura entre as
124 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

mesmas para a questão social na contemporaneidade. Isso quer di-


zer que podem existir finalidades diferenciadas e ao mesmo tempo
em comum, mas que a competitividade movida pela hegemonia
na formação cultural da população, quer apresente seus obstácu-
los para a comunidade, quer seja superada em nome de uma causa
social, é um dos problemas subjacentes ao processo de organiza-
ção e autonomia coletiva na referida comunidade.
Ao serem chamadas a assumir um papel na sociedade civil,
responsável pelas decisões e projetos que a comunidade demanda,
quais seriam as respostas das representações religiosas? Qual con-
cepção de sociedade civil e de Estado nortearia as ações a serem
estimuladas na comunidade? Inicialmente, procuramos resgatar as
relações de complementaridade entre essas esferas, inspirando-nos
na superação marxista do pensamento hegeliano e aprofundando
o debate do qual Feuerbach foi uma das fontes alienadoras em
relação ao fenômeno religioso (Frederico: 2009). Na extensão do
debate sobre as relações entre a sociedade civil e o Estado, resi-
de ainda a democratização como parte de um conjunto de va-
lores ontológico-sociais que depende da escolha dos indivíduos
dos instrumentos coletivos que possam conduzir à elevação do ser
humano-genérico do homem (Pogrebinschi: 2007).
As religiões contribuem para esse estado de autonomização,
liberdade e realização do ser social? O cotidiano é por nós entendi-
do como esfera em que se faz a história, pleno de conteúdos e, ao
mesmo tempo, de heterogeneidade e de superficialidade. Mas se
a história é feita de momentos do cotidiano, como apreender seus
momentos constitutivos em pleno processo de desenvolvimento
sem se ter o recuo recomendado aos historiadores? Partir de uma
concepção de totalidade é o método para se entender as relações
das partes com o todo, que compreende a realidade a ser estudada.
Esta não é expressão nova da questão social, na qual as religiões
possam ter um significado diferente do que apresentam na so-
ciedade capitalista. Ao contrário, o projeto entende que a ques-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 125

tão social pode apresentar um grau de complexidade específica


em momentos e contextos históricos precisos. Portanto, pode ter
respostas diferenciadas e assumir aparência específica, mas conti-
nua a moldar as relações sociais, apresentando como base material
uma sociedade movida pelos interesses de classe. A sociedade civil
é resultante das formas de ação política das representações sociais
em resposta aos interesses organizados na sociedade.
Não é o político o espaço exclusivo de constituição do ecu-
menismo, pois mesmo que possa resultar em novos consensos e
afirmar valores sociais, nem sempre representações religiosas tive-
ram o poder de alterar a política de suas denominações específicas.
Assim, sempre houve, apesar das orientações oficiais, uma prática
de contestação e uma autonomia de lideranças religiosas e sociais
na escolha dos meios pelos quais transformam em ação os valores
éticos defendidos, para além do universo específico das agendas ins-
titucionais religiosas. Outro ponto de partida em nossa concepção é
que o ecumenismo não se restringe à agenda da hierarquia religiosa,
mas se estende e pode se concretizar por meio das lideranças da pe-
riferia institucional, nos meios populares onde as mesmas vivem ou
nos espaços de ação da sociedade civil organizada.

As fontes do presente estudo. Antecedentes

A partir de estudos anteriores (Pinheiro: 2010), identifi-


camos, nos encontros de fé e política, o movimento constituído
por seguidores cristãos católicos a que se deu o nome de Teologia
da Libertação. A elaboração desse movimento resultou de uma
vivência histórica determinada por um processo político de luta
por democracia e sempre ancorada na fé como elemento desen-
cadeador de ações coletivas transformadoras. O Concílio Vatica-
no II representou um importante avanço às ações ecumênicas,
legitimando-as numa perspectiva progressista inversa à tendência
da hierarquia católica tradicional. A Igreja Católica estimulou, a
126 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

partir desse concílio, a secularização da própria doutrina e sua


incursão na modernidade, tendo como consequência a afirmação
dos movimentos adeptos da teologia da libertação na América La-
tina e, em especial, no Brasil.
Diferente de uma conjuntura que em décadas de grande
efervescência política no Brasil gerou uma cultura democrática, a
partir dos anos 90 os cristãos da vertente libertadora identificam
na fé uma esfera que se esvazia das convicções éticas: os fiéis se
transformam em cidadãos consumidores, competitivos entre si e
propensos a organizações apelativas, identificadas como contem-
porâneas por serem próximas da cultura pragmática forjada pela
ideologia do mercado, a exemplo de numerosas seitas evangélicas.
A subjetividade dos militantes passa a ser objeto de reflexão e a
revitalização da fé nas conquistas sociais se coloca como central.
Nessa perspectiva metodológica de encaminhamento de es-
tratégias em face da conjuntura neoliberal, os encontros de fé e
política são espaços privilegiados para as reflexões sobre a socieda-
de que se deseja construir e o lugar da espiritualidade dos cristãos
nesta fase histórica de crise do capitalismo na América Latina. As
experiências brasileiras nas quais foram investidas muitas energias
no campo das esquerdas contaram sobremaneira com a partici-
pação dos cristãos, mas estas sofreram fortes impactos das inver-
sões ideológicas, das quais o descrédito ao socialismo é realidade.
O apelo ao diálogo inter-religioso continua sendo um desafio a
milhares de cristãos engajados. Entre tais desafios são clássicas as
diferenças entre as religiões cristãs, as quais se potencializaram nas
últimas décadas.
Apontemos abaixo alguns desses desafios e respectivas refle-
xões que poderiam servir de pressupostos para o aprofundamento
da temática. Embora o desafio mais aparente resida nos avanços
das religiões neopentecostais, com suas táticas singulares de pre-
servar a fidelidade dos sectos – em razão inversa ao catolicismo,
que aglutina a grande maioria nos encontros de fé e política –, a
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 127

superação da competitividade religiosa é em si mesma uma condi-


ção para a objetivação da perspectiva ecumênica. Mas esse desafio
esbarra nas bases de constituição daquelas seitas que se desenvol-
vem paralelamente ao crescimento do pensamento neopragmáti-
co, sobretudo a partir do denominado “fim das ideologias” ou da
vitória do imperialismo norte-americano no mundo. Essa cultura
impregnou os partidos políticos de esquerda, os governos socialis-
tas e social-democratas, inclusive em países de tradição republica-
na resistentes à cultura dos Estados Unidos, a exemplo da França
(Amim: 2006, 102-22).
O esvaziamento sofrido pelas correntes de esquerda no Bra-
sil abre espaços para o avanço de tais religiões em instâncias outro-
ra ocupadas por católicos conservadores – como no trabalho, nos
leitos hospitalares, nas escolas, nas ruas, nas praças, no transporte
público e nas redes de TV –, mas também pelo movimento sindi-
cal combativo. A troca simbólica de bens é uma característica que
se objetiva, gerando resultados imediatos para as partes, líderes e
fiéis, sem que o questionamento ético se coloque como referência
de vida e limite de uma integração desejada entre o mundo objeti-
vo e o subjetivo. A porosidade cultural expressa no livre convívio
com o sincretismo religioso é outra abertura que contribui para a
fidelidade dos seguidores religiosos e a disseminação crescente das
vertentes neopentecostais.
Ou seja, as complexidades que envolvem a concorrência
entre o catolicismo e as correntes neopentecostais e evangélicas
no Brasil extrapolam, na atualidade, a esfera política e religiosa,
transformando-se em novos limites para o ecumenismo. Eis a ra-
zão por que este se torna mais necessário aos seguidores da teolo-
gia da libertação – que apostam na capacidade de transformação
pela força histórica do homem – do que àqueles que seguem rigi-
damente os preceitos religiosos específicos; no caso dos neopente-
costais, esta rigidez ganha fluidez ao interagir com o mundo tem-
poral de forma pontual, objetiva e eficaz, utilizando instrumentos
128 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

modernos de interação com a mensagem religiosa. Esse método


consegue fazer com que os valores conservadores se revitalizem
e sejam defendidos como modernos, causando uma verdadeira
confusão no imaginário das pessoas e tendo como consequência
uma afirmação do ideário conservador.
Os encontros nacionais de fé e política aqui trazidos não
constituem um movimento com resultados imediatos, como as
organizações religiosas tradicionais (Pinheiro: 2010). Esse traço
dificulta um encaminhamento de ações cotidianas, através das
quais o caráter ecumênico se tornaria realidade. Nesse sentido, os
empreendimentos que estão em curso do ponto de vista teológico
significam um avanço se levadas em conta apropriações e elabo-
rações sedimentadas no conhecimento filosófico e científico. Mas
nem o conhecimento e nem a prática do ecumenismo consegui-
ram avançar de modo a gerar efeitos consequentes no cotidiano
da vida social.

Considerações finais

Em síntese, o ecumenismo neste trabalho parte de uma


premissa diferenciada do convencional: uma construção históri-
ca que não depende apenas de um movimento particular, mas
que parte do mesmo para persistir num plano mais amplo da so-
ciedade e das religiões; que ultrapassa a própria acepção cristã e
passa a compreender outras denominações religiosas e convicções
ideológicas e culturais, que tenham como objetivo comum uma
participação como sujeito ativo de uma causa coletiva, cada uma
em nome de suas convicções.
A perspectiva de um movimento popular de caráter políti-
co-religioso e claramente ético com a possibilidade de contribuir
por meio de um projeto específico para as ações de caráter ecoló-
gico e educativo, o ecumenismo, pode ganhar novos elementos,
negar a sua tese e superar dialeticamente, redimensionando sua
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 129

experiência e alterando o plano meramente teológico e mesmo


abstrato de convicções tradicionais, para ganhar uma dimensão
dialética e materialista.
Seria a diversidade religiosa expressão da pluralidade de
sujeitos sociais em busca de respostas aos seus problemas reais,
exteriorizados de forma subjetiva e reiterados enquanto tal? Ou
teria essa diversidade potencialidade cultural de fornecer uma for-
mação religiosa que leve os sujeitos sociais a avançarem em busca
de uma realização humana, tornando-os mais humanizados por
meio da sociabilidade desenvolvida pela participação na vida so-
cial em nome do bem comum? São estas algumas das questões que
orientam este projeto, que tem como objetivo específico analisar
as potencialidades apresentadas pelo conjunto de onze religiões
para a mobilização da população e o desenvolvimento de alter-
nativas ecológicas sustentáveis para os problemas que ameaçam a
segurança de uma comunidade em Petrópolis.

Referências

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Nova; São Paulo: Paulus, 1999.
FITZGERALD, Dom Michael. A unidade, desejo de Deus. Quarenta anos de
diálogo inter-religioso. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2008.
FREDERICO, Celso. O jovem Marx. 1843-1844: as origens da ontologia do ser
social. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
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nisme de la libération au Brésil”. Archives de Sciences Sociales des Religions.
Paris: 1997, pp. 9-32.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
INFRANCA, Antonino. Trabajo, individuo, história. El concepto de trabajo en
Lukács. Buenos Aires: Herramienta, 2005.
LUKÁCS, Georg. “Problemas da ética”. In: COUTINHO, Carlos Nelson &
NETTO, José Paulo (orgs.). O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, pp. 71-6.
130 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Études philosophiques. Paris: Éditions


Sociales, 1977.
PINHEIRO, Luci Faria. Religião, serviço social e movimentos sociais no Brasil. Rio
de Janeiro: Gramma, 2010.
POGREBINSCHI, T. “O enigma da democracia em Marx”. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, v. 22, 63. São Paulo: 2007, pp. 55-67.
Indivíduo solidário e colaborador:
notas sobre a construção
do conceito de cidadania em
tempos neoliberais

Gisele dos Reis Cruz* 1

O conceito de cidadania e sua vivência nas sociedades oci-


dentais sempre esteve vinculado à consolidação do capitalismo,
adquirindo uma conotação liberal. Boaventura de Souza Santos
nos fala sobre isso quando reflete acerca do processo de constru-
ção dos chamados direitos civis, políticos e sociais, os quais se
consolidaram sem contradizer o processo de acumulação de ca-
pital. Segundo o autor, a conquista desses direitos por parte da
população não ocorreu sem uma regulação por parte do Estado,
impedindo que estes levassem à emancipação humana (Boaven-
tura: 2003).
Boaventura, quando menciona os direitos políticos, refere-
-se ao direito ao voto, que teve início no século XIX na Europa, de
modo que a democracia ocidental é de cunho liberal, já que nunca
foi ligada à igualdade social e econômica. Porém, a mesma análise

*
Professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Fede-
ral Fluminense (UFF).
132 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

pode ser feita para a ampliação desses direitos políticos, preconi-


zada pela gestão pública compartilhada baseada na cooperação e
no consenso. Isso porque a abertura à participação da população
não se dá sem algum tipo de regulação por parte dos governos, o
que se mostra na reengenharia política instituída para organizar a
participação. Um exemplo são os conselhos setoriais municipais e
os fóruns de debate de iniciativa governamental.
Nesses tipos de experiência, a filosofia embutida é a auto-
nomia das coletividades, a geração de capital social e o estímulo
ao envolvimento da população com os problemas locais. No en-
tanto, são apresentados sob a forma de modelos de ação a serem
seguidos, principalmente quando são propostos cursos de capa-
citação para a gestão pública local e para o desenvolvimento de
práticas de cooperação.
Podemos falar, no caso brasileiro, de uma coincidência en-
tre o processo de democratização iniciada na década de 80 do sé-
culo XX e as políticas marcadas por um embasamento neoliberal.
Já na Constituição de 1988 nota-se o destaque para a participação
das populações na elaboração e implantação de políticas públi-
cas, indo ao encontro dos anseios da própria sociedade, marca-
da por anos de repressão militar, quando a participação era tida
como incompatível com a governabilidade. A partir da retomada
democrática, o discurso da participação como novo modelo de
governança apresenta-se com força no cenário político, social e
acadêmico. A academia se volta para diversos estudos focando os
limites e as possibilidades do engajamento participativo da popu-
lação, sobretudo a partir dos anos 90 do século XX.
A grande questão que pretendo abordar neste artigo é a for-
ma de cidadania que se procura construir quando o governo fala
e estimula o envolvimento dos diversos segmentos sociais em pro-
cessos participativos. Não é uma participação cidadã voltada para
a emancipação de fato – no sentido da construção de uma visão
crítica capaz de alterar as relações de poder vigentes –, mas para
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 133

a mera administração de conflitos, embasada teórica e ideologica-


mente pelos princípios da concertação, colaboração e solidarieda-
de. São tais princípios que norteiam tanto o desenvolvimento de
atividades voltadas para o atendimento das necessidades básicas
da população – geralmente transferidas para o chamado Terceiro
Setor – como a dinâmica participativa presente nas arenas públi-
cas onde interagem governo e sociedade.

Programas Comunidade Solidária e Comunidade Ativa: a


matriz neoliberal

A matriz neoliberal aborda a sociedade civil não como uma


esfera contraposta ao Estado e ao capitalismo, mas como um com-
plemento ou mesmo um substituto para o Estado e o mercado.
Sociedade civil, nesse sentido, é o reino entre o Estado, o mercado
e a família; não é o reino da luta e da emancipação, mas sim o
reino da estabilidade, da provisão, da confiança e da responsabi-
lidade social.
Nesse sentido, o conceito de sociedade civil é construído
totalmente em oposição à perspectiva gramsciana, que foca a so-
ciedade civil, em organizações sociais complexas, como parte do
chamado Estado que já se ampliou, sendo a arena onde ocorrem
as disputas pela hegemonia em termos de projeto político socie-
tário (Coutinho: 2007). Pela ótica de Gramsci, a sociedade ci-
vil é marcada pela disputa entre distintos projetos societários, de
modo que, no processo de embate, um deles torna-se hegemônico
a partir do momento em que diversos segmentos da população
são ganhos para a causa em questão. Não há espaço, na análise de
Gramsci, para o consenso no sentido da deslegitimação dos con-
flitos, ao contrário, o conflito, sobretudo de classes, permeia todo
o processo de conquista da hegemonia.
No caso do pensamento neoliberal, sua hegemonia no Oci-
dente nos últimos anos vem acompanhada de discursos voltados
134 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

para a deslegitimação dos conflitos e para a absorção de diver-


sos segmentos sociais no processo democrático, através de uma
construção epistemológica da realidade que nega os conflitos e
interesses de classe e põe na mesa de negociação e interlocução o
capital e o trabalho. Assim, quando os indivíduos são chamados a
participar ou a colaborar com o governo, são educados para pen-
sar a sociedade como o reino da solidariedade e da cooperação,
aprendendo uma nova forma de ser cidadão, ligada diretamente
com práticas sociais voltadas para a melhoria da qualidade de vida
dos mais pobres. Todo e qualquer tipo de ação empreendida por
meio dessa lógica não resulta em reais transformações sociais e
econômicas, mas apenas na diminuição do sofrimento e da penú-
ria, ou seja, na administração dos males do capitalismo. Termos
como organizações sem fins lucrativos ou organizações não gover-
namentais são usados para descrever os atores da sociedade civil
que se organizam para desenvolver atividades que minimizem a
pobreza sem, no entanto, liquidá-la. O conceito de Terceiro Setor
é um sinônimo do conceito de sociedade civil usado pela matriz
neoliberal.
Tal matriz teórica parte de uma concepção limitada de
bem-estar, segundo a qual este deve ser gerado a partir de uma
rede privada, envolvendo famílias, comunidades, instituições re-
ligiosas e filantrópicas. Por trás dessa concepção se encontra uma
estratégia substitutiva, de descentralização e privatização dos ser-
viços públicos. Dessa forma, os governos nacionais se desobrigam
totalmente da responsabilidade pela implementação de programas
sociais, delegando-se tal responsabilidade aos governos locais, em
parceria com as ONGs ou outras organizações sociais.
Esse processo desencadeia o que Bresser Pereira chamou de
público não estatal (1999), para se referir exatamente às organi-
zações da sociedade civil – financiadas em parte pelo Estado, mas
também por instituições internacionais de fomento – que se di-
recionam para as ações que antes eram exclusivas do Estado. Tais
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 135

funções têm um caráter público, porém são realizadas por setores


privados. Trata-se de uma redefinição do público e do privado,
ou seja, o público deixa de ser associado somente com o Estado e
passa a se relacionar com segmentos privados.
A oposição entre público e privado seria resolvida com o
surgimento de um “novo setor”, “público, porém privado”, que
passaria a absorver cada vez mais a dita questão social. Se o Estado
é o Primeiro Setor e o mercado o Segundo Setor, o público não
estatal é uma área de interseção que desempenha funções públicas
a partir de espaços e iniciativas privadas. Está subjacente a esta
fórmula a ideia de que o fortalecimento da sociedade civil e de
sua atuação no âmbito do desenvolvimento social seria o caminho
correto e necessário para o combate da injustiça e da exclusão.
Ora, tal afirmação parece resumir o que seria a matriz neoliberal,
com sua ênfase na ineficiência da esfera estatal. Esta, burocrática e
intrinsecamente ineficiente e incompetente para gerir as questões
de cunho social, é satanizada por essa matriz teórica, que, como
solução, exalta as “virtudes” da sociedade civil na promoção do
desenvolvimento social.
A satanização do Estado e a idealização da sociedade civil
colocam essas duas esferas como apartadas, com lógicas distintas,
sem considerar que são arenas marcadas por ambiguidades e con-
tradições. Nem o Estado é caracterizado somente por práticas ne-
fastas e corruptas, nem a sociedade civil é composta somente por
arranjos virtuosos e democráticos, encontrando-se em seu interior
práticas perversas, pouco democráticas e viciosas. As próprias or-
ganizações sociais são muitas vezes caracterizadas pela mistura do
interesse público com o interesse privado, muitas delas existindo
apenas para dar vazão a projetos de políticos inescrupulosos. Po-
rém, a visão dicotômica entre Estado e sociedade civil é carente
de um olhar mais complexificador das duas esferas e marcada por
um viés ideológico que, condizente com a matriz neoliberal, busca
retirar o Estado, porque inoperante, de suas funções básicas.
136 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Segundo Neves, o estímulo a iniciativas políticas de indiví-


duos e organizações relacionadas com atividades de cunho social
baseia-se na compreensão de que o aparelho do Estado não é oni-
presente, de modo que a sociedade é vista como corresponsável
pela definição de formas alternativas de ação social. Tratar-se-ia
de um processo de mudanças de concepções e práticas ordenadas
pela chamada “repolitização da política”, no sentido da redefini-
ção da participação política no contexto democrático do final do
século XX e início do século XXI, direcionada para a coesão social
nos moldes do projeto neoliberal da Terceira Via (Neves: 2005).
Sobre isso, Fontes também nos é útil ao afirmar que o eixo
democrático e popular que predominou na década de 80 no Brasil
teria reduzido seu impulso socializante, de modo que a democra-
cia foi reduzida às estratégias limitadas e admissíveis pelo capital,
o que vem ocorrendo desde o governo Collor de Mello, passando
pelos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio
Lula da Silva. O que estaria em jogo é um intenso processo de
desqualificação e rebaixamento da política, que se torna cada vez
mais pontual e esvaziada de conteúdo organizativo contra-hege-
mônico (Fontes: 2010).
O conceito de hegemonia nos moldes gramscianos nos é útil
para pensar esse processo, pois o exercício do poder nas sociedades
de classes se materializa a partir de uma concepção de mundo e de
uma prática política de uma classe ou fração de classe, sendo uma
relação pedagógica no sentido de que a classe em questão tenta
subordinar moral e intelectualmente grupos sociais inteiros por
meio da persuasão e da educação (Neves & Martins: 2010). A ên-
fase nos conceitos de solidariedade, consenso e concertação nada
mais é do que parte de um processo educacional orientado para a
reprodução da nova fase de acumulação capitalista, reforçando a
conquista da hegemonia por meio da matriz neoliberal. Trata-se
da desorganização da visão crítica do capitalismo direcionada para
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 137

a construção do consenso ou de uma nova cultura cívica baseada


no associativismo colaboracionista.
O Programa Comunidade Solidária, implantado no gover-
no de Fernando Henrique Cardoso na década de 90 do século
XX, é um dos exemplos de adesão a uma metodologia de ação em-
basada ideologicamente, importada de fora a partir das diretrizes
do Banco Mundial. O processo de ajuste fiscal imposto aos países
de primeiro e terceiro mundo no decorrer das últimas décadas se
baseia na crença de que os gastos sociais dos Estados seriam os res-
ponsáveis pelas últimas crises econômicas, sobretudo a da década
de 1970, de modo que o modelo de Welfare State passa a ser ques-
tionado e evitado. A ordem é transferir tarefas e atividades para a
sociedade civil organizada, como forma de conter os gastos públi-
cos. Por essa ótica, o setor privado e a sociedade organizada são
vistos como parceiros dos governos, dando margem a múltiplas
ações direcionadas para o bem-estar das populações mais pobres.
O Programa Comunidade Solidária, coordenado pela ex-
-primeira dama, Ruth Cardoso, envolvia ações em áreas como
saúde, educação, moradia etc., que seriam desenvolvidas através
da parceria Estado/sociedade civil, ficando esta última responsá-
vel por fiscalizar e acompanhar as ações empreendidas. Qualquer
atividade que pudesse ser desenvolvida por segmentos voluntários
seria repassada para a sociedade, sem ônus para o Estado. E os
conselhos setoriais então criados, com representantes dos governos
e da sociedade, foram tidos como instrumentos, por excelência,
de “controle” das políticas públicas desenvolvidas para cada setor.
Está embutida nesse tipo de programa uma nova relação
entre Estado e sociedade civil, pautada na filosofia da colaboração,
cuja perspectiva direciona-se para o conceito de responsabilida-
de social presente nas empresas, emergindo experiências como o
Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), criado em
1995, e o Instituto Ethos, criado em 1988. Tais exemplos em-
138 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

basam a noção de “capitalismo ético”, visando tornar o mercado


mundial mais humano (Oliveira, Pronko & Falleiros: 2010).
Já o Programa Comunidade Ativa foi implantado em 1999,
ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, cuja filosofia
também se baseava na parceria entre governos e sociedade civil.
Tal programa, desmantelado mais tarde, visava à promoção do
desenvolvimento social a partir do estímulo a iniciativas das po-
pulações locais, baseando-se, portanto, em um modelo específico
de democracia participativa, cujo instrumento de ação eram os
fóruns de desenvolvimento local. A intenção dos idealizadores do
Programa Comunidade Ativa era implantar um modelo de gestão
pública voltada para a elaboração, formulação e implementação
de políticas públicas, o que significa dizer: tornar as comunidades
locais parceiras, em potencial, dos governos locais no processo de
desenvolvimento econômico-social. Para a realização desse obje-
tivo, o governo federal se utilizava de experiências bem-sucedidas
de estratégias de gestão participativas, como, por exemplo, orça-
mentos e planejamentos participativos (Cruz: 2005).
Após o término do Programa Comunidade Ativa, o Sebrae
passou a ser o principal articulador da estratégia DLIS em diversos
municípios brasileiros, organizando as populações locais para a
participação em arenas de debate, através de cursos de capacitação
para a participação. O próprio processo de capacitação – que se
dava por meio de convênios com instituições renomadas como,
por exemplo, a Fundação Getúlio Vargas – envolvia um proje-
to de controle do processo participativo, pois a dinâmica não se-
guia parâmetros fornecidos pelas comunidades em questão, mas
uma lógica imposta de cima para baixo, visando administrar a
participação por meio da introjeção de conceitos como capital
social, concertação e consenso. Embora essas dinâmicas partici-
pativas fossem permeadas por conflitos de interesses, a ideia era
deslegitimar tais conflitos, estimulando os objetivos comuns, em
detrimento das particularidades. A própria ideia de integração
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 139

presente na metodologia de Desenvolvimento Local Integrado e


Sustentável era bastante significativa, pois representava a noção de
união de diversos segmentos em prol do todo, retirando dos con-
flitos e das particularidades qualquer resquício de legitimidade.
A participação da Fundação Getúlio Vargas também é inte-
ressante de ser analisada, em função de seu papel histórico na con-
solidação do capitalismo industrial brasileiro desde sua criação,
em 1944. Sua criação enquadra-se no processo de racionalização
da aparelhagem estatal no Brasil, no contexto do Estado Novo,
tendo tido desde sempre papel relevante na formação de intelec-
tuais orgânicos do capitalismo brasileiro em sua fase nacional-
-desenvolvimentista. Suas diversas ramificações, como a EBAP,
criada em 1952, e a EAESP, criada em 1954, direcionam-se para
a administração pública e para a administração de empresas, re-
presentando a conjugação de interesses entre governo e empresá-
rios (Neves, Melo & Monteiro: 2010). Sendo assim, a Fundação
Getúlio Vargas (FGV) é um dos exemplos de instituições mol-
dadas a serviço do capitalismo, tendo como meta a formação de
intelectuais orgânicos do capitalismo brasileiro, de modo que sua
atuação no processo de capacitação para a participação no Pro-
grama Comunidade Ativa apenas reforça suas ações voltadas para
construção da hegemonia do capital.
Se olharmos atentamente para as duas formas de envolvi-
mento da sociedade organizada – a que fornece serviços públicos
para populações carentes através do Terceiro Setor e a que põe
segmentos sociais para debater políticas públicas com os gover-
nos –, é facilmente perceptível que são apenas formas de absorver
grandes parcelas da população na nova etapa de desenvolvimento
do capitalismo. Embora participar de arenas públicas seja positivo
para o aperfeiçoamento da democracia, o tipo de participação que
se estimula não permite a emancipação ou uma mudança real nas
relações de poder, pois se fala em solidariedade e consenso para
melhor gerir os problemas do capitalismo, sem espaço para ultra-
140 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

passar a lógica perversa do capital. A democracia acaba tornando-


-se um instrumento de controle do capital, visando inserir as mas-
sas de forma passiva.
Além do mais, as diversas experiências participativas não ne-
cessariamente resultam em conquistas para as populações locais,
por dois motivos básicos: primeiro, os governos locais podem sim-
plesmente ignorar as demandas sociais que surgem nesses espaços,
em função da cultura de centralização política e administrativa
presente na sociedade brasileira, que se contrapõe aos projetos de
descentralização instituídos no âmbito federal; segundo, as arenas
de participação podem ser cooptadas por grupos poderosos, de
modo que os segmentos com menos recursos organizacionais se
veem sem espaço para atuar, já que, concordando com Gramsci,
a sociedade civil é permeada por disputas pela hegemonia. Isto
é, a dinâmica participativa e seus resultados obedecem a lógicas
próprias de cada localidade, não havendo garantia de conquista de
direitos por parte das populações engajadas.
No entanto, o canto da sereia da participação organizada
acaba por conquistar inclusive setores da esquerda, em função de
os espaços de debate e democracia serem vistos como perspectivas
de mudanças na relação assimétrica entre Estado e sociedade, de
modo que, sem uma visão mais acurada, acaba-se por legitimar
uma nova forma de democracia que não necessariamente traz
emancipação, mas reprodução do sistema vigente.

