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Maurício Silva1
Resumo
Este artigo trata da relação entre a Lei nº 10.639 de 2003, que tornou obrigatório o estudo de história e cultura
africana e afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio, e o currículo escolar, relacionando-o a temas
próprios desses universos culturais. O objetivo do artigo é discutir a aplicação de um currículo afrocentrado,
tomando como ponto de partida o conceito de afrocentricidade, proposto pelo educador afroamericano
Molefi Asante. Discute-se, nesse sentido, a promoção de práticas de interação dos diversos contextos sociais
nos quais os alunos estão inseridos, dentro da dinâmica histórica e cultural própria do continente africano. A
análise explora o conceito de afrocentricidade, divulgado nos Estados Unidos da América entre os anos 1980
e 1990, sobretudo por Molefi Asante, conceito que tem em seus fundamentos as teorias da negritude de Aimé
Césaire e do pan-africanismo de Du Bois e Garvey. Segundo Moleti, a ideia de afrocentricidade se opõe à visão
excludente, discriminatória e preconceituosa que a cultura eurocêntrica historicamente manifesta, defendendo
a assunção dos afrodescendentes como sujeitos e agentes de práticas culturais e escolares.
Palavras-chave: Cultura afro-brasileira. Currículo. Educação. Relações étnicas.
Abstract
This article analyzes the Law nº 10.639/2003, which made it compulsory for elementary, middle schools, and and high
schools in Brazil to include African and African-Brazilian history and culture in the curricula; i.e., they should address topics
related to these cultural universes. The objective of this article is to discuss the implementation of an afrocentric curriculum,
based on the concept of afrocentricity proposed by the African-American educator Molefi Asante. Accordingly, practices
for promoting the interaction of various social contexts in which students are inserted were discussed considering the
historical and cultural dynamics of the African continent. This study addresses the concept of Afrocentricity, which was
first introduced in the United States and rooted in the Aimé Césaire’s negritude and pan-Africanism of Du Bois and Garvey.
According to Asante, the idea of Afrocentricity opposes the exclusionary, discriminatory, and prejudiced view that has
been historically expressed by the Eurocentric culture, supporting the assumption that persons of African descent are
subjects and agents of cultural and school practices.
Keywords: African Culture. Curriculum. Education. Ethnic relations.
1
Universidade Nove de Julho, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Gradução em Educação. Av. Francisco Matarazzo, 612, Água Branca, 05001-001,
São Paulo, SP, Brasil. E-mail: <maurisil@gmail.com>.
sustentação cognitiva do conceito de afrocentricidade como sugere Kabengele Munanga, para quem a
aplicado à educação: a matriz dos estudos africanos educação multicultural representa, no plano prático,
(african studies) e a do multiculturalismo (multi- o resgate da memória e, consequentemente, da
culturalism). Da primeira provém, em um âmbito geral, plenitude histórico-social do negro:
o interesse pela revisão do legado africano para a
[...] qualquer que seja sua forma, o multicultu-
cultura e história universais; da segunda, a luta pela
ralismo está relacionado com a política das
adoção de uma perspectiva culturalmente pluralista.
diferenças e com o surgimento das lutas sociais
Aplicadas à educação, essas duas matrizes resultaram contra as sociedades racistas, sexistas e
na proposta de uma lógica educacional em que tanto classistas. Por isso, a discussão sobre multi-
a cultura material (artes e artefatos, organização social culturalismo deve levar em conta os temas da
etc.) e espiritual (psicologia, identidade etc.) africanas identidade racial e da diversidade cultural
quanto as relações étnico-raciais atuam como núcleo para a formação da cidadania como pedagogia
da prática pedagógica. anti-racista (Munanga, 2004, p.346).
