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© 1968/Fev.

– Lou Carrigan
Publicado No Brasil Pela Editora Monterrey
Ilustração De Capa: Benício
JVS – 411224/411225
CAPITULO PRIMEIRO
Uma gorducha de maillot amarelo
O general está triste
Três já é mau-gosto

Tinha umas pernas sensacionais. E uns braços


deliciosos, bem torneados, dourados pelo sol. Pena que
fosse um pouco gorda. Toda a perfeição das pernas, braços
e ombros era prejudicada pelos seios e abdome, um tanto
exagerados, Perdia-se ali toda a harmonia física daquela
jovem loura, metida num maio amarelo, que estava
esquiando magnificamente sobre as águas na diminuta baía
fronteira a Big Pine Key, nos Kayos da Flórida. Diante da
baia, a bem pouca distancia, via-se a pequena Munson
Island.
A água era azul, transparente, brilhando ao cálido sol de
fevereiro. E sobre essa água a gorducha e graciosa lourinha
deslizava cio seus esquis, a reboque de uma lancha que
corria a toda a velocidade, abrindo um sulco espumejante na
superfície do mar.
Sua técnica de esquiar era formidável. Absolutamente
natural, sem forçar o corpo, sem contrações, sem a mínima
rigidez. Se além daquela graça incomparável, alguém
tivesse imaginação suficiente para visualizar a lourinha com
alguns quilos a menos no busto e no ventre, e num sumário
biquíni vermelho, por exemplo. Sim, se ao invés do maio e
alguns quilos em excesso, alguém a pudesse imaginar de
biquíni e menos gorda, aquela jovem teria ocasionado uma
epidemia de enfartes na pequena localidade de Big Pine
Key.
Uma pena.
Foi também uma pena que, de repente, toda aquela
galhardia esportiva se obliterasse. Algo aconteceu. A garota
loura perdeu o equilíbrio, deu unta estranha volta, soltou a
pequena barra metálica presa á corda de arrasto e caiu de
costas na água, afundando entre um turbilhão de espumas.
Pena.
Os que a estavam admirando desviaram o olhar,
dedicando-se novamente a suas revistas, seus cigarros, suas
conversas, ou a olhar outras garotas que, estas sim, estavam
de biquíni.
Mas, na realidade, nada havia acontecido. A jovem algo
gorducha tornou á superfície, fez sinal ao piloto da lancha
indicando que tudo estava bem e ficou boiando
tranqüilamente, á espera de que a recolhessem. Ao seu
redor, outras lanchas arrastavam outros esquiadores. Viam-
se também uns quantos snipes, com suas velas coloridas.
Mais perto da praia, alguns nadadores bracejavam
alegremente. Um dia luminoso, de sol rutilante.
A lancha estava fazendo a volta para recolher a
fracassada esquiadora.
Ao mesmo tempo um pequeno iate branco aproximava-
se também em boa velocidade, a qual decresceu
prontamente ao serem detidos os motores.
Um homem alto, atlético, bronzeado, tio bacana que
arrancaria gritos entusiásticos de qualquer broto emotivo,
assomou á borda, agitando os braços e gritando:
— Ei, Rose Marie! É você, Rose Marie?
A lancha e o iate chegaram quase ao mesmo tempo junto
a garota, que olhava surpresa para o homem que a chamava
aos gritos, da borda do iate.
— Olá, Johnny! — gritou também. — Que faz você por
aqui?
— Estou pescando — riu o atlético e bronzeado
individuo. — Como sempre! Suba a bordo! Convido você
para um martini!
A lancha tinha parado e o homem que a tripulava olhava
expectante para a lourinha gorducha, aguardando sua
decisão. Ela já tinha recolhido os esquis e atirou-os na
lancha. Sim. Era uma lástima que fosse tão gordolhufa, pois
quando sorriu sua boquinha rosada pareceu uma flor e seus
grandes olhos azuis brilharam do modo mais encantador.
— Está bem, Tom — disse ela ao lancheiro. —
Encontrei um amigo e vou ficar com ele. Pode voltar ao
embarcadouro.
— Pois não ... Virei buscá-la mais tarde?
— Não será preciso. Meu amigo me levará até a praia.
Amanhã nos veremos. Reserve-me uma hora, como sempre.
— Está bem. Até manhã, miss Eggar.
A lancha afastou-se e a jovem gordinha aproximou-se
mais do iate, nadando com a mesma graça e facilidade com
que esquiara. E havia esquiado tio bem, que qualquer
observador um pouco suspicaz poderia ter pensado que a
queda na água fora intencional
O chamado Johnny dobrou-se sobre a borda, estendendo
um de seus fortes braços. A lourinha pareceu saltar da água
para prender-se com ambas as mãos á do homem, que a
colocou sobre a coberta de um só puxão. A manobra, em
conjunto, resultou pouco menos que um número de circo.
— É verdade que temos martini, Johnny? — perguntou
ela, sorrindo.
— Claro. Com gelo e tudo. Mas se você preferir
champanha com cereja.
— Não — riu ela. — A estas horas, o indicado é um
martini... Com azeitonas?
— Sevilhanas.
— Olé!
— Vamos entrar, “Baby”.
Passaram, rindo, ao interior do pequeno iate. Todo muito
reduzido, com o espaço justo para três beliche; dobráveis.
banheiro, uma pequena cozinha e uma bonita e pitoresca
salinha cheia de livros, revistas, fotografias e peixes
empalhados. Havia um monte de varas de pesca e molinetes
de tamanhos diversos. Uma pequena mesa colocada em
frente a um estreito sofá, sob a larga janela do lado de
bombordo.
Johnny entregou uma toalha à garota, que já havia tirado
a peruca loura de banho, feita com cabelos artificiais,
podendo servir inclusive para ser usada na vida normal. A
espessa cabeleira negra de Brigitte Montfort tombou
brilhantemente sobre seus ombros.
— Uff! Não gosto nada de usar esta peruca, Johnny.
— Não? E de todo esse recheio sob o maio?
— Abomino. Mas tem que ser, querido. Se eu a exibisse
por aqui em biquíni, logo me tornaria a pequena mais
famosa de Big Pine Key. E isso não me interessa, não é
mesmo? Já que não posso esconder boniteza de meu rosto,
braços e pernas, é preciso que dê um jeito no resto. É
lamentável, eu sei.
Johnny pôs-se a rir.
— Você é única! Acha-se mesmo tão bonita assim?
“Baby” deu um muxoxo delicioso de enfado.
— E não sou?
— Sem dúvida — tornou a rir, Johnny. — Quantas
pedras? Um pouco mais de gim, limão, bitter...
— Duas pedras! E mais nada. Um martini seco te que
ser um martini seco, não acha você?
— É uma questão de gosto. Muito bem: duas pedras
nada mais.
— Fique de costas, Johnny. Vou tirar o maiô não quero
que você sofra um curto-circuito.
— Ficarei de costas: sou um homem muito prudente.
Gosto de manter-me em boa saúde.
— Isso é primordial para os espiões de ação, querido.
Nada de tossir na hora de apontar o revólver par o inimigo.
Tornaram a rir os dois. Johnny parecia encantado com a
vida. E devia estar, já que ser escolhido par entrar em
contato com “Baby” era galgar um degrau dentro da CIA.
Tranqüilamente. ela tirou o maiô acolchoado com espuma
de látex, suspirando aliviada Na verdade, deformar aquele
corpo era um sacrilégio
Acabou de enxugar-se. lentamente, olhando com rancor
para o monstrengo amarelo.
Quando Johnny se voltou, ela estava graciosamente
envolta na grande toalha colorida, que havia colocado ao
estilo das damas romanas do tempo dos Césares.
— Adeus minhas esperanças — decepcionou-se Johnny.
— Preparei dois martinis a toda a pressa, mas não cheguei a
tempo
— Fica para outra vez — riu “Baby”, recebendo o cálice
de martini. — Que tal se entramos em matéria, Johnny?
Este assentiu com a cabeça, indicando o estreito sofá sol,
a janela. De trás de um quadro retirou um grande envelope,
que deixou sobre a mesinha. Sentou-se junto a Brigitte,
acendeu dois cigarros, entregou-lhe um e abriu o envelope,
sacando em primeiro lugar duas fotos a cores. Eram do
mesmo homem: uma delas mostrava-o de corpo inteiro, em
traje de rua; a outra era um close de seu rosto. O fulano
devia ter seus cinqüenta e cinco anos. Tinha o cabelo
atraentemente encanecido nas têmporas e um rosto nobre,
inteligente, aristocrático, severo e amável ao mesmo tempo.
— Um tipo que jamais poderia inspirar desconfiança a
ninguém... — murmurou Brigitte. — Quem é?
— O general Malcolm Manchester, do Corpo de
Fuzileiros Navais.
— Ah... É uma boa coisa possuirmos tão bonitos e
nobres generais. Ele fez algo de mau?
— De mau? Não... Ainda não, pelo menos. Digamos que
sua conduta tem sido irregular, suspeita, intrigante,
inquietante, em suma: arranjou uma documentação falsa,
sob o nome de Pierre Civette, cidadão francês. Não sabemos
como a conseguiu, mas, evidentemente, não foi por seus
próprios meios. Alguém a facilitou.
— Parece indubitável... Para que quer ele essa
documentação falsa?
— No momento, ao que parece, para viajar.
— Viajar. Para onde?
— Como destino inicial, temos Rabat, em Marrocos. O
general Manchester reservou passagem a bordo “Atlantic
Sea”. com destino a Rabat, sob o nos de Pierre Civette. O
transatlântico sai de Miami dentro de três dias.
— É na verdade intrigante — murmurou “Baby” —
Tem-se alguma idéia a respeito de seus propósitos?
— Nenhuma. em absoluto. Há dois meses, o general
começou a proceder de um modo... estranho. A mostrar-se
inquieto. Um de nossos agentes duplos introduzidos no G-2
da Marinha advertiu-nos de certas ligeiras alterações em seu
comportamento. Era algo sutil, praticamente imperceptível.
Mas o general já nos tinha chamado a atenção por outro
lado
— Por outro lado? Em que sentido?
— Bem. Ele já não pertence ao Corpo de Fuzileiros. Ha
dois anos que se dedica á política É um dos nom mais
significativos do Senado e com certa freqüência visita a
Casa Branca. Nosso Presidente o distingue com sua estima,
tanto pessoal como oficialmente. Malcolm Manchester é,
sem dúvida, um político de elevada estatura, de qualidades
excepcionais. Nestes dois anos e que tem intervindo mais
ou menos intensamente na política do país, sua voz sempre
foi ouvida de um modo incisivo, insistente. Súbito, há dois
meses, ele emudeceu.
— Que se passou?
— Não sabemos. Sua voz se apagou...
— Se apagou! Quer dizer que se anulou, que não mais se
lhe ouvir?
— Exatamente. Talvez lhe pareça uma tolice, mas os
psicólogos da CIA pronunciaram um diagnóstico: tristeza.
Brigitte olhou atônita para o simpático Johnny.
— Tristeza? Não entendo...
— Malcolm Manchester está triste. Pesaroso. Não o
demonstra e muito menos o diz. Tenta proceder de um
modo normal... Mas vários microfilme, de sua pessoa foram
objeto de estudo por psicólogos especializados da CIA, cujo
veredicto foi unânime: tristeza.
— Pelo amor de Deus! Que está acontecendo com esse
homem? Tem alguma dificuldade, algum assunto pessoal
que...
Johnny estava movendo negativamente a cabeça.
— Nada. Malcolm Manchester possui sólida fortuna, é
milionário. Em toda sua vida não há um só fracasso, pelo
que dificilmente se poderia falar em inibições, más
recordações, remorsos, medo de errar...
— Nada. Desde menino, triunfou em tudo. Fez
brilhantemente seus estudos, especializando-se
posteriormente em diplomacia e política. Sobre este
assunto, inclusive, publicou um livro considerado
importante. Sabe pintar admiravelmente. escreveu alguns
volumes de poesias, grande apreciador e conhecedor de
música. Participou da Segunda Guerra Mundial, lutou na
Coréia e atualmente serve como conselheiro militar numa
comissão pró-armistício no Vietnam. É um homem pacato,
justo, honrado, amável para com seus inferiores
hierárquicos. Está devidamente constatado o fato de que
tanto na Segunda Guerra como na Coréia, e inclusive no
Vietnan, os soldados o estimavam de um modo absoluto,
sem exceção. Jamais encontrou dificuldades em coisa
alguma, sempre conseguiu o que desejou, é amigo pessoal
do Presidente... A perplexidade da CIA perante as últimas
atividades desse homem é total.
— Surpreendente, com efeito — murmurou Brigitte. —
Sabe-se, acaso, se teve contato com algum agente,
estrangeiro, ou...?
— Desde que o vigiamos, não, evidentemente. Antes...
quem sabe?
— Suspeita-se que possa ser um traidor?
Johnny encolheu os ombros.
— Ninguém se atreveu nem sequer a sugerir isso,
“Baby”. Entretanto, produziu alarma o fato de que tenha
obtido passaporte falso e uma passagem “Atlantic Sea” para
Rabat.
— Rabat... Se ao menos fosse para... que sei eu... para
Moscou, ou Berlim, ou Pequim, ou... Dizem que está triste?
— É esse o parecer dos psicólogos.
— Esquisito. Um triunfador como ele... É casado, tem
filhos, família...?
— Somente uma esposa. E até nisto teve sorte. Está com
cinqüenta e seis anos. Sua esposa, que é muito bonita, tem
trinta e quatro. Casaram se há três anos.
— Talvez a causa de toda essa tristeza seja a esposa, não
é mesmo?
Novamente Johnny disse que não com a cabeça.
— Talvez a jovem e linda esposa do general não seja
tão... séria quanto ele desejaria. Leva uma vida um tanto
independente, cultiva amizades muito pessoais. Teme-se
que haja algum desgosto de ouça importância na vida intima
de Malcolm Manchester. Mas, sem dúvida, “Baby”, você
concordará comigo em que um homem de cinqüenta e seis
anos, com a categoria de Manchester, não vai arruinar sua
vida porque a esposa seja um tanto alegre. Se tem
demasiada personalidade e demasiado bom senso para se
deixa, afeta, por semelhantes tolices.
— Claro. Bem: que devo fazer eu? Mal tivera tempo de
chegar a Nova Iorque. quando o tio Charlie me mandou
para o sul, esta vez ás Bahamas 1. Não foi muito fácil o

