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A Permanência das Formas:

O Papel do Mercado Público na Formação Urbana

Sidney Gonçalves Vieira


Universidade Federal de Pelotas, Brasil
sid_geo@hotmail.com

1 Introdução
O trabalho analisa a permanência dos mercados como forma de distribuição comercial na
Europa. Realiza um estudo comparativo entre diversas cidades e toma como estudo de
caso a cidade de Barcelona, na Espanha, onde é efetivada uma análise do modelo do
sistema de mercados de Barcelona e de outras formas comerciais existentes na cidade,
principalmente os Shoppings Centers. Fundamentado teoricamente na lógica de que
momentos históricos específicos engendram formas espaciais próprias, analisa a cidade
do período pré-industrial ao hipermoderno com ênfase na relação entre as formas do
comércio e a reprodução da estrutura interna da cidade. A partir da análise realizada
enfatiza o uso que as relações sociais de produção no capitalismo fazem da memória do
lugar, associado ao patrimônio cultural, para agregarem, a partir desses valores
subjetivos, valores objetivos às formas, sobretudo em seu uso comercial.

2 Hipermodernidade, comércio e espaço urbano

O trabalho inicia com a proposição de fazer uma análise teórica e prática acerca das
relações existentes entre as concepções culturais da hipermodernidade, relacionadas com
o comércio e o consumo e a produção do espaço urbano, com base nas formas do
comércio. Analisa a realidade a partir da perspectiva de que há a instalação de um
paradigma cultural que ultrapassa a modernidade e a pós-modernidade caracterizado pela
superação da lógica racional, a partir da implantação de uma concepção do mundo
orientada pela supremacia do indivíduo. Esta lógica, com tendência à universalização do
processo de produção da realidade como um todo, tem orientado um padrão de
comportamento que conduz à utilização de novos espaços para o comércio e para o
consumo, cuja produção implica em uma diferenciação material que exige novas formas.
Estas formas configuram uma estruturação do espaço diferente do padrão de localização
seguido pela cidade racional, moderna e industrial, produzindo uma estrutura que
apresenta múltiplas personalidades, analogamente chamada esquizofrênica. As formas
comerciais configuram lugares de comércio, cuja caracterização tende a ser específica em
função do tipo de comércio existente, dos consumidores e dos usos da forma. Ao lado
destes novos espaços persistem formas antigas, que mantém os mesmos usos do passado
e representam as metamorfoses que ocorrem na cidade. Estes fundamentos dão
sustentação ontológica ao trabalho proposto.
De outra parte, o crescimento da cidade e a mudança de paradigma representado pela
superação da modernidade e da pós-modernidade serão capazes de produzir novas formas
e configurar, no espaço urbano e, fundamentalmente, na metrópole em crescimento
constante, uma nova estrutura do espaço urbano. Sobretudo o uso do automóvel, que
desde a década de 1950 nos Estados Unidos da América e na França havia permitido o
afastamento do comércio do centro tradicional bem como levado à destruição do
comercio central nestes países, será responsável pela modificação na estrutura da cidade.
A criação da periferia nas grandes cidades não só como áreas de habitação, mas também
como áreas de grandes empreendimentos comerciais, nacionais e internacionais, é
garantida pela construção de grandes parques de estacionamento nas novas superfícies
comerciais. Agora a localização é determinada mais pela proximidade de grandes vias de
deslocamento, que garantem a acessibilidade fácil para o automóvel, do que pela
proximidade do centro. A mobilidade do consumidor, por um lado, e sua capacidade de
conservação dos produtos, permitiu a ampliação da área de consumo. A cidade constrói
uma nova estrutura, com diversas centralidades periféricas. Em Barcelona, cidade na qual
se baseia o estudo de caso, especificamente, este modelo de comércio de grande superfície
de localização periférica tardou a chegar, sendo seu início marcado na década de 1970.
Até então as grandes superfícies eram representadas pelos grandes magazines existentes
na cidade. Assim a cidade conseguiu manter uma estrutura em que permanecem os dois
modelos, o centro e as novas centralidades periféricas. Mesmo assim, ainda se tem uma
estrutura hierarquizada com pouca autonomia das novas centralidades.
Mais recentemente, e de modo geral, a partir da década de 1990, outro tipo de centralidade
começa a ser gerado, marcado não apenas pelo comércio de produtos e bens de consumo
tradicionais, mas também por formas comerciais que associam a isso a prestação de
serviços, diversão e lazer. Em alguns casos estas formas nem possuem o comércio como
principal elemento de atração e a centralidade é gerada por novos elementos que apontam
para um paradigma pós-moderno. São consumos baseados na imagem, no símbolo, na
capacidade midiática de um evento, muitas vezes.
Também esse paradigma pós-moderno se mostra em vias de ultrapassagem. Por certo que
a diversidade é uma característica que sempre marcou a cidade que, ao longo de sua
existência, tem sido o lugar da liberdade, do diferente, do tradicional e da vanguarda.
Entretanto, o que se observa nestes novos lugares do comércio da hipermodernidade é
que não se trata apenas de uma maneira de expressão de diversidade, mas sim de uma
lógica distinta, que tende para a criação de uma identidade diferente em cada lugar. Com
isso, a cidade vira um arquipélago, onde cada centralidade tem o sentido de uma ilha, ao
mesmo tempo isolada, mas ligada às outras por suas conexões, mesmo que sejam líquidas,
voláteis e construídas ao prazer dos interesses individuais, como em um rizoma. Assim,
as distintas centralidades que passam a existir na cidade são dotadas de personalidades
próprias, frequentadas por um consumidor específico que é atraído por subjetividades que
estão presentes nos usos propostos ou sugeridos. A cidade resultante tem o caráter da
esquizofrenia na sua estrutura por esse fato: múltiplas identidades. Por outro lado a
estrutura tem uma nova aparência, a do rizoma, justamente pela imprevisibilidade da
localização destas formas, que surgem em toda a parte do tecido urbano.
Assim, nesta relação existente entre os paradigmas culturais reinantes em cada período
identificado na história da urbanização podemos identificar, ainda que esquematicamente
e correndo os riscos próprios dos reducionismos, a seguinte correspondência com a
estrutura gerada para o espaço urbano: na cidade industrial, típica da modernidade temos
uma estrutura monocêntrica de base hierárquica; na cidade pós-industrial, típica da pós-
modernidade, observamos uma estrutura policêntrica baseada na fragmentação; e,
finalmente, na cidade hipermoderna, dos tempos hipermodernos, se verifica uma estrutura
rizomática em que a fragmentação é exacerbada, apontando para uma espécie de
esquizofrenia espacial.

