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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

INSTITUTO DAS CIDADES


Fernando Gomes Mafra

Acelera SP e o Direito de Pedalar


Projeto de conclusão do curso de extensão
Metodologia de Pesquisa em Planejamento
Urbano ligado ao curso de Pós-Graduação em
“Cidades, Planejamento Urbano e Participação
Popular”.

São Paulo
2020
Acelera SP e o direito de pedalar
Questão
A partir de uma olhada pela janela de qualquer casa na cidade de São Paulo é possível analisar
os efeitos da urbanização acelerada ocorrida no século XX. Má distribuição de moradia no
território, trânsito que reflete dificuldades de transporte, ônibus e metrôs lotados, acidentes
com veículos, poluição ambiental, visual e sonora, são temas que facilmente conseguimos
levantar após essa observação. (SPOSITO, 2020, p. 62)

A cidade de São Paulo se tornou capital econômica do país por conta da produção e
exportação de café para todo o mundo nos fins do século XIX e início do XX. Estando em
localização privilegiada, entre as fazendas de café no interior oeste paulista, onde o café se
adaptou muito bem ao solo e ao clima, e o porto de Santos, de onde o café escoava para outros
continentes, a capital da província atraiu a elite cafeicultora, que planejava ficar perto de suas
propriedades, mas sem deixar de lado a vida urbana (SINGER, 1977). A tônica do transporte
e da mobilidade está encrustada na História da cidade.

A urbanização de São Paulo nasce atrelada à necessidade do transporte do café e, durante o


século XX, esta preocupação se torna cada vez mais latente e visível. Por exemplo, o prefeito
de São Paulo Washington Luís, em 1914, busca a pavimentação do centro através do Plano
Bouvard, pensando na mobilidade de bondes e carros. Também foi organizador do "Primeiro
Congresso Paulista de Estradas de Rodagem" e depois presidente da “Associação Permanente
de Estradas de Rodagem”, que visava desenvolver o sistema rodoviário em São Paulo e trazer
esta discussão ao país. E em seu segundo mandato, entre 1917 e 1919, buscou dar mais
velocidade à circulação dos automóveis na cidade (SÁVIO, 2010, p. 235). Sua atuação como
representante executivo no município, na província e na federação lhe deu a alcunha de
“Estradeiro”, pois tinha como lema “Governar é abrir estradas”.

Após este início da prevalência política do automóvel como meio de transporte, podemos citar
ainda o Plano de Avenidas, criado, proposto e levado a cabo pelo engenheiro da Secretaria de
Viação e Obras Públicas e, posteriormente, prefeito Prestes Maia, entre a década de 1920 e
1930, que, como afirma Delijaicov, oprimiu a “geografia”, o desenho da cidade e os
habitantes (DELIJAICOV, 1999, p. 14). E no âmbito federal, podemos lembrar da política
industrial no segundo governo de Vargas (1951-54), principalmente a automobilística; ou JK
(1956-61), com a criação do GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística) para
desburocratizar a entrada de indústrias automobilísticas no Brasil, em que diversas destas se
desenvolveram no ABC paulista (SILVA, 2014, p. 59) e obtiveram vasto crescimento no
mercado brasileiro.

Isto porque, no último quarto do século XX, o automóvel particular é alçado como um
instrumento de transporte para facilitar a locomoção familiar, mas também como uma
ideologia individualista que confunde o espaço privado com espaço público e coloca na
velocidade toda sua potência (GORZ, 2010). A popularização e as políticas públicas voltadas
para o transporte privado e sua estrutura rodoviarista crescem, enquanto cai,
proporcionalmente, o grau de investimento no transporte coletivo (SILVA, 2014, pp. 62-81),
possibilitando a existência de duas cidades: uma, automobilística, ligada aos serviços do
centro da cidade, de classe média; outra, periférica, dependente de transporte público, para
classes mais baixas da população (SILVA, 2014, pp. 81-82).

Neste contexto bastante improvável, a bicicleta, pouco a pouco, conquistou algum pequeno
espaço no debate público como ferramenta de transporte. Em 1976, foi inaugurada a primeira
ciclovia da cidade de São Paulo, ao longo de 1.800 metros ao longo da avenida Juscelino
Kubitschek, projeto aprovado pelo prefeito Olavo Egydio Setúbal. Naquela época, a ciclovia
da avenida JK ficou conhecida como “pista para bicicletas”, por se tratar de estrutura tão
específica e tão rara para a cidade naquela época (ESTADO, 1975).