1
ver novela: VÍBORA SEM NINHO
assunto da ilha artificial e eu bem que gostaria de descansar
alguns dias, de modo que tenho o maior interesse em
terminar logo com isto. Que devo fazer?
— Vigiá-lo — sorriu Johnny. — Entrementes, este é um
lugar estupendo para descansar, não acha?
— Sem dúvida — concordou Brigitte. — Que mais
contém o envelope?
— Duas fotos da esposa do general, mais algumas dele,
bem como toda sua história, para o caso de você desejar lê-
la antes de nos separarmos.
— Lerei agora mesmo.
— Agora? Bem... Outro martini?
— Mmm ... Está bem. Por esta vez, repetirei.
***
— Leitura interessante. Um homem assombroso,
Johnny. É, decididamente, fora de série.
— Foi o que eu disse. Quer vê-lo? Está na pra com a
mulher.
— Claro que quero vê-lo.
Brigitte ficou de joelhos no sofá, apanhou o binóculo
que Johnny lhe estendia e olhou para o ponto que ele lhe
indicava, na praia.
— Já viu sua fotografia. Suponho que o identificará
facilmente...
— Estou vendo-o... É inconfundível. E também sua
esposa... Mais bonita ao natural que em fotografia. Temos
microfones instalados em seus aposento Johnny?
— Que dúvida!
— E...?
— Nada. Conversas normais... Bem, tiveram duas
altercações de menor importância, por enquanto.
— Por enquanto?
— Parece que o general está começando a aborrecer-se
seriamente com a esposa. Ela sorri com demasiada
freqüência para homens mais moços do que ele.
— Oh... Mas tínhamos ficado em que isto não
constituiria motivo para que um homem como Manchester
cometesse tolices. Deve haver outro motivo para que ele
queira ir a Rabat com passaporte francês e ao o nome de
Pierre Civette... Algum outro Johnny por aqui, Johnny?
— Um outro. Se incumbe dos microfones e coisas
semelhantes. Está agora na praia, não muito longe do
general. É alto e magro, de olhos...
— Estou veado! — riu Brigitte. — Tem um olhar de
pessoa enfarada com o ambiente. Nós, espiões somos uns
completos hipócritas, querido. Ficamos em que Malcolm
Manchester não efetuou contato com ninguém?
— Assim é.
— Bom. Teremos que vigiá-lo até a partida desse navio
para Rabat. Minha curiosidade foi despertada ao último
grau: por que um homem como ele está triste? Não por
causa de sua mulher, claro, te tem demasiada personalidade
para permitir que isto afete sua vida profissional. Malcolm
Manchester está triste... que terá Malcolm Manchester?
— Até parece um verso de Rubên Dario — riu Johnny.
— “A princesa está triste, que terá a princesa?”
— Querido Johnny, dediquemo-nos ao general.
Deixemos para depois o poeta nicaraguano e sua princesa
triste.
— Okay. Mais um martini?
— Não, por Deus. Repetir não é de bom tom, Triplicar
já é de mau-gosto. Vire-se de costas para eu colocar meu
disfarce.
Em dois minutos, Brigitte estava novamente metida no
maiô que deformava seu esplêndido corpo.
— Espero não demorar a vê-la de biquíni — disse
Johnny. — Consta na CIA que isso prolonga a vida uma
porção de anos.
— A alguns encurta... — riu ela. — Cuidado, Johnny.
Saíram rindo à coberta. Pouco depois, perto da praia, a
lourinha gordalhufa de cabelos artificiais saltava na água
por cima da borda, emergia e, após um aceno ao amigo
Johnny, nadava para a areia.
— Até a vista, Rose Marie! — gritou Johnny.