Considerações finais

O que se nota a partir do discurso da colaboração entre


governo e sociedade é uma visão específica do que é ser cidadão.
Cidadania não tem a ver com emancipação ou controle sobre as
decisões governamentais. Embora alguns estudos destaquem a
possibilidade de controle social sobre as ações do poder público
através da participação em arenas participativas – o que é passí-
Parte I – Religião e movimentos sociais: artigos 141

vel de ocorrer em alguns momentos e localidades -, a engenharia


política e institucional por trás dessas experiências acaba por obs-
curecer e dificultar esse processo. Se a participação é organizada
segundo critérios e parâmetros ditados de cima para baixo, torna-
-se de difícil execução o controle social da população sobre os
governos.
A participação que se deseja por meio de programas como
Comunidade Solidária e Comunidade Ativa é a adequada ao siste-
ma capitalista, construindo-se assim uma democracia meramente
administradora de conflitos e de interesses antagônicos entre ca-
pital e trabalho. Esse antagonismo é obscurecido por meio do dis-
curso da concertação e da cooperação. Dessa forma, ser cidadão é
adotar uma postura colaboracionista e consensual, é adotar ações
que visem à amenização das desigualdades, e não sua liquidação.
Ser cidadão é se comprometer com as políticas do governo, de
modo a cooperar com sua execução, mesmo que tais políticas não
destruam as causas da desigualdade a longo prazo.
A cidadania que se almeja não é ligada a uma consciência
dos meandros que perpetuam o status quo, mas é a própria per-
petuação desse status quo. É a mera reprodução dos problemas
sociais, apenas com uma roupagem social conquistada através do
conceito de indivíduo solidário e colaborador. Portanto, a demo-
cracia e a cidadania que se estimula é um modelo de ação condi-
zente com os interesses do capital e com o neoliberalismo, pois
contribui para a retirada estratégica do Estado de suas funções,
pondo o indivíduo como protagonista de todo o processo.

Referências

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estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
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142 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

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Parte II
Religião e movimentos sociais:
comunicações
Militância de jovem: Pastoral da
Juventude e a ideologia petista na
diocese de Nova Iguaçu

Ronald Apolinário de Lira* 1

O ano de 1980 é o marco do primeiro passo efetivo rumo


à redemocratização no Brasil. O pluripartidarismo volta à cena
nacional, após anos de uma política bipartidária coordenada pelos
governos militares. No dia 29 de novembro de 1979, o presidente
João Figueiredo sanciona a lei que permite que as diferentes pro-
postas políticas – seja de situação, como o PDS, seja de oposição,
como PT, PMDB e PDT – sejam manifestadas nas eleições que
ocorrerão em 1982.
Mas, ainda que o período final da ditadura seja coincidente
com o da redemocratização, ele é, ao mesmo tempo, o canto do
cisne das ações desesperadas de setores da ditadura, como, por
exemplo, os atentados terroristas da direita. A catedral de Santo
Antônio de Jacutinga, templo-sede da diocese de Nova Iguaçu,
sofre um atentado a bomba em dezembro de 1979 (Silva: 2003,
270). A escolha do alvo não foi aleatória, mas refletia a importân-

*
Doutorando em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), é professor do Centro Universitário Uniabeu.
146 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

cia daquela diocese no movimento de esquerda na periferia do Rio


de Janeiro.
As militâncias de esquerda em Nova Iguaçu se iniciam prin-
cipalmente dentro do ambiente católico (Mainwaring: 2004). É a
partir de uma militância atuante dentro das Comunidades Ecle-
siais de Base (CEBs) e do Movimento Amigos de Bairro (MAB),
que a Igreja e seus membros constroem uma vigorosa visão de
mundo que marca, até hoje, a identidade da diocese de Nova
Iguaçu. É nesse contexto que temos o nascimento do Partido dos
Trabalhadores (PT) no município, dentro da lógica da Teologia
da Libertação nas paróquias iguaçuanas.
A Pastoral da Juventude (PJ) é um ator social importante
nesse movimento, pois, ao mesmo tempo em que a esquerda não
mais clandestina toma vulto na realidade nacional, mudanças es-
truturais ocorrem nos movimentos juvenis, modificando sua face
frente à realidade social do país. Ao invés de uma juventude de
base celebrativa, organizada em “grupões” nas comunidades, sur-
ge a proposta de formação da juventude, através de uma leitura
pautada nos escritos da Teologia da Libertação. Essa virada de
maré, ocorrida nos fins dos anos 1970, alavanca o movimento de
juventude para uma organização mais sólida, passando a ser uma
pastoral orgânica da Igreja, reconhecida e assessorada pela insti-
tuição através de bispos, padres e leigos.
A PJ de Nova Iguaçu fez parte atuante nos movimentos de
esquerda no município, estando presente no nascimento do PT
na região. Essa participação possuía enfoque pontual na formação
de quadros jovens para a vida política fora do ambiente eclesial,
principalmente nas ações de bairros e, em seguida, na luta parti-
dária. Essa adesão dos jovens ao PT passa a ser, com o tempo, a
caminhada esperada da juventude de Nova Iguaçu.
Com a emancipação do quinto distrito de Nova Iguaçu,
nasce o município de Mesquita. Ele será o nosso lócus para a pes-
quisa da atuação dos ex-militantes da PJ André Taffarel e Artur
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 147

Messias na política partidária de esquerda. Nas eleições de 2000,


teremos a vitória de Taffarel, um quadro formado politicamente
pela PJ e filiado ao PT, assumindo como vereador. No pleito se-
guinte, Artur Messias obtém a vitória para prefeito, Taffarel ganha
novamente como vereador e as principais secretarias de governo
são ocupadas por ex-militantes da PJ. Ainda que Artur Messias,
eleito prefeito em 2004, tenha ocupado cargos eletivos anterior-
mente, é no âmbito municipal de Mesquita que poderemos ver de
forma mais concreta a lógica da PJ junto ao PT.
Para entendermos a atuação da PJ na diocese de Nova Igua-
çu, temos que compreender primeiro o contexto diocesano e a
proposta da Teologia da Libertação existente no município a par-
tir do bispado de Dom Adriano Hypólito. Nesse sentido, este
artigo tentará traçar uma linha explicativa primeiramente sobre
a história da diocese; em segundo lugar, a lógica da Teologia da
Libertação culminando na caminhada da Pastoral da Juventude
no contexto nacional e iguaçuano.

A diocese de Nova Iguaçu

No ano de 2010, a diocese de Nova Iguaçu completou seu


jubileu de ouro, tendo em vista uma série de eventos comemo-
rativos e a publicação de um rico material multimídia, compos-
to de um DVD e um livro. Compreendendo sete municípios
– Nova Iguaçu, Belford Roxo, Japeri, Mesquita, Nilópolis, Para-
cambi e Queimados –, em 26 de março de 1960, através da bula
Quandoquidem Verbis, o papa João XXIII criou a diocese de
Nova Iguaçu. Também conhecida como a “diocese da clandesti-
nidade” (Serbin: 2001, 42), ela foi fundada em pleno momento
de reavivamento progressista da Igreja, o Concílio Vaticano II
(CVII), o que marcou profundamente a visão de mundo defen-
dida por seus líderes religiosos.
148 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

O projeto pastoral da diocese se identificou umbilicalmen-


te com a Teologia da Libertação, principalmente com a chegada
do bispo Dom Adriano Hypólito, em 1963. O chamado “bispo
vermelho” fortaleceu as CEBs, herdeiras do Concílio Vaticano II
em sua visão da atuação dos leigos na Igreja, além de apoiar as
movimentações populares da comunidade de cunho social e não
religioso, como o Movimento Amigos de Bairro, o MAB. A figura
de Dom Adriano se tornará basilar para a diocese. Nas palavras de
João Marcus Assis,

quanto aos membros das CEBs, terão em Dom Adriano o ide-


alizador e efetivador de uma organização eclesial voltada para
a ação sócio-transformadora com base em “comunidades” de
convívio e atividades, ao mesmo tempo, religiosas e sociopolíti-
cas. Diversas narrativas ressaltam um trabalho diocesano antes e
pós Dom Adriano. A manutenção de uma memória do trabalho
sócio-transformador será relevante para a continuidade de uma
identificação da diocese com a presença das Comunidades de
Base (Assis: 2008, 42).

A militância da diocese de Nova Iguaçu, mesmo enfren-


tando represálias por parte do poder do Estado (Gaspari: 2004;
Mainwarring: 2004 & Serbin: 2001), conseguiu preservar a visão
de mundo propagada pela Teologia da Libertação (TL).1 Deve-
mos lembrar que essa tendência não se resume a Nova Iguaçu,
estendendo-se a diferentes dioceses e prelazias no Brasil e na Amé-
rica Latina no mesmo período.

1
Levamos em consideração que, na diocese de Nova Iguaçu, não temos a ado-
ção unívoca da visão da TL por parte do clero ou dos fiéis (cf. Assis: 2008). A
ênfase aqui apontada para essa tendência se refere à nossa escolha de material
de pesquisa.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 149

O bispado de Dom Adriano foi marcado pelo apoio aos


movimentos sociais. A tendência progressista adotada por ele se
inicia em 1966, quando prioriza as CEBs no seu trabalho pasto-
ral. Segundo Mainwarring (2004, 209), o marcante na diocese
de Nova Iguaçu seria muito mais o apoio das bases para os mo-
vimentos sociais do que a interferência do bispo, o que evitaria
a necessidade de negociações junto ao poder político por parte
do clero. Essa movimentação das bases pelos grupos civis reivin-
dicando melhorias no município, dentre outras demandas, foi
severamente reprimida nos anos 1970, deixando apenas as CEBs
e o espaço diocesano como locais seguros para a reclamação de
urgências sociais. Isso fez com que a diocese se comprometesse
com a sociedade civil iguaçuana, apoiando os grupos de ação
popular no município. Um dos grupos importantes nascidos
em Nova Iguaçu foi o Movimento Amigos de Bairro (MAB).
Fundado por dois médicos não religiosos em 1974, baseava-se
inicialmente em serviços médicos à comunidade carente, sendo
abraçado logo depois pela diocese, que contratou os dois médi-
cos e efetivou o movimento.
O MAB foi raiz de diversos movimentos sociais em Nova
Iguaçu. Na ausência de organizações de participação política, era
ele o principal meio de coesão e expressão das comunidades e dos
cidadãos em geral – como associação de moradores, grupos de
mães etc. Através de sua ação, a política de direita da prefeitura
viu sua primeira oposição coordenada, pleiteando melhorias no
saneamento básico e nos transportes.
O MAB perdeu forças quando da redemocratização do país,
nos fins de 1970, e do retorno ao pluripartidarismo, na década de
1980. Entretanto, graças às divisões ocorridas devido às adesões
a diferentes partidos políticos em seu seio – principalmente PT,
PDT e PMDB –, sedimentou a militância de esquerda na diocese.
150 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Esse substrato também foi significativo para os movimentos “Pró-


-PT” existentes em 1980 em Nova Iguaçu.2
Hoje podemos constatar a crescente presença da Renovação
Carismática Católica (RCC) na vida da diocese. A RCC, movi-
mento de avivamento católico propositor de uma vivência mais
espiritualizada da religião, representa uma faceta bastante comple-
xa dentro da Igreja. Ao mesmo tempo em que propõe um chama-
do à experiência mística individual, se filia às tendências radicais
da instituição, beneficiando uma forma clerical de catolicismo.
Segundo Faustino Teixeira, a RCC

exerce um “papel ambivalente” no interior da Igreja Católica. De


um lado, insere-se numa estratégia de clara afirmação identitária
e de zelo pela doutrina católica tradicional; de outro, favorece
uma dinâmica espiritual que acaba incidindo numa perspectiva
de autonomização transversal com respeito ao catolicismo oficial
(2009, 24).

Os conflitos e negociações entre os grupos progressistas e


carismáticos são apresentados no trabalho de Assis (2008).

A Teologia da Libertação

A TL se sedimentou no Brasil principalmente pela sua ên-


fase no apelo preferencial pelos pobres,3 além de contar com o
incentivo de um episcopado progressista, principalmente na fi-

2
Os movimentos “Pró-PT”, segundo o prefeito Artur Messias, em entrevista con-
cedida em março de 2010, seriam uma organização iniciada dentro da diocese
pelos militantes da PJ e de outras pastorais, no ano de 1980.
3
Essa opção preferencial pode ser encontrada nas propostas do Concílio Vaticano
II (1962-1965) e ratificada – até mesmo potencializada – nos documentos do
Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) de Puebla (1968) e Medellín
(1979). Cf. Concílio Vaticano II (2002) e Celam (2005).
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 151

gura do papa João XXIII. Ela chega ao país em meados dos anos
1960, através de textos de teólogos como Leonardo e Clodovis
Boff, Carlos Mesters, Frei Betto, dentre outros.
O marcante nessa nova teologia é a presença da interpreta-
ção social marxista num caráter humanista – busca da igualdade
social, defesa dos direitos da pessoa humana –, ainda que alguns
de seus propositores não a declarem abertamente como tal. Ela se
apresenta como uma forma de teologia de cunho militante, hu-
manista e cristão, que propõe como meta a construção do “Reino
de Deus”, traduzido como igualdade social e o fim da opressão.
Essa mescla é apontada por Löwy da seguinte maneira:

São rejeitados elementos como o ateísmo materialista, e assimi-


lados outros como a crítica ao capitalismo – em particular em
sua forma dependente, no Brasil e na América Latina – e ao
poder das classes dominantes, a inevitabilidade do conflito so-
cial e a perspectiva da autoemancipação dos explorados (Löwy:
2007, 412).

Segundo Michael Löwy (2007, 414), a TL teria se bene-


ficiado de ventos a seu favor no contexto da América Latina: as
decisões progressistas do Concílio Vaticano II, que vão modificar
por completo a face da Igreja, e da reunião do Conselho Episcopal
Latino-Americano (Celam) em Puebla; o sucesso da luta revolu-
cionária cubana em 1959, que influenciará outras lutas e guerri-
lhas no bloco. Já o sucesso meteórico desse modelo de teologia
no Brasil se deu principalmente por diferentes questões sócio-his-
tóricas que circundavam o país nessa mesma época: atuação dos
leigos na ação da Igreja (Ação Católica; JOC; JUC), aproximação
intelectual do clero com uma vertente teológica francesa, princi-
palmente dos padres franceses Lebret e Mounier, reconhecidos
por suas propostas de esquerda, e discussões socialistas presentes
na esfera profissional urbana e estudantil.
152 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

As entidades de classe, como a CUT, o PT e o MST, são


frutos da TL. As militâncias da juventude, especialmente a Ju-
ventude Universitária Católica (JUC), extinta em 1963, foram
algumas das maiores contribuições da linha de libertação no mo-
vimento estudantil; a Ação Popular, forte potência de oposição
socialista e, logo em seguida, seguindo a linha maoísta (Ridenti:
2007; Boff & Miranda: 2004), tem suas raízes na JUC. O método
inaugurado pela AC, e apropriado por todas as frentes católicas de
libertação, o “Ver, Julgar e Agir”, tornou-se base de trabalho para
diversos grupos, principalmente para a Pastoral da Juventude, que
ainda hoje o utiliza.
As questões levantadas por pensadores importantes, como
Leonardo Boff, sofreram críticas conservadoras por parte da Igreja
já nos idos de 1980. Boff, um dos principais teólogos da libertação,
sofreu sanções de silêncio por parte da hierarquia da Igreja por conta
de seu livro Igreja, carisma e poder (1981), retirando-se, em seguida,
da vida religiosa consagrada e do sacerdócio católico. Suas críticas
à hierarquia, assim como à proposta de uma Igreja unicamente cle-
rical, foram severas: “A Hierarquia é de mero serviço interno e não
constituição de estratos ontológicos” (Boff: 1981, 26).
O modelo teológico de libertação sofrerá diversas críticas por
parte da cúpula da Igreja, principalmente pela elevação de Karol
Wojtyla ao trono de Pedro e do então bispo Ratzinger, responsável
pela Congregação para a Doutrina da Fé. Paulatinamente, teremos
as políticas liberacionistas colocadas em xeque. Esse movimento
de fechamento da Igreja com propostas mais conservadoras é
enxergado pelos autores pesquisados de diferentes maneiras.

A Pastoral da Juventude

Nascida nos anos 1970, a Pastoral da Juventude desde seu


início identificou-se com as tendências de esquerda no seio da
Igreja e, fora dela, como os movimentos sociais e estudantis. Suas
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 153

propostas acompanham a aplicação da Teologia da Libertação no


período e, já no início, é uma pastoral orgânica da Igreja, se colo-
cando como formadora da juventude.
Suas origens se encontram na Ação Católica Especializada
(ACE), que se divide para alcançar os diferentes campos na so-
ciedade. Quanto à juventude, a ACE teve papel importante com
a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Operária
Católica (JOC) e a Juventude Universitária Católica (JUC), esta
última extinta nos anos 1960 por sua politização de esquerda e
agenda independente da Igreja (Ridenti, 2007). A PJ é proposta
pela Igreja para se tornar a expressão genuína de sua juventude,
congregando os membros dos grupos jovens em uma única repre-
sentação pastoral.

Isso significa que PJ são todos os(as) jovens de grupos,


coordenadores(as), assessores(as), que procuram caminhar e crescer
como Igreja e que se comprometem com a libertação integral do ser
humano e da sociedade, a fim de viver o Reino de Deus neste mundo
(Oliveira: 2004, 47; grifos nossos).

Ainda que o autor se esforce para acentuar o propósito ecle-


sial da PJ, fica claro aqui e em toda a sua obra que a PJ, além de re-
presentar a totalidade da juventude da Igreja, se compromete com
o modelo da TL como base de trabalho. Isso se acentua bastante
com o crescimento e desenvolvimento político da PJ ao longo dos
anos 1980 e 1990. A PJ se torna o oposto dos chamados “Mo-
vimentos de Juventude”, comuns nos anos 1970, baseados em
uma supervalorização do emocional sem propostas de militância
ou ações fora a Igreja. Esses movimentos arregimentavam grupos
de mais de cem pessoas, sendo que nem dez por cento retornava
para compromissos dentro da Igreja.
Ao se dividir em PJs específicas, a organização desenvolve
uma forma altamente politizada de esquerda, alinhada com o tra-
154 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

balho de formação de líderes em seu interior. As PJs específicas


seriam: Pastoral da Juventude do Meio popular (PJMP); Pasto-
ral Universitária (PU) – uma forma de resgatar o movimento es-
tudantil católico com a extinção da JUC; Pastoral da Juventude
Estudantil (PJE) – o mesmo para a JEC; Pastoral da Juventude
Operária (PJO); e Pastoral da Juventude Rural (PJR). Essas for-
mas de PJ específicas têm uma agenda particular, ainda que com-
partilhem as decisões colegiadas da PJ dita “Geral”. A tentativa de
homogeneização das PJs pelo “Setor Juventude” da Igreja – que
veremos a seguir – às vezes não é muito bem visto pelas PJs espe-
cíficas, que nem sempre estão enraizadas nas CEBs, mas sim nos
seus movimentos sociais particulares.
O projeto de formação das lideranças incluía a produção de
material de trabalho – panfletos, cadernos, livros –, que era dis-
tribuído nas diferentes dioceses do país.4 Além disso, um sistema
de cursos de lideranças e de capacitação formava os coordenado-
res da PJ. A ideia principal era a de conscientizar o jovem sobre
os problemas sociais e mobilizá-lo para a ação social e política.
Essa ação deveria ocorrer através da criação ou participação nos
chamados “organismos intermediários” da sociedade, ou seja, nas
associações de moradores e também nos partidos políticos. Para
isso, seria necessário galgar os três degraus da formação da juven-
tude: nucleação, iniciação e, por fim, a militância (Oliveira: 2004,
84). Ainda que essa caminhada não fosse executada por todos os
jovens, ela tinha a intenção tanto de formar quadros sociais politi-
zados de esquerda como de fazer uma ligação umbilical do jovem
militante com a CEB à qual pertencia.
A PJ se manifestava plenamente nos moldes de uma pasto-
ral orgânica, com divisão piramidal composta por bispos, padres

4
Um nome de peso na produção de materiais de formação de lideranças engajadas
na TL é o do padre Jorge Boran, sendo seu livro mais famoso Juventude: o grande
desafio.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 155

e leigos, sendo que seus assessores eram todos adultos. Suas prer-
rogativas de participação política se encontram nos documentos
do Celam. A PJ teria como proposta: “a) Fomentar nos jovens o
senso crítico e a capacidade de analisar a realidade cultural e so-
cial do mundo onde vivem. [...] c) Ajudar o jovem a integrar sua
dimensão de fé com o compromisso sociopolítico” (Celam: apud
CCJ, s/d, 19).
Os materiais didáticos da PJ se apropriavam explicitamente
da vertente de esquerda da Igreja, comprometida com a TL. Esta
teve um papel importante na organização de militâncias jovens da
diocese de Nova Iguaçu que compuseram, em sua fase de matu-
ridade pastoral, os principais quadros na política de esquerda na
região. Esses militantes católicos apresentam-se hoje como base
do PT nas áreas compostas pela diocese, além de preencherem
papéis-chave em movimentos sociais locais.
Uma rede de atuação política surgiu, nos anos 1980, no
interior da PJ: a Rede Minka. Esse grupo se dedica à organização
política partidária, compromissada com as propostas da PJ.
Hoje a Pastoral da Juventude, em todas as suas instâncias,
não compõe mais a hegemonia no tocante à juventude católica.
O “Setor Juventude” da Igreja reservou para si esse trabalho, mas,
ainda assim, em setores sociais com grande participação de jovens
no mundo do trabalho, como no ABC Paulista, onde a PJO e a
PJMP organizam-se como forças políticas. Ainda que resistentes,
as forças politizadas da PJ sentem as mudanças ocorridas den-
tro da Igreja e, principalmente, nos próprios jovens católicos, não
mais tão interessados na luta política, e sim na busca de identida-
de e espiritualidade.
O desinteresse pela política e a opção de uma vivência reli-
giosa mais espiritualizada não configurariam um embate entre os
grupos carismáticos e a PJ, ou, como se dizia nos anos 1990 na PJ
diocesana de Nova Iguaçu, uma “infiltração” dos carismáticos e a
“alienação” do jovem. Os jovens teriam escolhido outras opções
156 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

de participação na Igreja, como pode ser visto na ênfase na música


católica feita pelos carismáticos. Se as lideranças jovens nos dias de
hoje têm 20 anos, nasceram na década de 1990 – período culmi-
nante do envolvimento de esquerda na PJ –, portanto não conhe-
ceram, na prática, a ideia da pastoral daqueles anos. Os militantes
pastorais que agregavam nos anos 1990 hoje estão na casa dos 40
anos – nascidos nos anos 1970 –, distantes da base de formação
jovem ou mesmo das CEBs. A diferença entre os valores dessas
duas gerações também deve ser levada em consideração para a
análise dos presentes acontecimentos dentro da PJ. Os nascidos
na década de 1970, segundo Regina Novaes (2006, 137), já se
distanciariam de uma religiosidade vinculada à instituição, bus-
cando uma religiosidade mais íntima. Quanto àqueles nascidos na
década de 1980, acreditamos que possuem os dilemas religiosos
de seu tempo: luta por direitos democráticos, ideologia de com-
bate à opressão política e liberdade de expressão, por exemplo.
Não é possível fugir do “espírito do tempo” (p. 143), que se abre
a possíveis “crises de identidade do militante cristão” (Andrade:
2004, 111).
Muitos dos militantes católicos participantes da PJ entre
os anos 1980 e 2000 no interior da diocese de Nova Iguaçu se
lançaram na vida política partidária, ainda que nem todos viessem
a se candidatar numa eleição. Outros o fizeram. Destes, alguns
obtiveram sucessos que devem ser analisados. A medida de in-
teresse por nós dispensada aos militantes partidários da PJ se dá
especificamente pelo potencial representativo que essas lideranças
obtiveram nas suas vidas na PJ, na militância católica e nos movi-
mentos sociais.
Um resultado direto da participação dos jovens da PJ na
militância partidária dos anos 1980 até os fins de 1990 se deu
efetivamente a partir dos anos 2000, com as eleições municipais
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 157

da cidade de Mesquita.5 Nossa atenção se desdobra sobre dois


militantes específicos: Artur Messias e André Taffarel, ambos
eleitos em pleitos municipais nos últimos anos por aquela cidade.
Tratamos de isolar esses atores por dois motivos: sua duradoura
ação política no seu município e por crermos que suas trajetó-
rias iluminam períodos específicos da caminhada politizada da
PJ na diocese: Messias representa a geração dos anos 1980, década
de politização ascendente da PJ e do nascimento do PT como
materialização partidária da juventude católica; Taffarel pode ser
considerado como um dos membros mais visíveis da juventude ca-
tólica no meio político do PT e do movimento estudantil de Nova
Iguaçu, representando a PJ da geração dos anos 1990, período
final da PJ politizada na diocese de Nova Iguaçu. Enquanto Mes-
sias se coloca numa posição de inauguração da política jovem e ca-
tólica de esquerda, Taffarel se localiza na curva decrescente, onde
a identidade política dos jovens católicos da região – grupo jovem-
-PJ-militância-PT – encontra outras opções de vivência religiosa,
disponíveis dentro da Igreja, não necessariamente militantes.
Artur Messias foi membro de grupos jovens na diocese de
Nova Iguaçu no final dos anos 1970, militou em importantes ca-
minhos católicos de esquerda nos anos 1980 – o grupo jovem
de sua comunidade, a associação de moradores – e fez parte da
fundação do PT em Nova Iguaçu. No partido, conseguiu eleger-
-se vereador por Nova Iguaçu, deputado estadual e prefeito do já
emancipado município de Mesquita por duas vezes – em 2004 e
2008 –, levando para a prefeitura um grande número de colabo-
radores egressos da Pastoral da Juventude, a maioria de assessores
que hoje compõem sua equipe. Ainda hoje possui laços pessoais
com a Igreja; foi amigo de longa data do padre Agostinho Pretto,