Esta pista para bicicletas era, inicialmente, voltada para um público da Zona Sul, para lazer,
mas também servia como experiência para abertura de vias para o modal. O prefeito dizia que
implementaria projetos de construção de ciclovias na Marginal Tietê, bem como também
havia interesse de diversos vereadores em divulgar a bicicleta como instrumento de atividade
física e transporte ativo (FOLHA, 1976). Alguns anos depois, em 1988, a ciclovia foi desfeita
para construção do túnel Jânio Quadros (ESTADO, 2014), e não se viu mais nenhuma medida
para afirmação deste modal.

Os anos entre 1990 e 2010 foram de uma intensa luta de organizações civis para buscar o
reconhecimento da bicicleta como um veículo de transporte no Código de Trânsito Brasileiro
(CTB), conquistando em 1997 sua inclusão no artigo 58 (HARKOT, 2018), mas que não fez,
ainda, com que a linha da lei entrasse na cultura social dos moradores de São Paulo.

O grande momento da política pública municipal da bicicleta frente à, já citada, indústria-


ideologia do automóvel em São Paulo aconteceu na gestão Fernando Haddad (2012-2015), em
que o prefeito e seu secretário de transportes Jilmar Tatto, construíram, junto a organizações
civis, seu plano de mobilidade e conseguiram entregar, ao fim do mandato, 400km de
ciclovias, medidas de acalmamento de tráfego, estímulo à construção de bicicletários
(JORNAL DO CAMPUS-USP, 2014). Propuseram uma atenção especial voltada ao modal no
Plano Diretor para a cidade que viabilizava a contínua expansão da malha cicloviária e de
equipamentos públicos para sua infraestrutura (BITTEMCOURT, 2018). Em paralelo a isto,
houve diversas manifestações na imprensa e no meio jurídico sobre como esta política de
valorização de outros modais de mobilidade “atrapalhavam”, segundo os reclamantes, a vida
mais rodoviária (G1, 2015).

Já na campanha seguinte, o candidato a prefeito João Dória assumiu o slogan/promessa de


campanha “Acelera SP”, se contrapondo à gestão Haddad no que se refere, principalmente, à
velocidade de carros nas ruas de São Paulo. Promessa cumprida já em seu primeiro ano de
mandato como prefeito da cidade (UOL, 2016). Esta medida contra a antiga política de
acalmamento de tráfego da gestão Haddad somada ao antipetismo que vigorava no Brasil
entre os anos de 2015 e 2016, fez com que, virtual e ideologicamente, se criasse uma disputa
pelas ruas entre pessoas utilizando carros como transporte e pessoas utilizando bicicletas
como transporte, como se o espaço de um subtraísse uma parcela do espaço do outro. Isto fez
com que os índices de choques, atropelamentos e colisões de automóveis com bicicletas, que
vinham diminuindo anteriormente, voltassem a crescer na gestão Dória-Covas (2017-2020)
(LEWER, 2017).

Ao ressuscitar a tradição de São Paulo como “locomotiva do Brasil”, cidade do futuro ou,
basicamente, do trabalho e, atrelado a isto, da velocidade, Dória e Covas criaram em São
Paulo uma atmosfera propensa a liberalização do uso do carro como instrumento de poder,
enquanto outros meios de transporte mais frágeis, ou o simples andar a pé, estivessem mais
suscetíveis a acidentes ou incidentes, como atropelamentos.

Objetivos
Geral

Esta pesquisa visa estudar os efeitos da política pública, atrelada ao marketing de campanha,
conhecida como “Acelera SP” da gestão Dória-Covas sobre os efeitos na mobilidade
cicloviária na cidade de São Paulo entre os anos de 2016 e 2020.
É possível relacionar dois movimentos durante o período, relativos à desestruturação e
tentativa de reestruturação de uma política de mobilidade voltada para outros modais que não
somente o automóvel, principalmente a bicicleta.

Específicos

Buscaremos analisar os dados referentes a atropelamentos, choques e colisões em que as


vítimas estavam em bicicletas na cidade de São Paulo, coletados no site Infosiga SP, para
tentar entender como as políticas públicas de mobilidade poderiam ter evitado estes acidentes
e tornado a cidade mais acolhedora para uma sorte maior de modais.

Em complemento a isto, buscaremos discutir a cultura automobilística na cidade de São


Paulo, também conhecida como carrocracia (DE TRÓI, 2017), resultado da chamada
epidemia da velocidade, que muitos estudiosos em diversas áreas comentam. A
contemporaneidade digital trouxe a necessidade de estarmos em diversos locais ao mesmo
tempo, porém a materialidade do corpo ainda nos retém na impossibilidade de ocuparmos
mais de um local ao mesmo tempo (BAUMAN, 2001). Tempo e espaço são grandezas
problemáticas na configuração atual da cidade. E muita gente tenta solucionar este problema
através da velocidade.