CAPÍTULO SEGUNDO
Nas águas da baía
A hipótese do arpão solto
Jogo de marionetes

O resto daquele dia e a manhã do dia seguinte


transcorreram sem novidade. A linda espiã de olhos azuis,
camuflada em sua falsa gordura e seus cabelos louros,
pondo em uso toda sua grande categoria de agente secreta,
dedicou-se a vigiar Malcolm Manchester. E o fez com tanto
tato, tanta delicadeza e sapiência, que o general de nada
suspeitou. Quanto à sua esposa, era certamente uma dama
bastante alegre, que todas as noites, na boate do hotel,
gostava de dançar com rapazes atraentes, sob o olhar
impassível, quase frio, de seu marido.
Na tarde do dia seguinte algo aconteceu. Algo muito
importante, que deu lugar a que a agente “Baby” entrasse
em cheio no assunto.
Pelas quatro e meia, o general e sua linda esposa saíram
à praia privativa do hotel, evidentemente dispostos a tomar
um banho de mar. O tempo estava esplêndido e o general
era um homem forte, sadio, um bom esportista.
Colocaram-se sob uma barraca, mas, após um breve
comentário, resolveram prescindir dela. Em fevereiro,
mesmo num clima como o da Flórida, é mais agradável
ficar ao sol do que à sombra.
Quase às cinco horas, após um primeiro banho curto em
companhia de sua esposa, Malcolm Manchester decidiu
tomar outro. A água convidava, lisa e transparente. Entrou
no mar e começou. a nadar para fora. A esposa
acompanhou-o com a vista uns segundos, logo se cansou e
dedicou-se á leitura de uma revista.
A agente “Baby” não se cansou de olhar o general.
Tinha chegado á praia um pouco depois deles e sentara-se
na areia, livro na mão, óculos escuros, incomodada com o
recheio de seu maiô amarelo. Portanto, abandonou a
posição sentada para estender-se, de barriga para baixo.
Junto a ela, um pequeno rádio de pilha, ligado a tão pouco
volume que ninguém podia ouvir, quanto mais que ela
procurara um lugar onde havia pouca gente.
Sobrancelhas contraídas, enquanto simulava ler, a agente
“Baby” exercia a mais férrea vigilância que Malcolm
Manchester pudesse jamais ter tido sobre sua pessoa. Via-o
nadar, mergulhar na água transparente, reemergir, tomar a
mergulhar... Contra o céu azul, algumas diminutas velas
brancas. No embarcadouro, meia dúzia de iates pequenos.
Ancorado à direita, perto dos rochedos, o iate de Johnny,
talvez a cem metros da praia. Sem dúvida, também Johnny
estava olhando Manchester, com o binóculo, de dentro da
cabina. A esquerda, perto dos rochedos daquele lado, uma
lancha branca e vermelha, com um homem-rã debruçado á
borda, vigiando a imersão de seu companheiro, o qual
saltara à água um pouco antes, fuzil aquático preparado.
Mais longe, uma lancha de bom tamanho se afastava,
levando três pescadores entusiastas que aquela noite se
dedicariam a tubarões ou peixes maiores-
Enquanto isto, o general nadava cada vez mais para fora,
desfrutando a agradável temperatura da água. Era bom
nadador e, certamente, estava em plena forma. Seus
mergulhos eram cada vez mais prolongados.
Tão prolongados que, finalmente, não emergiu. Não,
pelo menos, dentro do tempo lógico que um homem pode
resistir praticando o mergulho livre. As sobrancelhas de
“Baby” contraíram-se mais. Tocou no radio, que deixou
imediatamente de funcionar, e moveu um de seus botões.
— Johnny — murmurou, voz tensa — está escutando,
Johnny?
— Estou. Ele não vem à tona... Você o está vendo,
Baby?
— Não.
— Talvez lhe tenha acontecido alguma coisa. Tantos
mergulhos... Esperemos mais uns segundos.
Passaram-se mais dez segundos e Malcolm Manches-ter
não tinha imergido- Sua bonita esposa continuava lendo a
revista- Tudo continuava igual. Só que Malcolm
Manchester não voltara á superfície.
— Que fazemos? — perguntou Johnny. Esse homem
deve estar se afogando...
— Não se mova dai. Não perca a praia de vista, Johnny.
Vou ver o que está acontecendo.
Pôs-se de pé e caminhou, procurando não demonstrar
nenhuma pressa, para a água. Meteu-se nesta e começou a
nadar velozmente para o ponto onde o general aparecera a
última vez. A sua esquerda, o homem-rã que estava na
lancha olhava para ela. Era um negro atlético, colossal, de
ombros largos. Usava apenas a jaqueta de borracha, com
capuz. Os óculos estavam erguidos para a testa. Deixou de
olhá-la para prestar atenção ao fundo, bastante profundo,
daquela parte rochosa da pequena baía.
Malcolm Manchester, realmente, havia nadado mar
afora. Brigitte chegou fatigada, mais pela velocidade
desenvolvida que pela distância.
E demasiado tarde se deu conta do erro que cometera. A
água era transparente, sim, mas de nada servia isto a uma
pessoa que tentasse mergulhar som óculos adequados.
Mantendo a cabeça fora d’água, podia olhar para baixo e
ver com certa clareza o fundo. Quer dizer: poderia ter visto
o fundo se este não estivesse muito mais abaixo do que
tinha pensado. Via-se a transparência da água, que se ia
obscurecendo, obscurecendo
Mergulhou rapidamente e nadou com força para baixo,
com os olhos abertos.
Era uma loucura. Uma completa loucura. Realmente,
uma perda de tempo. E enquanto isto, Malcolm Manchester,
com toda a certeza, devia estar no fundo, afogando-se,
possivelmente já afogado.
Subiu a toda pressa á superfície, movendo muito os pés,
necessitada de respirar. E enquanto subia compreendeu que
seu único recurso consistia naqueles homens-rãs que
estavam do lado esquerdo da baía.
Chegou à superfície e respirou avidamente, voltando-se
para onde estava a lancha com os caçadores submarinos, O
que estivera mergulhando acabava de subir a bordo, levando
fisgado no arpão um grande peixe, de uns seis quilos pelo
menos. O outro sorria e dava-lhe palmadas nas costas. O
mergulhador negro felicitava o mergulhador branco e
ambos pareciam muito contentes.
— Êi! — chamou Brigitte. — Aqui! Aqui...
O negro tinha posto a Lancha em marcha e, sem dúvida
devido ao barulho do motor, não pode ouvi-la. O branco
tinha-se sentado na coberta e estava tirando os pés-de-pato,
ainda com a jaqueta de borracha e os óculos postos. A
lancha partiu a toda a velocidade, borrifando água para
todos os lados. O atlético negro voltava-se para seu
companheiro, que parecia dizer-lhe alguma coisa, e ria com
entusiasmo.
Desesperada, Brigitte voltou-se para o pequeno iate onde
Johnny devia estar na expectativa. Os outros banhistas
encontravam-se a pouca distância da praia e parecia que
ninguém se dera conta de nada. A esposa de Manchester
continuava lendo, tranqüilamente.
O iate aproximava-se a toda a pressa e Brigitte agitou a
mão, apressando mais Johnny, que, ao volante, parecia
querer impelir a embarcação mais velozmente, a julgar por
seus movimentos impacientes.
Levou mais de meio minuto para chegar, os motores já
parados, e apareceu na borda, colocando os tubos de ar e
disposto a saltar imediatamente, preparado para o mergulho.