5
Deve-se ter em mente que o município de Mesquita, mesmo que tenha se eman-
cipado de Nova Iguaçu em 1999, ainda pertence à jurisdição da diocese de Nova
Iguaçu, assim como outros municípios, como Belford Roxo e Japeri.
158 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

assessor de Dom Adriano nos idos da ditadura, além de ter liga-


ções de amizade com o atual bispo da diocese, Dom Luciano.
Suas gestões sobrevivem com uma receita modesta de um
município sem grandes indústrias e de comércio mediano. Seu
atual mandato, que se encerra neste ano de 2012, vem sofren-
do críticas relativas principalmente à falta de água nos bairros da
cidade. A oposição municipal, expressa pelo jornal Panorama,
afirma que a prefeitura teria sucumbido ao apelo da corrupção,
abandonando a cidade às traças. Uma das mais graves acusações
ao prefeito é a do fechamento do Hospital São José, único hospi-
tal público do município, que até hoje não foi reaberto.
A trajetória de André Taffarel se inicia no município de
Nova Iguaçu e, em Mesquita, depois da emancipação, em 1999:
militante da PJ dos anos 1990, foi eleito vereador em 2000, reelei-
to em 2004, conseguindo nova vitória em 2008, as duas últimas
com o maior número de votos, tornando-se, assim, o presidente
da câmara dos vereadores de Mesquita por duas vezes consecuti-
vas. Fez parte da coordenação de PJ diocesana em Nova Iguaçu
nos anos 1990, aliando a caminhada católica à luta do movimen-
to estudantil no município de Nova Iguaçu, principalmente no
quinto distrito – atual município de Mesquita. Sua base de ação
é a área da Chatuba, onde ocorreu a chacina de jovens no mês
de setembro deste ano de 2012. Ele atuou junto à prefeitura em
prol do passe livre para os estudantes de escolas públicas munici-
pais, alcançando destaque. Hoje tenta se eleger prefeito da cida-
de, em substituição a Artur Messias. Sua campanha encontra um
importante opositor do município vizinho: Farid Abrão David,
membro da família do prefeito de Nilópolis, Simão Sessim, cujo
membro ilustre é Anísio, patrono da escola de samba Beija-Flor
de Nilópolis e considerado vinculado ao jogo do bicho, ativida-
de reconhecidamente ilegal. Segundo a assessoria do vereador, há
chances reais de vitória, dado o histórico de votação de Taffarel
nos últimos três pleitos.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 159

O que chama a atenção não é apenas a vitória dos ex-militantes


católicos a cargos legislativos e executivos, além de alguns outros
ocuparem postos de chefia em diversas secretarias municipais em
Mesquita, mas a permanência do discurso militante da Igreja
progressista nas falas dos atores citados nas entrevistas concedidas.
Segundo o pensamento do prefeito Messias, a sua caminhada segue
uma trajetória lógica dentro da ótica militante católica de onde
se formou: as CEBs. O mesmo ocorre com Taffarel, que, mesmo
com uma diferença de geração entre ele e o prefeito, ainda carrega
consigo a visão de mundo oferecida pela Pastoral da Juventude de
Nova Iguaçu. A Igreja Católica ainda possui laços muito fortes nos
municípios onde se organiza, pois não abandonou totalmente a
proposta popular progressista herdada dos tempos de Dom Adriano.
Mas, segundo cremos, as mudanças ocorridas no país a partir da
década de 1990 modificaram os movimentos de esquerda, tão
visíveis naqueles anos. A estabilização da economia, a pluralização
das esquerdas e a diversificação da prática católica teceriam um
novo paradigma explicativo tanto dos políticos católicos como do
catolicismo em si mesmo.
As possíveis mudanças na mentalidade política prática dos
candidatos católicos eleitos em Mesquita devem ser contextualiza-
das num horizonte de mudanças no PT, na Igreja Católica e, prin-
cipalmente, na realidade da sociedade brasileira. A vitória do PT e
suas alianças com antigos inimigos da espiritualização da prática
católica jovem, em detrimento de uma ação militante, e a melhoria
de vida nas classes menos favorecidas apontam para novas interpre-
tações sociológicas do catolicismo e da política no Brasil.
Assim como a realidade católica iguaçuana vivenciada no
período de Dom Adriano Hypólito se modificou, abrindo espaços
para diferentes vivências religiosas no interior da Igreja, a proposta
do PT também se torna diferente de sua imagem inicial. O catoli-
cismo de libertação da TL, ainda que existente na diocese de Nova
Iguaçu, não pode mais ser considerado como o único formato de
160 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

expressão da fé católica. Nos últimos trinta anos, o catolicismo se


modificou (Teixeira: 2009) não só no nível diocesano. Assim, as
demandas existentes no início dos anos 1980 não são mais tidas
como necessidades a serem sanadas no presente momento.

Considerações finais

Max Weber acredita que a religião pode dar sentido à vida


de seus fiéis não somente no que se refere às questões propria-
mente religiosas (Weber: 2004). No caso específico da análise da
Pastoral da Juventude, o carisma compartilhado por seus mem-
bros – a crença na eficácia “profética” e missionária da conscien-
tização política e social como forma de materializar o Reino de
Deus neste mundo (Boff: 1981; 1991) – como única forma de
ser Igreja se modifica ao longo dos anos, assumindo atividades
políticas partidárias e nos movimentos sociais nas comunidades.
A caminhada da Pastoral da Juventude, conseguinte à da Teologia
da Libertação, se insere num processo de racionalização do dis-
curso religioso, que, mesmo atrelado a uma realidade de formação
de comunidades e com base nos valores de grupo, produz a indi-
vidualização potencializando as lideranças e vanguardas jovens.
Essa caminhada rumo à individualização deve levar as tomadas
de decisão à ética da responsabilidade, afastando cada vez mais de
tomadas de decisão segundo a lógica da convicção.
A política do PT, nascida como fim óbvio da caminhada
dos militantes católicos iguaçuanos – e depois, mesquitenses –,
também sofreu reinterpretações com o tempo, se afastando de
uma leitura baseada num profetismo militante para a atuação
prática na arena político-partidária. Tomando como exemplo a
trajetória de Taffarel e de Messias, temos um primeiro afastamen-
to da proposta inicial da tradicional forma de governo do PT:
o orçamento participativo municipal, muito defendido pelo pró-
prio Messias no seu mandato de deputado estadual, foi deixado
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 161

de lado. A certeza do PT como segmento óbvio para o militante


católico foi posta em xeque quando Messias decidiu não apoiar a
candidatura de Taffarel a prefeito, perdendo para o consenso das
demais lideranças do partido. Sua escolha seria a candidatura de
seu vice, Paulinho Paixão, filiado ao PSB. Paixão é agora candida-
to a vice-prefeito na chapa de Taffarel.
Tendemos a crer que, com o passar do tempo, as escolhas
defendidas pelos antigos militantes da PJ em Mesquita serão
muito mais baseadas nas escolhas próprias da realidade política
empírica – o que envolve alianças antes impensadas, prioridades
avessas às ideologias comunitárias de base –, demonstrando um
pragmatismo político em detrimento das opiniões e crenças de
seus atores. Isso não deve ser visto como o abandono do discurso
religioso na prática política desses atores, mas sim como uma for-
ma diferente de lidar com a identidade religiosa, proposta pelas
mudanças ocorridas dentro da esfera católica no Brasil.

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v. 1.
Espionagem, inculpações e repressão
na Baixada Fluminense: a Igreja
Católica e a rede de subversivos

Abner Francisco Sótenos* 1

Este artigo tem por finalidade abordar o encaminhamen-


to e articulação dos movimentos sociais populares, em especial
aqueles vinculados à Igreja Católica na década de 1960, durante a
vigência da comunidade de informação e da comunidade de segu-
rança. Nosso lócus de estudo é o município de Nova Iguaçu, na
região da Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de
Janeiro. Destacamos aqui a atuação dos atores sociais vinculados
à diocese de Nova Iguaçu, que, seguindo as orientações do Con-
cílio Vaticano II (1962-1965),1 baseou sua política religiosa por
2

aproximar-se e fomentar as lutas dos segmentos populares na sua


localidade. Entre eles, o bispo Dom Adriano Hypólito, então au-
toridade legítima reconhecida pela comunidade, que contava com

*
Mestre em História Social pelo PPGHIS/IH/UFRJ.
1
O Concílio Vaticano II, XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, foi convo-
cado no dia 25 de dezembro de 1961, através da bula papal Humanae Salutis,
pelo papa João XXIII. Este mesmo papa inaugurou-o, a ritmo extraordinário, no
dia 11 de outubro de 1962. O concílio, realizado em 4 sessões, só terminou no
dia 8 de dezembro de 1965, já sob o papado de Paulo VI.
164 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

o apoio de uma ampla rede de aliados, incluindo desde sindicatos


e associações civis até intelectuais leigos e religiosos.
Nesse contexto, tentaremos descrever as estratégias adotadas
pelos órgãos responsáveis pela espionagem e repressão, que se apro-
priavam dos discursos locais e os distorciam a seu favor. Diante
disso, a alta hierarquia religiosa não teve alternativa para continuar
contribuindo com o bem-estar da comunidade senão mudar sua for-
ma de ação no campo da política na vigência do período ditatorial.
A complexidade das relações entre Estado, sociedade e Igreja Católi-
ca nesse período é abordada principalmente a partir de informações
coletadas do acervo documental do Arquivo Nacional e do Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), este recentemente
disponibilizado para consulta pública. São documentos produzidos
pelo aparato repressivo estatal, através das quais buscamos refutar a
suposição de que a Baixada Fluminense, na periferia do Estado do
Rio de Janeiro e visivelmente pobre, não teria atraído a atenção dos
agentes repressivos. Acreditamos que os discursos construídos pela
comunidade especializada de informação aqui referida podem ter
contribuído diretamente para os atos de violência sofridos por aque-
les que se envolveram com o questionamento da realidade política
e social daqueles tempos nada afeitos a críticas à ordem estabelecida
em 1964. Então, Nova Iguaçu, tal qual outras localidades do Brasil,
nos pareceu fortemente afetada pelo golpe militar. A despeito de sua
vulnerabilidade à repressão, ainda que situada num cenário aparen-
temente adverso, suas lideranças foram capazes de construir uma
rede de solidariedade e de luta contra as arbitrariedades do Estado.

A Igreja em tempos de ditadura

A atuação política da Igreja Católica no decorrer de sua


existência nunca se deu de maneira homogênea, sobretudo no que
se refere ao autoritarismo e à repressão. Durante os anos em que o
Brasil viveu sob o regime militar, não foi diferente. A instituição
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 165

eclesiástica estava entre aquelas que, temendo as supostas tendên-


cias comunistas do presidente João Goulart, na década de 1960,
apoiaram a campanha de desestabilização do governo, o que cul-
minou com o golpe de Estado em 1964. As Marchas da Família
com Deus pela Liberdade, que foram manifestações populares de
diversos setores da sociedade em todo o país, evidenciaram o en-
volvimento da Igreja, ao lado de políticos conservadores, da elite
empresarial e de movimentos de mulheres de classe média, no
incitamento da população católica à defesa dos tradicionais valo-
res cristãos. Todo esse movimento funcionou como um apelo à
intervenção das Forças Armadas2 para “salvar” o país da ameaça
1

do populismo, da corrupção e do comunismo que julgavam pairar


sobre suas cabeças. Nesse sentido, o golpe foi dado sob o pretexto
de combater a “crise moral” que assolava o país, em nome da “de-
mocracia” e da “civilização ocidental cristã”.
A “concordata moral” entre a Igreja Católica e o Estado da
segurança nacional colidiu com o desenvolvimento da ditadura e
a polarização política daqueles anos autoritários, como destacou o
historiador Kenneth Serbin, ao afirmar que,

enquanto a polarização levava à violência e os militares aprofun-


davam o controle sobre o país, a Igreja realizou uma revolução
religiosa na qual enfatizava a justiça social e assimilava os esfor-
ços de uma nova geração de radicais católicos (2001, 87).

Dito de outra forma, alas importantes da Igreja brasileira


passaram por um processo de mudanças que a colocou durante o
período de maior repressão como um dos poucos setores de opo-
sição às arbitrariedades do regime vigente. No período de maior

2
Uma análise do intervencionismo das Forças Armadas, vistas como um poder
moderador para restabelecer a ordem do sistema político em momentos de crise,
foi feita por Alfred C. Stepan, em Os militares na política (1975).
166 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

autoritarismo, segmentos católicos tiveram importância significa-


tiva no apoio e fomento de movimentos contestatórios à ordem
estabelecida. Desta feita,

não podemos nos contentar com o modo sempre ligeiro com


que a presença da Igreja é tratada pela literatura específica sobre
os movimentos sociais, como se fosse um mero “agente externo”,
“mediador” ou “articulador social”. Mesmo porque ela não foi
simplesmente a “boa mãe”, que emprestou seu teto e deu gene-
rosa proteção em tempos autoritários: sua ação foi persistente e
sensivelmente redobrada durante o período de liberalização do
sistema político, somente declinando gradualmente, junto com
a curva do ciclo reivindicativo, a partir da segunda metade da
década de 80 (Doimo: 1995, 149).

Como uma das poucas instituições que não sofreram inter-


venção direta dos governos militares, a Igreja, juntamente com enti-
dades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), além do próprio partido de oposição,
o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), tiveram importân-
cia significativa nas atividades da chamada “resistência democráti-
ca” (por contraste com a “luta armada”) ao regime militar.
A partir do momento em que a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) posicionou-se contrariamente ao re-
gime militar, no final dos anos 1960, os bispos e padres mais
afinados com tal posicionamento (que passariam a ser identi-
ficados como “clero progressista”) tornaram-se um dos alvos
diletos da repressão. Na perspectiva do regime, a nova postura
assumida pela instituição fez com que a Igreja fosse vista como
“um verdadeiro exército, contando com 5.577 paróquias, 276
bispos, 12.647 padres e 42.671 outros religiosos (os números são
do CISA) e estava se aproximando demasiadamente do comu-
nismo” (Fico: 2001, 195-6).
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 167

No bojo da reforma conservadora do Estado e da montagem


do aparato repressivo, em 1966, Adriano Mandarino Hypólito foi
ordenado bispo da diocese de Nova Iguaçu, no estado do Rio de
Janeiro. Sua ordenação ocorreu concomitante ao fechamento de
importantes canais de expressão e contestação usados por diversos
grupos sociais para protestar contra a montagem do arbítrio pelo
governo ditatorial. Em função desse panorama político, setores da
Igreja tiveram papel decisivo na luta por justiça social e ampliação
dos direitos humanos. A mesma instituição que fizera parte do
conjunto de forças que apoiou o golpe em 1964, e que lançou mão
inclusive de um manifesto contraditório nesse mesmo ano, mais
tarde rechaçou a “concordata moral” daqueles primeiros tempos.
Assim, a Igreja Católica passou a contestar as arbitrariedades
realizadas sob os auspícios do novo regime. Nessa mesma perspecti-
va, a diocese de Nova Iguaçu, através da sua linha pastoral pautada
na constituição de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) já sob a
influência do Concílio Vaticano II (1962-1965), incentivou a for-
mação de um aparato teológico baseado na luta contra as injustiças
e pela constituição de espaços de lutas oposicionistas. O debate so-
bre a pobreza passou a ser cada vez mais politizado. Não dizemos
de sua mera existência, mas a sua percepção e o entendimento de
que, em última análise, era ela a causadora de grande parte do sofri-
mento da população que ali residia. Essa percepção contribuiu para
a mobilização cada vez maior dos setores populares e do clero local.
Assim como em várias regiões do país, na cidade iguaçuana as lide-
ranças religiosas foram ficando mais sensíveis às lutas empunhadas
pelo povo. Nesse sentido, concordamos com a tese de que

a carência por si só não produz movimentos sociais. [...] [Ele]


resulta, portanto, da subsequente transformação dos sujeitos em
atores políticos, da respectiva transformação das carências em
demandas, dessas demandas em pautas políticas, em ações de
projetos (Scherer-Warren: 2012, 54).
168 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Nova Iguaçu vivenciou, durante a segunda metade dos anos


1970, o crescimento significativo de mobilizações sociais popu-
lares, que teve contribuições dos mais variados matizes: a Igreja
local, a cultura política de esquerda presente na região desde os
anos 1950, sobretudo no campo, e o papel dos militantes da es-
querda revolucionária, que, após o desmantelamento da luta ar-
mada, adotaram como estratégia de enfrentamento da ditadura
o trabalho de “massas”, ou seja, a tentativa de se inserirem nas
organizações populares nos mais diversos estados do país.3 Desse
fato decorre que alguns desses militantes migraram para os muni-
cípios da Baixada Fluminense, com o sentido claro de fomentar
espaços de lutas nos sindicatos e nas associações de bairros. Assim,
esses grupos ressaltavam que era preciso “ter claro que o elemento
principal de sua atuação no interior das pastorais é [era] de agitar
a plataforma de luta local e o Programa de Resistência”.4
A dinâmica política daqueles anos, associada à nova dimen-
são teológica da Igreja, possibilitou mudanças significativas na for-
ma do fazer político no município. Os grupos populares nos bairros

3
Para o ano de 1975, o território municipal estendia-se por uma área de 764
km² e estava dividido em seis distritos: Nova Iguaçu (sede), Queimados, Vila de
Cava, Belford Roxo, Mesquita e Japeri. Apresenta uma topografia perfeitamente
definível pela Baixada da Guanabara, comumente chamada Baixada Fluminense,
que, após o seu saneamento – a partir de 1933 –, permitiu um extraordinário
crescimento populacional e aglutinação da área urbana de Nova Iguaçu ao or-
ganismo metropolitano constituído em torno da cidade do Rio de Janeiro. Em
1920, o município de Nova Iguaçu tinha 33.396 habitantes (incluía então os
atuais municípios de Duque de Caxias, Nilópolis e São João de Meriti) e passou,
em 1975, para 931.954 habitantes, tornando-se, assim, o oitavo município mais
populoso do Brasil (no ano de 1922, em estimativas feitas para Vila de Iguaçu,
criada em 1833, haveria 6.000 habitantes que, cinquenta anos depois, seriam
aproximadamente 900.000, representando um aumento, no período, de mais de
1.500%). Cf. Sotenos: 2013, 86.
4
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Partido Comunista do
Brasil – Ala Vermelha. Autocrítica (1967-1973). Darf, AV, DDI-I, doc. 21. Ja-
neiro de 1974, p. 5.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 169

contribuíram para o avivamento político da Igreja local, constituin-


do uma via de mão dupla em que a alta hierarquia religiosa católica
influenciou os movimentos, ao mesmo tempo em que também foi
influenciada pela base popular. De acordo com o bispo,

com 14 anos consecutivos de Baixada, posso dizer que aqui me


encontrei comigo mesmo e com minha vocação sacerdotal, que
aqui passei por uma conversão profunda e pessoal, que no con-
texto com o povo sofrido e bom da Baixada descobri a Igreja e
Jesus Cristo (Vozes: 1981, 66).

A conversão a que o bispo se refere é que permitiu o apoio e


fortalecimento de inúmeras iniciativas feitas pelos diversos grupos
populares na cidade e, por isso, lhe custou um preço alto, pois foi,
assim como outros setores e pessoas, vítima das arbitrariedades
cometidas naquele período. Segundo Fico,

os religiosos e os jovens eram inimigos diletos do regime militar,


et pour cause da comunidade de informações. A alta hierarquia
católica, depois do apoio inicial ao golpe de 64, horrorizou-se
com os “excessos”, isto é, com a tortura e o assassinato de presos
políticos oriundos da classe média e das elites intelectuais. Em
função disso, posicionou-se contra a ditadura militar, sobretudo
a partir do momento em que membros do clero foram atingidos
por medidas de repressão (2001, 166-7).

A abertura entre projeto e processo: uma crítica ao volunta-


rismo militar

A segunda metade dos anos 1970 marcou o início e de-


senvolvimento do longo processo de distensão política no Brasil,
não exclusivamente em decorrência do discurso de posse do pre-
sidente Ernesto Geisel, que se comprometeu com a “abertura”.
170 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Esse comprometimento era prática entre os presidentes ditadores


do período quando começavam seus respectivos mandatos. Nes-
sas ocasiões, lançavam propostas de passá-los aos civis, fato esse
concretizado somente ao término do desgastado governo do ge-
neral João Batista Figueiredo (1979-1985). Esse período marcou
ao mesmo tempo o recrudescimento das vozes que se levantaram
contra a ditadura e que constituíram uma oposição significativa,
não só ao período de exceção em si, mas aos próprios caminhos
que os militares e civis comprometidos com a ditadura quiseram
construir no processo de distensão.5
A historiografia especializada produzida nas duas últimas
décadas sobre o processo de transição política é consensual ao
apresentar uma preponderância dos atores políticos militares e ci-
vis identificados com o regime, atribuindo-lhes um controle qua-
se total da dinâmica política desses tempos. O presidente Geisel e
o seu ministro chefe do Gabinete Civil, general Golbery do Cou-
to e Silva, são vistos como os verdadeiros e praticamente únicos
responsáveis pela abertura. Afirmações como a do jornalista Elio
Gaspari, de que “Geisel, o único a não fazer essa promessa, aca-
bou com a ditadura [...] ao longo de um processo que culmina no
dia 12 de outubro de 1977 – desmantelou o regime” (2002, 35),

5
Ao procurar apontar a gênese da distensão, Fernando Henrique Cardoso (1980)
vislumbrou pelo menos quatro vertentes interpretativas: a “estratégico-conser-
vadora”, que aponta ter sido a mudança do regime uma resposta à necessidade
estratégica no sentido de evitar o “desgaste de poder”; a “estrutural crítica”, que
aponta que o processo distensionista era inexorável, pois o governo perdera sua
base de “sustentação civil” junto com a crise do petróleo de 1973 – que sinalizava
o esgotamento do modelo econômico. Na vertente “liberal democrática”, não
é a crise, mas o êxito econômico que explica a erosão da legitimidade. Assim,
o modelo de desenvolvimento adotado gerou transformações que ampliaram o
espectro das demandas da sociedade civil. O último modelo referido é o que
procura explicar a distensão com base na “crise de hegemonia”, já que tal vertente
valoriza a articulação de forças externas ao Estado, como os movimentos sociais
que ganharam força com a distensão.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 171

são portadoras desse tipo de análise. A promessa a que se refere o


autor é aquela feita por dois dos três presidentes que o antecede-
ram, notadamente Humberto Castelo Branco e Costa e Silva, de
entregar o governo aos civis. Ao afirmar que Geisel acabou com a
ditadura, auxiliado por seu ministro Golbery, não sobraria espaço
para nenhum tipo de medida que não tivesse sido calculada carte-
sianamente por esses dois personagens, diminuindo dessa forma a
importância de outros atores políticos.
No entanto, o que chama a atenção nesse tipo de análise,
também partilhada por muitos estudos acadêmicos,6 é a dose de
voluntarismo dos próceres da ditadura brasileira. Esse aspecto tem
aparecido nos últimos anos com muita força, pois enfatiza o enfo-
que “micropolítico”, que privilegia a “qualidade das lideranças, as
escolhas racionais e os recursos dos atores, bem como os efeitos da
interação de suas estratégias na configuração das transições para o
regime democrático” (Arturi: 2001, 13).
Durante algum tempo, a historiografia que procurou tratar
do desgaste da ditadura e a oposição aos seus aspectos político-
-sociais, enfatizando os desdobramentos econômicos como sendo
os fundamentais, apontava que o fim da ditadura deveu-se sobre-
tudo ao esgotamento do modelo econômico implantado a partir
de 1968, notadamente o “milagre econômico”. Ao privilegiar as
variáveis sociais e políticas – nível de desenvolvimento econômi-
co, estrutura de classes, fases de industrialização –, esse tipo de
abordagem acabou sendo determinista e, às vezes, finalista. Na
tentativa de superar essa abordagem macroeconômica/estrutu-
ralista, construiu-se uma interpretação que considerou de forma
excessiva as escolhas dos agentes políticos, deixando de perceber
que algumas delas acabaram sendo possíveis em função da própria
cultura política do país.