3 O Mercado Público como Indutor da Cidade


Para o nascimento do mercado como equipamento urbano, coberto, há a necessidade que
surja uma nova concepção acerca do próprio espaço público, do seu uso efetivo e do papel
do Estado nesse processo, o que ocorre primeiramente na França revolucionária. Os
mercados franceses, a partir de 1790, passam ao controle exclusivo dos municípios e a
desapropriação de bens eclesiásticos e da nobreza vai permitir a localização privilegiada
de muitos mercados nestes edifícios desapropriados. Os mercados e outros espaços
passam a constituir um signo da modernidade institucional e técnica que caracteriza a
“cidade dos equipamentos”, garantida pelo Estado.
Seguindo o relato de Guàrdia e Oyón (2010), observamos que em seu estudo sobre os
mercados europeus os autores ao falarem da difusão e implantação do modelo identificam
quatro gerações diferentes de mercados. A primeira delas é a geração de mercados
construídos até 1850, basicamente constituída por mercados da Grã-Bretanha e da França.
Os mercados passam para o campo da Economia, pois se inserem dentro do conjunto de
ações que integram redes mais amplas de distribuição de alimentos. Com isso, a exigência
de rendimento e eficiência dessas formas também passa a ser um requisito importante. O
século XIX foi o século dourado dos mercados britânicos, evidenciado na documentação
apresentada por Schmiechen e Carls (1999, apud Guàrdia e Oyón, 2010, p. 24 e também
Schmiechen, 2010) que evidenciam a construção de 480 mercados entre 1821 e 1890.
Esse período é dominado pelo novo tipo de mercado totalmente coberto. No mesmo
sentido, a França irá ocupar o segundo lugar como referência europeia, com 253 projetos
apresentados entre 1801 e 1851. A análise desse processo é fartamente estudada por
Bailly e Laurent (2010), assim como por Lemoine (2010). Ao todo 40% das cidades
francesas vão ser dotadas de um sistema de mercados cobertos, ainda que nem todos se
construam ou possuam a imponência e a inovação dos mercados britânicos da primeira
metade do século XIX. Diferente do que ocorreu na Grã-Bretanha, na França os mercados
não serão principalmente de comércio atacadista, mas sim varejista.
O crescimento maior dos mercados franceses ocorre na segunda metade do século XIX
ainda que no final do Império de Napoleão, no ano de 1811, já tivessem sido construídos
em Paris quatro mercados cobertos, isolados e de grandes dimensões. Até 1850 são
poucos os exemplos que seguirão à Grã-Bretanha e à França, podendo ser verificada uma
ocorrência muito mais pontual do que sistemática como naqueles países. Ainda assim é
de se destacar a rede de mercados existentes em Turim, e os mercados construídos sob
influência francesa na Alemanha e na Espanha, ainda na primeira metade do século XIX.
A segunda geração dos mercados vai ter início no ano de 1850, quando ocorre uma
difusão do modelo francês do mercado de Les Halles Centrales. Aqui fica evidente o
domínio do ferro cujo uso foi também iniciado na França, em 1850, e que vai ser
continuado em outros países a partir de 1860, sobretudo. Até 1900 essa segunda geração
vai ser responsável pela difusão do modelo francês principalmente na Europa dos países
latinos e Ocidental. Grandes cidades como Barcelona, em 1870, vão iniciar os seus
mercados. Fora desses países, britânicos e latinos, no restante da Europa basicamente as
capitais e grandes cidades comerciais vão inaugurar mercados sempre seguindo o modelo
coberto e metálico.
A terceira geração de mercados ocorre no período entre 1900 e 1945, justamente quando
a construção dos mercados decai sensivelmente nos países pioneiros no processo. Esta
geração tem início com o mercado de Budapeste, na verdade no ano de 1897. Neste
período ocorre a expansão dos mercados metálicos para numerosas cidades médias e
surge uma nova marca no modelo que agora incorpora o concreto armado como material
de construção, principalmente nos mercados centrais. O trabalho de Omilanowska (2010)
mostra a importância destes mercados nas grandes cidades da segunda periferia europeia.
Ainda se pode observar uma quarta geração dos mercados que coincide com o abandono
definitivo de muitos mercados nos países chaves da difusão do modelo, principalmente
na Grã-Bretanha, França e Alemanha. Neste período, pós-1945, se dá a construção de
mercados nos países onde se havia retardado a introdução das cadeias modernas de
alimentação e do supermercado (GUÀRDIA e OYÓN, 2010).
O impacto territorial verificado pela implantação deste modelo de mercado é facilmente
sentido nos países em que o processo ocorreu de forma mais intensa. Na Grã-Bretanha o
mapa exclui a Escócia e o leste da Inglaterra e mostra a importância dos mercados nas
cidades mais industrializadas do norte e do oeste, onde a demanda por alimentos
certamente foi um fator que impulsionou o desenvolvimento do modelo de abastecimento
proposto pelos mercados. No caso espanhol se verifica o mesmo, pois nas regiões e
cidades mais industrializadas são nas quais mais se verifica o uso do modelo, como na
Catalunya, no País Basc e Asturies e depois em regiões com uma agricultura intensiva,
como València e Múrcia.
Guàrdia e Oyón (2010) atestam o fator da “capitalidade”, ou seja, o fato de ser capital de
Estado, como importante na hora de iniciar a construção de mercados. Apesar de se
ressentir da falta de dados para afirmação os autores também se arriscam em pensar acerca
da distribuição interurbana dos mercados “metálicos” que teria se dado de duas maneiras.
A primeira maneira apresentada por Guàrdia e Oyón (2010, p. 31), afirma que nas cidades
britânicas, ainda que os mercados fossem absolutamente inovadores pela sua precocidade
e pela sua dimensão, não são concebidos como equipamento de bairro ou distrito, ou seja,
um equipamento distribuído homogeneamente pela cidade. Somente depois de um tempo
é que haverá a produção de mercados descentralizados nas grandes cidades,
representando a segunda maneira de distribuição dos mercados, o que reforça a
centralidade do mercado principal e as novas estruturas passam a construir locais também
centrais, ou seja, confirmam os elementos iniciais do processo de fragmentação próprio
das cidades industriais.
Essa lógica de distribuição homogênea dos mercados foi típica de muitas cidades grandes
da Europa continental e de algumas da Europa central e já estava implícita nos projetos
de expansão a partir da segunda geração de mercados, de 1850. Isso se verifica em
Barcelona, com muita evidência, nas bases da comissão para o concurso do l’Eixample
de 1859, “com mercados proporcionais à população que ocupará cada uma das zonas em
que naturalmente se dividirá a cidade”. Assim também aparece com proeminência no
projeto de Cerdà que distribuiria com homogeneidade os onze mercados do Eixample,
com a centralidade do mercado do Born. Também em outros projetos essa proposta era
evidente, como aconteceu nos Estados Unidos da América, em Nova York, com cerca de
200 mil habitantes e 13 mercados cobertos repartidos pela cidade.
Fica evidente o efeito catalizador das relações de vizinhança que irão desempenhar os
mercados nesse período em que a distribuição de alimentos é tão significativa e
dependente de equipamentos como esse. De outra parte, ainda no presente, se observa
fortemente a centralidade dos mercados, evidenciando o poder que, por outros motivos,
exercem na vida das comunidades. A manutenção desta estrutura é coadjuvante no
processo de aprofundamento da fragmentação, no sentido simples de que ajuda a
configurar identidades locais que, em muitos casos se formam à revelia do processo de
produção geral do espaço urbano. Ainda que não se possa afirmar que nas cidades onde