— Johnny! — gritou Brigitte. — Não! Atire-me os tubos
de ar e os óculos! E os pés-de-pato! Eu mergulharei!
— Seria melhor que...
— Faça o que digo e vá agora mesmo atrás da lancha
branca e vermelha que estava do outro lado da baía!
Depressa!
— Está bem.
Atirou-lhe os óculos e os pés-de-pato Depois, os dois
tubos de ar. Logo em seguida, perfeitamente capacitado de
que “Baby” eras mais astuta e eficaz agente da CIA, pós o
iate em marcha e afastou-se, acenando com a mão.
Brigitte nem sequer respondeu à saudação, ocupada em
colocar nas costas os tubos de ar. Prendeu o bocal entre os
dentes, a toda a pressa, abriu a válvula e mergulhou.
***
Quando voltou á superfície, quase dez minutos mais
tarde, havia muita gente reunida na praia, todos olhando em
sua direção. Viu perfeitamente a esposa de Malcolm
Manchester, braço estendido para onde ela estava. Uma
lancha saia do embarcadouro, com cinco ou seis homens a
bordo, e aproximava-se a grande velocidade daquele local
trágico e onde havia rochas com fendas algas, grandes
peixes...
“Baby” mergulhou velozmente, esquivando á chegada
da lancha. Estava convencida de que não a tinham visto, ou
pelo menos que ignoravam ser ela quem estava ali.
Confiava nisso.
Uma coisa era certa: ia resultar completamente inútil a
procura do general Malcolm Manchester.
***
Abriu a porta de sua pequena mas elegante e confortável
suíte e Johnny entrou rapidamente. Seu rosto denotava uma
grande preocupação, uma certa perplexidade e também um
bocado de raiva.
— Não o encontraram — resmungou.
— Claro — disse Brigitte.
— Abandonaram a busca muito depressa. ao que parece
— acrescentou de. — Anoiteceu logo e tiveram que desistir.
Isto é o que se diz no hotel. Mrs. Manchester está
inconsolável.
— No fundo deve ser uma boa pessoa, suponho —
observou “Baby”. — Como foi recebida a notícia?
— Bom, são acontecimentos que ocorrem com alguma
freqüência. Há lugares muito profundos naquele ponto.
Supõe-se que Manchester tenha sofrido uma câimbra e
perdido os sentidos, não se podendo safar. Afogou-se e foi
muito para o fundo. Ao amanhecer virá uma lancha da
Guarda Costeira com seus homens-rãs para tentar a
recuperação do cadáver. Em todo o hotel só se fala do
acidente.
— É natural.
Johnny olhou astutamente para Brigitte, que usava então
um baby-doll curtíssimo e diáfano, tão diáfano a ponto de
convencer qualquer um que aquela jovem de cabelos negros
e delgada cintura nada tinha a ver com a loura e gorducha
miss Rose Marie Eggar. que oficialmente ocupava aquela
suíte.
— Pergunto-me que explicação daremos a Washington
sobre nosso fracasso, “Baby”.
— Procuraremos alguma coisa que seja convincente —
sorriu ela, pensativa. — Aonde foram os homens da lancha
branca e vermelha? Pode segui-los?
— Não os vi. Apenas vi a lancha, já vazia.
— Onde?
— Seguindo a costa para o norte há um pequeno motel,
que tem um embarcadouro branco e azul. A lancha lá estava
amarrada. Não vi nenhum dos homens. “Baby”. Era uma
embarcação muito rápida e eu sai com atraso.
— Claro. Johnny, não se preocupe.
— Na Central não serão tão benevolentes como você —
grunhiu o espião.
— Na Central, você sabe, leva-se muito em
consideração o que eu digo. Esqueça isso. Ninguém vai
repreendê-lo. Como se chama esse motel em cujo
embarcadouro estava amarrada a lancha?
— “Blue Key Motel”. É pequeno. Pouca gente. Eu podia
ter dado uma olhada por lá, mas nem sequer conhecia os
ocupantes da lancha. Só pude ver que era um branco e o
outro negro... Você os considera importantes?
— Não sei. E você?
Johnny encolheu os ombros.
— Tampouco sei o que pensar, Decerto, a presença deles
ali parece demasiado casual. Mas, pensando bem, havia
mais pessoas na baía lanchas, snipes
— Mas nenhum outro barco se dedicava à caça
submarina.
— Que quer dizer?
— Bom... Imagino que você já tenha pescado de
mergulho mais de uma vez, Johnny.
— Sim. — pestanejou ele. — Claro. E dai?
— Nunca Levou arpões soltos?
— Sim, sobressalentes . Que está tentando dizer,
“Baby”? Espere! Oh, não, não... Diabo!
— Por que não? — sorriu Brigitte.
— Mas... Bem, tudo é possível em nosso asqueroso
mundo da espionagem. Sim! Por que não? Um daqueles
homens, o branco, o que estava nadando, podia levar um
arpão solto. Estava.. á espera de Malcolm Manchester. Já
tinha arpoado um peixe, antes. Quando Manchester se
aproximou, deu-lhe caça. Cravou-lhe um dos arpões soltos,
matou-o, deixou que fosse para o fundo... Depois, recolheu
a linha do arpão com o qual tinha fisgado o peixe, prendeu-
a ao fuzil aquático, voltou á lancha e os dois se afastaram
dali a toda a pressa. É isso o que você pensa.
— É apenas uma teoria, Johnny.
Este havia empalidecido ligeiramente.
— Uma teoria muito admissível, “Baby”. Mas pergunto-
me: por que? Por que matar um homem como Malcolm
Manchester, que jamais fez mal a ninguém? Ao contrário,
sempre foi bom sob todos os aspectos. Sobretudo, no
humano. Por que matar um homem assim?
— Vamos ver se conseguimos descobrir, Johnny.
— Claro que sim. Irei ao motel onde estão o negro da
lancha e o outro, e...
— Não — Brigitte moveu negativamene um dedo. —
Não, Johnny. Eu me encarrego disso. Conheço o negro, de
modo que levo vantagem. Chame o outro Johnny pelo rádio
e diga-lhe que, tão logo puder, retire os microfones dos
aposentos dos Manchester. Depois, ele se dedicará
exclusivamente a vigiar a teórica viúva.
— E eu?
— Você será minha peça mestra, que moverei conforme
se desenrolem os acontecimentos. Desagrada-lhe?
— Não — riu ele. — Considero isso um grande
privilégio. Será um prazer para mim convencer-me de que a
agente “Baby” nunca falha. Por onde começamos?
— Começarei eu pessoalmente — foi ao armário e
sacou a maleta vermelha ornada de flores azuis. — Parece-
me que a primeira coisa é conseguir umas fotos do hercúleo
negro que estava naquela lancha, assim como de seu
companheiro branco. Portanto, terei que circular pelo “Blue
Key Motel”, à espera dessa oportunidade. Depois...
— Depois...?
— Bem, o plano é um pouco complexo. Johnny. É
possível, inclusive, que precisemos requisitar mais dois
Johnnies. Não quero que escape de minha mão nem um só
fio deste jogo de marionetes.
— Vê realmente as coisas tão complicadas?
— Temos que partir de uma base, Johnny: Malcolm
Manchester não era um homem vulgar. Era inteligente,
grande estrategista, político ilustre, espírito sereno,
equilibrado... Sim, acho que tudo é mais complexo do que
parece à primeira vista.
— Que tal você me explicar tudo o que está pensando,
“Baby”? Poderíamos trocar idéias.
— O que sempre convêm. De acordo, Johnny. Vou lhe
dizer o que suponho esteja acontecendo. Depois Sim, depois
todos começaremos a trabalhar de verdade.
CAPITULO TERCEIRO
Sumiço de um general
Há douradas areias em Marrocos
“Eu posso”