6
Para consultar essa visão, ver Couto, Ronaldo Costa: 1998; Skidmore, Thomas:
1991; e D’Araujo, Maria Celina & Castro, Celso (orgs.): 1995.
172 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

O modelo de abertura que se buscou implantar no Brasil


deveria ser capitaneado pelo Estado e “feito de cima para baixo”,7
procurando deixar, principalmente para os militares, um legado
que não fosse danoso para aqueles que estiveram ao lado do go-
verno, tese essa vinculada à ideia de redução dos custos para os
militares, caso a ditadura se estendesse.8 A Lei de Anistia de 1979
marcou muito bem a tônica do processo.9

Essa lei resultou de uma grande transação entre setores mode-


rados do regime militar e da oposição, por iniciativa e sob o
controle dos primeiros. [...] Tratava-se de preparar a transição
do regime, não necessariamente para outro qualitativamente di-
ferente, mas para outra forma, que incorporasse novas formas
políticas, sem descartar a tutela militar (Lemos: 2002, 293).

7
“Desde 1972 discutiam-se, no governo, alternativas formais de mudanças po-
líticas. Em 1973, a pedido de Leitão de Abreu, chefe da Casa Civil, o cientista
norte-americano Samuel Huntington escreveu um documento intitulado Méto-
dos de descompressão política, debatido por políticos intelectuais brasileiros” (Reis
Velloso, João Paulo dos: 2004, 137).

No entanto, vale salientar que a dinâmica política não se enquadra em esquemas
predefinidos, o que conferiu ao processo um conjunto de nuances que afasta a
ideia de controle absoluto do governo.
8
É reconhecido o papel da Lei de Anistia de 1979 no que se refere ao relativo apa-
ziguamento das tensões no período de abertura, possibilitando o melhor enten-
dimento nas negociações entre os setores opositores moderados e o governo. Ao
mesmo tempo, deve ficar enfatizada a importância que teve para a impunidade,
à medida que consolidou a não culpabilização dos responsáveis pelo arbítrio.
9
É bem sabido que a campanha pela anistia surgiu no contexto da “abertura”, que
em 1975 foi criado o Movimento Feminino pela Anistia e que essa campanha foi
ganhando cada vez mais adeptos, até que em 1978 formou-se o Comitê Brasilei-
ro pela Anistia, lançado no Rio de Janeiro com o apoio do general Perry Bevilac-
qua, punido em 1969 pelo AI-5. Ver, de Carlos Fico, “A negociação parlamentar
da Anistia de 1979 e o chamado ‘perdão aos torturadores’”. Texto disponível em
<www.ppghis.ifcs.ufrj.br>.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 173

O projeto que o governo Figueiredo havia enviado ao Con-


gresso em junho de 1979 foi visto na ocasião como um avanço
por alguns setores da oposição, embora as questões envolvendo o
perdão aos militares que praticaram torturas, os chamados “cri-
mes conexos”, presente no artigo 1º da Lei de Anistia, incluiria de
forma ambígua o perdão àqueles que cometeram tais crimes. Esse
ponto foi sem dúvida um dos grandes motivos de discórdia entre
os interessados, notadamente o governo e a oposição. Mas seto-
res importantes da oposição acabaram cobrando dos membros do
MDB no Congresso Nacional que não criassem entraves à sua
aprovação, como podemos perceber no documento enviado por
Therezinha Zerbine, líder do Movimento Feminino pela Anistia:

Nossos companheiros da oposição democrática, que há tantos


anos suportam o duro embate com os representantes mais es-
treitos do pensamento governista, sabem da responsabilidade
histórica que pesa sobre seus ombros e, conscientes do gesto que
realizam, não obstruirão o decreto da anistia do governo, porque
seu interesse maior é a felicidade do povo e não uma inútil e
contraditória confrontação (Fico: s/d, 5-6).

É fato incontestável que a referida Lei de 1979 foi aprovada


tal qual enviada pelo governo. Contudo, não devemos hoje omitir
que foi resultado de tensões de vários setores, não no tocante à sua
redação, e sim à sua existência e ao seu encaminhamento à votação
naquele momento. Isso deve demonstrar não o controle absoluto
dos primeiros, ou seja, do governo, sobre a oposição, noção que
nos levaria a corroborar a tese de que o “projeto militar” tenha
sido posto em prática tal qual foi pensado pelos seus propositores.
Do ponto de vista dessa reflexão, nos parece que a sua apro-
vação parecia aos olhos do governo uma forma de indicar sua dis-
posição à abertura e um meio de aprovar uma medida simpática
à sociedade. É sabido que inicialmente o governo tentou evitar a
174 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

volta de algumas lideranças políticas do pré-1964, entretanto, em


função dessa dinâmica e do protagonismo de setores significativos
da oposição, isso acabou não acontecendo.
Ernesto Geisel, diferentemente de seu antecessor, que bus-
cou a legitimidade de seu governo principalmente com o projeto
de “Brasil potência”, procurou legitimar-se como sendo o governo
que devolveu a normalidade institucional ao país. Ele próprio aju-
dou a construir em torno de si uma marca: a de ser o presidente
da abertura. De fato, seu governo teve papel fundamental nessa
construção, de modo que criticar a visão voluntarista não significa
desconsiderar a importância do Planalto nesse processo.
Como mote central deste trabalho, destacamos dois aspec-
tos em especial interessantes nessa conjuntura, os quais poderiam
ser considerados vetores principais da análise aqui proposta. O
primeiro diz respeito à rearticulação dos movimentos sociais po-
pulares, depois de um período de forte repressão que levou à de-
sarticulação de muitos deles. O segundo alude à atuação e funcio-
namento da “comunidade de informações” e da “comunidade de
segurança”. Embora os canais institucionais de participação po-
lítica, como os sindicatos e partidos, continuassem bastante cer-
ceados, o projeto de distensão política iniciado com o governo de
Ernesto Geisel deu uma margem de manobra maior para a atua-
ção política mais ofensiva por parte dos segmentos oposicionistas.
Contudo, deve ficar claro que no pré-64 e mesmo depois
do golpe, pelo menos até a decretação do Ato Institucional nº 5
(AI-5), as mobilizações sociais foram bastante intensas no Brasil.
Na região da Baixada Fluminense, esse período foi muito profícuo
nesse sentido, como fica evidenciado na fala de um dos agentes
que participaram de movimentos sociais reivindicatórios no perí-
odo da abertura:

Podemos falar de uma rearticulação, pois na Baixada já existiam


associações de moradores desde a década de 1950. No bairro
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 175

que eu morava, o Jardim Redentor, a associação foi fundada em


1958, e tem um bairro mais próximo, chamado Jardim Gláu-
cia, que a associação – que existe até hoje – é de 1956. Quero
dizer que já existia anteriormente um trabalho de associação de
moradores naquela região, centros comunitários, centros pró-
-melhoramentos, em Caxias também já havia associações (Maia;
Macedo & Monteiro: 2007, 15-6).

Podemos encontrar elementos que apontam a existência


de mobilizações populares na região antes mesmo do golpe de
1964. Muitos registros da repressão remetem a elas já na década
de 1950, ao fazerem referência a Bráulio Rodrigues da Silva, lide-
rança do Movimento Amigos de Bairro (MAB) de Nova Iguaçu.
Escreve o agente:

Em 1954, [Bráulio Rodrigues] realizava reuniões comunistas e


fazia agitação em várias fábricas. Líder dos camponeses de Nova
Iguaçu, assinante da revista Sindicato da Ramania, representante
da Federação de Pequenos Lavradores da Unc, do Conselho Fis-
cal da Associação dos Lavradores, presidente da Federação Flu-
minense das Ligas Camponesas. Candidato a vereador da chapa
dos candidatos populares.10

Nosso segundo vetor de análise é o aparato de espionagem,


do qual enfocaremos alguns pontos necessários à melhor compre-
ensão desta teia de relações que parecem díspares. Esses órgãos,
que funcionavam durante a ditadura, buscaram legitimar-se no
momento da abertura e, em função disso, muitos dos seus mem-
bros foram responsáveis pelas ações truculentas que, por um lado,
visavam desarticular o governo, intimidar pessoas e instituições

10
APERJ – Prontuário 2214772/2, cx. 3032 (aberto em 17 de dezembro de 1957)
– s/p. DPPS/RJ/Interior 1979.
176 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

reconhecidamente comprometidas com a distensão; por outro,


justificar a sua permanência.
Uma das grandes dificuldades do processo de “abertura po-
lítica” foi justamente a desmontagem desses setores da repressão.
Com o processo de “abertura”, esses grupos se sentiram despresti-
giados e ameaçados pelo próprio governo, depois de terem presta-
do, no entendimento deles, um “grande serviço” à causa da “Re-
volução”. Assim, uma das estratégias usadas pelos seus integrantes
para evitar o fim da comunidade de informações e de segurança
foi denunciar a existência de uma suposta ameaça “subversiva”
nos movimentos sociais que surgiam naquela fase. É o que pode-
mos perceber no registro abaixo:

Segundo documento [...] consta que o Partido Comunista Bra-


sileiro estava infiltrando elementos de sua confiança nas Associa-
ções de Bairros com o fim de manipulá-los a seu bel-prazer. Em
Nova Iguaçu, o nominado [Bráulio Rodrigues] notoriamente co-
munista, apoiado pelo bispo Adriano Hypólito, controla todo o
movimento de bairros, estando inclusive exportando know-how
para outros municípios, onde já foi detectada sua presença, caso
de Cachoeira de Macacu, Friburgo e etc.11

Para alguns setores militares e civis, era necessário criar uma


coordenação da repressão superior às polícias existentes, visto que
não bastaria espionar aqueles indivíduos tidos como ameaça à or-
dem instaurada pelo golpe: seria necessário sobretudo paralisar
suas ações.
Por isso, outro aspecto importante para entender o funcio-
namento da ditadura militar brasileira é analisar as instâncias que
executaram as ações repressivas perpetradas durante a vigência
do regime. A montagem de um aparato repressivo amparou-se

11
APERJ, série Comunismo, pasta 157, f. 6, 1981.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 177

“naquilo que podemos chamar de ‘pilares básicos’ de qualquer


ditadura: a espionagem, a polícia política e a censura. Subsidia-
riamente, contaram também com a propaganda política” (Fico:
2003, 175).
Em junho de 1964, foi criado o Serviço Nacional de Infor-
mações – SNI (Brasil: 1964), que esteve em atuação até o ano de
1990, quando foi extinto (Brasil: 1990). Seu papel foi o de coor-
denar os vários órgãos de informações e contrainformações, além
de gerar pareceres que, em articulação com os órgãos propriamen-
te de repressão, produziam “verdades” e inculpações sobre aqueles
vistos como inimigos do Brasil. É importante fazer uma observa-
ção sobre os órgãos, que, mesmo trabalhando em conjunto, ti-
nham as suas atribuições bem definidas.
Referimo-nos aos órgãos responsáveis pela produção de in-
formações, as chamadas “operações de informações”, e os respon-
sáveis pelas “ações de segurança”. Bem entendido deve ficar que as
primeiras, “operações de informações”, eram nomeadas como um
eufemismo usado pelo regime para encobrir o que na prática eram
as ações de espionagem, e as segundas, “ações de segurança”, para
ocultar a prática de prisão, tortura e interrogatório.
O SNI não foi um órgão propriamente de operações. Em-
bora esteja claro que seus agentes tenham realizado “operações de
segurança” (IstoÉ: 2004), sua atuação inicial era fornecer o má-
ximo de informações ao presidente da República e, com o passar
do tempo, a partir de 1970, com a criação do Sistema Nacional
de Informações (Sisni), municiar o aparato da repressão, como
podemos perceber no informe abaixo:

Na região Pedra Lisa, próximo a Nova Iguaçu-RJ, região que


só tem uma entrada e uma saída, existe reunião de elementos
subversivos que, inclusive, teriam feito curso de Guerrilhas em
Cuba. No Cemitério Velho de Nova Iguaçu-RJ, existem sepultu-
178 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

ras com a laje em cimento “novo”, fresco, provocando suspeitas


de que ali haja material enterrado.

Para alguns setores militares e civis, era necessário criar uma


sistematização, visto que não bastava espionar aqueles indivíduos
tidos como ameaças à ordem recém-estabelecida; era necessário,
sobretudo, puni-los.
Parece-nos necessário fazer a distinção entre as diversas esfe-
ras de atuação dos mais variados órgãos e instituições do período
ditatorial e, ao mesmo tempo, deixar claro que não agiram da
mesma forma e nem sequer existiram durante toda a ditadura.
Outro ponto significativo é destacar que, mesmo no interior da
comunidade de informações, houve tensões entre os agentes que
dela faziam parte, ou ainda entre os órgãos de repressão e os de
produção de informações, ainda que tenham sido pensados para
atuarem de forma articulada. A subordinação de um órgão a outro
muitas vezes era conflituosa, por mais que estejamos falando de
instituições rigidamente hierarquizadas e de estruturas portadoras
de controle externo superior. Justamente por isso devemos rejeitar
a tese sustentada pelos militares da alta hierarquia de que as tor-
turas, assassinatos e outras arbitrariedades cometidas foram frutos
dos “excessos” e “abusos” de seus subordinados – o que explicaria
a tortura como decorrência de desvios individuais e não como
uma sistematização do aparato estatal.

A Igreja vigiada: a visão da comunidade de informações


sobre a atuação político-religiosa de Dom Adriano
Hypólito (1974-1985)

Depois de demonstrado o modus operandi desses órgãos


responsáveis pela espionagem e repressão, é importante perceber
como o discurso produzido pela comunidade especializada pode
ter municiado os agentes propriamente da repressão contra as ins-
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 179

tituições vinculadas à doutrina religiosa e política da diocese de


Nova Iguaçu e toda a rede contestatória que se articulou em torno
da instituição.
Na grande parte da documentação produzida pela comu-
nidade de informações sobre esses agentes político-religiosos, foi
possível verificar que, para seus integrantes, Dom Adriano Hypó-
lito e sua vasta rede – que incluía sindicatos rurais, sindicatos ur-
banos, associações de moradores, intelectuais leigos e religiosos
– eram um todo “subversivo” dentro da Igreja, não faltando ad-
jetivos depreciativos e a tentativa de retirar a legitimidade moral
religiosa que revestia o bispo.
Uma das primeiras informações com a qual tivemos con-
tato foi um relatório produzido pela agência central do SNI que
trata da formação religiosa do bispo, apontando que, quando

tomou posse como bispo diocesano [...] foi difundido, como


recordação, o seu brasão de armas, idealizado pelo irmão [...],
especialista em heráldica religiosa. A combinação da foice e da
cruz, adotadas por D. Adriano Hypólito, para simbolizar o seu
trabalho pastoral, como, acertadamente, observou a revista Vi-
gília Romana de jul./ago. 72, sintetiza o “progressismo católico
marxista”, do qual é seguidor.12

A vinculação ao suposto movimento marxista foi fruto da


tentativa de tais órgãos de informação de criar registros que asso-
ciassem o bispo ao conjunto de religiosos tidos como nocivos ao
país. Para a ditadura, a sua chegada à região e as inscrições de seu
brasão já demonstravam que desde o primeiro momento trava-se
de um religioso marxista, dessa forma, inimigo do regime. Dessa
concepção decorre a contínua espionagem sofrida pelos membros

12
Informação SNI nº 503/19/AC/75. APERJ: série Informações, pasta 155, ff. 66-
71, 1978.
180 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

da diocese de Nova Iguaçu, a fim de se provar seu envolvimento


em ações tidas como contrárias à manutenção da ordem.
Assim, em 1974 o SNI/RJ recomendou a constante espio-
nagem sobre o bispo e o acompanhamento de suas ações por parte
dos órgãos de repressão. Apontava que, “pelas características de seu
comportamento e pela importância de sua diocese, merece cons-
tante acompanhamento dos órgãos de informações e segurança”.13
Nos levantamentos que fizemos, a referência mais longín-
qua que encontramos sobre informações a respeito do bispo e de
membros da diocese foi de 1974. É muito provável que a espio-
nagem tenha sido iniciada muito antes desse ano. O intuito da
comunidade de informações era alimentar, com sua produção, os
diversos órgãos articulados e, assim, propagar um juízo negativo
sobre as pessoas ou instituições ligadas à diocese. A respeito do
bispo e de suas publicações no periódico diocesano, apontava que

suas atitudes o identificam como reformista. Através do jornal


de sua diocese, A Folha, critica insistentemente os órgãos do Go-
verno Federal, objetivando criar no fiel o sentimento de revolta
contra as autoridades do país, pela ação psicológica negativista
que aplica.14

A reiteração era a principal técnica de inculpação da comuni-


dade de informações. Registrava-se uma suspeita e outra, tornando-
-as “fatos”, e providenciava-se sua circulação entre os diversos órgãos
de informações. Podemos perceber essa prática num relatório pro-
duzido em 1978 pelo Departamento Geral de Investigações Espe-
ciais (DGIE), com base nos relatórios do SNI/AC e do CISA.

13
APERJ, Serviço Nacional de Informações/RJ, pedido de busca nº 059//74/ARJ/
SNI, Difusão: 1º Exército – SR/DPF/RJ – DOPS/RJ, Prontuário nº 32.444 –
gaveta nº 405, 1974.
14
Idem.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 181

A julgar pelos antecedentes subversivos do bispo de Nova Igua-


çu – como se pode verificar na leitura da informação supra – nº
503, de 20.08.75 da Agência Central do SNI e em outros docu-
mentos que temos sobre esse cidadão – sua visita ao governador,
cuja audiência teria sido devida ao [...] aparecimento de cadáve-
res nos municípios de Baixada Fluminense, e com que tanto des-
taque foi noticiado [...] servirá, pela repercussão que o assunto
em tela envolve, como mais um elemento do qual se valerá o
PCB para alimentar a campanha que move contra a SSP/RJ. E
Dom Adriano capitalizará para a campanha que, pessoalmente,
move contra o governo.15

Como pode se verificar acima, toda a produção ligada ao


bispo era identificada como “subversiva”, ou seja, de enfrenta-
mento ao regime, assim, a leitura da DGIE foi de não somente
confirmar as atitudes de Dom Adriano de forma negativa, como
vinculá-lo ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). A orientação
dada por esse órgão era dar conhecimento ao governador dos
antecedentes do bispo: “salvo melhor juízo, sugerimos que seja,
ao governador, dado conhecimento dos antecedentes do epigra-
fado [D. Adriano]”, ou seja, fornecer ao governador o dossiê de
inculpações produzido pela comunidade de informações,16 além
de recomendar a censura do periódico A Folha, por se tratar de
uma publicação “subversiva”, “esquerdizante” e de caráter estri-
tamente político.
Por volta de 1972, com a eliminação dos últimos focos de
guerrilha, era preciso justificar a existência de um aparato repres-
sivo da magnitude do Sissegin, pois mesmo que as informações
produzidas pela comunidade de informações transitassem entre os

15
Informação SNI nº 503/19/AC/75. APERJ: série Informações, pasta 155, ff. 66-
71, 1978.
16
Idem.
182 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

órgãos do governo e não entre o público em geral, o autoconven-


cimento entre as várias alas militares era seu principal objetivo. É
nesse sentido que podemos entender a comunidade como sendo
um corpo de especialistas17 responsáveis pela produção da ideolo-
gia autoritária.
Dessa perspectiva, podemos inferir sobre a articulação exis-
tente entre a “comunidade de informações” e a “comunidade de
segurança”, visto que,

no regime militar brasileiro, [...] esses órgãos [órgãos de reco-


lhimento e análise de informações] não se limitaram ao reco-
lhimento de informações estratégicas, mas integraram o sistema
repressivo da ditadura militar, fornecendo dados desvirtuados
sobre os brasileiros, julgando subjetivamente cidadãos sem di-
reito de defesa, participando de operações que culminaram em
prisões arbitrárias, tortura e assassinatos (Fico: 2001, 105).

Era importante para o governo apresentar a liderança do


bispo como sendo perniciosa para a região da Baixada Fluminen-
se, em particular, e para a segurança do Brasil como um todo.
Para tanto, a comunidade de informações também acusava outros
membros da Igreja local, como podemos perceber na informação
a seguir a respeito de dois padres da diocese. Após ser realizado o
levantamento de informações nos municípios de Nova Iguaçu,
São João e Volta Redonda, o agente chegou à conclusão de que
um deles encontrava-se na diocese de Nova Iguaçu

como responsável direto pelo Centro Pastoral e Catequese (Ce-


dec). É considerado, conforme informações obtidas naquela área,
como elemento subversivo e perigoso politicamente. É elemento

17
Para o entendimento de “corpo de especialistas”, ver Bourdieu, Pierre: 2003,
cap. I.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 183

de inteira confiança do bispo Dom Adriano Hypólito e um dos


principais mentores dos trabalhos das comunidades de base im-
plantados por Dom Adriano, na diocese de Nova Iguaçu.18

Ainda sobre a mesma investigação realizada sobre o padre,


o informante relata:

Durante o desenvolvimento das investigações, obteve-se infor-


mações [de] que o nominado estaria ocupando o cargo de vigário
da Paróquia de Santo Antonio, no bairro da Prata, distrito de
Nova Iguaçu, [e] para lá foram dirigidas as investigações, tendo
sido constatado que o vigário da referida paróquia é o não menos
agitador, padre.19

Os agentes encontraram nessa investigação dois padres “pe-


rigosos” sob a liderança do bispo, o que configuraria a diocese
como um covil da “subversão”. O emprego do adjetivo “agitador”
para caracterizar a atuação do padre, de acordo com o vocabulário
do CISA, significava atuação escrita ou verbal junto às grandes
massas, com a finalidade de inculcar ideias e lemas comunistas no
sentido de atraí-las para seus objetivos políticos e sociais (Ishaq:
2012, 55). A respeito das instituições apoiadas pela diocese, outro
relatório produzido em 1976 fez a seguinte observação:

Necessário se faz lembrar, que tanto o Movimento Amigos de


Bairro como a Comissão de Justiça e Paz de Nova Iguaçu, con-
gregam elementos subversivos e mantêm grande movimentação,
quase que diária no município contando com total colaboração
do bispo Dom Adriano Hypólito.20

18
APERJ, série DGIE, pasta 247, cx. 1220 – doc. 296, v. 1977.
19
Idem.
20
APERJ, série Município, pasta 152, f. 2069, cx. 626, doc. 2004, 1980. Difusão
CI/DPF–SI/ DPF1/NIT-I EX.
184 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Outra prática recorrente da comunidade de informação era


lançar sobre os investigados, tidos como culpados in limine, além
do apodo de “subversivos”, a alcunha de “imorais” e “mentiro-
sos”. Na ocasião do sequestro sofrido pelo bispo, em setembro de
1976, os relatórios dos investigadores afirmavam que

o atentado de que foi alvo Dom Adriano Hypólito, bispo de Nova


Iguaçu/RJ, meses passados, teria sido planejado pelo próprio pre-
lado com a ajuda de seu sobrinho Fernando [...], e executado por
pessoas de sua confiança. Os motivos seriam a promoção pessoal
de Dom Hypólito que assim teria maiores facilidades para suas
pregações esquerdizantes, pois comoveria a população.21

Para os agentes de informação, um aspecto na vida po-


lítico-religiosa do bispo era inquestionável: tratava-se de um
“subversivo”, “esquerdista” e usava a Igreja para difundir sua
pregação marxista. Na mesma linha, sugeria que o governo de-
veria acompanhar a publicação do periódico diocesano A Folha.
Afirmam os agentes:

Através deste periódico, consulta obrigatória para o acompanha-


mento da missa, é feito de maneira bastante sutil o subliminar
trabalho de conscientização dos católicos praticantes da diocese
acerca da realidade que integram e que é plena de necessidades,
de distorções e de incoerências. [...] numa linha de contrastes e
confrontos e de sofismas tais, que a Igreja, pouco envolvida nas
soluções avocando a si posição de “censora em nome do povo” e
de dona da “verdade” em consequência de sua autoridade, “in-
falível nos assuntos dogmáticos e doutrinários da região”, exerce

21
APERJ, série Informações, pasta 155, ff. 66/71, produzido pelo DARQ/DGIE
em 26 de junho de 1978.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 185

ação de, no mínimo, “inocente utilidade” na manutenção ou na


constante ampliação da ação subversiva na área.22

Verificamos que diversas vezes a comunidade recolhia


exemplares do periódico para servir de prova cabal de sua tese.
Em todas elas, a leitura feita pelos agentes era de que se tratava de
um meio utilizado pelo bispo para difundir suas posições contra o
governo, ora incitando a população católica, ora servindo de meio
para que os grupos de esquerda pudessem se utilizar da crítica
construída pela publicação.
A comunidade de informações pediu a censura do perió-
dico por entender que o bispo utilizava as missas e o panfleto A
Folha para disseminar na Baixada Fluminense a insatisfação dos
setores populares diante das mazelas que sofriam.
A visão construída pela ditadura a respeito do bispo e da
diocese em geral era que ali estava um dos maiores responsáveis
pela “subversão” ao regime instituído em 1964. A diocese abri-
gava da mesma forma padres, freiras e leigos que, por estarem
“comprometidos com a doutrina marxista”, não poderiam ser
considerados como legítimos representantes da Igreja Católica.
Ao acusá-los de conspurcar o catolicismo com o marxismo, a co-
munidade de informações abria espaço para a repressão direta des-
sas pessoas, na medida em que lhes retirava a relativa imunidade
simbólica que o manto protetor da Igreja Católica conferia.
Nesse aspecto, tal visão serviu para embasar, dentro do go-
verno, a convicção de que se fazia necessário tomar atitudes para
silenciar as críticas que partiam dos diversos agentes ligados à mi-
tra e ao bispo. Dessa convicção decorre o significativo silêncio e o
desinteresse da cúpula governamental em condenar publicamente
e investigar para punir os responsáveis pelas agressões sofridas pe-

22
APERJ, DGIE, pasta 247, cx. 1220, f. 5, doc. 20. Produzido pela Polícia Militar
em 1976, 20º BPM.
186 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

los membros da diocese, sobretudo o sequestro do bispo em 1976


e o atentado a bomba na catedral em 1978.23
Enquanto algumas medidas eram tomadas pelo governo
com o objetivo de liberalização, um grupo de militares, a denomi-
nada linha dura, presente nesse momento nos órgãos de repressão,
acusava o mesmo governo de favorecimento aos subversivos. Es-
ses militares continuaram a agir no sentido de desafiar o Planal-
to, declaradamente comprometido com a distensão, desta forma
gerando sua desestabilização, ao mesmo tempo com objetivo de
intimidar setores da oposição.24 Foi nesse contexto que ocorreu
o sequestro de Dom Adriano, único caso durante a ditadura mi-
litar de agressão física dessa envergadura a um alto membro da
hierarquia católica. Esse fato causou perplexidade em setores da
Igreja e na opinião pública. Segundo o religioso, seu sequestro e
os ataques sofridos foram resultado da escolha feita, pela Igreja em
Nova Iguaçu, de estar ao lado dos oprimidos:

Mas é verdade que a ótica deformada dos “revolucionários” me


fantasiou de marxista, de subversivo, de inimigo do regime. Está
nas atas já publicadas. Dentro desta deturpação situa-se o meu

23
Não sem motivo, na ocasião do sequestro e posterior explosão do carro do bis-
po, Dom Ivo Lorscheider, secretário geral da CNBB, que o acompanhou numa
entrevista coletiva concedida dias após o ocorrido, fez algumas reclamações sobre
a postura do governo de não emitir nenhuma nota à CNBB sobre o ocorrido:
“a gente esperava pelo menos uma palavra de conforto pelo acontecido, mas o
silêncio do governo foi total e estranho a nosso ver”. APERJ, série Informações,
pasta 155, ff. 66/71, produzido pela DARQ/DGIE em 19 de abril de 1978.
24
Partilho a tese de que

a estratégia de Geisel de contenção dos bolsões radicais mais sinceros, como
eram chamados pelos dirigentes militares, não se propunha a anular o de-
sempenho das funções repressivas do Estado. A intenção era a de recuperar
um clima político que evocasse o Estado de Direito, e para isso tornava-se
necessário obter um controle mais rigoroso sobre os aparatos de segurança
que desafiavam qualquer limite legal instituído (Carvalho: 2005, 132).
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 187

sequestro em 22 de setembro de 1976. Situa-se a explosão do


meu carro na mesma noite diante da sede da Conferência Na-
cional dos Bispos do Brasil, que era antigamente na Glória (an-
tes de ser transferida para Brasília). Situam-se os panfletos que
durante muito tempo distribuíram ou mandavam pelo correio,
caluniando e tentando amedrontar. Situa-se a explosão de uma
bomba, debaixo do altar do Santíssimo, na Catedral, em 20 de
dezembro de 78. Situa-se a falsificação de nosso semanário A
Folha. Situa-se a vigilância que durante muito tempo oficiais do
Regimento Sampaio, na Vila Militar, exerciam sobre mim, sobre
nossos padres e leigos engajados (O Dia: 1991).