esse processo não teve continuidade a fragmentação tenha sido menor, se arrisca a dizer
que o papel que estas formas exercem auxilia para aumentar o processo de criação de uma
cidade onde as localidades se aprofundam e se separam. A geração de uma centralidade
própria no entorno dos mercados se por um lado amplia a sociabilidade da vizinhança,
por outro cria laços de identidade e pertencimento que, nos tempos de isolacionismo
propiciados pela cultura contemporânea, favorecem também a exacerbação da
fragmentação.
Já no que diz respeito aos tipos arquitetônicos dos mercados cobertos é possível descrever
uma variação desde os mercados neoclássicos até o modelo de Baltard. O texto de Guàrdia
e Oyón (2010) é rico em exemplos arquitetônicos tanto no caso britânico como no francês.
Entretanto será mesmo o modelo decorrente da construção de Les Halles parisiense de
Baltard e Callet, o que terá maior repercussão. Com seu primeiro pavilhão inaugurado em
1853 foi, entretanto, o segundo pavilhão, inaugurado em 1854 que atendeu às exigências
postas pela sociedade, de um espaço mais leve e transparente que se consagraria como
um sucesso.
Cada um dos dez pavilhões cúbicos de estrutura metálica e vidro
dispunha de um grande espaço central que servia como organizador da
tipologia. Nas laterais, as paredes de vidro e o ligeiro fechamento
cerâmico deixavam bem visível o ritmo dos pilares metálicos da
estrutura, a qual se convertia em um modelo de simplicidade e de
elegância construtivas (GUÀRDIA e OYÓN, 2010, p. 36).
O modelo, graças ao seu caráter industrializado, se prestava a uma difusão massiva.
Somente em Paris foram construídos mais 32 mercados e nas cidades francesas centenas
seguiram o mesmo padrão básico. O processo de difusão se repetiu por todo o continente.
O modelo também é examinado à minúcia no artigo de Lemoine (2010) onde se dedicou
a estudar o caso francês.
Cabe destacar a dimensão da arquitetura modelo proposta a partir da circulação como
elemento fundamental para as vendas e, também, para o próprio controle dos produtos e
impostos por parte dos funcionários do Estado. Guàrdia e Oyón (2010, p. 42) lembram
Walter Benjamin ao comentar esse fato destacando que nesta dimensão reside
(...) o caráter da arquitetura pensada desde a circulação, com a sua
condição intrinsicamente funcional para um objetivo: o da exposição e
compra dos produtos, que somente poderia ser cumprida caso se
facilitasse um trânsito absolutamente fluído. Nas suas notas do Livro
das Passagens, Walter Benjamin já assinalava como as primeiras
construções de ferro, os mercados cobertos, as estações ferroviárias e
as exposições ‘serviam para fins transitórios [...], para momentos
funcionais da vida econômica’”.
Ainda será importante nesta estrutura arquitetônica a função que desempenham a
iluminação e a ventilação, preocupação em pauta na época em função da salubridade que
se buscava com princípios higienistas.
Com relação à gestão dos mercados evidencia-se a participação pública como majoritária
nesse processo. Apenas na Inglaterra e no País de Gales durante o século XIX a maioria
dos mercados era propriedade senhorial, mas com a transição da aristocracia para o
município que ocorre primeiramente nas grandes cidades, já no final do século a maior
parte dos mercados também era municipal. Nos demais países latinos da Europa esse
processo de municipalização ocorreu desde o princípio, sendo os municípios os
responsáveis pelo controle dos alimentos nos mercados. No caso espanhol como a queda
do Antigo regime se dá mais tardiamente esse processo também sofre um atraso e só se
inicia após 1834, quando a atividade mercantil foi liberada. Em Berlim se implanta um
modelo de rede de mercados controlados por um mercado central como forma de
organização da distribuição alimentar. Esse modelo, aplicado em outros países da Europa
central, contribui inclusive para o controle de estoques e preços, permitindo que o estado
exercesse um efeito regulador sobre o sistema, sobretudo em épocas de crise. Esse sistema
de mercados vai necessitar de órgãos específicos da administração voltados para o
controle dos mercados, com um funcionalismo que se especializa neste tipo de
administração. Em muitas cidades europeias no final do século XIX os mercados
constituem um dos poucos serviços ofertados aos cidadãos “em um período de domínio
inquestionável do laissez faire e de debilidade ou ausência de equipamentos de gestão
pública” (GUÀRDIA e OYÓN, 2010, p. 47). A boa gestão pública dos mercados irá
permitir que essas formas de comércio permaneçam por mais tempo como importantes
formas no processo de distribuição, comércio e consumo de alimentos nas cidades. Ao
contrário, a malversação dos aluguéis das bancas dos mercados não permitirá a renovação
das estruturas existentes e os mercados vão acabar perdendo espaço para a iniciativa
privada.
O impacto urbano dos novos mercados de alimentação cobertos é salientado por Guàrdia
e Oyón (2010) que tratam de elucidar, em primeiro lugar, o peso que essas formas tem
entre as demais formas de comércio urbano existentes. Ocorre aqui uma diversidade de
dinâmicas de acordo com o lugar observado. Em todos os casos os mercados competem
com as lojas de abastecimento existentes fora do mercado sendo complexo avaliar cada
caso sem estudar as minúcias particulares que os envolvem. Pode-se afirmar que, no caso
de Barcelona, os mercados tinham uma hegemonia quase absoluta no comércio de
produtos alimentícios. Ao comparar o volume de vendas de outras formas comerciais com
os mercados fica evidente a participação de muitos outros tipos comerciais fora dos
mercados, inclusive com práticas pré-industriais como a dos mercados ambulantes, que
em cidades como Nova York, ainda competiram fortemente com os mercados, ou os
próprios vendedores ambulantes fora do mercado, como ocorreu em Londres. Em cidades
grandes da Espanha, como Barcelona e Madrid o comércio ambulante vai seguir com
força durante todo o século XIX e renasce com força ainda maior na conjuntura de crise
dos anos 1930.
O impacto na estrutura urbana pode ser melhor analisado quando se compara cidades sem
mercado, cidades com um grande mercado no centro urbano e cidades com um autêntico
sistema de mercados repartidos de maneira homogênea pela cidade. A chave para o
sucesso do modelo parisiense de mercado-equipamento não está somente na criação de
mercados de distritos. Mas, também no de construir estes mercados em áreas de
densidades média e alta fazendo a articulação de uma população em número suficiente
para garantir que o mercado seja um negócio no mínimo rentável do ponto de vista
econômico e às vezes extremamente buliçoso do ponto de vista da sociabilidade.
Em 1914, por exemplo, quase todos os grandes bairros populares
barcelonenses, tanto os do centro como os dos subúrbios industriais,
possuíam um mercado metálico, e alguns grandes subúrbios até mais de
um. Equipamento e modelo de cidade compacta vão se unir aqui para
agir em conjunto e fazer das novas extensões urbanas no entorno dos
mercados áreas plenas de vida. (GUÀRDIA e OYÓN, 2010, p. 52).
Como explicava um manual de construção, no caso de Barcelona:
Cada um destes mercados serve de núcleo aos vários agrupamentos
urbanos da populosa cidade, facilitando assim o serviço, e fazendo-o
mais cômodo para os habitantes mais próximos. Rovira y Rabassa,
p.172 apud GUÀRDIA e OYÓN, 2010, p. 52).
Guàrdia e Oyón (2010, p. 52) fazem referência a outro documento cuja orientação dizia
que
Para cada vinte ou trinta mil habitantes se requer um mercado, de modo
que com o aumento de população de uma urbe quando exceda certo
limite traga consigo a necessidade de novos mercados. Não há melhor
expressão da lógica do mercado como equipamento.