Vinte e oito horas mais tarde. quando Brigitte Montfort


se dispunha a deitar-se, soou a batida na porta da suíte.
Sacou sua pistola de coronha de madrepérola e dirigiu-se
para lã, ataviada unicamente com um diminuto biquíni
vermelho.
— Quem é?
— Johnny.
Abriu a poda, deixou-o entrar e fechou rapidamente.
Quando olhou para seu companheiro da CIA, este mostrava
uma expressão abobalhada, atônita, estupefata.
— Sente alguma coisa, Johnny?
— Puxa vida! Por fim, vejo-a de biquíni, tal como você
é! E sequer minha opinião
— Já sei qual seja, pois você não é o primeiro homem
que me vê de biquíni. Ao assunto, querido. Como passou o
dia?
— Bem. Sem contratempos, sem dificuldades... Quer
dizer, apenas uma.
— Qual?
— Com a foto que você bateu do negro, pude vigiá-lo
rigorosamente. Mas tampouco eu pude ver seu
companheiro. Deduzo que foi ele o executor e que, uma vez
cumprida sua missão, esfumou-se.
— O clássico. E o negro?
— Chama-se Abe Roberts e á de Atlanta, Georgia, ao
que parece. Está aqui por puro acaso.
— Averiguou o nome do outro? Devem ter chegado
juntos, ou se terão visto alguma vez no motel, ou fora
deste...
Johnny pestanejou, confuso.
— Não há nenhum outro.
— Como?
— Ninguém está relacionado com Abe Roberts. É de
supor que seu companheiro, que era quem devia cometer o
assassinato com um disparo de fuzil aquático, só esteve em
contato com ele no momento do trabalho, Abe Roberts deve
tê-lo recolhido com a lancha em algum ponto, trouxe-o à
baía de Big Pine Key, tornou a recolhê-lo quando disparou
contra Malcolm Manchester e deixou-o novamente em
qualquer ponto da costa. É apenas uma teoria, claro —
sorriu.
— Como teoria, aceita — sorriu também Brigitte. —
Que mais?
— Parte amanhã.
— Quem?
— O gigantesco, o tal Abe Roberts.
— Oh Regressa a Atlanta?
— Não. Pediu uma passagem aérea para Miami. Quer
dizer, telefonou a Miami pedindo que lhe reservassem um
lugar no vôo que leva a... Aonde diria você?
Brigitte apertou as pálpebras.
— A Rabat, Marrocos?
Johnny olhou-a assombrado.
— Diabo, “Baby”, você não deixa que ninguém a
surpreenda...
— Acertei?
— Claro.
— Assombroso! Incrível, Johnny! Não me refiro ao fato
de que tenha acertado... Em que dia voa para Rabat nosso
amigo Abe Roberts?
— Depois de amanhã.
— Hã-hã... Que me diz da senhora Manchester?
— Regressou a Washington, naturalmente. E, como
você recomendou, dois rapazes de lá estão encarregados de
vigiá-la de maneira mais discreta. Nenhuma novidade, até
agora. Mas talvez surja alguma coisa
— Não — cortou Brigitte. — Ela não fará
absolutamente nada. Quase aconselharia que deixassem de
vigiá-la, mas não se perde nada com isso. De qualquer
modo, vamos esquecê-la, já que não á peça importante neste
jogo. Devemos ocupar-nos. exclusivamente, do formidável
negro chamado Abe Roberts, de Atlanta. Que sabemos a
respeito dele?
— Nada.
— Como, nada? A CIA não pode descobrir nada sobre
um cidadão americano? Ora essa... — sorriu — Talvez
tenhamos que recorrer aos arquivos do FBI, Johnny.
— Não creio que seja necessário: Abe Roberts não
consta de registro algum.
— Não consta...? Que significa isso?
— Estatisticamente, civilmente, não existe. Dir-se-ia que
não é cidadão dos Estados Unidos.
— Bom. Talvez não seja o único nessas condições.
— Podemos detê-lo, interrogá-lo, e assim ele diria...
— Não! — exclamou “Baby”. — Nada disso, Johnny!
Seria o mesmo que chegar a um campo de caça disparando
para o ar.
— Espantaríamos a caça?
— Naturalmente! Não, não, nada de incomodar Abe
Roberts. Ao contrário: devemos conceder-lhe as maiores
facilidades para que, depois de amanhã, tome seu avião com
destino a Rabat... Lá e seu ponto de destino, ou trata-se
apenas de uma escala pata outro lugar, talvez na Europa, ou
na própria África...
— Seu destino é Rabat. Quer dizer, o mesmo lugar para
o qual Malcolm Manchester comprou passagem no
“Atlantic Sea” com o falso nome de Pierre Civette, cidadão
francês.
— Sim... Curioso, não é?
— Talvez o general Manchester soubesse de algo que
está acontecendo por lá, tenha-se tornado perigoso e por
isso mandaram matá-lo. O cadáver ainda não foi
encontrado, apesar das buscas realizadas nada menos que
pelos homens-rãs da Guarda Costeira,
— Que poderia saber o general Manchester sobre Rabat?
— perguntou Brigitte. — Um momento... Constava do
informe sobre ele que por várias vezes havia estado na
África, viajando em safáris... Era grande conhecedor desse
continente.
— Talvez demasiado conhecedor. E isso poderá ter
desgostado alguém.
— E mais que possível. Tenho um... pressentimento,
Johnny. Não é amanhã que o “Atlantic Sea” zarpa para
Rabat?
— É.
— Quero que vigiem esse barco, durante a partida.
— Não compreendo...
— Quero que o vigiem, simplesmente. Transmita essa...
sugestão a Washington com a máxima urgência. Se
possível, diretamente a Miami.
Johnny sorriu astutamente.
— Estou vendo seu jogo, “Baby”. Você acha que
Malcolm Manchester não morreu e que tomará esse navio
para Rabat?
— É uma possibilidade — sorriu Brigitte. — E o espião
que desdenha qualquer possibilidade não é espião, Johnny.
— Certo. O navio será vigiado quando zarpar, amanhã.
Quanto a Abe Roberts...
— Também o deixaremos partir, de avião, com destino a
Rabat.
— Se esse negro se for, ficaremos completamente
desorientados.
— Certo — sorriu Brigitte. — A menos, está claro que
algum de nós vá também a Rabat.
— Como? Você pensa em ir...?
— Qual é o número do vôo de Abe Roberts para depois
de amanhã?
— Cento e quatorze. Mas...
— É tudo, Johnny.
— Mas se você pensa em ir a Rabat, convivia avisar a...
— Não, não. Nada de mobilizar a CIA em Rabat,
Johnny. Se eu for, me arranjarei sozinha. Mas, na verdade,
tudo depende do que aconteça amanhã quando o “Atlantic
Sea” zarpar de Miami. Quando segue para lá o nosso bonito
negro?
— Amanhã á tarde.
— Ah, ótimo. Estarei lá á sua espera. Partirei para
Miami amanhã cedo. Já que Abe Roberts está sob sua
eficiente vigilância e a de Johnny II, descansarei. E agora.
Johnny, deixe-me sozinha, por favor. Gostaria de dormir
algumas horas.
— De acordo. Mas se pensa em ir a Rabat...
— Depois falaremos disso. Boa-noite, Johnny.
Deu-lhe um curto beijo nos lábios e ele saiu aos
tropeções, como se tivesse recebido uma pancada na
cabeça.
Brigitte sentou-se à elegante escrivaninha de sua suíte,
apanhou uma folha de papel, uma esferográfica e ficou uns
segundos pensativa, antes de redigir o seguinte telegrama:
ALI – HOTEL PARAÍSO – MARRAKECH –
MARROCOS NO VÔO 114 DEPOIS DE MANHÃ
PROCEDENTE DE MIAMI CHEGARÁ A RABAT UM
QUERIDO AMIGO MEU CHAMADO ABE ROBERTS
SEGUNDO CONSTA NA LISTA DE PASSAGEIROS PT
EU CHEGAREI DIA SEGUINTE E QUERO FAZER-LHE
UMA SURPRESA VG POIS IGNORA QUE ME
INTERESSO POR ELE PT BEIJOS
BRIGITTE MONTFORT