Até hoje não se fez a identificação oficial dos responsáveis


por essas agressões, por mais que seja notório que elas partiram de
dentro do Exército. O governo parecia recear os danos que poderia
causar a identificação dos militares agressores. Segundo Gaspari,

os autores dos atentados não eram identificados porque o gover-


no temia o embaraço. Imaginando-se que uma ação fulminante
resultasse na descoberta do núcleo paramilitar que sequestrara
Dom Adriano, de duas uma: ou o caso ia adiante ou simulava-se
uma investigação (2004, 279).

Simulou-se uma investigação, que praticamente foi inter-


rompida antes da conclusão. O governo silenciou, como fez com
inúmeros casos de atentados e torturas cometidos durante os 21
anos de ditadura. A comunidade de informações e a de segurança,
como ficou demonstrado, agiam de forma articulada. Isso implica
dizer que, diante da imagem que foi impingida a Dom Adriano,
uma ação como o sequestro de que foi vítima pôde ser natural-
mente aceita dentro do governo como um desdobramento, se não
necessário, pelo menos provocado pelo próprio bispo.
188 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Considerações finais

A nova Lei de Acesso à Informação Pública, que entrou


em vigor no primeiro semestre de 2012,25 assim como a criação
da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instalada no mesmo
período, juntamente com o início dos trabalhos da Comissão Es-
tadual da Verdade no Rio de Janeiro, mostraram-se essenciais na
difícil e necessária tarefa de interpretação de elementos importan-
tes da História recente do Brasil. Além disso, a abertura do acervo
da APERJ e do Arquivo Nacional ratificou que estamos longe de
passar uma borracha por cima desse passado repressivo que luta
por um lado para não ser esquecido. Nas proximidades das come-
morações dos 50 anos do golpe de Estado que inseriu o país por
cerca de 21 anos numa experiência política, cultural e social extre-
mamente traumática, o acesso à informação tem sido facilitado,
permitindo o conhecimento de detalhes da história do Brasil que
poderiam permanecer silenciados. A partir desses e outros acervos,
muitos trabalhos vêm sendo produzidos a respeito dos efeitos do
período da ditadura militar em diversas localidades do país, entre
as quais os municípios da Baixada Fluminense. Como são pro-
duções que recorrem a variados tipos de abordagem, dimensões
e domínios da História, contribuem para uma visão ampliada do
panorama, compreendendo um pouco mais da “totalidade” da
realidade histórica.
Na avaliação da dinâmica política e social dos anos dita-
toriais na Baixada Fluminense – a partir da documentação pro-
duzida pelos órgãos do Estado, à disposição na APERJ e no Ar-
quivo Nacional –, concluímos que houve forte disposição dos

25
No dia 16 de maio de 2012, foi publicado o Decreto n° 7.724, sancionado pela
presidenta da República, Dilma Rousseff, que veio regulamentar a nova Lei de
Acesso à Informação (Lei n° 12.527, de 18 de novembro de 2011, permitindo
que as instituições públicas detentoras de documentos com restrições de acesso
liberassem tais documentos à consulta pública). Cf. Ishaq & Souza: 2012, 7.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 189

órgãos responsáveis pela espionagem e repressão durante grande


parte da ditadura em intimidar, cercear e reprimir agentes políti-
cos comprometidos com os direitos sociais e políticos. A pobreza
e a distância da capital fluminense não parecem ter isentado a
Baixada Fluminense dos interesses dos atores da repressão, que
se mantiveram atentos a qualquer movimentação naquela região,
espionando-a dia e noite. Ao contrário, suas características sociais,
políticas e mesmo geográficas alimentaram a crença dos militares
de que, exatamente por se tratar de uma localidade pobre e com
sérios problemas estruturais, ali estaria a maior chance da subver-
são e do uso dessa população como “presa fácil” do comunismo.
Obviamente não podemos negar que a rede de personalidades e
organizações da sociedade civil envolvida nas mobilizações popu-
lares, em consonância com a linha política da diocese de Nova
Iguaçu, incrementava esse interesse. Mais que isso, num período
ditatorial a articulação dessa rede provocou no aparato repressi-
vo uma deliberada tentativa de desarticular tais setores através de
intimidações e violações de seus direitos políticos e civis. Em tal
conjuntura, a postura da comunidade de segurança e informação
foi a de justificar a necessidade de continuar reprimindo, tendo
em vista a continuidade de uma suposta ameaça comunista. As
informações produzidas só reforçaram o ponto de vista de que a
atuação da diocese e dos integrantes dos movimentos populares
apresentava uma ameaça constante à segurança nacional.

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A secularização do Brasil na Primeira
República e a criminalização
do espiritismo

Adriana Gomes* 1

A fim de apresentar o debate sobre a criminalização do es-


piritismo na história do Brasil, fazemos um resgate de alguns dos
mais relevantes aspectos da instituição da laicidade no país nos
debates ocorridos nos anos finais da monarquia e, sobretudo, nas
ações do Governo Provisório no limiar da República.
As discussões concernentes à liberdade religiosa no Brasil
ganharam mais amplitude, sem dúvida, no advento da Proclama-
ção da República. No entanto, ainda no Império as argumenta-
ções relacionadas à liberdade de culto já ocorriam. As relações en-
tre a religião e o Estado foram definidas na Constituição de 1824,
que instituía o catolicismo como a religião do Império Brasileiro
e tolerava as demais confissões religiosas. Contudo, apesar de pri-
vilegiado em relação às demais religiões, o catolicismo também
encontrava alguns cerceamentos. A Constituição Imperial conce-
dia poderes ao monarca para regular a instituição religiosa. E essa

*
Mestre em História Política pela UERJ e professora da Secretaria de Estado de
Educação do Rio de Janeiro.
194 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

situação gerava mais tensão do que uma organização (Leite: 2011,


34). A relação entre o poder do Estado e o poder eclesiástico foi
se desgastando durante o Império. As oposições e mesmo confli-
tos entre o Estado e a Igreja foram gradativamente subjugando
o poder eclesiástico ao poder político do Estado e ficaram notó-
rios nos casos do “Cisma do Feijó”1 (1827-1838) e da “Questão
Religiosa”2 (1872-1875), que tiveram, por certo, influência na se-
paração entre o Estado e a Igreja no limiar do regime republicano.
Inicialmente, as confissões religiosas não católicas deveriam
proferir os seus cultos somente para os estrangeiros e em seus idio-
mas, portanto sem proselitismo. Além disso, seus cultos só pode-
riam ser realizados nos próprios lares ou em casas de orações sem
a ostentação de templos, para que não fossem reconhecidas como
igrejas cristãs através de símbolos que pudessem remeter a um es-

1
“Esse conflito girou em torno do celibato do clero, defendido pelo padre Diogo
Antônio Feijó e outros parlamentares, e da não confirmação por parte da Santa
Sé da nomeação do padre Antonio Maria Moura para o bispado do Rio de Ja-
neiro, por ter ele assinado projetos contrários aos preceitos eclesiásticos então
vigentes. Essa recusa da Santa Sé foi interpretada como uma violação do art. 102
da Constituição, que estabelecia o direito do governo imperial de nomear bispos:
essa recusa constituía uma afronta à soberania da nação. Por isso o regente Pe.
Feijó manifestou, em 1836, claramente o intento de separar a igreja brasileira da
igreja romana, fato que gerou importantes embates que somente foram supera-
dos com a retirada do padre Feijó da regência imperial e com a renúncia do padre
Moura ao bispado do Rio de Janeiro” (Oro: 2005, 438).
2
“Conflito ocorrido quando o bispo de Olinda, frei Vital Maria, resolveu apli-
car, em 1872, os preceitos das encíclicas Quanta Cura, Syllabus de Erros e Qui
Pluribus, do papa Pio IX, as quais sustentavam a proibição da comunhão entre
católicos e maçons, prática comum no país. Com base nesses documentos, o
mencionado bispo recusou a celebração comemorativa da fundação de uma loja
maçônica em Pernambuco e ordenou às confrarias religiosas que expulsassem
seus membros ligados às ‘sociedades secretas’. Tais medidas foram também ado-
tadas por Dom Antonio Macedo Costa, bispo do Pará. A maçonaria reagiu recor-
rendo ao governo imperial, que, em razão da sustentação das medidas por parte
de ambos os bispos, condenou-os, em 1874, a quatro anos de prisão em regime
de trabalho forçado, anistiados no ano seguinte” (Oro: 2005, 438).
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 195

paço sacralizado com a presença de sinos, cruz, torre, enfim, alu-


são a um templo religioso, sob a pena de multa (Leite: 2011, 34).
Às autoridades eclesiásticas católicas cabiam funções que
deveriam ser exercidas pela burocracia estatal. A educação, a saúde
pública e as obras assistenciais eram espaços de atuação da Igreja
Católica, assim como a concessão de registros de nascimentos,
casamentos e óbitos. Os casamentos realizados fora da confissão
religiosa católica eram equiparados aos concubinatos. Os casa-
mentos entre pessoas católicas e não-católicas eram proibidos e
os sepultamentos dos hereges – não-católicos – eram recusados
pela administração eclesiástica, que geria os cemitérios públicos
(p. 35). Contudo, a partir de 1850, com o incentivo à política de
imigração, começaram a ocorrer mudanças na legislação brasilei-
ra quanto ao tratamento de não católicos, sobretudo aos protes-
tantes. Em 1861, com a Lei nº 1.144, foi permitido o casamen-
to misto e entre não-católicos. Em 1863, através do Decreto nº
3.069, os cemitérios públicos deveriam reservar um local separado
para os não-católicos.
As maiores dificuldades encontradas pelos protestantes para
o exercício da liberdade religiosa no Império ocorreram mais por
ações dos eclesiásticos católicos do que do próprio governo impe-
rial. De acordo com Fábio Carvalho Leite (2011, 35), não foram
relatadas perseguições graves, por parte do governo, aos missioná-
rios que se instalavam no Brasil.
A Igreja Católica, sentindo-se ameaçada no final do Im-
pério, se revelava mais combativa em deter a liberdade religiosa.
E, para tanto, no Rio de Janeiro se autoafirmava como religião
oficial, buscando cercear e engessar as discussões legislativas em
torno da liberdade de culto através do seu periódico O Apóstolo
(17/6/1888, p. 2). As inquietudes da Igreja Católica quanto às
discussões sobre a liberdade de culto chegavam a ser externali-
zadas como um crime de heresia. A liberdade religiosa, segundo
a Igreja, poderia acarretar no país uma desordem pública, pois a
196 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

instituição religiosa seria, de certa forma, afrontada, coibida e cer-


ceada, pelas demais confissões religiosas, de proferir os seus rituais
religiosos (O Apóstolo: 17/8/1888, p. 3).
Entretanto, apesar das discussões impetuosas acerca da li-
berdade religiosa no Império, foi com a República que as relações
entre o Estado e a Igreja sofreram alterações consideráveis. Em 7
de janeiro de 1890, o Governo Provisório iniciou o processo de
secularização do Estado através do Decreto nº 119-A, que teori-
camente proibiu a intervenção da autoridade federal e dos estados
federados em matéria religiosa, consagrando a plena liberdade de
cultos, a extinção do padroado e estabelecendo outras providên-
cias secularizadoras. De acordo com Emerson Giumbelli, três
campos podem ser discriminados a partir do Decreto nº 119-A.
O primeiro tem por objeto o “Estado”, que ficou expressamente
proibido de interferir na religião, assim como de utilizar critérios
religiosos para classificar os cidadãos e organizar os serviços pú-
blicos. O segundo objeto refere-se às “confissões religiosas”, que
passariam a ter igualdade para realizarem seus cultos e proferirem
a sua fé. O terceiro objeto incide no “indivíduo” e nas igrejas,
associações, institutos que usufruiriam da liberdade de culto. A
garantia a essa liberdade ficaria instituída pelo Decreto nº 847
do Código Penal Republicano, em que, sob o título “dos crimes
contra ao livre exercício dos direitos individuais”, dos artigos 179
ao 188, sancionava-se a proibição à perseguição por motivos reli-
giosos e ao impedimento e à perturbação da realização de cultos
religiosos (Giumbelli: 2002, 248).
A Igreja Católica reagiu. Após a implementação do referido
decreto, foram publicados cerca de oito artigos no periódico O
Apóstolo, em dias alternados, em que a Igreja posicionou-se pe-
rante a secularização do Estado. Por um lado, mostrou-se liberta
dos “abusos” cometidos pelo próprio Estado, mas por outro de-
monstrou preocupação com a competência desse mesmo Estado
republicano em gerir essa laicização, em que era iminente o cerce-
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 197

amento de direitos e privilégios concedidos à Igreja, assim como


a possibilidade de perder fiéis para outras confissões religiosas,
porque “o povo não sabe reagir” e, sendo um “elemento dócil, o
elemento vítima de todos” (O Apóstolo: 12/1/1890, p. 1), poderia
se influenciar pelas seitas que teriam igualdade com a Igreja.
O projeto secularizador da República expressou-se em me-
didas articuladas de laicização do Estado que iam dos registros ci-
vis ao ensino leigo, perpassando os cemitérios públicos. O decre-
to nº 119-A preconizou a “separação”, a liberdade e a igualdade
em torno de uma concepção generalizada do que se interpretava
como sendo religião. O Estado passaria a garantir legalidade à
liberdade de os indivíduos professarem a sua fé e se fazer represen-
tar em grupos religiosos publicamente, concedendo-lhes, “pelo
menos no plano jurídico, tratamento isonômico” (Oro: 2005,
439). Eram interpretados como grupos religiosos sobretudo os
protestantes e os judeus. As religiões mediúnicas – o espiritismo
e os cultos afro-brasileiros – não obtiveram a mesma isonomia de
direitos e, até a década de 1950, ficariam sob discriminação e alvo
de perseguições policiais, sob a argumentação de exercício ilegal
da medicina (p. 441).
Faz-se necessário relativizar essa laicidade e secularização do
Estado Republicano Brasileiro. A proposta de um Estado neutro,
com relação à liberdade de culto, na prática estava distante de ser
realidade, mesmo para as religiões que juridicamente eram isonô-
micas à católica. Júlio de Andrade Ferreira (1992, 64-70) relatou
diversos casos de intolerância aos protestantes presbiterianos, após
a secularização do Estado Republicano. Segundo o autor, vários
templos foram invadidos e apedrejados, bíblias protestantes foram
incineradas e pastores sofreram ataques pessoais, sem que tais cri-
mes tenham sido punidos pelo Estado. Isso quando não eram, até
mesmo, endossados pelas autoridades locais.
Além desses casos, que relativizam a secularização brasileira,
Pedro Tarsier (1936, 55-93) relatou diversos outros casos de in-
198 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

tolerância religiosa na República laica. Suas afirmações sinalizam


um aumento considerável de perseguições religiosas comparando-
-se ao período imperial, criando um paradoxo: na laicidade, as
perseguições religiosas e intolerâncias aumentaram, em contrapo-
sição à religiosidade oficial do catolicismo no Império.
Apesar de ocorrências notórias da limitação da seculariza-
ção brasileira, alguns pontos valem ser ressaltados como caracte-
rísticas laicizantes atribuídas ao recém-instaurado regime repu-
blicano, mesmo que apresentassem a posteriori desconstruções,
a saber: na Constituição Brasileira de 1891 não havia nenhuma
menção a Deus; os crucifixos e símbolos religiosos foram reti-
rados dos locais públicos; os cemitérios foram secularizados; o
compromisso das relações entre o Brasil e a Santa Sé foi omitido
no texto constitucional; e o ensino público passou a ter um ca-
ráter laico (Leite: 2011, 43). A essas atitudes secularizadoras do
Estado brasileiro, a Igreja Católica reagia com críticas veementes
ao Governo Provisório.
As características laicizantes do Estado Brasileiro na Pri-
meira República podem ser identificadas e desconstruídas, tam-
bém, a partir das seguintes argumentações: na Constituição de
1891 a omissão da citação de “Deus” foi constatada, no entanto
foi mais com o intuito de enfatizar simbolicamente a laicidade
da Carta Magna do que demonstrar, de fato, um sentido jurídi-
co de laicização.
A retirada dos símbolos religiosos dos locais públicos, no
início da Primeira República, também pode ser relativizada. No
momento inicial, essas atitudes secularizadoras nos espaços pú-
blicos até foram implementadas, porém lentamente os crucifixos
foram reintroduzidos nos tribunais, nas escolas e em lugares pú-
blicos. Já nos primeiros anos de República, o governo e a própria
imprensa eram tolerantes à presença de símbolos religiosos nesses
espaços. Essa prática não era interpretada como um ato de impor-
tância para a laicidade do Estado (p. 44).
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 199

Em relação à secularização dos cemitérios na Primeira Re-


pública, ficou estabelecido no art. 72, § 5 da Constituição de
1891, que eles deveriam ser administrados pela autoridade muni-
cipal e que, portanto, todos os crentes poderiam realizar seus cul-
tos religiosos e seus respectivos ritos, desde que não ofendessem a
moral pública e as leis (Leite: 2011, 44). No entanto, na prática
os cemitérios ficaram mantidos sob o controle de particulares ou
ordens confessionais, alguns com o caráter de monopólio. A inefi-
cácia da secularização dos cemitérios forjou a liberdade assegurada
aos crentes quanto à realização de seus cultos de acordo com a
confissão religiosa profetizada.
Sobre a manutenção do controle dos cemitérios por ordens
confessionais, Emerson Giumbelli abordou a frustrada homena-
gem póstuma que ocorreria em 1892 a Benjamim Constant. Os
positivistas do Apostolado3 foram impedidos de realizá-la pela ad-
ministração do cemitério, que cabia à Santa Casa de Misericórdia,
uma confraria católica que, por contrato, tinha garantia de mono-
pólio no cemitério (Giumbelli: 2002, 245).
As relações diplomáticas entre o Estado Republicano Bra-
sileiro e a Santa Sé, em princípio, deveriam ter sido rompidas.

3
Em 1876 fundou-se a primeira Sociedade Positivista do Brasil, tendo à frente
Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), Miguel Lemos (1854-1917) e Benjamin
Constant (1833-1891). No ano seguinte, os dois primeiros viajaram para Paris,
onde conheceram os fiéis seguidores de Comte: Émile Littré (1801-1881) e
Pierre Laffite (1823-1903). Miguel Lemos decepcionou-se com “o vazio do
littreísmo” e tornou-se adepto fervoroso da Religião da Humanidade, dirigida por
Laffite. De volta ao Brasil, Miguel Lemos iniciou uma contínua e enérgica ação
política, social e religiosa a partir dos princípios do Positivismo, transformando
a antiga Sociedade Positivista do Brasil, de caráter acadêmico, mas apática, no
Apostolado e na Igreja Positivista no Brasil. Sua finalidade era for­mar adeptos
que contribuíssem para a renovação do pensamento político e social, através de
intervenções oportunas nos negócios públicos, tomando posição a respeito das
mais variadas questões sociais, políticas e religiosas, como o abolicionismo e o
republicanismo, a defesa dos direitos sociais e trabalhistas, o bem-estar social, a
separação entre a Igreja e o Estado, a liberdade profissional, dentre outras.
200 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

No entanto, quando essas proposições eram discutidas acabavam


sendo sempre derrotadas e rejeitadas por um governo que se au-
tointitulava laico (Leite: 2011, 45).
No que se refere ao ensino religioso nas escolas públicas, a
situação gerou muitas controvérsias. Pela Constituição de 1891, tal
ensino não poderia ser ministrado. Em tese, o ensino leigo era con-
sectário da liberdade de consciência, pois todos os cidadãos paga-
vam impostos e contribuíam para a manutenção das escolas, por-
tanto cada cidadão poderia seguir e adotar a religião que conviesse,
não cabendo ao governo republicano arbitrar sobre o ensino de uma
confissão religiosa, que só atenderia a uma parcela de cidadãos que
seguissem aquela religião. O ensino religioso deveria caber à família
e aos religiosos em suas respectivas confissões religiosas (p. 45). Ao
Estado não caberia a missão de catequese e propaganda religiosa.
Se assim o fizesse, naturalmente preferiria a de uma única religião
que, privilegiada, seria ensinada à custa do produto dos impostos
pagos pelos cidadãos de uma forma geral. Segundo Fábio Carvalho
Leite, os cidadãos que não professassem a confissão religiosa ensina-
da sofreriam dupla violência: a do bolso e a da sua consciência. No
entanto, havia uma resistência dos católicos para que permanecesse
o ensino religioso nas escolas (p. 46).
Diante das discussões salientadas, percebe-se que a secula-
rização do Estado Brasileiro na Primeira República, em múltiplos
aspectos, merece ressalvas. A pluralidade religiosa e a liberdade
de consciência tinham limites. Porém, entre os cidadãos espíri-
tas e de outras confissões mediúnicas, as dificuldades de proferir
a sua religiosidade tornaram-se ainda mais problemáticas, pois,
além dos cerceamentos anteriormente mencionados, tiveram que
enfrentar outra ordem de cerceamento e intolerância – a crimi-
nalidade. Algumas de suas práticas religiosas foram interpretadas
como criminosas, sob a acusação de charlatanismo e prática ilegal
da medicina, inseridas no Código Penal Republicano de 1890.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 201

Com o advento da República, intensificou-se o processo


de modificação do espaço urbano do país, sobretudo na capital
federal. A cidade do Rio de Janeiro foi se modernizando, porém
artificialmente e alheia à sua origem, sendo reprodutora de valores
externos, que não tinham ressonância dinâmica na sociedade ca-
rioca. Começaram, então, os descontentamentos resultantes dos
limites impostos em torno da ordem e do progresso, que estavam
em contrariedade à sua realidade cultural e identitária, reforçan-
do-se cada vez mais o artificialismo. A civilidade e a modernização
na República “vestiu a cidade com outra roupa, mas o corpo per-
maneceu o mesmo, possuindo uma incrível dificuldade de andar
de salto alto” (Rodrigues: 2002, 28).
O grande desafio que o regime republicano se propusera
era transformar cada cidadão brasileiro, sobretudo da capital fe-
deral, em cidadão capaz de ocupar de forma ordenada e correta
as modernas funções que caberiam a uma sociedade civilizada. Os
poucos brasileiros “civilizados” deveriam conduzir os muitos bra-
sileiros “atrasados” a alcançarem a ordem e o progresso, indepen-
dentemente da ausência dos valores identitários com a mudança
ocorrida na capital federal em nome da civilização. Tudo teria um
objetivo em comum: alcançar, em ordem, o progresso (p. 34).
Para tanto, a ação da polícia carioca adquiriu o sentido e a função
de ser a mantenedora da ordem. A polícia passou a ser a institui-
ção que estabelecia como se deveria viver na cidade moderna e
civilizada do Rio de Janeiro.
Como as reformas civilizatórias do Rio de Janeiro fluíam
com rapidez, a insegurança em torno delas também era discu-
tida. Nesse momento, ganhou mais importância a legitimidade
concedida pelos laudos técnicos e científicos de instituições que
respaldariam a política do progresso na capital federal: o Clube de
Engenharia, que se definia como elaborador das leis da reorgani-
zação urbana; a saúde pública, que estabelecia os critérios de civi-
lidade e atuava como controladora da vida social; e, finalmente, a
202 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

polícia, já mencionada, que garantia a realização da modernização


da cidade controlando os costumes da população, mantendo a
ordem (p. 30).
Nesse tumultuado e desordenado cenário de modernização
da cidade, sem que a população se identificasse com as mudan-
ças materiais e sociais, é que o regime republicano brasileiro foi
se consolidando e mostrando a sua face autoritária e excludente.
Sobre essas características, José Murilo de Carvalho (2004, 31) si-
nalizou a construção de um abismo entre os pobres e a República,
abrindo precedentes para a descoberta de um mundo de valores e
ideias muito distinto do mundo das elites e do mundo dos inter-
mediários.
Abriu-se caminho para a emersão do autoritarismo baseado
na competência real, ou pressuposta, de técnicos que preconiza-
vam a ideia de bem público. E, em prol desse bem público, a
maioria dos cidadãos não participaria dos processos de decisão dos
rumos políticos e administrativos do país (p. 35).
A cultura política autoritária, presente na história brasileira
durante a Primeira República, se evidenciou, dentre muitas si-
tuações, na criação do Código Penal de 1890, em substituição
ao Código Criminal formulado em 1830. O Código Penal Re-
publicano foi o primeiro grande conjunto de leis que definiu a
nova ordem jurídica do nascente regime. Comparando-o com o
Código Criminal do Império, poucas modificações foram realiza-
das, conquanto uma das poucas novidades apresentadas foi a cri-
minalização do espiritismo, num regime que se autodefinia como
secular. O espiritismo foi criminalizado sobretudo no artigo 157
do Código Penal.4

4
Art. 157 – Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs
e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de
moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade
pública:

Penas – de prisão celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 203

Esse artigo estava inserido no Título III “Dos Crimes Con-


tra a Tranquilidade Pública”, mais especificamente no Capítulo
III “Dos Crimes Contra a Saúde Pública”. Nesse mesmo capítulo,
os artigos 156 e 1585 estavam intimamente relacionados ao artigo
157, por tratarem da questão do exercício da medicina, que era
uma prática comumente realizada na sociedade brasileira.
Como o espiritismo obteve expressiva representatividade
através das práticas curativas e de tratamento dos médiuns recei-
tistas, estes poderiam ser triplamente enquadrados criminalmen-
te: exercer a medicina sem ter a habilitação exigida, no artigo 156;
praticar o espiritismo, no artigo 157; e prescrever medicamentos

Parágrafo 1°: Se, por influência, ou por consequência de qualquer destes meios,
resultar ao paciente privação ou alteração, temporária ou permanente, das facul-
dades psíquicas:
Penas – de prisão celular por um ano a seis anos, e multa de 200$000 a 500$000.
Parágrafo 2º: Em igual pena, e mais na privação de exercício da profissão por
tempo igual ao da condenação, incorrerá o médico que diretamente praticar
qualquer dos atos acima referidos, ou assumir a responsabilidade deles.
5
Art. 156 – Exercer a medicina em qualquer de seus ramos, a arte dentária ou
a farmácia; praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetismo
animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:

Penas – de prisão celular por um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.