No início do século XX os mercados cobertos eram polos funcionais importantes na
estrutura urbana principalmente no que diz respeito aos bairros. As bancas dos mercados
já não vendiam apenas produtos alimentícios, mas toda sorte de produtos domésticos. A
força de atração era ainda ampliada pelas lojas do entorno que exerciam um caráter
totalmente complementar e não competitivo junto aos mercados. Muitos dos vendedores
das lojas possuíam banca no mercado para ampliar a área de negócios da família. Com
isso o mercado se firmou como um centro de vida cotidiana que imita, em menor escala,
a própria área circundante. Assim como os vendedores dos mercados que eram
frequentemente moradores da vizinhança do estabelecimento os demais trabalhadores
também, o que acabava por gerar uma sociabilidade muito próxima do mercado.
Sempre temos pessoas do bairro – dizia uma compradora habitual do
mercado de Sants, um subúrbio popular barcelonense – [...], do bairro
inquieto, onde todos te cumprimentam quando caminhas, onde todos
sabem de todos, onde a gente faz a vida social no mercado e conversa
na lojas de alimentação. (GUÀRDIA e OYÓN, 2010, p. 54).
Chama-se a atenção para o fato do mercado aparecer como um local específico de gênero,
pois além das compradoras serem frequentes também as mulheres aparecem como peça
fundamental no trabalho de comerciantes nos mercados. O artigo de Miller (2010) se
ocupará dessa análise, particularmente, salientando o papel desempenhado pelas
mulheres nos mercados.
Entretanto, mesmo com toda a força que representaram na organização do espaço urbano,
na sociabilidade e na economia urbana durante o século XIX, sobretudo, isso não foi
suficiente para manter a hegemonia dos mercados na maior parte dos casos. Guàrdia e
Oyón (2010) vão identificar dois momentos distintos no que chamam de “ocaso” dos
mercados europeus. O primeiro ocaso já pode ser observado nos princípios do século XX,
principalmente nos países que deram início ao modelo. O primeiro e mais importante
ocaso ocorre na Grã-Bretanha, que tem lugar já a partir de 1890 e especialmente depois
da Primeira Guerra Mundial, de maneira que não se observa mais construção de mercados
novos entre 1910 e 1920 e são escassos os casos até 1950. A grande razão para a mudança
nos rumos do comércio de alimentos nas cidades é o domínio alcançado pelas cadeias de
distribuição controladas por grandes atacadistas que vão barrar a antiga relação direta
entre o produtor e o vendedor, que era a base do modelo de comércio e distribuição de
alimentos no século XIX. Grande número de produtos industrializados e importados vão
ser dominados por intermediários relacionados direta ou indiretamente com grandes
cooperativas e cadeias de alimentação. O mesmo ocorre no caso francês, onde os
mercados são perturbados pelos novos modelos de comercialização dos produtos
agrícolas e pela decadência da agricultura tradicional. Na França a vitalidade dos
mercados ainda se manteve por mais tempo, mas ocorreu que os cofres públicos passaram
a ter menor capacidade para investimento e renovação dos mercados, motivo que explica
a sobrevivência dos mercados ao ar livre. Nos demais países, nos quais o modelo coberto
chegou mais tarde, os mercados ainda eram protagonistas importantes do comércio no
início do século XX. Os novos mercados de concreto eram ainda construídos como forma
comercial inovadora em muitos lugares, como na Alemanha. O caso espanhol é bastante
significativo onde se observa uma modernização da rede comercial entre 1910 e 1936
também com a construção de um número grande de mercados. Em Madrid se pode
observar uma renovação do sistema de mercados ainda nos anos 1930 e em muitas outras
cidades onde não se havia construído mercado metálico passam a contar com o primeiro
e único mercado de concreto, sendo este, muitas vezes o edifício mais significativo da
cidade. De qualquer modo essa terceira geração de mercados foi muito menos
significativa do que as anteriores e não teve a mesma intensidade na difusão do modelo.
A maior parte dos mercados desse período é do tipo mercado central único que, portanto,
não ajuda a consubstanciar um sistema apoiado em uma rede de equipamentos como
antes.
Logo advém o segundo ocaso dos mercados, que ocorre depois do segundo pós-guerra.
Agora parece que se abateu uma crise estruturalmente definitiva sobre os mercados
causada, sobretudo pela progressiva motorização e dispersão da população. Esse processo
foi também corroborado pela longa falta de investimentos do período e pelas renovações
nos centros históricos. Por outro lado a revolução provocada pelo supermercado e pelo
autoatendimento vão conduzir a uma série de padronizações dos produtos que fazem os
mercados parecerem definitivamente uma solução anacrônica. A qualidade do produto
cada vez mais passa a ser vinculada à fatores ligados à aparência, como a marca ao invés
do lugar onde o produto é vendido. O surgimento das novas formas comerciais que
proliferam cada vez com maior rapidez a partir dos anos 1950 e 1960 é fundamental para
a derrocada dos mercados. Certamente
a demolição final de Les Halles, em 1971 (assim como o debate sobre
o Covent Garden) foi o momento mais dramático e mais visível desse
processo de destruição e abandono, o episódio que vai ter mais
repercussão internacional e que vai despertar a consciência sobre a
necessidade de conservar as estruturas do século XIX. (GUÀRDIA e
OYÓN, 2010, p. 62 – 63).
O caso de Barcelona se demonstrará como atípico, se não único na história dos mercados,
pois justamente no período entre 1939 e 1977 foram construídos vinte e seis mercados.
Alguns destes mercados serão substitutos de mercadillos1 que ocorriam ao ar livre, mas
a maioria será implantada como forma planejada de equipamento em zonas periféricas de
expansão urbana. Enquanto em Madrid se observa o desaparecimento dos mercados
metálicos em Barcelona, ao contrário, se verifica sua manutenção quase total. Guàrdia e
Oyón (2010, p. 63) explicam isso como sendo “o paradoxo de uma latecomer city que
manteve o legado muito mais denso do que as cidades que lhe serviram de modelo.”
Entretanto é preciso ressalvar que muitas outras cidades implantaram até mais
tardiamente do que Barcelona o modelo de mercado coberto, nem sempre como sistema
é verdade, mas nem por isso conseguiram manter esses equipamentos ativos com a mesma
intensidade que se verifica em Barcelona. Trata-se, pois, de um mérito que merece
explicações mais complexas e apontam para a adoção do mercado não só como um
modelo de distribuição alimentar, mas como modelo de processo estruturador da
urbanização. Em Barcelona os mercados se mantém não apenas enquanto patrimônio
edificado, mas também desde o ponto de vista do seu funcionamento comercial. Enquanto
no restante da Europa a decadência dos mercados cobertos se mostra de forma inegável,
assim como a diminuição da importância dos mercados no quadro do consumo urbano,
em Barcelona esses fatos aparecem de maneira diferenciada, talvez se possa juntar aqui
também Turim, na Itália, que conta com uma rede de 42 mercados construídos quase
todos no século XX.
Na França, que foi o país europeu com mais mercados cobertos no
início da Primeira Guerra europeia, ainda conta com 43% das cidades
com mais de 10 mil habitantes que tem um ou mais mercados, os
mercados descobertos já são três vezes mais numerosos do que os
mercados cobertos. Dos atuais setenta e oito mercados parisienses
somente há treze cobertos. (GUÀRDIA e OYÓN, 2010, p. 65).
Ainda seguindo Guàrdia e Oyón (2010, p. 65) observa-se que
o dilema fundamental com o qual se enfrentam os mercados ainda
existentes é de como salvar este capital construído, ou ainda mais