Releu o telegrama, fez algumas correções e passou-o a


outra folha, em francês. Leu-o pela última vez e assentiu
com a cabeça. Estava perfeito. Ali saberia como interpretá-
lo, a menos que atualmente fosse muito mais tolo que anos
atrás. Coisa pouco provável, certamente, já que de um modo
geral a astúcia tende a crescer nas pessoas, não a diminuir.
Dirigiu-se ao telefone.
— Pode mandar-me um boy, por favor? Quero passar
um telegrama com a máxima urgência.
Imediatamente, miss Eggar.
— Obrigada.
Dois minutos mais tarde um rapazola se apresentava a
Brigitte. que lhe entregou o telegrama e uma nota de vinte
dólares, além de mimoseá-lo com um estupendo sorriso.
— Quero que compreenda, rapaz: este telegrama é
urgentíssimo.
— Não se preocupe, miss Eggar. Será expedido esta
mesma noite.
— Então, você ganhou realmente seus vinte dólares.
Adeus.
— Obrigado, miss Eggar.
Três minutos após, “Baby”. a espiã internacional mais
inteligente, sagaz e relacionada do mundo dormia
tranqüilamente, de biquíni. Sem dúvida, o simpático boy
teria soltado um grito se visse a loura e gorducha miss
Eggar tal como era na realidade.
Mas isto nunca seria possível, pois na manha seguinte
Rosa Marie Eggar partiria do hotel, num carro alugado,
rumo a Miami.
***
Johnny entrou no carro, sentou-se junto de Brigitte com
um suspiro de cansaço. De aborrecimento, talvez. E. mais
provavelmente, de decepção.
— Bem... — indicou o avião que se elevava sobre o
Miami International Airport. — Lá vai a nossa pista.
“Baby”.
— Nada de interesse?
— Nada em absoluto. E ontem tampouco, no “Atlantic
Sea”. Evidentemente, o general Manchester não embarcou.
Tampouco apareceu sob a personalidade de Pierre Civette.
Nem se viu ninguém que se pudesse considerar suspeito.
— Que conclusão tira você de tudo isto. Johnny?
— Nenhuma. Talvez o general estivesse aborrecido,
quisesse fugir... e não lhe deram tempo.
— Teoria plausível. E a respeito de Abe Roberts?
— Não sei. Talvez tudo tenha sido uma coincidência.
— Claro ... — sorriu Brigitte. — Uma coincidência.
— Está bem, está bem — resmungou Johnny — já sei
que as coincidências não existem em espionagem. Mas eu
estou enrolado e não encontro o fio da meada.
— Que há sobre a senhora Manchester?
— Continua em Washington. Já foi abandonada a busca
do general. A Guarda Costeira apresentou também uma
teoria: cabe a possibilidade de que por aquelas águas
rondasse um tubarão, que o atacou... Isso, sem dúvida,
justificaria o acidente.
— Sem dúvida.
— Mas você não está de acordo.
— Por que não? — sorriu docemente “Baby”. —
Qualquer teoria ou explicação é sempre boa, Johnny... até
que se demonstre o contrário.
— E você vai demonstrá-lo — riu o espião.
— Bom... No momento, tenho passagem para amanhã
num vôo direto a Rabat. Uma vez lá, veremos o que
acontece.
— A Central autorizou essa viagem?
— Tenho a impressão de que a ignora.
— Como...? Por favor, “Baby”, você não pode...
— Querido, amado, idolatrado Johnny: eu posso.
— Mas
— Posso. Diz um adágio espanhol que, muerto el perro,
se acabo la rabia. Isso quer dizer que tudo terminou, já que
o general Manchester... desapareceu. E se tudo terminou,
por que não posso eu tirar umas férias em Rabat?
— Mas a CIA...
— Ora, vamos, Johnny! A CIA já está ao corrente de
minhas extravagâncias, para dizê-lo assim. Ah, Marrocos!
Sol cintilante, palmeiras e dromedários, tâmaras, figos,
amêndoas, areia dourada ao sol, olhos ardentes, vergéis em
flor...
— Sendo assim, até eu gostaria de ir lá.
— Mas não comigo, querido — riu ela. — Você pode,
isto, sim, desejar-me feliz permanência em Marrocos.

CAPÍTULO QUARTO
Alá é misericordioso
Um homem troca de nome
Muitas perguntas e nenhuma resposta