Parágrafo único: Pelos abusos cometidos no exercício ilegal da medicina em geral,
os seus atores sofrerão, além das penas estabelecidas, as que forem impostas aos
crimes que derem casos.

Art. 158 – Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo, para uso
interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos
reinos da natureza, fazendo ou exercendo assim, o ofício do denominado curan-
deirismo.

Penas – de prisão celular por um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.

Parágrafo único: Se do emprego de qualquer substância resultar à pessoa privação
ou alteração, temporária ou permanente, de suas faculdades psíquicas ou funções
fisiológicas, deformidades, ou inabilitação do exercício de órgão ou aparelho or-
gânico, ou, em suma, alguma enfermidade:

Penas – de prisão celular por um a seis anos, e multa de 200$000 a 500$000.

Se resultar morte:

Pena – de prisão celular por seis a vinte e quatro anos.
204 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

homeopáticos ou de outra ordem, praticando o curandeirismo,


no artigo 158.
Desde o Império, os médicos e os juristas pediam proteção
legal para a prática da medicina. Os primeiros médicos formados
no Brasil já cobravam do Estado Imperial medidas mais rigoro-
sas para se combater o curandeirismo e o charlatanismo. Em troca
“ofereciam os seus préstimos na luta pela disciplinarização social”
(Schitzmeyer: 2004, 74). Como o Código Penal do Império não
impedia as práticas terapêuticas populares, que já ocorriam desde
os tempos coloniais, com o processo de urbanização essas discus-
sões vieram à tona. Afinal, era em nome também da saúde pública
que se realizava a reforma civilizatória do Rio de Janeiro. A saúde
pública foi um dos critérios estabelecidos para a civilidade e atuava
como instrumento de controle da vida social, ao estabelecer padrões
mínimos de higiene e saneamento para a cidade e a população.
O processo de urbanização e a valorização de novos saberes
científicos se legitimavam como sendo a garantia de veracidade
e autenticidade de civilidade. Os médicos conseguiram o espaço
que há tempos desejavam, a fim de reclamarem a proteção le-
gal para o exercício de sua profissão. No entanto, só conseguiram
proteção jurídica quando as relações sociais tradicionais já esta-
vam desestruturadas, e os curandeiros puderam ser criminalizados
(p. 75). Foi no Código Penal de 1890 que os médicos consegui-
ram a garantia efetiva de se impor contra quem ameaçasse a cura
e o conhecimento do corpo que não fosse através de técnicas e da
cientificidade.
Sob esse prisma, as práticas terapêuticas populares como a
benzedura, garrafadas, banhos de ervas, uso de amuletos, dentre
outras, que mesclavam elementos culturais diversos da formação
da sociedade brasileira, deixavam de ser aceitas pelas autoridades
do país e tinham, também, que deixar de ser acreditadas e aceitas
pela população, mesmo que à força. Crer e fazer uso dessas práti-
cas era ilegal, atrasado e irracional.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 205

Vale ressaltar que, nesse contexto de ilegitimidade das prá-


ticas populares de cura, a atuação do Estado na prestação de ser-
viços públicos na área da saúde e na assistência aos necessitados
era praticamente inexistente. Era nessa lacuna que os praticantes
ilegais da medicina exerciam a “arte de curar” e supriam a ausên-
cia do Estado.
Os agentes terapêuticos populares – os pajés-caboclos, os
sobreviventes de nações indígenas desagregados; os afrodescen-
dentes feiticeiros, herdeiros de tradições curativas africanas; os
rezadores; as benzedeiras; os raizeiros; os curadores de cobra; e os
espíritas – foram rotulados, então, como charlatães, praticantes
da medicina ilegal e curandeiros. E passaram a ser reconhecidos
como uma ameaça ao bem-estar social (p. 76).
A popularidade das práticas curandeiras ia além das ques-
tões socioculturais. Permeava também as questões psicológicas.
Os curandeiros estavam mais próximos dos doentes. Não eram ra-
ros os casos de parteiras, feiticeiros de todos os tipos, benzedeiras,
dentre inúmeros curandeiros, frequentarem os mesmos espaços
públicos de sua clientela, em que poderiam até exercer uma lide-
rança espiritual e de convívio afetivo (Weber: 1999, 15-6).
No final do século XIX, no limiar da República, os médicos
habilitados lutavam por um espaço próprio e se digladiavam com as
práticas costumeiras de cura. Havia a convivência de práticas ditas
científicas com superstições. Os próprios médicos, mesmo envol-
vidos em pesquisas e com discursos progressistas, eram indivíduos
que emanavam fundamentos religiosos. Acreditavam em milagres,
em intervenções divinas para a cura de doenças. O discurso mé-
dico, apesar de objetivo, era imbuído de explicações mágicas para
uma série de fenômenos que a ciência não tinha capacidade de ex-
plicar. Não havia uma distinção clara entre o que era ciência e o que
era magia. Como a medicina impunha uma série de limitações pela
falta de conhecimentos na época, a intervenção divina era constan-
temente solicitada pelos médicos, pois os seus conhecimentos eram
206 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

limitados pela vontade de Deus (p. 26). Isso não quer dizer que os
médicos e os intelectuais não tentassem estabelecer distinções entre
a ciência e o charlatanismo. Afinal, havia uma intensa mobilização
para a modernização e o saneamento, incompatíveis com práticas
populares curandeiras. Por isso, as motivações para a criação dos
artigos relativos à saúde pública.
Todavia, os artigos 156, 157 e 158 foram muito questio-
nados pelas suas próprias incoerências, sobretudo quando con-
frontados com o que instituía a Constituição Federal de 1891.
O artigo 156 foi questionado por ordem técnica. A Constituição
de 1891, no seu artigo 72, no § 24, garantia o “livre exercício de
qualquer profissão moral, intelectual e industrial”, sem mencionar
a habilitação profissional. Nesse caso, as práticas da medicina po-
pular poderiam ser aceitas. A Constituição revogaria o que estava
sendo mencionado no Código Penal. Além disso, outra polêmica
gerada no artigo 156 diz respeito ao legislador ter diferenciado
“exercer medicina” e “praticar a homeopatia e a dosimetria”, se no
exercício eram todas técnicas científicas de cura.
No artigo 157, a polêmica também foi em torno do artigo
72, mas no § 3 da Constituição de 1891, que dava a todos os
indivíduos e confissões religiosas o direito de exercerem pública
e livremente seus cultos. Portanto, o espiritismo não poderia ter
sido criminalizado. Entretanto, o Estado não interpretava as con-
fissões religiosas mediúnicas como religiões reconhecidas pelo Es-
tado, dessa forma eram passíveis de perseguição pela ilegitimidade
religiosa. O espiritismo expressava um saber ilegítimo, no texto
do Código Penal, porque poderia conduzir o indivíduo à ilusão,
sugestionando sentimentos que poderiam afetar em diferentes ní-
veis a sanidade psicológica dos crédulos.
Já o artigo 158 referia-se ao curandeirismo e às práticas
mágico-religiosas de valor curativo, que tanto afligiam a cienti-
ficidade dos médicos. Na retórica do artigo, pressupõe-se que os
sistemas e as práticas compreendidas como ilegítimas para a ob-
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 207

tenção da cura poderiam prejudicar a saúde dos indivíduos que


nelas confiavam. Esse artigo foi reeditado no Código Penal de
1940, transformando-se em outros três artigos: 282, 283 e 284,
que mais uma vez levaram ao debate e ao confronto os médicos
com os curandeiros e os charlatães.
A criminalização do espiritismo no artigo 157 do Código
Penal está relacionada à interpretação de suas práticas como sendo
mágicas, portanto sem legitimidade social para serem interpreta-
das como constituintes de uma confissão religiosa. O questiona-
mento que se sucede é: o que se compreendia como sendo uma
confissão religiosa? Com propriedade, pode-se afirmar que no
nascimento do regime republicano o que pudesse suscitar desor-
dem e indisciplina no espaço público não poderia ser categorizado
como religioso.
O combate à feitiçaria e ao curandeirismo, que eram prá-
ticas mágico-curativas, fazia parte de um projeto republicano de
manutenção da ordem pública. Sobretudo quando os integrantes
dessa sociedade civil do novo regime instaurado no Estado eram
africanos, afrodescendentes, mestiços, ameríndios, imigrantes de
diversas origens, que precisavam, no olhar do Estado, ser subme-
tidos à normatização das leis e da moralidade, na qual se incluía
a religião. A jurisprudência brasileira, auxiliada pelas autoridades
policiais, devassaram os hábitos da população com o intuito de
conhecer, classificar, disciplinar e tipificar que atitudes eram cri-
minais ou não. Se “esquadrinhou os espaços públicos e os priva-
dos” (Montero: 2006, 52).
Havia liberdade religiosa para o que se compreendia como
religioso. E para se discernir o que era religioso e legal do que era
mágico e ilegal, ocorreu um intenso debate no âmbito jurídico
ao longo da Primeira República. No entanto, no âmbito político
esses debates foram, inicialmente, sobre que liberdade teria a Igre-
ja Católica, que privilégios ela continuaria a ter e que privilégios
perderia com a secularização do Estado. As discussões políticas
208 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

sobre qual religião teria liberdade no espaço civil eram inexpressi-


vas, muito mais quando as práticas populares entravam em pauta
como sendo confissões religiosas (Montero: 2006, 52).
Ao longo da Primeira República coube às confissões reli-
giosas não católicas o ônus de demonstrarem ao Estado brasileiro
que eram religiões, portanto livres para professarem a sua fé. E
as práticas populares religiosas mediúnicas tiveram que suplantar
ainda mais adversidades. Para serem aceitas como religiões, preci-
saram demonstrar ao Estado que não eram uma ameaça à saúde e
à ordem pública, ainda que apresentassem em suas práticas proce-
dimentos que, no caso do espiritismo, pudessem suscitar a cura.
E, nos cultos afros, demonstrar que as danças e os batuques eram
manifestações de cunho religioso e não de desordem (p. 52).
O desafio do Movimento Espírita era dar continuidade à
assistência aos necessitados como uma prática religiosa, muitos
exercendo a “arte de curar”, sem que fosse interpretado como uma
insubordinação à lei ou como um ato de provocação a dificultar a
instauração da ordem pública, ao ser interpretado como antisso-
cial e anômico pelo Estado.

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: a República que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
FERREIRA, Júlio de Andrade. História da Igreja Presbiteriana no Brasil. São
Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992.
GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil
e na França. São Paulo: Attar, 2002.
LEITE, Fábio Carvalho. “Laicismo e outros exageros sobre a Primeira República”.
Religião & Sociedade, v. 31, n° 1, 2011, pp. 32-60.
MONTERO, Paula. “Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil”. Novos
Estudos, n° 74, 2006, pp. 47-65.
ORO, Ari Pedro. “Considerações sobre a liberdade religiosa no Brasil”. Ciências
& Letras, n° 37, 2005, pp. 433-47.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 209

RODRIGUES, Antônio Edmilson. “Em algum lugar do passado: cultura e


história na cidade do Rio de Janeiro”. In: AZEVEDO, André Nunes (org.).
Capital e capitalidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, pp. 11-43.
SCHRITZMEYER, Ana Lucia Pastore. Sortilégio dos saberes: curandeiros e juízes
nos tribunais brasileiros (1900-1990). São Paulo: Ibccrim, 2004.
TARSIER, Pedro. História das perseguições religiosas no Brasil, tomo I. São Paulo:
Cultura Moderna, 1936.
VIEIRA, Dilermando Ramos. O processo de reforma e a reorganização da Igreja
no Brasil (1844-1926). São Paulo: Santuário, 2007.
WEBER, Beatriz. As artes de curar. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado
Coração, 1999.
Subjetividades de mulheres negras
cearenses: um olhar sobre suas
histórias e memórias

Maria Saraiva da Silva* 1

Invisibilidade da população negra feminina nos livros


didáticos

A educação formal brasileira, em suas diversas modalidades


de ensino, traz, nos livros didáticos de história, em sua maioria,
produções textuais que pouco ou quase nada se referem à história
social. A história política e econômica são os temas mais tratados.
A história social de grupos menos favorecidos é algo muito novo
a ser estudado como conteúdo disciplinar.
Ao me deparar com a proposta de um estudo de campo sobre
a história oral, a partir das memórias de mulheres negras idosas no
Ceará com mais de setenta anos, me senti diante de um grande de-
safio. Procurei dar ênfase à memória histórica e social de velhas que
participam, ou não, de movimentos sociais cujos/as filhos/as sejam

*
Mestra em Educação Brasileira pela Faculdade de Educação da Universidade Fe-
deral do Ceará (UFC).
212 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

ativistas no movimento negro. O estudo sobre mulheres, negras, ve-


lhas em uma perspectiva de gênero levanta a discussão sobre a visi-
bilidade de grupos e categorias consideradas excluídas socialmente.
A decisão pelo estudo desse grupo surgiu pelo fato de suas
experiências de vida estarem ligadas direta ou indiretamente ao
movimento social. Daí o interesse de conhecer suas histórias e
como suas lembranças, ressurgidas através das memórias, podem
contribuir para a sua inclusão social.
Um dos motivos que muito contribuiu para a definição
do objeto desta pesquisa foi a minha relação como colaboradora
junto aos movimentos sociais negros, como o Movimento Negro
Unificado do Ceará (MNU/CE), com atividades ligadas à ela-
boração e desenvolvimento de projetos, no acompanhamento de
atividades políticas e sociais.
Outro elo que me aproximou dos movimentos negros no
Ceará que considero muito importante foi ter representação le-
gítima no Fórum Permanente de Educação das Relações Etni-
corraciais do Estado. A minha participação nas Conferências de
Promoção da Igualdade Racial, nas categorias municipal, estadual
e nacional, em 2005, favoreceu a compreensão do panorama que
constituiu e constitui os movimentos sociais ligados à diversidade
étnica e racial brasileira.

Memória e história oral: em busca de lembranças que


mostrem a outra face da história social

A memória histórica cearense, como também a história do


Brasil, nos diversos contextos didáticos, é permeada de lembran-
ças que destacam acontecimentos recorrentes da economia, da po-
lítica e da formação populacional, com pouca ênfase sobre nossa
diversidade cultural e racial.
Ao buscarmos nos escritos didáticos destaques para o pa-
pel da mulher na construção social e histórica brasileira, pouco
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 213

ou quase nada encontraremos. Na história do Ceará, ao coletar


dados sobre a participação e os feitos da mulher como integrante
de grupos sociais ou políticos, a personalidade encontrada é Dona
Barbara de Alencar, que lutou pela independência do Brasil e pela
instalação de um governo republicano.
Quando se trata da história social em relação à história ofi-
cial, destacando negros, trabalhadores, mulheres, velhos, velhas e
crianças, são encontradas áreas e escolas muito recentes de pesqui-
sa. A Escola dos Annales (1929-1969) traz como exemplo o estudo
da História das mentalidades, que vem dando voz e vez aos sujeitos
históricos excluídos da história oficial.
O historiador e filósofo Antonio Roberto Xavier, ao co-
mentar sobre essa linha de pesquisa, afirma que o ponto de par-
tida para a reconstrução da história social, por meio da história
oral, surge “como um movimento que rompe com a historiografia
e lança elasticidade para abordagem de diferentes objetos na pes-
quisa histórica, sob múltiplos aspectos e variadas circunstâncias”
(2010, 126).
Aqueles que diante da oficialidade histórica permaneciam
calados e invisíveis, sendo tratados à parte na construção socio-
política, como velhos, negros, mulheres e trabalhadores manu-
ais, deveriam, portanto, ganhar voz. A oralidade presente nas
diversas culturas como dinâmica de construção da história é
uma fonte documental que fundamenta as histórias de vida e
das sociedades.
Como exemplo, tem-se as oralidades que foram expressas
em livros – como o Alcorão (islamismo) e a Bíblia (judaísmo e
cristianismo) – e a oralidade contida entre os povos africanos, que
por séculos não foi expressa por escrito, em uma linguagem vista
como canônica. Por longo tempo, a história oficial não consi-
derou as histórias com narrativa oral como ciência ou como de-
terminantes da construção de vida e tradição política, religiosa e
cultural desses muitos povos.
214 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Segundo a Escola de Ciências Sociais e História, da Funda-


ção Getúlio Vargas, pode-se definir a história oral como

uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevis-


tas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acon-
tecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros
aspectos da história contemporânea. Há inúmeros programas e
pesquisas que utilizam os relatos pessoais sobre o passado para o
estudo dos mais variados temas (2012, 1).

Diante disso, ao nos depararmos com a proposta de um es-


tudo de campo sobre a história oral a partir das memórias de mu-
lheres negras com mais de setenta anos, inicialmente procuramos
dar ênfase à memória histórica e social das velhas que não estão
envolvidas nos movimentos sociais negros, mas cujos/as filhos/as
são ativistas, ou não, nos diferentes movimentos sociais negros.
Com isso, estamos diante de um desafio bastante significa-
tivo que é dar visibilidade ao papel social dessas mulheres em uma
sociedade que não reconhece, em sua composição demográfica,
um percentual significativo de população negra. Assim, com o
intuito de investigar as histórias de velhas negras cearenses, o pre-
sente trabalho procurará nortear-se pelos relatos orais coletados.

Procedimentos metodológicos

Os trabalhos de pesquisa que trazem a história oral como


metodologia podem tornar-se colaborativos no sentido de que se
realizam a partir da contribuição dos sujeitos participantes, ao re-
latarem sua situação de exclusão social, auxiliando na reconstru-
ção da história local através do viés pessoal da memória.
Nessa perspectiva, Xavier aponta que “além de se alterar a
textura da história, também ocorrem alterações em seu conteúdo,
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 215

propiciando mudanças no foco das leis, estatísticas, administrado-


res e governos” (apud Thompson: 1992, 126).
Os trabalhos com história oral, segundo Souza, Salandim e
Garnica (2006), buscam dar um novo rumo e uma nova postura
acerca dos papéis em sociedade, não se pretendendo vislumbrar
unicamente a história dos menos favorecidos, mas atentar para
o que já foi estudado sobre a sociedade local e buscar uma nova
descrição.
No caso das mulheres negras com mais de setenta anos es-
colhidas como sujeito, para este ensaio de pesquisa, procura-se
utilizar a história oral como forma de reconhecimento de seu pa-
pel na construção de contextos sociais. Por seus relatos podemos
perceber forte expressividade ligada à educação formal e informal,
à família, à assistência social, ao trabalho, às relações de gênero e
religiosas na sociedade cearense, em que seu lugar de agente socio-
político foi indispensável.
Para obtenção desse panorama de relatos provenientes da
memória, utiliza-se a metodologia da história oral, que se confi-
gura como importante meio para a obtenção de relatos que po-
dem embasar a construção de novos contextos históricos, sociais
e culturais, permitindo uma participação direta do pesquisador e
do sujeito da pesquisa.
As técnicas de pesquisa utilizadas são entrevistas e questio-
nários para a coleta de dados pessoais. Através das entrevistas, bus-
camos obter dados de memória que revelem como essas mulheres
se percebem, ou não, como sendo mulheres negras na sociedade
cearense, que tradicionalmente tem um ideário de ausência de
população negra. A análise se dá através dos dados coletados nas
entrevistas e os resultados são entrelaçados aos referenciais biblio-
gráficos e compilados nas considerações finais.
Com isso, pretende-se contextualizar as relações de gênero e
raça em suas trajetórias individuais e coletivas. Deseja-se também
perceber se as reflexões provenientes dos movimentos negros têm
216 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

influência nas relações familiares desses sujeitos. Com as entrevis-


tas iniciais, pretende-se ainda observar se essas mulheres se refe-
rem à vertente racial no tocante a preconceitos e ações sociais que
levam à discriminação.

Memórias coletivas e lembranças

A memória de mulheres negras idosas como recurso me-


todológico tem a intenção de evocar, através de suas lembran-
ças, os fatos ocultos de histórias sociais e políticas que perme-
aram a sociedade cearense por várias gerações. Para que isso
possa acontecer, faz-se necessário buscar nas lembranças dessas
mulheres os fatos que marcaram suas vivências e aqueles que as
impediram, ou não, de ter uma participação efetiva e reconhe-
cida na história social.
Para Maurice Halbwachs (2006), a necessidade de reite-
ração de nossas lembranças nos leva a buscar outros indivíduos
que, como coparticipantes de um determinado evento social,
nos auxiliem de alguma forma a fundamentar tais acontecimen-
tos. Nesse sentido, a contribuição das lembranças de terceiros es-
timula a restauração da memória oculta do indivíduo que deseja
recordar determinado acontecimento.
Essas contribuições se tornam elementos primordiais na
interação do que o indivíduo possa recordar. De acordo com
Halbwachs (2006), percebe-se que há em cada indivíduo frag-
mentos de lembranças que, auxiliados pela memória material,
podem dar ao espírito o complemento daquilo a ser recordado.
As lembranças passadas, sendo entusiásticas, podem fragmentar-
-se e, ao serem reativadas no presente, têm por suporte fragmen-
tos de memória anterior atualizada e complementada pela atua-
lidade. É a composição homogênea entre lembranças do passado
e atualização com o presente que dá o tom na concretização do
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 217

montante de fatos que compõem o contexto do que se deseja


investigar.
Para qualquer pessoa, as lembranças adquirem um signifi-
cado mais intenso quando divididas com os outros que vivencia-
ram os fatos. Em um encontro entre pessoas próximas, recordar
emociona e as cenas ganham novos significados. Ainda segundo
o mesmo autor, as lembranças remetem ao que se tem em co-
mum, recriando uma nova visão sobre o que se viveu no passado.
Esse estudioso afirma que, como não vivemos e nem es-
tamos sozinhos, e sim em coletividade, é através de terceiros
que somos motivados interiormente a recordar acontecimentos
que porventura só nós vivenciamos. Somos uma interação e há
em nós muito de outras pessoas, com suas especificidades. Isso
ocorre por sermos e vivermos no coletivo. Nesse sentido, são os
indivíduos na coletividade que passam a compor a interação das
lembranças.
Referindo-se à colaboração de terceiros em nossas lem-
branças, Halbwachs (2006) remete à coletividade no sentido de
que tudo o que é, pensa ou faz uma pessoa não o faz por si
mesma, mas a realiza com a coparticipação de muitos que, mate-
rialmente presentes ou não, contribuem para que determinadas
lembranças sejam evocadas.
Assim, membros de um mesmo grupo relacional, devido à
sua proximidade, podem ter suas histórias fundidas e misturar
aspectos da vida individual com a social.
Nota-se, portanto, a importância da participação dos
membros sociais de convivência próxima na colaboração para a
reconstrução das lembranças. A transposição das ideias e lem-
branças do outro é que fornece os componentes que preencherão
as lembranças do indivíduo, portanto em cada grupo social há
diferenciais de recordações, pois o grau de envolvimento dos su-
jeitos que se relacionam é que as definirá.
218 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Memória de velhos/as: passado e presente

Buscando afirmar a importância do papel histórico e socio-


político da mulher negra na sociedade cearense, procurou-se apre-
sentar seu cotidiano através da memória oral de senhoras negras,
tendo como base analítica os estudos de Ecléa Bosi (1994).
Segundo essa autora, quando nos deparamos com a me-
mória dos velhos como instrumento de recordação e lembranças
ocultas sobre suas vidas pessoais e sociais, temos um suporte para
uma reconstrução do passado. As lembranças que os velhos detêm
em suas memórias podem fazer uma ponte entre eles, como teste-
munhas do passado, e as novas gerações.
A memória dos/as velhos/as funcionaria como intermediá-
rio informal da cultura, pois as mediações formais foram ou são
dadas pelas instituições, como a escola, a igreja, o partido político
etc., tendo como contribuição a transmissão de valores e atitudes
que compõem a cultura.
Em seu estudo Memórias de velhos (1994), Ecléa Bosi ana-
lisou memórias empiricamente registradas e elencou um ponto
central: a memória como conservação do passado. Com isso, con-
cluiu que, sendo esse fator independente de temporalidade e re-
cordações, admite-se que esse passado é a referência que temos de
nós mesmos e das sociedades e/ou grupos de origem.
Diante desses fatores, compreende-se que, baseados no pas-
sado como temporalidade e nos conhecimentos que os/as velhos/
as possuem, e que estão retidos em suas memórias, podemos rea-
firmar nossa personalidade e subjetividade.
Ecléa Bosi, citando Halbwachs, afirma que “a lembrança é a
sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no espírito
de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens e
lembanças” (1994).
Ao tratar da velhice como categoria social, a autora aponta
que cada sociedade trata os velhos e a velhice de maneira diferen-
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 219

ciada. As histórias e as culturas são determinantes na compreen-


são da contribuição do idoso como ser social. Enquanto algumas
sociedades, como no caso das africanas, enaltecem o idoso e os
reverenciam como imortais, as sociedades industriais ocidentais
os tratam com depreciação. A sociedade industrial seria maléfica
para a velhice, pois os idosos são tratados com desprezo e conside-
rados improdutivos, inúteis. Nas sociedades ditas estáveis, como
as orientais, “um octogenário pode começar a construção de uma
casa, a plantação de uma horta, pode preparar os canteiros e se-
mear um jardim. Seu filho continuará sua obra” (Bosi: 1994, 77).
Diante do exposto, a oralidade pode ser fonte e fundamen-
tação para a construção de uma nova história, proveniente das
bases sociais contrapondo-se à classe dominante, não com armas
de fogo, mas com as armas dos saberes transmitidos por esses an-
cestrais.
Suscita-se, portanto, a defesa de uma minoria – no caso,
os/as velhos/as - que, tendo dado a sua contribuição à sociedade,
possui intrinsecamente o acúmulo do saber e a competência para
relatar a história social a partir do foco pessoal.