1
Os mercadillos, na Espanha, são formas de comércio que ocorrem em barracas ao ar livre, em dias e
locais previamente agendados, correspondendo às feiras-livres brasileiras. Ocorre que, na Espanha, a
palavra feira é usada para eventos e locais de grande porte, como acontece no Brasil com as feiras de
agronegócios e de exposições, as chamadas “expofeiras”, por exemplo.
importante, como reutilizar todo este ativo urbanístico que está
disponível de um comércio concentrado de proximidade como polo
estruturador da cidade.
As possibilidades colocadas para as diversas cidades europeias são muito vastas e podem
diferir tanto em função do papel que poderão vir a ter os mercados, seja como elementos
do patrimônio edificado ou como suporte à atividade comercial e estruturação das
cidades, em função da variedade de dinâmicas históricas que estão postas para cada lugar.
Na Espanha o impacto provocado pelas grandes superfícies comerciais vai demorar um
pouco mais para chegar e, entre 1984 e 1996 a expansão dos grandes formatos comerciais
vai coincidir com a adoção administrativa do modelo comercial francês. Como aconteceu
em Turim, com a rede de mercados ao ar livre, em Barcelona, com o sistema de mercados
cobertos, fica evidente a tentativa de utilização dos mercados como ferramenta de
organização da estrutura urbana, reconhecendo o valor urbanístico destas formas e
angariando urbanidade do comércio de proximidade.
Uma importante conclusão a que chegam os autores e sobre a qual já se tem investido em
analisar, aponta no sentido de que a manutenção dos mercados, em muitas vezes, exige
uma metamorfose das relações de produção existentes. Como afirmam Guàrdia e Oyón
(2010, p. 68) “estas intervenções melhoraram a infraestrutura e a imagem de muitos
mercados, porém a custo de uma diminuição das bancas de venda e do planejamento cada
vez mais tematizado das práticas do mercado”. Aponta-se, na verdade, para uma
tendência observada nestes casos analisados de transformações tão profundas que podem
subverter a própria natureza das atividades realizadas nos mercados, garantindo a sua
sobrevivência em termos de forma, adaptada por novas tecnologias, mas desistindo da
sua lógica original. Cada vez mais os mercados se tornam cênicos, adequados às
manifestações sociais e culturais hipermodernas e menos autênticos. Além do fato que já
pode ser observar com relação tanto a gama de produtos vendidos nos mercados
subsistentes, mais voltada a atender uma demanda inventada e turística, como à
majoração dos preços praticados em comparação com outros estabelecimentos, que
demonstram a seletividade de público que começa a se evidenciar.
Também Guàrdia e Oyón (2010, p. 68) advertem que
insistir apenas nesta visão aburguesada do mercado pode ser um
limitador e, à longo prazo, pode redundar em uma redução ilimitada do
consumo alimentar canalizado através dos mercados em benefício da
ascensão interminável de outras formas de distribuição que ofereçam
essencialmente preços mais baratos.
O dilema permanece em não seguir para o caminho que Guàrdia e Oyón (2010, p. 69)
chamam de “‘gentrificação’ exclusiva, ou uma ‘turistização’ ao extremo”. De fato, a
reabilitação promovida em muitos mercados recupera a ideia original dos primeiros
mercados britânicos, ou seja, a respeitabilidade burguesa. Isso pode levar a uma
segmentação social do consumo nos mercados. Contra isso, toda a experiência histórica
demonstra que os mercados sempre foram o lugar da heterogeneidade, do diverso, do
intercâmbio entre classes e, até mais, do popular. Se o mercado não for capaz de atender
a essa demanda multifacetada, transformando-se apenas no lugar da demanda requintada,
da curiosidade turística, ou do atrativo arquitetônico, teme-se o vaticínio conclusivo de
Guàrdia e Oyón (2010, p. 70) possa se realizar, ao sentenciarem de que assim os mercados
têm os dias contados.
Melhor seria uma política que pudesse combinar com a renovação também a
popularização da oferta alimentar, de modo que os mercados pudessem atender demandas
de vários setores e tivessem sua vida garantida pela plena inserção no sistema de comércio
de alimentos. Além do mais, não se pode tirar do mercado a sua essência que está fundada
na sociabilidade propiciada pelo comércio, que sustentou durante anos essa relação que
lhe permitiu fazer a cidade. Guàrdia e Oyón (2010) ainda acreditam na possibilidade de
que os mercados sejam capazes de estruturar as cidades, nas quais subsistem como
sistema, de uma maneira mais eficaz para a urbanidade do que aquelas cidades que
aderiram a uma urbanização extensiva e abandonaram os mercados. Acreditam que os
mercados sobreviventes podem contribuir para que a cidade não perca o seu caráter
verdadeiramente urbano, baseado na solidariedade, no pertencimento e apropriação do
espaço público. É uma tarefa hercúlea atribuída aos mercados, mas também um caminho
a ser trilhado, pois se abandonarmos à cidade às experiências e inovações de cada época,
fazendo tábula rasa do passado e seus ensinamentos, nos arriscamos a abandonar
irremediavelmente os liames que nos ligam à história enquanto processo. Retomar
práticas de um cotidiano urbano baseado nas relações humanas é fundamental para a
permanência do sentido da cidade.