Rabat fora denominada muito antes “Ribat El Fat” isto é,


“Campo da Vitória”, quando era apenas um simples
acampamento militar. Hoje, Rabat produz, como primeira
impressão, a de ser a cidade das árvores e das flores, que
abundam em seus formosos jardins: Belvedere, Jardim do
Triângulo, os Udaias, Experimental etc. Destaca-se contra o
céu, ao ruído, o que resta a Torre de Hasan, como
testemunho silencioso do que foi o celebre minarete. A
esplanada de Mexuar, com o palácio de S.M. o Sultão ...
Cada sexta-feira, este, a cavalo, abandona seu palácio e,
cruzando o Mexuar, dirige-se á mesquita de Djamas Ahel
Fes para presidir a oração solene.
Em Rabat, como em tantas outras cidades exóticas de
todo o mundo, o típico, o pitoresco, mistura-se com o
furiosamente moderno: edifícios de dez, quinze, vinte
andares, brancos e brilhantes ao luminoso sol do trópico.
Em lugares como Rabat, o turista, o que viaja com
passagem de ida e volta a prazo fixo, não tem tempo de ver
nada. Vislumbra apenas, com os olhos muito abertos,
atônitos, um mundo desconhecido, remoto e moderno ao
mesmo tempo. Não dispõe de vagares para conhecer,
assimilar. Vê, apenas. E já é o bastante.
Gente de toda espécie: homens, mulheres, crianças,
militares de espesso bigode, garotas louras vindas da
Suécia, da Irlanda, da Alemanha... Negros berberes,
mulheres furtivas envoltas em seus mantos brancos. Em
Rabat é preciso viver, não passar simplesmente.
Só que às vezes chega-se a Rabat com menos tempo
ainda que um turista.
Às vezes chega-se a Rabat, ou a qualquer cidade do
mundo, com a escassa e perigosa bagagem do espião
internacional. Neste caso, é quase certo que nem se tem
tempo de “ver” Rabat: o espião tão somente passa por lá...
ou por onde seja. Tanto faz Rabat, como Tóquio, Paris,
Viena, Calcutá, Cingapura... Se passa a toda a pressa. E se
logra passar, se sai com vida, já é muito, já é quase
demasiada sorte.
Dos passageiros que desceram daquele avião procedeste
dos Estados Unidos, um... quer dizer, uma, tinha aspecto de
tudo quanto foi mencionado. Ou seja, querer viver, ver e
passar por Rabat. Tudo ao mesmo tempo.
Grandes olhos azuis que sorriam, corpo de huri no
paraíso maometano, lábios rosados, uma maleta comum e
outra, menor, vermelha, com pequenas flores azuis.
Naturalmente: a agente “Baby”, que chegava a Marrocos
como a jornalista Brigitte Montfort, enviada pelo “Morning
News” de Nova Iorque. Também mentira, naturalmente.
Mas isso não precisava ser dito ás autoridades que
vigiavam a entrada do país. Nem tampouco era necessário
explicar que aquela maleta vermelha continha truques para
matar, se tal fosse o caso, umas cem pessoas.
Não houve dificuldades. Assim Brigitte Montfort deixou
o aeroporto com seu cândido e doce sorriso de menina feliz.
E tão logo o fez, um rapaz marroquino, de vinte anos
apenas, correu para ela, os olhos negros brilhando, o rosto
alterado pela emoção, os lábios um tanto grossos, um tanto
trêmulos.
— Alá é misericordioso comigo. Alá é grande. Alá é o
Céu dos crentes! Que Alá esteja contigo, miss Montfort!
— Ali — sorriu a viajante, estendendo a mão. — Como
estás, meu bom Ali?
— Mais feliz que no Paraíso! Maomé me perdoe... É
certo o que vêem meus olhos?
“Baby” pôs-se a rir.
— Que vêem teus olhos, Ali?
— A mulher mais formosa que Alá poderia escolher
para o melhor de seus crentes. Já se passaram quase dois
anos, miss Montfort, e estás ainda mais jovem, mais divina,
mais...! Que Alá esteja sempre, sempre, sempre contigo,
Brigitte Montfort!
— És muito amável, Ali. Quase dois anos2... — suspirou
“Baby”. — Sim, foi quanto se passou.
— Não passou para tua beleza, miss Montfort.

2
ver novela: ALÁ SEJA CONTIGO
— Mas para minha alma, sim, meu bom Ali. Quando
começamos a contar, logo sabemos que o tempo passou.
Fevereiro de mil novecentos e sessenta e oito... Oh. Deus
me perdoe: logo completarei vinte e nove anos!
— Alá foi bondoso contigo. Em meu país, em minha
raça, uma mulher de vinte e nove anos é idosa. Mas tu não
ás idosa, nunca serás... Sempre serás a mais jovem e bela
mulher de todo o mundo! E sempre, sempre Ali será teu
escravo, teu...!
— Basta, basta... — riu Brigitte. — Foi uma recepção
digna de uma rainha, Ali. Já é suficiente.
— Suficiente? — protestou o rapaz árabe. — Ali tem em
seu peito a recordação eterna da mais formosa e doce das
mulheres. Cada dia, durante dois anos, eu me lembrei de ti.
— Sim, mas já me emocionou o suficiente, Ali. Quando
a alegria se vá tão claramente como a vejo em teus olhos, já
não são necessárias palavras.
— Má te deu sabedoria e beleza ao mesmo tempo. lá não
direi mais nada. Vamos a Casablanca, miss Montfort?
— A Casablanca? O homem que te indiquei veio a
Rabat, não é assim?
— Assim é. Mas foi a Casablanca num carro de aluguel,
E agora lá está, no “EI Daiba Hotel”, na Avenida de
Mohamed.
— Pudeste segui-lo?
— Tenho um bom carro — sorriu Ali, mostrando seus
dentes branquíssimos. — Um estupendo táxi, que pude
comprar com os dez mil dólares americanos com que me
presenteou a mais bela huri do paraíso. O carro e eu, miss
Montfort, estamos á tua disposição. E também tenho um
pouco do dinheiro que sobrou e do que ganhei com o táxi...
Tudo o que tenho te pertence.
— No momento, me bastará o carro, Ali.
— Vamos a Casablanca?
— A Casablanca.
— Eu levo as maletas, levo-te ao melhor hotel de
Casablanca, fico contigo e te guio por lá.
— Pensei que só conhecias Marraquech.
— Marraquech é minha cidade. Mas conheço todas as
outras. Todos os lugares do país. Ali será muito útil a mais
bela huri com quem se possa sonhar. Ali...
— Ali deixará de falar e me indicará seu táxi, para levar-
me a Casablanca.
— Ali obedece agora mesmo. A maletinha eu levo, não
é?
— Levo-a eu, Vamos.
***
— É um bonito táxi, Ali. Deve ter custado muito
dinheiro.
— Sim, mas menos de dez mil dólares. A verdade é que
sou um homem, agora. Não um milionário, mas rico. Em
Marrocos, a riqueza se mede de modo diferente que nos
Estados Unidos. Mas tudo o que tenho..
— Eu sei! — cortou “Baby”. — Parece que Rabat vai
ficando para trás...
— Oh, sim. Estamos agora na estrada litorânea que leva
de Rabat a Casablanca. Vamos passar por Bou Znika,
Mohamedia, Fedala... São apenas cem quilômetros até
chegar a Ed Dar El Beida... Bom, a Casablanca, como
dizem os estrangeiros.
— Fala-me do homem chamado Abe Roberts.
— Ah Bem, Ali olhou a lista, pois tem amigos em tola
parte. Havia um homem chamado Abe Roberts, sim, que
chegou ontem a Rabat. Ali estava lã, esperando-o...
— É este?
Brigitte mostrou-lhe uma foto de Abe Roberts, tirada a
distância e com microcâmara, em Big Pine Key. Ali a olhou
rapidamente, sem largar o volante.
— É este, miss Montfort. Mas ele está mentindo.
— Mentindo?
— Não se chama Abe Roberts. Ou não se chama Kino
Ombato. Um dos dois nomes tem que ser falso, não é?
— É... — murmurou Brigitte. — Está agora no “El
Daiba Hotel” com o nome de Kino Ombato?
— Isto mesmo.
— Que mais sabes a seu respeito?
— Nada mais. Não quis pedir ajuda, por discrição. Tive
que segui-lo, vigiá-lo esta manhã, vir buscá-la em Rabat...
— Fizeste muito bem, Ali, não precisas pedir desculpas.
Alguém estava esperando Ah. Roberts tio aeroporto de
Rabat?
— Ninguém. Ele chegou, alugou um táxi e fez-se levar a
Casablanca. Ao chegar lá, tomou outro táxi, despedindo o
de Rabat. Então foi para o hotel “El Daiba”. Não falou com
ninguém, pelo menos fora do hotel, nem ninguém o
abordou. Parece um homem solitário que está esperando
alguma coisa.
— Kino Ombato... Lembra-te alguma coisa esse nome?
— Não.
— Parece-te um nome marroquino? Quero dizer berbere,
ou...?
— Não, não. O nome parece... de mais para o sul
— Mais para o sul? Do sul da África, queres dizer, ou do
sul de Marrocos?
— Mais para dentro da África. Desses países novos que
ainda não aprenderam muito bem a seguir em frente. Não
saberia dizer qual deles. Só que Kino Ombato e de mais ao
sul. Ele é um negro puro.
— Compreendo. Isso te significa alguma coisa? Algo
especial?
— Não... Não sei. Creio que não. Somente que é do
centro da África. E, certamente, da costa. No interior, os
negros são menores. Tampouco é da raça watusi ou outra
parecida. Estas ficam mais para leste e para o norte. Kino
Ombato deve ser do litoral.
— Que fez ele quando chegou?
— Foi a Casablanca. Depois jantou e passeou pela
cidade até meia-noite. Pela manhã, ou seja hoje, esteve em
Fedala, na praia. Conheces Fedala?
— Não.
— Ali te mostrará Fedala. É uma praia muito bonita... A
mais bonita de Marrocos, a maior. Passaremos por lá dentro
de alguns minutos. Sempre há muita gente em Fedala.
Estrangeiros, na maioria. Marrocos tem bom clima,
— Muito bom — sorriu Brigitte. — Estás certo de que
ele não falou com ninguém?
— Ali não viu.
— Está bem. Levarás-me ao “El Daiba Hotel”, Ali
— O mesmo onde está Kino Ombato?
— Claro.
— Claro — sorriu o rapaz. — Ali te levará lá.
***
O “El Daiba Hotel”, para desencanto de Brigitte, não era
desses marroquinos típicos. Nem tampouco se parecia com
aquele chamado “Hotel Paraíso”, em que estivera durante
sua aventura anterior em Marrakech, quase dois anos antes.
Era uma construção moderna, com certo sabor típico,
certamente, mas sem laranjeiras nem amendoeiras ou
romãzeiras em flor no pátio. Um grande vestíbulo, vários
pavimentos, suítes confortáveis com ar condicionado...
Europeu cem por cento, com algumas gotas de tipismo
local. Casablanca, como Rabat, como todas as cidades do
mundo por exóticas que sejam, tinha cedido ante os tempos
modernos.
A jornalista americana ocupou uma pequena mas
formosa suíte composta de duas peças, com vista para o
mar, banheiro, bar... Ah, a civilização!
Era já noite quando se considerou definitivamente
instalada no hotel. Tudo em seus lugares, tudo na ordem
mais perfeita, tudo a ponto de ser utilizado a qualquer
momento. Um espião desordenado ou descuidado seria
como... um soldado que fosse para a guerra sem seu fuzil.
Fatal. Mortal.
Estendida na cama, Brigitte comprimiu o botão do
pequeno rádio gêmeo do que havia entregue a Ali.
— Ali?
— Servo teu e de Alá!
Brigitte riu.
— Estás bem lembrado de tudo?
— Estou. Se Kino Ombato não sair esta noite, retiro-me
ás doze para dormir e volto para a frente do hotel, com meu
carro, ás sete da manhã, para continuar vigiando. Se ele sair,
chamo-te por este aparelho, dando aviso. E se vir que Me se
afasta antes que tenhas saído, não te espero, sigo atrás tiMe
e vou te chamando por este aparelho, dizendo por onde vou.
— Boa-noite, Ali.
— Que Alá seja contigo!
A agente “Baby” pediu um jantar leve em sua suíte,
comendo-o pensativa, sem pressa, Estava num de seus dias
de pouco apetite, talvez por estar demasiado ocupada
mentalmente. Ou talvez demasiado preocupada com aquele
caso que tão estranho e desconcertante se apresentava. Que
podia importar a Kino Ombato uma pessoa como Malcolm
Manchester? Por que matá-lo? Por que Manchester
pretendera utilizar um passaporte falso para sair dos Estados
Unidos rumo a Marrocos, especificamente a Rabat. A
Rabat? Talvez também ele tivesse pensado em transladar-se
de Rabat a Casablanca... Quem era Kino Ombato, que
queria, por que interviera na morte de um homem que
residia a milhares de quilômetros de sua pátria?
O melhor, sem dúvida alguma, era dormir e aguardar os
acontecimentos.
CAPÍTULO QUINTO
A conveniência de um orifício na lona
Uma abordagem difícil
Alá e sua distribuição de dons