Memórias de mulheres negras velhas

Amparando-se nessa vertente – de que as experiências vi-


vidas dão significado à memória –, Teresinha Bernardo (2007)
optou pelo conceito de memória como recurso metodológico,
sendo esta uma ferramenta expressiva para a pesquisa através da
oralidade.
Justificando essa posição com amparo da antropologia, a
autora afirma ter uma liberdade marcante na pesquisa com pesso-
as, distanciando-se dos dogmas apregoados pela teoria positivista.
Nesse ponto, tem-se a memória “entendida como substância so-
cial” (Bernardo: 2007, 29).
220 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Sendo a memória um recurso intrínseco ao sujeito que dá


significação aos estados de vida no decorrer da história social, é
possível surgir uma ressignificação a partir do processo de fazer
emergir do passado um presente representativo e identitário.
Ao utilizar a memória/oralidade como algo intrinseca-
mente ligado à identidade, a autora afirma que, se queremos
revelar as obscuridades que permeiam e estão por trás dos con-
flitos sociais, divisões de classes e sobreposições de poder, a me-
mória torna-se um recurso primordial.
Em se tratando de grupos negros, a coletividade e a iden-
tidade se agregam para que a expressão ancestral do grupo se
expresse na realidade das experiências vivenciadas. Para Teresi-
nha Bernardo, parte importante nesse contexto é expressa como
“interpretação dos significados da memória” e, ainda, “isso sig-
nifica que o processo de memorização possibilita reconstruir e
redefinir continuamente as identidades tanto individuais quanto
coletivas dos grupos negros” (2007, 30).
Recorrendo à memória como possibilidade de se trazer ao
presente histórias de vidas pessoais e grupais e relacioná-las ao
grupo de negros da sociedade brasileira, é possível perceber que
muitos são os sentimentos que ora afloram, ora ocultam-se.
A autora em foco remete às questões de trato étnico e re-
lacional, como pressuposto para ressignificar as interpretações
de relatos provenientes da relação de memória e subjetividades.
É das ressignificações das teias dos feitos sociais, sejam estes ob-
jetivos ou subjetivos, que se poderá ter o reconhecimento das
representações contextuais que se diferenciam e reconhecem as
desigualdades.
Para a autora, as subjetividades ressurgem, dando um nor-
te para os estudos de etnografia, que podem evoluir em suas pro-
postas didáticas curriculares e ter conteúdos que reinterpretem
as questões sociais objetivamente.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 221

Os autores acima identificados (Halbwachs: 2006; Bosi:


2003; Bernardo: 2007) apontam o tempo e o espaço como os
principais componentes da memória, da qual possibilitam um re-
torno ao passado. A análise desses três pesquisadores nos remete ao
objetivo deste trabalho, que, através da história oral e da memória
de velhas negras no Ceará, busca investigar como as questões de
gênero, lembranças e movimentos sociais podem se intercalar em
uma perspectiva de afirmação de identidades e do papel social de
mulheres negras idosas.

Subjetividade, diferenças e lembranças

De acordo com a socióloga Jeni Vaitsman (1995), da Fun-


dação Oswaldo Cruz, as transformações políticas, econômicas e
culturais que ocorreram nas décadas finais do século XX demar-
caram os modos de vida de várias populações por todo o mundo,
dando uma nova vertente às formas de organização social. Assim,
pode-se refletir que novos modos de vida, com uma participação
social mais consciente e efetiva, surgiram devido aos novos olhares
sobre as realidades de grupos socialmente excluídos.
A globalização, através do desenvolvimento econômico e
das tecnologias, não significou para os países emergentes, em de-
senvolvimento e pobres que pudessem mudar suas realidades so-
ciais com eficácia. Há várias consequências decorrentes da globa-
lização da economia e das tecnologias, conforme exposto abaixo.

Uma das consequências das mudanças técnicas sem contraparti-


da no plano da igualdade social foi o aumento da fragmentação
social, dos guetos pauperizados, a favelização das cidades, a ex-
clusão social. A coexistência entre mundos diferentes e que nem
sempre conseguem se comunicar é a realidade sociocultural do
capitalismo hoje, a qual apresenta várias dimensões conflitantes
(Vaitsman: 1995, 4).
222 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Das significativas mudanças ocorridas no final do século


XX e início do século XXI nos sistemas políticos, tecnológicos
e sociais, a criação de políticas que atendessem as exigências das
sociedades pós-modernas deu significado novo às formas de se
perceber a subjetividade: um olhar mais crítico.
A autora apresenta, então, a ideia de diferença, que nas no-
vas formatações das políticas e das sociedades defende que a plu-
ralidade passe a substituir as ideologias construídas no decorrer
da história das sociedades e que existam outras formas de fazer e
pensar as ciências exatas e sociais.
Jeni Vaitsman define as lutas sociais em dois paradigmas:

As lutas revolucionárias pela transformação global da sociedade


estão dentro do paradigma universalista; as lutas específicas cen-
tradas em reivindicações feministas, de direitos étnicos, sexuais,
religiosos, de qualidade de vida, estão dentro de um paradigma
contextualista (1995, 6).

Desse modo, grupos como mulheres, negros e homossexu-


ais passam a se definir socialmente como sujeitos de direitos espe-
cíficos e diferenciados para as categorias com as quais se sentem
identificados.
Para essa autora, são subjetividades diferentes que emer-
gem da exclusão social, em busca de seu lugar histórico, político
e social, tendo suas particularidades como expressão de suas pre-
senças, que ensejam serem marcantes diante dos direitos a serem
respeitados.

As subjetividades das mulheres negras nos movimentos


de mulheres

As trajetórias das mulheres negras no Brasil estão permeadas


de histórias que envolvem os contextos sociais, políticos, econô-
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 223

micos, religiosos e todas as formas de culturas que brotaram das


emergências e lutas dos movimentos sociais em diferentes déca-
das, com o intuito de incluir a população negra no usufruto de
direitos político-sociais.
Segundo Nilma Lino Gomes (1995), a palavra negro traz
em si uma gama de implicações sociais que levam à exclusão dos
africanos e afrodescendentes no Brasil. Como é um termo que em
muitos momentos da história foi e é utilizado de forma pejorativa
(como sinônimo de indolente ou preguiçoso), a gama de precon-
ceitos teima em permanecer cristalizada nas camadas sociais.
Segundo a mesma autora, o cerne da questão está nas defi-
nições encontradas para negro e branco, que, etimologicamente,
supervalorizam a pele clara e definem uma superposição racial e
social de brancos sobre pretos.
Ser negra no Brasil, segundo Nilma Lino Gomes, é possuir
uma gama de experiências nas lutas, é não conformar-se com o
que está posto social e politicamente, é permanecer nas metas e
nas contradições entre negar-se e afirmar-se nas suas origens étni-
co-raciais.
Para Petronilha Beatriz Gonçalves Silva (1998), o que se
quer com essa questão é que as mulheres negras, como conhe-
cedoras de suas realidades, possam dar voz às vozes caladas das
mulheres negras invisíveis nos diversos contextos sociais. Desse
modo, busca-se maior criticidade sobre as realidades em que estão
inseridas e o empreendimento de ações de ajuda mútua no senti-
do de resgate da dignidade das mulheres negras.
Muitas dessas mulheres não conhecem seus direitos e nem
mesmo desconfiam que vivem sendo estereotipadas, discrimina-
das e tratadas preconceituosamente. Petronilha Beatriz Gonçalves
Silva fala em superar a invisibilidade imposta aos descendentes de
africanos no Brasil, nas diversas esferas da vida nacional, e tam-
bém superar os números apontados pelas pesquisas, como os que
retratam que no Ceará há a negação da existência de população
224 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

negra, reforçando a ideia de que os sujeitos negros têm sido trata-


dos de forma displicente.
Com o olhar crítico da sociologia, Joselina da Silva (2009),
ao tratar da história de algumas mulheres brasileiras na diáspo-
ra - dispersão dos africanos e seus descendentes pelo mundo -,
comenta sobre quais lembranças as mulheres negras podem trazer
em suas memórias.
Em suas análises sobre o contexto histórico-social retratado
acima, destaca a resistência afrodescendente:

Um breve olhar na história das mulheres negras revela diferen-


tes marcos e fontes a considerar, ainda mais quando se pretende
abordar a organização social de mulheres e homens negros no
Brasil. [...] Deixados à margem das benesses advindas destes dois
fatos históricos e, por muitos anos, do processo decisório nacio-
nal, mulheres e homens negros organizaram-se e reagiram apesar
das diferentes discriminações (Silva: 2009, 10).

As mulheres em destaque na produção intelectual dessa au-


tora têm uma importância referencial para os movimentos sociais
negros, principalmente para o movimento de mulheres negras.
Dentre elas destacamos alguns nomes que compuseram os novos
movimentos sociais do contexto nacional: Lélia Gonzalez, Pedri-
na de Deus, Maria Nascimento, Dona Eunice Cunha, Nair Araú-
jo, Antonieta de Barros.
Nas percepções dessa pesquisadora, as mulheres negras com
as quais trabalhou em seu estudo, mesmo diante de suas lutas
entre dores, alegrias, tristezas, discrepâncias sociais e culturais,
afirmaram ser o Movimento de Mulheres Negras crucial para a
orientação de suas vidas e de seus descendentes, frente aos desafios
apresentados nos diversos contextos em que estão inseridos.
Nota-se, portanto, que os Movimentos Sociais de Mulhe-
res Negras, que atravessaram várias décadas da história do Brasil,
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 225

foram e continuam sendo um meio muito importante para o for-


talecimento de lutas e conquistas nos diversos contextos sociais.

Mulheres negras cearenses: histórias e memórias

Apoiando-se em um recorte de gênero, o presente trabalho


apresenta uma experiência inicial que dará suporte para uma pos-
terior pesquisa de mestrado sobre a história oral e as memórias de
mulheres negras que, na sociedade cearense, não são vistas como
pessoas que expressem importante contribuição política e social e,
por esse motivo, passam pela história oficial como invisíveis.
Para este trabalho, tendo como sujeito de pesquisa a mulher
negra idosa, utilizou-se como método de coleta de dados a en-
trevista pessoal, com os seguintes questionamentos: 1) Em quais
momentos de sua vida o fator ser mulher negra mais fortemente
se manifestou? 2) Como mãe, você orienta ou orientou seus/suas
filhos/as sobre o ser negro/a? 3) Quais as contribuições que você,
enquanto mulher negra, recebeu, ou não, dos movimentos sociais
negros que auxiliaram na superação dos preconceitos e racismos?
4) Como você percebe o trato social dado à população negra na
sua localidade?
Diante dessas indagações, é possível contextualizar as rela-
ções de gênero e raça em suas trajetórias individuais e coletivas.
Com essa entrevista, procura-se verificar, em primeiro plano, se
essa mulher se refere à vertente racial no tocante a preconceitos e
ações sociais que levam à discriminação.
As falas dessas mulheres poderão contribuir, posteriormen-
te, para uma nova compreensão da história da população negra
local. A tentativa desse primeiro exercício foi obter, dessa história
e memória, fatos que marcaram a vida dessa mulher e, consequen-
temente, lançam novas luzes sobre a história oficial e social.
Como características da entrevistada tem-se: mulher negra
que, por sua idade, é considerada velha por ter mais de setenta
226 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

anos; mãe e dona de casa; engajada em grupos de relação religiosa


e de convivência social para idosos/as.

Experiência de pesquisa com mulher negra e velha

A entrevista realizada por nós com a primeira interlocutora


aconteceu em sua casa. As lembranças que brotaram da memória
dessa mulher em alguns momentos faziam emanar contextos his-
tóricos e sociais que ocorreram na história do Ceará e de Fortaleza.
Em outros momentos, a partir de sua vida em família, recordava
acontecimentos da infância, da juventude e os mais recentes da
maturidade e da velhice.
Assim, apoiada na teoria de Teresinha Bernardo (2007), vi-
mos que a utilização da memória como componente do extrato
social para obter resultados em uma pesquisa pode ser uma meto-
dologia. Quando tratada pela antropologia, reafirma-se como um
recurso de interpretação da história.
Escutar histórias de vida nos moldes propostos pelo traba-
lho aqui apresentado permite que o sujeito de pesquisa seja um
participante direto, de viva voz, narrando suas histórias a partir de
suas memórias, ora selecionadas, ora espontâneas. Esse procedi-
mento muito há de contribuir para entendermos o oculto que fica
nas entrelinhas da história oficial.
Quando incentivada a falar sobre si como mulher, a entre-
vistada relatou sua relação familiar:

Eu sofria muito, porque eu não merecia que ele fizesse isso comi-
go. No final de semana, quando eu via fazer a barba e se arrumar,
eu sabia que ele foi farrear, só voltava na segunda-feira, mas eu
nunca dizia nada com ele. Eu chorava escondido dos meninos.
Fiz umas promessas. Eu pensava em ir embora, mas não tinha
para onde ir. Tinha o meu pai, mas era como se não tivesse.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 227

Nota-se nessa curta fala um claro exemplo de sexismo e ma-


chismo herdados da sociedade patriarcal. Percebe-se, ainda, que
o fator violência de gênero, nas formas emocional e psicológica,
deixou a relação do casal fragilizada.
Zelma Madeira e Dolores Mota (2010), ao tratarem desse
assunto, comentam que, das formas de o homem querer submeter
a mulher ao seu domínio, a violência de gênero – homem contra
mulher – é uma das maneiras mais perversas.
De acordo com as mesmas autoras, ao narrar suas histórias
com maridos ou parceiros, a mulher possibilita identificar de que
forma essas violências foram adentrando a vida do casal. Também
se torna possível perceber que mulheres vão se deixando submeter
e também as que vão enfrentar tal violência.
Diante das várias narrativas sobre a vida pessoal e familiar,
o fator racismo e preconceito racial se manifestou ao tocar na pro-
fissão de um dos filhos.

Quando o meu filho foi fazer medicina, eu pedi a ele que me


comprasse uma casa para eu ir morar nessa casa. Mas o jeito era
aguentar. Os meninos estudaram em escola pública e particular.
O meu filho (o mais velho) fez cursinho no Ari de Sá, pagou
com muito sacrifício, fez vestibular pra medicina.

Segundo a entrevistada, o marido achou que o filho médico


iria ser muito discriminado por causa da cor, pois aquela seria
uma profissão para pessoas ricas.
Ao ser questionada se seu filho havia sofrido discriminação
na universidade por ser negro, ela relatou: “Nunca comentou. Al-
guns médicos tentaram passar por cima dele. Desde jovem ele era
muito atencioso com o povo. Ele foi indicado para trabalhar na
Santa Casa. Hoje, ele foi agraciado com um troféu classe A”.
228 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Na narrativa dessa velha negra, conheceu-se que seu filho


foi, em período recente, o único médico negro da Universidade
Federal do Ceará.
Sendo negra, mulher e mãe, essa interlocutora sempre fala
dos filhos com muito orgulho. Demonstra grande admiração pelo
filho médico, que, diante da família e da sociedade, sendo um
homem negro, superou preconceitos e discriminações e se tornou
um pediatra de renome.
Ao ser inquirida sobre a ideia que teria de preconceito racial
e discriminação em sociedade, a interlocutora foi enfática em suas
respostas, demonstrando o grau de consciência crítica adquirida.
Confirma que a sociedade é discriminatória: “Qualquer coisa é
porque se é negro. Ninguém é melhor do que ninguém por conta
da cor da pele”.
Aparentemente, a entrevistada se encaixa no perfil da maio-
ria das mulheres negras das classes sociais pobres. Ainda na in-
fância, perdeu a mãe. O pai, ao casar-se novamente, dispersou as
filhas para morar com parentes ou com outras pessoas que não
estavam diretamente ligadas à família. A entrevistada trabalhou
como doméstica desde a infância até o casamento. Permaneceu
no reduto da casa a cuidar dos filhos e do marido. Não se profis-
sionalizou, apesar do desejo de ser professora, pois o marido não
permitiu que ela estudasse.
Relatou ainda uma época em que tinha vontade de mudar
de casa – que era alugada –, para uma casa própria, bem como os
preconceitos sofridos enquanto doméstica e babá na casa da tia,
que tratava de forma diferente ela e as filhas.
Teresinha Bernardo (2007), ao tratar das ocupações de tra-
balho das mulheres negras e velhas em sua visão sobre São Paulo,
já havia ressaltado haver nas lembranças dessas mulheres o desejo
de uma moradia digna, assim como a presença das questões de
discriminação racial e do trabalho de doméstica.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 229

Retomando as ideias de Halbwachs, vimos que o autor des-


creve que nossas memórias estão bastante ligadas à vida e à memó-
ria de outras pessoas ou grupos.

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas


por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós
estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto
acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros
estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sem-
pre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que
não se confundem (2006, 30).

A história oral dessa mulher negra entrevistada foi escrita


por ela, a partir de suas memórias, em um livro produzido no
grupo de idosos intitulado Cinco corações, no centro comunitário
do seu bairro.
Esse curto relato exemplifica a importância de o pesquisa-
dor se aproximar do sujeito de pesquisa e resgatar suas lembran-
ças, quando o objetivo é reconstruir uma história social que pare-
cia, até o momento, omitida na história oficial.
O negro, apesar de sua fundamental participação na ela-
boração da sociedade brasileira e na construção de nossa cultura
atual, ainda não ganhou o espaço merecido nas páginas da história
nacional.
Por esse motivo, resgatar as memórias dessas mulheres ne-
gras que vivenciaram e fundaram suas subjetividades em um con-
texto de exclusão social é um grande passo no sentido de ampliar a
narrativa dos fatos que fazem parte dessa história oficial a partir da
visão desses atores sociais que, até pouco tempo, não tinham sido
reconhecidos como protagonistas da história de sua sociedade.
230 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Referências

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São Paulo: EDUC/Editora UNESP, 1998.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1994.
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Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/acervo/
historiaoral>. Acessado em 25 de julho de 2012.
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que vi de perto. Belo Horizonte: Mazza,
1995.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São
Paulo: Centauro, 2006.
SILVA, Joselina da. Mulheres negras: história de algumas brasileiras. Rio de Janeiro:
CEAP, 2009.
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. “Chegou a hora de darmos à luz a nós
mesmas”. Caderno CEDES. Campinas, 1998, v. 19, n° 45, pp. 7-23.
VAITSMAN, Jeni. “Subjetividade e paradigma de conhecimento”. Boletim
Técnico do SENAC, v. 21, n° 2, mai.-ago., 1995.
XAVIER, Antônio Roberto. “Fonte escrita, fonte oral e memória: a importância
destes recursos na construção da história”. In: VASCONCELOS, José Ge-
rardo; SANTANA, José Rogério; VASCONCELOS JÚNIOR, Raimundo
Elmo de Paula & ANDRADE, Francisco Ari de (orgs.). História da educação:
nas trilhas da pesquisa. Fortaleza: Edições UFC, 2010, pp. 119-33.
ZELMA, Maria de Araújo Madeira & MOTA, Maria Dolores de Brito. Feminino
e feminicídio: estudos sobre relações de gênero, violência, feminilidade e cultura.
Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010.
A reestruturação social a partir de
uma manifestação religiosa no
interior paulista1

Mariana Vieira* 2

Um fenômeno religioso circunscreve e exprime a natureza


do sagrado. O sistema de doutrinas da religião corresponde à ne-
cessidade humana de esclarecimento dos enigmas do mundo, bem
como à necessidade de nomear e dar forma ao caos.2 A religião 3

vai ao encontro de demandas subjetivas para as quais o conjunto


das ciências não oferece resposta. Tais elementos consistem num
substrato da sociedade em relação ao qual a religião se mantém
propriamente como instituição, fazendo disso a razão de sua pró-
pria existência; sua objetividade consiste em tornar objetivo o que
é de ordem interior, produzindo relações que se objetivam so-
cialmente. Eis, portanto, seu caráter estruturante. Em sua prática

*
Graduada em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP).
1
Agradeço à professora Margarida Maria Moura, pelo auxílio e incentivo nesta
pesquisa.
2
Durkheim, em As formas elementares da vida religiosa, afirma que, “no fundo,
portanto, não há religiões falsas. Todas são verdadeiras a seu modo: todas cor-
respondem, ainda que de maneiras diferentes, a condições dadas da existência
humana” (1999, viii).
232 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

diária, as pessoas encontram nessa estrutura uma resposta para


seus apelos cotidianos.
Os estudos sobre religião podem captar a formação social
de determinadas sociedades, comunidades e associações (visando
à continuidade, no sentido do religare), o que é sinalizado desde
a mais remota ancestralidade que integra o universo simbólico do
homem.
Busca-se, aqui, entender o sentido da religião na sociedade
rural paulista, no contexto em que aquela se forma para orientar
a conduta de vida dos indivíduos, legitimar ou justificar violên-
cias, estruturas e tessituras tradicionais. A questão deste trabalho
é: como a experiência humana enquanto acontecimento excep-
cional, epifânico, pode se estabelecer enquanto um fenômeno re-
ligioso, em um mundo necessariamente quantificável e estrutural-
mente racionalizado? Ora, tal realidade não se esgota na pretensa
objetividade das análises das ciências humanas, uma vez que há
todo um conjunto de acontecimentos que excedem a categoria da
razão e não se reduzem ao instrumento conceitual.
Por conta dessa análise, deve-se considerar que a violência
estrutural da ordem dá sustentação às manifestações religiosas. No
cenário caipira, as narrativas religiosas podem ser vistas e aborda-
das de forma mais latente. As narrativas do ritual camponês são
plurais e abrem várias vias de reflexão, pois se atribui um valor
cosmológico próprio à orientação ritual camponesa que se organi-
za na construção do espaço do sagrado:

Eu vou contar essa história ela é pura e real


E até hoje no mundo não existiu outra igual
No interior de São Paulo que esse fato aconteceu
De um casal de lavradores muito humilde e plebeu
Numa casa pobrezinha uma criancinha um dia nasceu
[...]
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 233

Pelos mistérios de Deus a criança não comia


Só bebia leite e água em cima de uma tábua
que ele vivia
Deitado naquela tábua que gostava de ficar
[...]
Como “Menino da Tábua” ele ficou conhecido
E hoje muitos cristãos milagres tem recebido.12
[...]3

É no fenômeno religioso, alvo de análise neste trabalho, que


se concentram as formas de apreensão de vida, em especial no
contexto da região da cidade de Maracaí, oeste paulista. O fenô-
meno “menino da tábua” contém uma contradição básica: a de
ter sido em vida considerado, ao mesmo tempo, uma aberração
da natureza e polo de divindade.
Em 1900, nasce Antônio Marcelino, sem registro de batis-
mo (ato comum entre os camponeses da época) por pertencer a
uma comunidade rural distante da paróquia, além do fato de sua
família ter se convertido ao protestantismo. Vive parte de sua vida
no sítio Água do Matão (Assis-SP) e outra parte no sítio Água da
Fortuna (divisa da cidade de Assis com Maracaí). Vem a falecer no
dia 31 de agosto de 1945, sem assistência médica, e é finalmente
enterrado no pequeno cemitério de Maracaí, onde é erguida uma
pequena capela em seu nome para acolher pedidos, sacrifícios,
ofertas e agradecimentos. Em determinados momentos, o ritual
popular incorpora os efeitos de sua violência congênita (dado seu
aspecto terrível), neutralizando-os e reestruturando-os pela práti-
ca religiosa, na qual a ordenação das relações sociais parece sofrer
1

3
“O menino da tábua”, música consagrada pela dupla Pardinho e Pardal, cujo
sucesso serviu para ampliar o domínio público do fenômeno “menino da tábua”
e para construção de sua capela de milagres, no cemitério municipal da cidade de
Maracaí.
234 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

um abalo, ficando em suspensão, dado o acontecimento extraor-


dinário desse fenômeno. O “menino da tábua” é o elemento novo
de uma motivação religiosa que, ao mesmo tempo, interfere no
acomodamento da estrutura social e emerge como uma demanda
da mesma. Como não levar em conta que, segundo alguns relatos
da comunidade local, a primeira graça concedida foi a um lavra-
dor que pediu aumento de sua colheita a Deus em nome do “me-
nino da tábua” e, como forma de agradecimento, destinou parte
dela à família do “menino”, uma das mais pobres e numerosas no
bairro rural? Pelo que se pode observar, aquele lavrador significou
um fator novo por parte do social, a partir do qual o mesmo se re-
organizou, sacralizando o corpo (e sua aberração) que antes havia
criado um incômodo para essa mesma sociedade.