No Brasil, uma versão dos Estudos Africanos A partir dessas duas matrizes espiste-
ganhou adeptos nas últimas décadas, resultando nos mológicas, portanto, forjou-se o conceito de
chamados estudos afro-brasileiros, abordagem que afrocentricidade que, imediatamente aplicado ao
busca resgatar a cultura e história africanas, sobretudo plano da educação, revelou-se particularmente
nas suas múltiplas relações com a realidade brasileira. produtivo e, em muitos aspectos, inovador. A primeira
Sua intenção precípua seria, portando, nas palavras questão que se coloca é, justamente, a diferença, se-
de uma estudiosa do assunto, o “reconhecimento e gundo os respectivos teóricos, entre a afrocen-
valorização das culturas de origem africana e das tricidade (afrocentricity) e a ideia de africanidade
histórias dos africanos do Continente e da Diáspora, o (africanity). No Brasil, onde o conceito de africanidade
que se configura na adoção de perspectivas próprias tem sido mais utilizado, essa diferença perde, em
dessas culturas e histórias” (Gonçalves e Silva, 2010, parte, seu sentido, na medida em que muitos de seus
p.37). Já sobre o aspecto do Multiculturalismo, cumpre pressupostos se aproximam bastante das diretrizes
destacar, antes de mais nada, a necessidade de fundamentais da idéia de afrocentricidade. A adoção
práticas sociais voltadas à valorização da diversidade, dos princípios da africanidade no Brasil tem sido
conceito que acaba incidindo sobre todos os âmbitos realizada por pesquisadores como Kabengele
da sociedade. Nesse sentido, torna-se imperativo a Munanga, Petronilha Gonçalves e Silva, Nilma Lino
promoção de uma educação multicultural, a qual Gomes e outros. Dessa maneira, diferentemente da
requer uma ampla reforma escolar com a finalidade afrocentricidade - que, aliás, em nenhuma hipótese
de “criar iguais oportunidades de sucesso escolar para deve ser confundida com as teorias biológicas
todos os alunos, independentemente de seu grupo deterministas, relacionadas à cor da pele -, a
social étnico/racial” (Gonçalves & Gonçalves e Silva, africanidade seria uma forma dos africanos viverem
2006, p.50). de acordo com seus costumes e tradições, sem que,
Essa educação multicultural pressupõe, necessariamente, manifestem uma revolucionária
evidentemente, modos de atuação diversos, em um consciência de pertencimento à cultura africana:
constante diálogo com a sociedade, no sentido [...] para ser um afrocentrico tem que se ter
deliberado de desfazer preconceitos, promover a uma auto-consciência da necessidade de
igualdade de oportunidades e adotar políticas de centralização. Assim, aqueles indivíduos que
valorização de culturas historicamente marginali- vivem na África e reconhecem o descentra-
zadas. Trata-se, em outras palavras, do indispensável mento de suas mentes por causa da colonização
resgate da memória étnica - ligada, entre outras coisas, europeia podem conscientemente escolher
aos temas da identidade racial e diversidade cultural -, estar em sintonia com seu próprio
e do colonialismo à educação colonial imposta pelos rompendo, assim, com projetos hegemônicos e, via
países imperialistas da Europa ao continente africano, de regra, discriminatórios. Consequentemente, faz
a desafricanização dos nativos era um de seus vigorar o império da reciprocidade cultural:
principais objetivos. Sendo uma educação de poucos
[...] o afrocentrista sustenta que a cultura
e para poucos, revelava-se seletiva, excludente e
européia deve ser vista como estando ao lado,
discriminadora:
e não acima, das outras culturas da sociedade.
[...] reproduzindo, como não podia deixar de A liga que mantém unida a sociedade não
ser, a ideologia colonialista, [a educação pode ser a aceitação forçada da hegemonia,
colonial] procurava incutir nas crianças e nos mas antes a aceitação discutida de valores,
jovens o perfil que deles fazia aquela ícones, símbolos e instituições similares que
ideologia. O de seres inferiores, incapazes, cuja têm sido empregados no melhor interesse
única salvação estaria em tornar-se ‘brancos’ de todas as pessoas [...] A reciprocidade é o
ou ‘pretos de alma branca’. Daí o descaso que marco dessa nova aventura intelectual e
essa escola necessariamente teria de ter por política, já que ninguém fica para trás nem
tudo o que dissesse de perto aos nacionais, fora da arena (Asante, 2009, p.108).
chamados de ‘nativos’. Mais do que descaso, a
negação de tudo o que fosse representação
mais autêntica da forma de ser dos nacionais: Considerações Finais
sua história, sua cultura, sua língua (Freire, 1977,
p.21). Já foi dito uma vez que uma proposta de
educação afrocentrada deve se assentar na história,
Ao contrário dessa visão excludente,
na filosofia, na sociologia e na psicologia dos povos
discriminatória e preconceituosa que a cultura
africanos, advogando valores e ideias africanas que
eurocêntrica tradicionalmente manifestou no âmbito
se devem expressar no currículo escolar, isto é, na
do empreendimento colonialista em relação ao
adoção de um currículo que “favoreça a diversidade
continente africano e a tudo o que lhe dizia respeito,
etnicorracial e contribua na desconstrução de
a afrocentricidade é, ainda nas palavras de Molefi desigualdades sociorraciais” (Santos Júnior, 2010, p.13).
Asante, um tipo de pensamento e de prática que Em geral, a rejeição do conceito de afrocentricidade
percebe os africanos como “sujeitos e agentes de (e de tudo o que ele representa e o que dele decorre)
fenômenos atuando sobre sua própria imagem se deve a um desconhecimento que advém não
cultural e de acordo com seus próprios interesses apenas de uma lógica excludente - muitas vezes,
humanos” (Asante, 2009, p.93). Nesse sentido, e incorporada inconscientemente -, mas também de
considerando que, historicamente, os africanos têm uma compreensão um tanto obtusa de seus
sido colocados à margem da experiência cultural do pressupostos teóricos e práticos.