Isto pois a cidade contemporânea se tornou o espaço para reprodução econômica do consumo.
O ritmo da cidade impulsiona seus cidadãos ao ritmo das coisas, ao ritmo da fábrica,
desumanizando pessoas e transformando a multidão numa máquina do capital (CARLOS, A
Cidade, 2020). O espaço urbano se torna espaço-mercadoria na medida em que reproduz a
lógica social de lugar possível de investimento financeiro, segregando o restante do espaço
social desta atenção, relegado à sobrevivência autônoma distante de políticas públicas
(CARLOS, A privação do urbano e o "direito à cidade" em Henri Lefebvre, 2017).

Porém, a cidade também é local de luta no espaço, pelo espaço. A própria produção do espaço
e reprodução de lógicas econômicas está em torno de lutas pela sobrevivência de atores
sociais que buscam reverter este ciclo (CARLOS, A privação do urbano e o "direito à cidade"
em Henri Lefebvre, 2017, pp. 42-43). Por este motivo, pretendemos também consultar a
sociedade civil organizada para dar voz neste trabalho a estes sujeitos segregados. Membros
de coletivos de fomento ao transporte por bicicleta, como Bike Zona Leste, Bike Zona Sul, da
associação de ciclistas Ciclocidade, do portal de notícias especializadas Vá de Bike,
representantes na Câmara Temática da Bicicleta do Conselho Municipal de Transporte e
Trânsito, dentre outros, serão consultados para relatar e analisar as políticas públicas
desenvolvidas na referida gestão no assunto que nos interessa, transporte e mobilidade na
cidade.

Portanto, pretendemos, por um lado, estudar a política de planejamento urbano do “Acelera


SP” e suas consequências na segurança viária a partir do modal bicicleta entre 2016 e 2020; e
por outro, como a sociedade se organiza, pressiona e luta (HARVEY, 2014) para buscar seu
direito à cidade no direito (LEFEBVRE, 2001) de pedalar.

Métodos
Esta pesquisa se inicia no levantamento e análise de dados públicos referentes ao índice de
atropelamentos, colisões e choques na cidade de São Paulo disponibilizados pelo Governo do
Estado na plataforma Infosiga. A análise quantitativa destes dados poderá nos informar
regiões com maior índice de acidentes, ruas e avenidas mais perigosas, faixa etária das
vítimas e demais informações que deveriam ser levados em conta na formulação de uma
política inclusiva de mobilidade.

Em complemento a este levantamento, torna-se frutífera uma análise qualitativa sobre a


resposta do poder público a estes dados, se viraram política pública, quais foram as ações,
qual foi seu retorno para a sociedade etc. Tal análise qualitativa tem um ponto de vista do
pesquisador em participação-observante, mas não só. Sendo o pesquisador ciclista e militante
da mobilidade ativa em bicicleta, seria impossível escrever um trabalho neutro ou isento de
opiniões. Para diminuir, um pouco, este personalismo, a pesquisa quantitativa também deverá
ser discutida entre demais atores civis no entorno da questão analisada, como os coletivos de
bicicleta, associações civis e cidadãos preocupados com o tema (PERUZZO, Primavera,
2017).

Porém, podemos pensar ainda esta pesquisa como pesquisa-ação participativa, no sentido que
busca levantar dados, analisar o funcionamento ou não das políticas públicas de mobilidade,
discutir com o corpo social estas análises para, futuramente repensar o modelo adotado e
pressionar o poder público para uma participação popular ativa real, não somente consultiva,
nas instâncias de poder e decisão. Surge desta discussão o termo pesquisa-luta, numa busca
contínua de trazer a ciência para desenvolver a realidade material do humano que é segregado
da cidade-mercadoria, trazendo à tona os saberes cotidianos do pesquisador e dos grupos
sociais envolvidos.
Cronograma
Atividade/Mês FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV
Pós-Grad: Cidades,
Planejamento Urbano
e Participação
Popular
Pesquisa sobre
Políticas Públicas
voltadas à mobilidade
Pesquisa Histórico do
“AceleraSP”
Levantamento e
Análise de Dados
Bibliografia “Direito
à Cidade”
Bibliog. Mobilidade
Ativa e Ciclística
Contato com Org.
Sociais Ciclísticas
Análise de dados
junto as OS-Bike
Escrita de artigo de
conclusão de curso
Fernando, ótimos temas para pesquisa, creio que só terá como desafia definir o que você
pretende seguir e definir. E fico à disposição caso tenha dúvidas ou queira conversar.
(Ricardo: rbsilva@unifesp.br)

Bibliografia
BAUMAN, Z. (2001). Tempo/Espaço. Em Z. BAUMAN, Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Ed.
Jorge Zahar.