4 Os Mercados de Ferro na Espanha

Em toda a Espanha os mercados de ferro do Século XIX constituem um patrimônio


urbano notável tanto pela quantidade de edifícios existentes quanto pela qualidade e
diversidade arquitetônica que possuem. Mesmo que se tenha observado o
desaparecimento desses edifícios na maioria dos países europeus, na Espanha
sobreviveram por mais tempo ainda com sua função original. Mas, com as mutações nas
formas e hábitos comerciais que sobrevieram com a modernização, muitos deles se
transformaram em problemas para as municipalidades, visto não atenderem mais as
necessidades de consumo e se transformarem, assim, em verdadeiros monumentos
anacrônicos muitas vezes em localizações privilegiadas. Principalmente os mercados de
ferro do Século XIX foram ignorados durante muito tempo enquanto patrimônio
arquitetônico quando mereciam um aprofundado estudo tanto por suas características
como pelos relacionamentos que produziram na cidade, atuando como verdadeiros
promotores da urbanidade.
Ao estudar os mercados de ferro do Século XIX na Espanha Castañer, (2010) estabelece
uma importante cronologia para o seu aparecimento que está muito relacionada com duas
razões fundamentais. De um lado as desamortizações2, que permitiram a reconversão de
uso do solo urbano e permitem as construções das áreas de expansão urbana, o que
permitiu, inclusive, um maior planejamento dos serviços. E, de outro lado, a produção de
uma transformação sociológica e demográfica das cidades que impõe uma reorganização
completa das funções e dos serviços urbanos com a afirmação do papel da instância
municipal como elemento articulador desse processo. Esses edifícios de mercados
públicos municipais tiveram suas construções iniciadas entre os anos 1830 e 1840 e
permanece até os anos 1930 quando o movimento moderno introduz o concreto armado
como principal material construtivo acabando com a supremacia das estruturas metálicas.
No caso espanhol, especificamente, não se pode esquecer a influência política observada
em função da Guerra Civil (1936 a 1939), cujo pós-guerra também representa um freio
no desenvolvimento do país.
2
As desamortizações na Espanha se caracterizaram por um longo processo histórico, econômico e social
que teve início no Século XVIII e persistiu até o início do século XX, por intermédio do qual foram postas
no mercado, mediante desapropriação e leilão público, as terras e bens inalienáveis pertencentes à Igreja
Católica ou a ordens religiosas e também terrenos baldios. Sobretudo a desamortização dos conventos
contribuiu para o processo de renovação urbana, pois muitas áreas foram transformadas em edifícios
públicos e novos loteamentos de expansão urbana (ensanche, em castelhano ou eixample, em catalão). A
maior parte dos mercados de Barcelona do século XIX foi construída em terrenos desamortizado de ordens
religiosas.
Consideradas as especificidades deste largo período em que se dá o domínio de uma
arquitetura baseada no ferro é possível distinguir, de acordo com Castañer, (2010, p. 234
- 235) três períodos distintos. O primeiro período se desenvolve de 1840 até 1874,
caracterizado pela construção de mercados que utilizaram materiais diversos como
madeira, pedra e ferro que, pouco a pouco passou a ser introduzido nessas construções.
Nesse período surge o mercado de La Boqueria, em Barcelona, por exemplo. No segundo
período, de 1875 até 1890 a Espanha conhece a adoção e implantação daquele modelo
criado por Victor Baltard, com a construção do mercado central de Paris. Trata-se do
privilégio de uma arquitetura baseada no ferro em grande parte da estrutura e dos
elementos de decoração e, sobretudo, concebida sob uma lógica funcional bastante
evidente. É o caso dos mercados El Born (1873-1876) e Sant Antoni (1882), em
Barcelona. Ainda se pode distinguir, então, um terceiro período, de 1890 até 1930, quando
se começa a abandonar o mercado de ferro do modelo Baltard e se o substitui pela
universalização do uso do aço, do concreto armado e da diversidade de linguagens
arquitetônicas e estilísticas. A grande maioria dos principais mercados espanhóis teve
origem nestes período, os que foram construídos depois representam outro tipo de
estrutura de menor importância na paisagem e na estrutura urbana e, em muitos casos, os
mercados remanescentes ainda hoje são exemplares desta época.
Do ponto de vista da localização geográfica dos mercados na Espanha também é possível
traçar uma análise com vistas a identificar a distinção de sua ocorrência. Como distingue
Castañer (2010, p. 235) a maior implantação dos mercados de ferro se verifica “em
cidades de marcado dinamismo sócio-econômico, produtivo e comercial ou com um
crescimento urbanístico e demográfico significativo”. Há marcada superioridade
numérica nas cidades na porção norte do país e na zona do litoral mediterrânico.
Barcelona, Madrid, Valladolid, Gijón, Oviedo, Santa Sebastià são cidades onde se
evidencia esse tipo de construção no norte e Málaga é um dos raros exemplos no sul. A
explicação para essa distribuição bem demarcada está no fato de que nessas cidades já
existiam edifícios de tradição comercial, mas sobretudo porque são portadores de
necessidades sociais e urbanas decorrentes das políticas municipais modernizadoras. O
mercado não representava apenas um edifício para o comércio, mas a expressão de uma
política de higiene pública e de distribuição de alimentos. Além do mais, em termos de
patrimônio, muitos destes marcados vão se constituir em verdadeiros ícones de alta
relevância para a cidade industrial e moderna, conferindo prestígio às autoridades
responsáveis por suas construções. Há que se considerar também alguns aspectos de
ordem regional, que dizem respeito principalmente às relações econômica da cidade com
o seu entorno e com outras regiões propiciado pela implantação da rede ferroviária a partir
de 1860. A industrialização não está dissociada deste processo, pois se verifica com
facilidade que as áreas mais industrializadas são justamente aquelas em que se verifica a
construção destes mercados pela rápida transformação e acessibilidade à indústria
metalúrgica local.
Com relação aos atores envolvidos no processo de construção dos mercados metálicos do
Século XIX Castañer (2010) salienta que é comum a memória coletiva atribuir todo o
mérito aos engenheiros ou ao serviço de profissionais estrangeiros. Mas, diferentemente
do que de fato aconteceu no caso das estações ferroviárias os mercados serão
responsabilidade das municipalidades e os arquitetos municipais, via de regra, foram os
autores dos projetos. Inclusive, a responsabilidade por tais projetos era um fato de
prestígio entre os profissionais, ainda mais quando se observava uma rivalidade muito
grande entre engenheiros, arquitetos e mestre de obra. Também as indústrias fornecedoras
de materiais vão ter um papel importante na construção dos mercados que, em
contrapartida, servirá de alimento para o crescimento de muitas delas já que oferecem um
âmbito de atividade muito interessante à siderurgia e à metalurgia, por exemplo. Aqui
também se observa uma grande participação de empresas espanholas, desde pequenas
fundições até protagonistas importantes da industrialização nacional. Na Catalunya, por
exemplo, a participação da empresa La Maquinista Terrestre i Marítima. Que será a
grande responsável pela construção dos mercados metálicos de Barcelona é um exemplo,
assim como a Fundición Torras, também de Barcelona, mas responsável por mercados
em Tarragona, Tortosa, Sitges i Saragosa. Assim também ocorreu em outras partes da
Espanha. É significativo o fato de que Castañer, (2010) identifique que o programa
arquitetônico dos mercados não pode ser explicado apenas pelos avanços das técnicas,
dos materiais e dos padrões construtivos. Evidentemente que não desconsidera a
importância que esse fator desempenha na construção desse modelo, entretanto, vai além
quando afirma que
Desde o final do século XVIII, se assiste, como vai dizer Bertrand
Lemoine, a transformação das funções e dos conteúdos do espaço
mercantil das cidades. A localização comercial foi deixando de ser um
espaço improvisado e dependente unicamente de uma economia isolada
e, frequentemente, de subsistência, para passar a converter-se em
instrumento decisivo de aprovisionamento das populações e também do
estabelecimento de preços em um sistema econômico aberto e
dinâmico. (CASTAÑER, 2010, p. 242).
Isso evidencia que os mercados não tem significado apenas pelo aspecto patrimonial e
arquitetônico cuja relevância inúmeras vezes tem sido corretamente destacada, entretanto
é preciso ir, além disso, para entender de fato o significado desses equipamentos no
sistema urbano e a importância que possuem na elaboração da estrutura e na regulação
dos fluxos, sobretudo do espaço interno das cidades. Reconhece-se, assim, que a
construção dos mercados implicava em uma dimensão urbanística, principalmente
quando foi concebido como um sistema de distribuição alimentaria por zonas ou em uma
estrutura hierárquica que articulava diversos centros de distribuição, como é o caso de
Barcelona. Há que se destacar que esse não é um fato típico dos mercados metálicos do
Século XIX, haja vista que nos memoriais dos projetos de vários mercados aparecem
constantes referências ao papel cívico e urbanístico desempenhado pelos mercados desde
a antiguidade.
A forma que irão assumir os mercados é o resultado de estudos que levam em
consideração não apenas os aspectos técnicos e estéticos do edifício, mas também
critérios de relacionamento com o entorno próximo. Assim, são discutidos os diversos
acessos externos, os corredores de circulação, os locais de armazenagem, entre outros
elementos importantes da forma a fim de que se adequem perfeitamente aos exigidos na
época. Sem renunciar aos valores estéticos e de comodidade era necessário levar em conta