Ocidente, a afrocentricidade surge como um processo
Boa parte dessa atitude, embora se afirme
de conscientização política o qual busca recentralizá-
como uma espécie de racionalidade, parece nascer
-los, percebendo o mundo sob a ótica do africano,
de um posicionamento inconsequente, na medida
defendendo seus valores como parte de um projeto
em que assume como perspectiva analítica da cultura
humano e deslocando a discussão sobre o assunto
africana o que se pode chamar de razão exótica (o
do âmbito do essencialismo (a pessoa é ou não é outro), isto é, aquele que se opõe a uma determinação
africana) para o do perspectivismo (como e/ou onde centrada no eu e que não é compreendido em sua
a pessoa se localiza diante da cultura africana). profundidade e diversidade, sendo, desse modo,
Sem polarizar maniqueistamente o tema, a rejeitado a priori. Essa é, em suma, a essência do
afrocentricidade propõe, sobretudo, a convivência preconceito que, a rigor, é a adoção - deliberada ou
pacífica e colaborativa entre as diversas culturas, não -, de um pré-julgamento. Trata-se de uma postura
epistemológica a qual, aliás, não dispensa boa dose ardente na possibilidade de diversas
de subjetividade, carregando em seu cerne não apenas populações que convivem na mesma terra,
uma predisposição discriminatória, mas sobretudo sem abrir mão de suas tradições fundamentais,
uma percepção autocentrada da realidade exterior. salvo no caso dessas tradições invadirem o
espaço de outros povos. É precisamente por
Em outras palavras, a rejeição apriorística da noção
isso que o Ideia Afrocentrica é essencial para a
de afrocentricidade e de seus necessários desdobra-
harmonia humana. O Idea Afrocentric
mentos em vários campos do saber nasce, basica-
representa uma possibilidade de maturidade
mente, de uma racionalidade hegemônica, mo-
intelectual e uma forma de ver a realidade
noétnica e unidirecional. como algo que abre novas caminhos para a
No final das contas, entra em jogo uma compreensão humana (Asante, 2011a, p.5).
oposição explícita entre os conceitos de
A adoção da afrocentricidade como princípio
etnocentrismo, de um lado, e de plurietnicidade, de
norteador da estrutura curricular nos ensinos
outro. Nesse contexto, educar para uma sociedade
fundamental e médio - e também no superior -, deve
pluriétnica - em última instância, o propósito final da
se pautar em dois fundamentos epistemológicos: um
prática pedagógica afrocentrada -, passa pela
cognoscivo, em que o conhecimento teórico da
disposição política de fomentar práticas sociais
cultura africana é valorizado como instrumento
voltadas para a convivência plena dos cidadãos; de
direcionado à assunção de uma identidade anti-
incentivar programas de inclusão socio-educacional;
-hegemônica, e um fundamento praxiológico, onde,
de desenvolver políticas de reparação por meio de
como consequência da assunção identitária, se
ações afirmativas diversas; de valorizar o patrimônio
alcança uma intervenção na prática educacional e na
histórico-cultural das etnias marginalizadas; enfim, de
atuação pedagógica. Todo esse movimento só adquire
implementar ações que, superando os preconceitos
sentido ao se assumir um compromisso com a
historicamente forjados e as discriminações
descentralização dos currículos escolares no sentido
tradicionalmente toleradas, resgatem a autoestima,
de torná-los, a um só tempo, menos etnocêntricos e,
o universo simbólico, a cidadania e a identidade racial
consequentemente, mais híbridos e críticos.
das comunidades que compõem a sociedade
brasileira, particularmente os afrodescendentes. Como Entretanto, esse descentramento curricular
afirma Maria José Silva, “ao se falar em educação, não não prevê, simplesmente, a substituição de uma
se pode ter em vista apenas a escolarização, mas hegemonia por uma contra-hegemonia que, com o
também o preparo para a tolerância da diversidade, passar do tempo, torna-se, ela própria, uma nova razão
fundamental para uma sociedade com pluralidade hegemônica. A defesa do princípio da afrocen-
étnica” (Silva, 1999, p.141). tricidade nos currículos escolares passa, ao contrário
e antes de tudo, pelo reconhecimento da diversidade,
A única maneira de se alcançar esse objetivo,
base conceitual, mas também empírica, da realidade
nos limites do que se vem discutindo até aqui, seria
educacional brasileira, em especial uma realidade que
lutar - no plano da educação brasileira e, parti-
tem na cultura um dos conceitos rizomáticos da
cularmente, no agenciamento de um currículo escolar
educação contemporânea. Sem ser uma panacéia
pautado em uma prática pedagógica democrática -,
para todos os males da educação - simbólicos e/ou
por uma estrutura social não hierárquica, o que
reais, representados e/ou concretizados nos discursos
ultrapassa, com efeito, o âmbito meramente
pedagógicos -, o princípio da afrocentricidade afirma-
educacional:
se como um movimento em direção à transformação
[...] os afrocentristas não manifestaram nenhum do real, sobretudo em épocas de globalização
interesse em ter uma raça ou cultura domi- excludente, de espetacularização do cotidiano e de
nando outras; eles expressam uma crença aviltamento da ética.
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