CARLOS, A. F. (2017). A privação do urbano e o "direito à cidade" em Henri Lefebvre. Em A. F.


CARLOS, G. ALVES, & R. F. PADUA, Justiça espacial e o direito à cidade (pp. 33-62). São
Paulo: Contexto.

CARLOS, A. F. (2020). A Cidade. São Paulo: Editora Contexto.

DE TRÓI, M. (Novembro de 2017). Carrocracia: fluxo, desejo e diferenciação na cidade. Revista


Periódicus - UFBA. n.8, pp. 270-298.

DELIJAICOV, A. (1999). Os Rios e o Desenho da Cidade - Proposta de Projeto para a Orla Fluvial
da Grande São Paulo. São Paulo: Dissertação de Mestrado.

GORZ, A. (2010). A Ideologia Social do Carro. Em A. GORZ, Ecologia. São Paulo: Annablume.

HARKOT, M. (2018). A bicicleta e as mulheres. São Paulo: Dissertação de Mestrado: USP.

HARVEY, D. (2014). Cidades Rebeldes: Do Direito à Cidade à Revolução Urbana. São Paulo:
Martins Fontes.

LEFEBVRE, H. (2001). O direito à cidade. São Paulo: Centauro.

PERUZZO, C. M. (Primavera, 2017). Pressupostos epistemológicos e metodológicos da pesquisa


participativa: da observação participante à pesquisa-ação. Estudios sobre las Culturas
Contemporáneas. Época III. Vol. XXIII. Número Especial III, Colima, 161-190.
SÁVIO, M. (2010). A cidade e as máquinas: bondes e automóveis nos primórdios da metrópole
paulista (1900-1930). São Paulo: Annablume.

SILVA, R. (2014). Mobilidade Precária na Metrópole: problemas sócio-espaciais dos transportes no


cotidiano de São Paulo - da exceção à regra. São Paulo: Tese de Doutorado: USP.

SINGER, P. (1977). Desenvolvimento econômico e evolução urbana. Belo Horizonte: Editora


Nacional.

SPOSITO, M. E. (2020). Capitalismo e Urbanização. São Paulo: Contexto.

Periódicos
“Bicicleta une interesse dos políticos paulistas”. FOLHA de S. Paulo, São Paulo. 3 cad.
Educação, p. 27. 30 de maio de 1976. Disponível em: <
https://acervo.folha.com.br/leitor.do?
numero=5866&anchor=4318244&origem=busca&originURL=&pd=7639e3ece9391a
c4c0ecfcc1f7ba7ab6>. Acesso em 15 de novembro de 2020.

“Bicicletas ganham prioridade na gestão Fernando Haddad”. JORNAL DO CAMPUS, 2014.


Disponível em: <http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2014/09/bicicletas-
ganham-prioridade-na-gestao-fernando-haddad/>. Acesso em 20 de novembro de
2020.

"Com críticas a Haddad, Doria diz que limites nas marginais de SP mudam em 25 de janeiro".
UOL, 2016. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2016/12/20/limites-de-velocidade-nas-marginais-de-sp-mudam-no-dia-25-diz-
gestao-doria.htm>. Acesso em 15 de novembro de 2020.

“Doria cumpre promessa e aumenta velocidade das marginais em janeiro”. FOLHA de São
Paulo. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/12/1843035-
com-ajuste-doria-anuncia-aumento-de-velocidade-nas-marginais-em-janeiro.shtml>.
Acesso em 20 de novembro de 2020.
“Novo limite de velocidade nas marginais pode ser revisto, diz Haddad”. G1, 2015.
Disponível em <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/07/novo-limite-de-
velocidade-nas-marginais-pode-ser-revisto-diz-haddad.html>. Acesso em 15 de
novembro de 2020.

“Túnel de Jânio engoliu primeira ciclovia de São Paulo”. O ESTADO de S. Paulo, São Paulo.
28 de outubro de 1975. Disponível em
<https://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,tunel-de-janio-engoliu-primeira-
ciclovia-de-sao-paulo,10469,0.htm>. Acesso em 15 de novembro de 2020.

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