os avanços alcançados no urbanismo e o desenho dos mercados deveria incorporar
critérios de funcionalidade, higiene e conforto. Segundo Castañer (2010) a definição do
programa arquitetônico do mercado vai ser construído tentando dar conta de responder a
três questões.
A primeira delas diz respeito à distribuição da planta e à organização da circulação, tanto
exterior como interior, de mercadorias e usuários. Da complexidade desses estudos,
baseados na intrincada relação de elementos da forma do edifício propriamente dita e do
espaço urbano circundante resultam pelo menos três tipos básicos de plantas para os
mercados. Um tipo vai privilegiar o princípio da regularidade sob a influência do uso
formas geométricas puras, de onde surgem plantas circulares, elípticas ou semicirculares,
muito comum nas peixarias, como no mercado de La Boqueria, em Barcelona, por
exemplo. Outro tipo de planta é o de perímetro quadrangular regular, seja quadrado ou
retangular, seguindo a tradição da praça fortificada e dos navios cobertos de madeira da
época medieval e moderna. É o caso dos mercados que seguiram o modelo de Les Halles,
de Paris, como o mercado El Born, em Barcelona. Também foi um modelo largamente
empregado em outros mercados pela funcionalidade da forma e adaptação mais fácil aos
espaços circundantes externos. O terceiro tipo de planta, ainda que de menor uso, é aquele
cujas características são singulares, impostas, via de regra, por elementos anteriores ao
projeto e que tem que ser respeitadas pela localização do empreendimento. Aqui aparece
a planta de formato cruciforme, como são os mercados de Sant Antoni e Galvany, em
Barcelona.
A segunda questão, com relação à definição do programa arquitetônico do mercado, diz
respeito à pesquisa de comodidade e da higiene, relacionado com um compromisso entre
o fechamento, que protegia o usuário das intempéries, e a transparência, exigida para
garantir a higiene e a iluminação natural. Muitas das soluções seguiram aqui os
ensinamentos de Baltard aplicados em Le Halles Centrales, principalmente a
sobreposição de arcos e coberturas sobrelevadas que permitiam a ventilação e a entrada
de uma luz difusa sobre a planta. O caminho foi buscado desde as praça-mercados
cercadas de arcos com um espaço central descoberto, como foi o mercado La Boqueria,
até os modelos de ferro com cobertura, à moda de Baltard, como no caso do mercado El
Born, ambos em Barcelona. Seguia-se, aqui, uma determinação da época que exigia a
luminosidade e a ventilação como elementos determinantes da higiene.
Por fim, a definição do programa arquitetônico do mercado era também dependente dos
equipamentos e das instalações hidráulicas. Tanto o fornecimento como a evacuação das
águas pluviais e residuais vai ser uma questão recorrente nos estudos dos mercados pela
importância que tais sistemas terão para atender as questões de higiene pública. A solução
para essa questão não está na dependência exclusiva dos mercados uma vez que precisam
ser conectados a um sistema público de fornecimento de água e de esgotos. Com isso os
investimentos municipais vão ir além dos edifícios em si, pois precisam construir redes
ou ampliar as existentes para atender a essa demanda.
Também a melhora de acesso à luminosidade natural nos edifícios monumentais foi
melhorada pelos procedimentos construtivos permitidos pelos desenvolvimentos
industriais. Além da soluções arquitetônicas permitidas a invenção da luz de gás foi um
elemento importante para permitir a ampliação do horário de trabalho e até para permitir
uma independência total para as operações comerciais.
O autor (CASTAÑER, 2010) dedica ainda uma parte do estudo para analisar as
linguagens estilísticas e os repertórios formais utilizados pelos mercados. Avalia a
evolução do neoclassicismo ao ecletismo e do modernismo ao movimento moderno de
forma aprofundada. Entretanto esses aspectos mais ligados à aspectos estilísticos da
arquitetura não constituem objeto de análise do presente trabalho, motivo pelo qual não
se fará comentário desta parte.
Restringindo a análise à implantação do modelo de mercados cobertos europeus ainda
assim as referências poderiam ser múltiplas e muito variadas, motivo pelo qual os autores
se preocupam em expor os significados contidos na sua descrição. Nesse sentido, em
primeiro lugar, os mercados cobertos do século XIX significam a reforma de vida do
mercado tradicional ao ar livre, a reorganização funcional das ruas (circulatória e de
novos usos) e também uma renovação moral, em referência às condutas descontroladas
verificadas no espaço público dos mercados. Ainda será necessário levar em conta, em
segundo lugar, o impacto econômico desses novos artefatos na distribuição dos alimentos,
pois isso representa uma alteração significativa na própria oferta existente em termos de
variedade, de qualidade; também representa uma mudança nos hábitos de consumo
alimentares a partir daí e uma melhora no provimento de alimentos à população.
Lembram os autores, em terceiro lugar, que não se deve negligenciar o impacto social
que representam os mercados, tendo em vista que criam um forte referencial de
sociabilidade, um novo foco de vida e uma visibilidade diferenciada para o papel da
mulher no espaço público, tanto como compradora como vendedora. Ainda, em quarto
lugar, deve ser considerado o impacto político-administrativo dos mercados cobertos já
que reforçam as debilidades da administração pública em termos de gestão pública de
provimento urbano, inclusive administrando em muitos casos os mercados como
geradores de uma receita importante para os cofres municipais. Em quinto lugar, os
autores destacam o que se mostra mais significativo no entendimento deste trabalho, ou
seja, o impacto urbanístico desta nova caracterização do espaço público. Aqui cabe
salientar o papel fortemente articulador dos mercados com relação à polarização dos
bairros nas compras diárias e na distribuição do comércio varejista. Os mercados irão
desempenhar um papel de aglutinador de forças, de sociabilidade, de vizinhança e de
pertencimento a um determinado lugar. Criam, em outras palavras, um vínculo importante
entre o sujeito e o lugar que se pode dizer fundamental para a construção da identidade,
tanto do lugar como do sujeito. A partir dos mercados são reforçados os laços primários
dos relacionamentos entre pessoas que convivem, sejam comerciantes ou compradores.
Em sexto lugar, os autores destacam outro elemento que também tem chamado nossa
atenção na discussão deste tema que se trata da inovação tipológica do ponto de vista
arquitetônico destes novos edifícios. Aqui se trata de analisar, então, a contribuição que
essas formas trazem à organização funcional, à inovação construtiva, impacto visual e
questões relativas ao patrimônio edificado propriamente dito. Por fim, em sétimo lugar,
chamam a atenção para outro elemento que tem nítida importância para a análise
geográfica dos mercados, qual seja o impacto territorial, em certo sentido, regional, pois
destacam a relação entre as cidades industriais ou de economia agrária desenvolvida, com
a rede ferroviária e também o papel da rede urbana de cidades com novos mercados.
Acrescentaríamos a esta lista três fenômenos que também nos chamam a atenção neste
estudo e que merecem, todavia, um maior aprofundamento. São fenômenos ligados ao
que chamaremos de semiótica da paisagem, por se relacionarem diretamente à
interpretações possíveis das formas materializadas no espaço que são, ou foram, os
mercados. O primeiro, diz respeito aos mercados como locais entendidos enquanto
suportes da memória. Isso porque, sobretudo nas cidades onde os mercados tiveram sua
importância declinada em função das novas formas de comércio que se multiplicam cada
vez mais rapidamente, esses espaços, quando sobreviventes, contêm histórias do
comércio, vivências de pessoas e experiências de vida intimamente relacionadas a eles.
São histórias orais que podem trazer ao presente elementos perdidos nas diversas
transformações por que passaram esses lugares, sendo assim, um importante substrato
para a pesquisa do comércio e da importância dos mercados de modo geral, bem como
para a vida social das próprias pessoas e para o cotidiano urbano. O segundo fenômeno,
ainda relacionado ao mercado enquanto suporte físico de subjetividades incorporadas, diz
respeito ao significado imagético dos mercados, talvez o mais importante na atualidade,
que nos remete diretamente à semiótica da paisagem em que esses mercados aparecem
como representações as mais diversas do imaginário urbano. Neste aspecto, caberia
lembrar que a função atual de muitos mercados está diretamente associada à interpretação
do papel que podem desempenhar como representante de significados perdidos. Tanto o
turismo como a reconversão urbana irão se utilizar desse aspecto associado a essas formas
para atuarem no presente, o que reforça a importância desta linha de análise que irá levar
em conta os valores simbólicos subjetivos que de maneira objetiva podem ser
incorporados à forma. Nestes tempos em que os mercados são discutidos como uma
realidade importante, pelo menos do ponto de vista de sua preservação patrimonial e
funcional, este elemento não pode ser desconsiderado para análise de uma fantasmagoria
dos mercados. E, em terceiro lugar, também associado aos anteriores aspectos e ao da
inovação da tipologia arquitetônica elencado anteriormente, está a questão patrimonial
dos edifícios dos mercados. Em muitas cidades, como se chamará a atenção, durante
muito tempo e em algumas quiçá até o presente, esses edifícios representam o elemento
edificado mais importante da cidade. Carregam consigo características de estilos diversos,
implantações e acréscimos que contam também os valores que se incorporam à obra.
Deste modo, também pelo patrimônio histórico se encontrará um sentido importante para
a análise.