Metodologia de pesquisa e elementos de análise

Foram utilizados alguns tipos de métodos de coletas de


dados, a saber: 1) entrevistas abertas; 2) conversas informais; 3)
observação participante; 4) coleta documental (acesso às cartas
enviadas pelos fiéis). Nesse levantamento de dados, fica claro que
o fenômeno “menino da tábua” é da ordem do sobrenatural e per-
tence ao domínio das crenças, o qual, segundo Durkheim (1996),
deve ser conhecido e definido para que se possa adentrar pro-
priamente a estrutura do rito. Um fenômeno religioso tem como
característica essa dualidade categórica: as crenças e os ritos, sendo
que estes só podem ser elucidados enquanto maneiras de agir co-
letivamente pelas representações que constituem as crenças.
Foram feitas também filmagens e fotografias. Numa das
entrevistas com o zelador do cemitério, obteve-se a informação
de que no domingo anterior ao da visita ocorrera uma grande
festa em homenagem ao “menino”, mobilizando a cidade inteira,
a qual recebeu diversas caravanas e inclusive muita gente de fora
da região. Essa festa ocorre todos os anos, sendo muito impor-
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 235

tante para a cidade, tornada uma atração graças aos milagres que
o “menino”, na expressão da comunidade local, realiza. Segundo
o zelador entrevistado, o que mais caracteriza essa festa é, cate-
goricamente falando, o seu caráter religioso, destacando-se, nesse
sentindo, as quadras das folias de santos reis, os shows de música
de raiz, as missas e uma exposição de comidas típicas, tudo isso
constituindo um lastro no qual se pode observar um esforço de
atualização do rito, sem que se incorra em sua banalização. Isso
reforça a importância estruturante do fenômeno religioso.
Nas entrevistas concedidas, pode-se perceber a capacidade de
configuração do fenômeno narrado por tradição oral. Daí seu caráter
mitológico. Cada indivíduo, na sua rotina e na sua subjetividade, pa-
receu precisar de algo extraordinário para as resoluções que fogem da
práxis cotidiana de cada um. Em casos de doenças sérias, apelar para
uma instância maior traz conforto, esperança e apazigua a sensação
da iminência da morte. Os pactos de seguridade para com o santo
são seguidos metodicamente, mas dependem de cada praticante. No
campo pesquisado, houve casos de pessoas que não queriam declarar
a graça ou o pedido feito ao “menino” para não quebrar o pacto ou
banalizar a importância do milagre; em outros casos, a declaração
da graça e a repetição do ritual por parte do receptor demarcam sua
gratidão perene e seu pacto para com o “menino”.

Um corpo em excesso

O fator desencadeador desse fenômeno foi, portanto, um


corpo em excesso, fora do normal, que provocou um misto de
repulsa e atração – repulsa física e atração mística – por ele es-
tar nu e atrofiado, pelo terrível de seu corpo. Sendo incorporado
como figura mística, passou a “derramar graças” nessa reordena-
ção do espaço social e, assim, recolocado na via do sagrado. Dessa
maneira, esse corpo foi assediado durante sua vida inclusive por
moradores de sítios vizinhos, que buscavam nele auxílio e graças
236 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

para suas dificuldades. Segundo relatos, o “menino da tábua” re-


agia a cada visita recebida emitindo, como signos, o riso e o cho-
ro. Acolhido o visitante com o riso, este acreditava que obteria a
graça que quisesse; pelo contrário, quando o menino chorava em
sua presença, era sinal de que os pedidos e a vida do consultante
estavam fadados ao fracasso, insucesso e irrealizações pelo menos
por um tempo, até que as bênçãos do céu fossem alcançadas por
intermédio de um anjo similar a ele, que não tivesse a mácula da
maldade e comprovadamente não participasse do ciclo de vida
comum. Desse modo, o fator determinante desse fenômeno re-
ligioso pode ser interpretado como uma exigência por parte da
sociedade em resolver um dilema que é a sua própria reação diante
do estranhamento provocado pela condição física especial desse
corpo. O “menino da tábua”, afinal, apontava uma via religiosa
para essa sociedade, na qual bem ou mal se reconhecia.
O bairro rural em que nasceu o “menino da tábua”, antes
de sua eclosão como fenômeno, era alvo de missões protestantes,
sendo que uma das famílias convertida ao ethos protestante foi
justamente a do próprio menino em questão, chamado Antônio
Marcelino. Com o seu nascimento, alguns valores do ethos pro-
testante entraram em crise, trazendo para a comunidade a neces-
sidade de lidar com seu corpo e suas demandas. Sua condição
excepcional ultrapassava a vontade de sua família convertida, que
não o admitia como santo, mas que, por força da expressão que
adquiriu na comunidade, jamais conseguiu se relacionar com ele
de fora da esfera mística; o que demonstra a necessidade de adap-
tação da doutrina protestante à católica.
É possível observar que a cultura católica constitui-se como
uma espécie de lençol subterrâneo4 dessa sociedade, vindo à tona

4
Imagem utilizada em aula na disciplina Tópicos de Antropologia Rural, minis-
trada para graduação em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, pela
professora Margarida Maria Moura.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 237

quando as respostas das situações de vida, de angústia e aflição,


não surgem objetivamente, dando assim vazão e legitimando uma
resposta religiosa em consonância com a sociedade, que desse
modo resolve seu dilema incorporando elementos da fé católica
ao credo protestante vigente, ainda que, a rigor, nem o protestan-
tismo nem o catolicismo nesse caso possam ser levados em conta
no seu sentido canônico.
Nos relatos sobre esse fenômeno, fica claro que sua fama se
deve a milagres acontecidos na vizinhança. O “menino da tábua”
sustentava a própria família com os donativos recebidos de seus
devotos, os quais, em geral, consistiam em suprimento de alimen-
tos, parte da boa colheita que a fé depositada nesse santo popular
alcançava. Logo, tal santidade mostrava-se útil, não só para a sua
família, como também para toda a comunidade, ao menos se con-
siderarmos um valor religioso como um bem social.

O “lençol subterrâneo” do catolicismo

Na base do mito “menino da tábua”, que sustenta esse fenô-


meno social e religioso, encontra-se um ser sem sujeito. Antônio
Marcelino foi esvaziado de seu sujeito num processo de mistifi-
cação que o reconstruiu à sua maneira, produzindo nessa lacuna
a subjetividade implícita no fenômeno propriamente dito. Nessa
interpretação, ganha relevo o fato de as operações banais de uma
criança – com as deformações que Antônio Marcelino apresen-
tava, tais como rir, chorar, beber água e alimentar-se apenas de
pão e leite em suas refeições – terem se transubstanciado em um
conjunto de sintomas vistos pelos olhos dessa sociedade como um
acontecimento especial e, para todo efeito, extraordinário. Uma
vez que o “menino da tábua” não existe enquanto sujeito, resta
considerar seu fenômeno a partir dos dados “fantasmáticos” cons-
truídos a seu respeito, constituindo aquilo que se pode denominar
como sua recepção subjetiva por parte da sociedade rural paulista.
238 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Tendo se tornado, portanto, objeto sagrado desse sistema


social, seu ser revela-se um caso de religiosidade da ordem do so-
brenatural, isto é, místico e sem explicação. Tal objeto está inse-
rido numa rede de significações de tal ordem que, diante dela,
o pesquisador tem de estar em alerta para não incorrer em pura
mistificação, simplificando, pois, o mito, ou explicando-o a partir
de categorias exteriores. Aqui, o fenômeno é pensado enquanto
uma unidade de ação prática que influi no modo de vida de uma
sociedade, apaziguando, ao menos em parte, seus problemas e
conflitos ordinários, como a questão da terra, do poder político e
da própria conversão religiosa. Fato é que a região recebeu as mis-
sões protestantes e, a partir delas, reconfigurou seu mundo numa
perspectiva mais terrena, apresentando um ethos de valorização do
trabalho, de racionalização do mundo e seu consequente desen-
cantamento, com a ocultação das práticas mágicas. No entanto,
com o surgimento do fenômeno “menino da tábua” e seu corpo
estranho, assiste-se a uma revalorização da cosmologia católica
que coloca ao alcance da sociedade um conjunto de soluções reli-
giosas desencadeadas pela novidade que ele apresentava, tornando
assim possível um resgate do sagrado.
Podemos pensar o fenômeno religioso como um reflexo pu-
ramente objetivo do homem na estrutura social, sendo que, na
perspectiva deste estudo, o homem do campo é deliberadamente
religioso. Sabe-se que as religiões fundam o espaço do sagrado
como contrapartida à dissolução corpórea e à violência da decom-
posição, oferecendo em troca salvação e eternidade. Fenômenos
como o do “menino da tábua” parecem reforçar a ideia de que a
pureza e o sofrimento da carne sacralizam a vida, dando sentido à
existência, uma vez que para a vida em comunidade e para a per-
petuação da espécie não se deve imaginar um mundo totalmente
arruinado pela violência e desordenado pela morte. O fundamen-
to da relação do homem com o conhecimento do mundo é de
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 239

origem religiosa, “pois é a dimensão através da qual o homem se


liga a uma cosmologia de significações” (Durkheim: 1996, xix).
Que contribuição, afinal, pode dar o fenômeno do “meni-
no da tábua” aos estudos da religião? A pista que pode ser segui-
da é a de que a sociedade brasileira tem uma relação endêmica
com a doutrina católica, dada a sua formação histórica, o que nos
autoriza a utilizar a imagem de “lençol subterrâneo” para falar
desse elemento ausente que, em fenômenos como o do “menino
da tábua”, vem à tona, revelando-se atuante e decisivo. Um dos
aspectos da doutrina católica se apresenta dentro de um código
específico: o da corporalidade das representações simbólicas, que
acaba fortalecendo as significações de santidade, de vida peregri-
na, o que justamente dá vazão a esse fenômeno. A esse propósito,
Maria Izaura Pereira de Queiroz (1973), em suas considerações
sobre o catolicismo popular, afirma que os ritos e as associações
constituem-se como reforço de solidariedade grupal, e que a fun-
ção do catolicismo na sociedade brasileira é antes social do que
propriamente religiosa.

A comunicação religiosa

Nada em nós escapa da morte. Daí nos angustiarmos diante


dessa perspectiva. Ela, afinal, impele o homem a criar instituições,
sistemas de saber, religiões, em suma, o que é configurado dentro
da cultura e para a cultura. Seres descontínuos, finitos que somos,
buscamos a continuidade, o elo com o sagrado, afirma Bataille
(2004), e tal busca leva o corpo a exceder-se em experiências como
erotismo, sacrifício e êxtase. O fundamento de tais experiências
não é alheio à angústia diante da morte. Na experiência religiosa,
o fiel procura resolver esse conflito numa relação de transcendên-
cia, na qual se liga a Deus, entendido como resposta a seu projeto
de salvação. Nesse caso, há todo um código próprio pelo qual o
fiel pode se comunicar com Deus através do santo, seu interme-
240 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

diário, numa experiência de continuidade. Tal código permite o


reconhecimento de uma adesão baseada numa espécie de contrato
metafísico, tratando-se, no fundo, de um diálogo interior legiti-
mado pela subjetividade, o que garante previamente um efeito
positivo, já que o comunicante em última instância conta com
o atendimento de seu pedido. Essa relação também lhe permite
uma catarse, pois, ao expressar sua angústia em linguagem religio-
sa, praticamente se livra de todo o mal que o cerca. Assim, na lógi-
ca da devoção, a responsabilidade sobre o sofrimento em questão
passa a ser do santo. As cartas, recados ou bilhetes consistem, pois,
no gênero próprio dessa comunicação. São instrumentos necessá-
rios ao fiel, que desse modo garante materialmente a realização da
futura graça. A comunicação adquire, assim, um caráter sagrado.
A seguir reproduzo ipsis litteris trechos de algumas cartas
direcionadas ao “menino da tábua”, depositadas em sua capela:

“Menino da tábua.

Te peço em nome de Jesus. Que o meu irmão Anésio. Corra


tudo bem na cirurgia e no tratamento dele. Que derruba as bar-
reira no processo da nossa casa. Que o Juiz assine ao nosso favor.
Que derrube as barreira do meu processo da Dona Raquel. Ou
eu seja reconhecida no meu serviço e a gente consiga uma casa
confortavel que sermos felizes nela e com saúde eu e minha mãe.
Que minha mãe suporte tudo isso ki estamos passando. Que
minha a minha irmã ea minha cunhada Marta veja que elas estão
erradas. Mostre para elas o serto que elas se arrependam do que
estão fazendo. Com a minha mãe com eu. Que não falte dinhei-
ro, para nós pagarmos o nosso aluguel, enquanto não tivermos
nossa casa. Amém. Que o Júnior se transforme e se afaste das
amizades ruim que ele ainda se ele tiver ki ser meu que traga ele
por inteiro e transformado em nome de Jesus. Amém. De saúde
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 241

e fé trabalho para todos os meus irmão e todos os doentes da


minha família e necessitados. Amém. Jesus.”

“Araçatuba em 26 de novembro de 2010.

Antonio marçelino menino da tabua. Eu faço um pedido para


que minha mulher Euniçi Ribeiro de Oliveira seje curada de to-
das enfermidades que ela tem, seja curada em nome do menino
da tabua de maracaí e eu ci Deus assim nos ajudar e der vi ela
e saúde e levo uma foto dela pelo milagre que ela recebeu e eu
também com Deus nossa Senhora e o menino da tabua que vai
abençoar ela.”

“‘Menino da tabua’ interceda pela minha vida junto ao Senhor


Jesus Cristo para que eu arrume um serviço registrado para que
eu possa pagar as minhas dividas.

Prometo assim que eu conseguir colocar minha vida financeira


em ordem eu irei ai em Maracaí visitar seu túmulo fazer o meu
agradecimentos.

Tenho fé que vou conseguir. Amém.”

“Querido menino da tabua peço que interceda a Deus nosso


senhor Jesus cristo para libertar meus filhos Wallecen e Welsnon
do vicio da bebida alcolicas.”

Essas cartas revelam um caráter social problemático: são


procuras por trabalho, por curas de doenças, por resoluções de
causas jurídicas, as quais muitas vezes não são atendidas por um
Estado deficitário como o nosso. Ainda mais se levarmos em con-
ta regiões como a de Maracaí, sem expressão política para os go-
vernos, até por conta de seu contingente populacional.
242 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Note-se ainda nas cartas o tom de intimidade do fiel para


com seu santo de devoção, no qual deposita todas as suas esperan-
ças quanto a uma possível transformação de sua vida para melhor,
a despeito inclusive das falhas e erros de escrita, o que só aumenta
o poder da linguagem como veículo de comunicação. Tal comu-
nicação com o santo se faz, pois, numa relação que para ele, fiel, é
inconcebível sem que o sentimento e a fé na continuidade estejam
em sua base. O santo, no caso, “menino da tábua”, é aquele que,
baseado num contrato metafísico, vai interceder por ele e resolver
seus problemas.
Visitando a capela de milagres, pode-se constatar um tônus
comum na linguagem dos pedidos, que diz respeito à estrutu-
ra social como um todo. Dentre os eixos sociais representados,
destacam-se: a questão habitacional (há várias casinhas de madei-
ra simulando uma casa, fotos da casa que o fiel deseja comprar,
chaves, e objetos que se vinculam ao fazer doméstico), a saúde
(diversas fotos de pessoas doentes, objetos de cera em forma de ór-
gãos, simulando partes do corpo humano que precisa ou recebeu
milagres) e também o trabalho, pois boa parte dos pedidos visa
conseguir trabalho. A região de Maracaí é marcada por latifúndios
de cana-de-açúcar, deixando os camponeses sem muitas alternati-
vas e impulsionando-os a arrendar ou vender suas terras aos donos
das grandes propriedades. Com isso, são obrigados a procurar sus-
tento na prestação de serviços (no interior da capela, distinguem-
-se inúmeras ferramentas, tais como enxadas, carrinhos de mão,
foices, a fim de explicitar para o santo em imagens aquilo de que
necessitam).

Considerações finais: a espacialização do sagrado

Outra característica relativa à natureza do religioso é a espa-


cialização do sagrado e do profano. O cemitério onde o “menino
da tábua” está enterrado, no qual se ergueu uma capela em seu
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 243

louvor, apresenta essa espacialização. A capela se mantém bem


conservada, limpa e à prova de vandalismos, enquanto que em
suas outras dependências, o cemitério se mostra descuidado, reple-
to de túmulos e imagens abandonadas, com alguns até em estado
de ruína. Pode-se dizer que nesse contexto o cemitério representa
a função do profano e a capela resguarda as características simbó-
licas do sagrado. No cemitério há túmulos diversos, uns muito
sofisticados, com cruzes, que parecem pequeninas imitações de
igrejas, com anjos e santos enfeitando. Encontram-se outros ainda
muito simples, sem nomes, só ostentando o número de identifica-
ção, com carneiras abertas, sendo que alguns são delimitados com
gramas e cercas. Boa parte do cemitério traz túmulos em ruínas,
figuras angelicais sem cabeça, santos quebrados, e uma imagem
bastante curiosa: um cristo crucificado sem braços, expressando,
ironicamente, uma contradição entre corpo e espírito.
A relação entre o político e o religioso encontra seu ponto
nevrálgico na disposição das relações de poder retratadas nas au-
toridades constituídas, tais como: a figura do prefeito, do padre,
do “menino” e, por extensão, a do povo. A figura do prefeito é
legitimada na medida em que este se mostra seguidor e estimu-
lador das tradições religiosas; não podendo ignorar o fenômeno,
ele é obrigado a construir mecanismos afirmativos para o mesmo
(vale citar a construção atual do centro de atendimento ao turista,
visando melhorar o atendimento aos romeiros, que terão informa-
ções sobre missas e eventos relacionados ao “menino da tábua”). A
figura do padre, comprometida com a doutrina secular da Igreja
Católica, a qual tende a não reconhecer facilmente a santidade po-
pular, acaba tendo que enfrentar a tensão provocada por essa falta
de entendimento, fazendo uma síntese “reeducadora” da apreen-
são popular do fenômeno, ou seja, denominando-o, não como
santo, mas como um servo de Deus que passa para dar testemu-
nho da graça divina. No discurso do padre, o “menino da tábua”
seria então um corpo usado para manifestação do sagrado; assim,
244 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

ao depositarem sua fé no “menino”, os fiéis inexoravelmente se co-


municam, numa relação de transcendência, com Deus. O homem
comum se figura nas ações coletivas, ritualísticas, afirmando sua
existência a partir delas, construindo simbolicamente uma expli-
cação subjetiva para as tensões elucidadas pelas estruturas políti-
cas e eclesiais. Cite-se, a propósito, o livro A verdadeira história de
Antônio Marcelino (Ribeiro: 2010), escrito por um funcionário da
prefeitura, ex-vereador, que apresenta uma compilação de relatos,
imagens e testemunhos sobre o “menino”, em uma edição caseira
que reflete a importância prática de ordenação do sagrado. Tal
empreendimento, segundo o autor, deveu-se à demanda por infor-
mações mais detalhadas sobre a figura do “menino” e às solicita-
ções de romeiros e curiosos sem condições de procurar e sistema-
tizar esses relatos em um material de divulgação. A preocupação
com a “verdadeira história”, ainda segundo o autor, é constituída
para preservar a imagem de Antônio Marcelino, que poderia se
perder no tempo ou no processo de atuação das novas igrejas em
voga na cidade (as igrejas pentecostais e neopentecostais).
A ritualística observada revela que alguns rituais foram in-
cluídos no decorrer da construção do fenômeno, como, por exem-
plo, o fato de deixar imagens, fotos e cartas ao “menino” em seu
túmulo. Outros ritos foram “excluídos” (segundo a Igreja), como
o cultuamento de sua efígie, vendida e distribuída no oeste pau-
lista, sobretudo na região da cidade de Maracaí. Essas formas não
deixam de trazer o registro de um componente fundamental para
o inconsciente grupal da comunidade, a qual de certa maneira
se unifica em torno de um corpo que abre e fundamenta as pos-
sibilidades de conhecimento de mundo expressas em forma de
hierofania.
Parte II – Religião e movimentos sociais: comunicações 245

Referências

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BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
ELIAS, Nobert. A solidão dos moribundos, seguido de Envelhecer e morrer. Rio
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FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
HUBERT, H. & MAUSS, M. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naif, 2005.
JORGE, Salomão. A estética da morte, I e II. São Paulo: Resenha Tributária, 1944.
MARTINS, José de Souza. A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo:
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MAUSS, Marcel. “Esboço de uma teoria geral da magia”. In: ______. Sociologia
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MOURA, M. M. “Devoções marianas na roça e na vila”. In: Cadernos CERU
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NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo:
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PERNIOLA, Mario. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. São Paulo:
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QUEIROZ, Maria Izaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre a
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RIBEIRO, Claudio Junior. A verdadeira história do Menino da Tábua. São Paulo:
Markgraf, 2010.
RIBEIRO, Lídice Pinto. “Os mansos herdarão a terra” – estudo etnobotânico de
uma área rural protestante. São Paulo: Mackenzie, 2004.
Sobre os autores

Abner Francisco Sótenos


Mestre em História Social no Programa de Pós-Gradua-
ção em História Social da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro (UFRJ). Integra o Grupo de Estudos da Ditadura Militar
(GEDM), da UFRJ, e o Grupo de Estudos Cultura Documental,
Religião e Movimentos Sociais, da Universidade Federal do Esta-
do do Rio de Janeiro (UNIRIO). Desenvolve pesquisa, com bolsa
da CAPES, sob orientação do professor Carlos Fico.

Adriana Gomes
Mestra em História Política e Cultura na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tem especialização em Histó-
ria Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Graduou-se em História pela UERJ. É docente da Secretaria de
Estado de Educação (SEEDUC-RJ). Integrante do grupo de pes-
quisa Políticas, Direitos e Éticas, do CNPq, tem como orientador
o professor Edgard Leite Ferreira Neto.

Denise dos Santos Rodrigues


Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), vinculada à linha de pesquisa Religião e Mo-
vimentos Sociais em Perspectiva. Cursa doutorado em Filoso-
248 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

fia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UERJ, na


linha de pesquisa Ética e Filosofia Política. Tem mestrado em
Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro (IUPERJ) e especialização em Literaturas da Língua
Inglesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em Jorna-
lismo, na Universidade Gama Filho, e atualmente faz graduação
em Filosofia na UERJ.

Gisele dos Reis Cruz


Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pes-
quisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), da UERJ. Fez mestrado em
Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF), ins-
tituição em que também se graduou em Ciências Sociais. Atual-
mente, é professora adjunta da UFF, no polo Campos dos Goyta-
cazes. Coordena o Núcleo de Estudos da Modernidade (NEM),
vinculado ao Instituto de Desenvolvimento Regional e Ciências
da Sociedade, da UFF. Integra o projeto de pesquisa Experiências
da Modernidade na Arte e na Política, contemplado pelo Progra-
ma Apoio às Instituições de Ensino e Pesquisa Sediadas no Estado
do Rio de Janeiro, da FAPERJ.

Ivo Lesbaupin
Possui graduação em Filosofia, mestrado em Sociologia
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IU-
PERJ), da UERJ, e doutorado em Sociologia pela Universidade
de Toulouse-Le-Mirail, na França. Tem experiência na área de
Sociologia, trabalhando principalmente com os seguintes temas:
movimentos sociais, comunidades de base, Igreja Católica, poder
local, política, neoliberalismo, democracia e participação popular.
Sobre os autores 249

João Marcus Figueiredo Assis


Doutor em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Gradu-
ação em Ciências Sociais da UERJ, vinculado à linha de pesquisa
Religião e Movimentos Sociais em Perspectiva. Fez mestrado em
Memória Social e Documento na Universidade Federal do Esta-
do do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduou-se em Arquivologia
na UNIRIO e Sociologia na Universidade Cândido Mendes. É
professor adjunto do Centro de Ciências Humanas e Sociais da
UNIRIO e do Mestrado em Gestão de Documentos e Arquivos.
Coordenador do grupo de pesquisa Cultura Documental, Reli-
gião e Movimentos Sociais, desenvolve pesquisas e orienta alunos
dentro desses eixos temáticos.

Luci Faria Pinheiro


Doutora em Antropologia e Sociologia Política pela Uni-
versité Paris 8, na França. Fez mestrado em Extensão Rural na
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É professora do
Departamento de Serviço Social e do Programa de Estudos Pós-
-Graduados em Política Social da Universidade Federal Flumi-
nense (UFF). Coordena o Laboratório de Serviço Social, Movi-
mentos Sociais e Novos Projetos Societários na América Latina.
É membro da Rede de Trabalho do Assistente Social (RETAS),
vinculada à Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social (ABEPSS).

Mariana Vieira
Faz graduação em Ciências Sociais na Universidade de São
Paulo (USP), onde é pesquisadora do Núcleo de Estudos da Vio-
lência e do Núcleo de Antropologia Urbana.
250 Cidadania, movimentos sociais e religião: abordagens contemporâneas

Maria Saraiva da Silva


Mestra em Educação Brasileira na Faculdade de Educação
da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde desenvolve pes-
quisa sob a orientação da professora Joselina da Silva. Tem espe-
cialização em Metodologias do Ensino de História pela Univer-
sidade Estadual do Ceará (UECE) e em Gestão Educacional pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem licenciatura
plena em Ciências Religiosas e licenciatura específica em História
pela Universidade Veiga de Almeida (UVA). É professora e coor-
denadora pedagógica da Prefeitura Municipal de Fortaleza (CE).

Nadir Lara Júnior


Possui mestrado e doutorado em Psicologia Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professor e pes-
quisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Coordena
o Grupo de Estudos e Pesquisas em Ideologias Políticas e Movi-
mentos Sociais (www.tutepuxa.wordpress.com).

Ronald Apolinário de Lira


É doutorando em Ciências Sociais no Programa de Pós-Gra-
duação em Ciências Sociais da UERJ. Fez mestrado em Ciências
Sociais também no PPCIS/UERJ, vinculado à linha de pesquisa
Religião e Movimentos Sociais em Perspectiva. Tem graduação em
História pela UERJ. Professor do Centro Universitário Uniabeu, é
membro do corpo editorial da Recôncavo – Revista de História.

Vitor Barletta Machado


Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Cam-
pinas (UNICAMP). Fez mestrado em Sociologia na Universidade
de São Paulo (USP) e graduação em Ciências Sociais na UNI-
CAMP. É professor do Centro Universitário de Volta Redonda
(UniFOA), onde coordena o Comitê de Ética em Pesquisa em
Sobre os autores 251

Seres Humanos. Também integra a equipe do projeto Interven-


ção Socioambiental na Comunidade Quilombola de Santana, fi-
nanciado pela FAPERJ.
Formato 14 x 21
Tipologia: Garamond (texto) Gill Sans (títulos)
Papel: Offset 90 g/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)
CTP, impressão e acabamento: Amazém da Letras

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