5 Os Mercados em Barcelona

Apesar de todas as transformações observadas nas formas comerciais ao longo do tempo


a cidade de Barcelona, mais do que qualquer outra estudada, conserva os mercados
públicos como uma manifestação importante do comércio varejista, sobretudo de
produtos naturais de origem hortifrutigrangeira. Os mercados estudados em Barcelona
são aqueles que surgiram, ou se transformaram drasticamente, na segunda metade do
século XIX. Justamente por se entender serem estes representativos de toda a
transformação pela qual passava a sociedade da época, acolhendo na sua forma, com o
uso do ferro e do vidro, a nova organização do comércio e do consumo resultante do
aumento populacional, da industrialização e da maior oferta de produtos. Os mercados
representam também a submissão dos pequenos proprietários aos comerciantes.
Ocorre que as mudanças sofridas pela sociedade contemporânea são mudanças
estruturais, advindas de mudanças tecnológicas, sobretudo no transporte de pessoas e
mercadorias e nos meios de comunicação. Estas mudanças tem a capacidade de alterar a
organização social e, decorrente disto a correspondente organização espacial. Ascher
(2004) apontou muito bem este processo ao analisar a forma da cidade contemporânea a
qual chamou de metápolis. Neste mesmo sentido, este estudo pretende demonstrar que a
estrutura atual da cidade pós-industrial (ainda que não seja necessariamente pós-urbana
como chegou a ser apontada por muitos), está fortemente relacionada com as
transformações que se passam no comércio e no consumo. E, neste sentido, tanto as novas
formas irão atestar um novo padrão de distribuição e concentração de atividades e
pessoas, como as velhas formas, graças às metamorfoses a que são submetidas pelo
capitalismo farão o mesmo, gerando um padrão de uso do espaço urbano que tende a
concentrar em lugares específicos gerando as múltiplas personalidades que caracterizam
as metrópoles atuais. Se em um primeiro momento o modelo modernista, racional e
hierarquizado da cidade industrial foi substituído por uma proliferação de novas
centralidades, o que se observa é que estas centralidades tendem a se tornar autônomas,
gerando suas próprias lógicas e relacionamentos, tornando o espaço urbano um espaço
análogo a uma personalidade esquizofrênica.

Conclusões

Ao longo do tempo as transformações verificadas no modo de produção capitalista


ensejam mudanças também no comportamento do comércio e do consumo. Os
consumidores mudam, o comércio muda, tudo ao mesmo tempo e de maneira quase
imperceptível, às vezes, ou de modo abrupto, outras. A cultura moderna foi capaz de
introduzir o consumo em massa e a industrialização propiciou a produção de bens de
consumo de uma maneira tão veloz que introduziu também novas necessidades. Se a
produção industrial se orientou pelas necessidades, em um primeiro momento, foi capaz
de produzir necessidades, logo em seguida, se antecipando às demandas dos
consumidores e mesmo induzindo-as. Também as formas do espaço comercial se
alteraram, atendendo as mudanças da tecnologia e se adequando às novas exigências do
capitalismo em mutação permanente. Desse modo, o espaço do terciário também sofre
mutações: o grande magazine do início da modernidade se transforma na loja de
departamentos que evoluiu para o Shopping Center e continua em mudança. O espaço
urbano onde ocorre o comércio também se transforma, procurando atender às exigências
colocadas pelas metamorfoses do modo de produção: o comércio urbano centralizado se
pulveriza, os centros se adaptam aos pedestres, as formas antigas cedem lugar aos novos
usos e funções e se adaptam continuamente seguindo o movimento do tempo. Quando
não acompanha esse movimento, o comércio se desloca, produz novas centralidades,
abandona os sítios originais e provoca mais transformações no velho e no novo lugar.
Todas essas transformações ocorrem pelas adaptações do modo de produção capitalista
ao movimento da história, no sentido de manter sempre sua hegemonia, sobrevive
(LEFEBVRE, 1973). Ao sobreviver, pela metamorfose, provoca movimentos similares
em outros setores, como no comércio, provocando, do mesmo modo, metamorfoses. A
este respeito estudo anterior (VIEIRA, 2002), aprofunda esta discussão.
O trabalho analisa de que maneira as formas comerciais podem influenciar a produção da
estrutura do espaço urbano. Pretende-se trabalhar com a perspectiva de que novas formas
de comércio, pautadas em uma lógica que ultrapassa os paradigmas racionais da
modernidade, são capazes de produzir uma estrutura urbana diferente daquela
experimentada pela cidade moderna. Deste modo, estamos diante de uma relação muito
forte entre as formas do comércio e a produção da estrutura da cidade. Estas novas formas
se instalam sob uma dinâmica que não segue mais a localização tradicional do comércio,
ou seja, reforçando a centralidade mononuclear existente, mas produzem, elas mesmas,
uma nova centralidade. Estas centralidades, em si, possuem a tendência de serem
autônomas muitas vezes desvinculadas do entorno. Para a análise de um caso concreto
foram escolhidas algumas categorias de análise que possam fundamentar o estudo. Assim,
se elegeu trabalhar com a categoria lugar, contemplado aqui sob uma dupla lógica, a do
lugar vivido, reconhecido e identificado pelos seus usuários, no sentido de um lugar que
estimula o convívio, a interação, a intercomunicação entre os usuários e outras relações
de ordem primária; e, em contrapartida, a outra lógica, se apresenta em lugares cuja
dinâmica é avessa ao encontro, à intercomunicação e ao convívio relacional. Os
primeiros, Castelo (2008) chama de lugares de urbanidade, os segundos, de lugares de
clonagem.
O estudo tomou como caso a cidade de Barcelona, na Espanha. Para realização da análise
da realidade local os mercados municipais foram escolhidos como lugares representativos
do primeiro caso, ou seja, daqueles lugares de urbanidade. Os shoppings centers foram
tomados como exemplificativos dos lugares de clonagem, ainda que estas categorias não
necessitem aparecer, como de resto não aparecem, de forma absoluta nestes lugares. Para
fundamentar a análise ainda se utilizou as categorias do estímulo percebido e percepção
estimulada (CASTELO, 2008), de forma a complementar o entendimento destes lugares.
Analisa-se que os lugares de comércio são capazes de gerar uma espacialidade, a partir
das relações de consumo que engendram, podem, por um lado, desenvolver uma
territorialidade dotada de urbanidade, convívio, relacionamentos pessoais e autonomia
(livre arbítrio, autodeterminação), no sentido de que os consumidores tenham maior
liberdade na eleição dos bens que irão consumir no que diz respeito à identidade com seus
próprios hábitos. De outra parte, há lugares em que as relações sociais geradas são capazes
de produzir heteronomias (sobredeterminação, alienação), se impondo sobre a vontade
em uma fetichização evidente (BRUNO, 2010, p. 16). Os mercados municipais
representariam melhor o modelo de comércio dotado de urbanidade, porquanto os
consumidores estabelecem relações mais próximas, escolhem de forma mais direta os
produtos e encontram estes produtos apresentados em seu estado mais próximo do
natural. Enquanto os shoppings centers estariam mais próximos de um lugar clonagem,
ou seja, dotado de uma homogeinização que não gera identificação com o consumidor,
não oferece escolhas que não sejam pré-formatadas, escolhas que independem do
interesse do consumidor, os produtos são mais estandartizados, em certo sentido. Com
isso, os mercados tendem a apresentar um consumo ligado ao local onde estão inseridos,
criando maiores vínculos entre os comerciantes e os consumidores, estabelecendo
maiores relações entre os envolvidos no processo de comércio e consumo. Ao passo que
nos Shoppings Centers a tendência é a de um relacionamento intermediado pelos papéis
desempenhados por comerciantes e consumidores, quase sem interação.

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