Por fim, quase ás dez da manhã, quando Brigitte já


fizera sua primeira refeição e rumava impaciente o segundo
cigarro, soou o zumbido do pequeno rádio de bolso.
— Fala, Ali.
— Estás em tua suíte?
— Estou. Que há?
— O negro gigante saiu. Vai tomar um banho, aposto,
tal como ontem. Em Fedala, sem dúvida. Fez sinal a um
táxi.
— Segue-o.
— Mas...
— Segue-o, observa bem onde ele fica, na praia, e
regressa. Vou tomar agora outro táxi. Nos encontraremos na
estrada de Fedala. Lembras-te do caminho inverso ao que
fizemos ontem, vindo de Casablanca?
— Claro.
— Pois bem: nos encontraremos junto daquelas
romãzeiras que tanto me entusiasmaram. Está bem assim.
Ali?
— Está. Até logo.
— Não o perca de vista.
— Não tem perigo.
Brigitte fechou o rádio e ficou pensativa uns segundos.
Foi ao quarto, sacou do armário a maleta vermelha, abriu-a
e repassou seu conteúdo. Estava completo, naturalmente.
Depois retirou do armário um jérsei finíssimo, cor de malva,
e uma saia preta, também muito fina. Tirou as calcinhas e o
soutien, e pos o biquíni vermelho. Por cima, a saia e o
jérsei.
Sorriu e tornou a acionar o rádio de bolso, que agora
estava na maleta.
— Ali?
— Estou ouvindo muito mal ...
— É que o alcance do rádio é pequeno. Conheces algum
lugar em Fedala onde vendam coisas para praia? Bolsas,
barracas, chapéus de palha...?
— Conheço muitos desses lugares.
— Ótimo. Pois me compra essas coisas. Espero que
tenhas bom-gosto.
— Má me castigaria se não te comprasse o que mereces.
Mais alguma coisa?
— Nada mais. Saio já para esperar-te junto ás
romãzeiras.
***
— Compraste o que pedi?
— Claro.
— E sabes onde está Kino Ombato?
— Também.
— És um grande colaborador, Ali. Em marcha.
Entrou no táxi, que Ali fez arrancar imediatamente.
Atrás foram ficando as lindas romãzeiras, com seus frutos
ainda em flor. Quando se desenvolvessem, iriam tomando
uma coloração verde. Finalmente, amadureceriam, voltando
a tomar um tom vermelho brilhante. A estrada estendia-se
entre olmos, ou pelo menos assim Brigitte classificou
aquelas árvores altas e delgadas, de folhas verdes. Dentro
do táxi, examinava sorridente a barraca, a bolsa de algodão
listrado e o chapéu de palha que Ali tinha comprado. Com
aquilo, pareceria a mais clássica e ingênua das turistas que
afluíam a tomar o sol de inverno em Marrocos.
— Há muita gente na praia? — perguntou.
— Sempre há gente em Fedala. Mais no verão, claro.
— Onde está Kino Ombato?
— Alugou uma tenda quase à beira do mar. Lá existe um
grupo delas, que se alugam por bom preço. Mas vão querer
te enganar, de modo que Ali
— Ali ficará no carro enquanto miss Montfort se deixa
enganar alugando uma tenda. O dinheiro nunca me
preocupa, Ali.
— Bem sei — sorriu o simpático marroquino. —
Ninguém dá tão facilmente dez mil dólares americanos a
um árabe. Mas não gosto que te enganem, miss Montfort.
— Isso não importa ... Creio que já estamos chegando.
— Assim é.
Entravam em Fedala, Viam-se linhas de palmeiras na
avenida. Ao fundo, o mar, azul-cinza, como aço, franjado
de espumas. Entre o mar e a avenida, longas filas de tendas
retangulares, em lona listrada, que recordavam de certo
modo as tendas árabes do deserto, com a parte superior
pontiaguda e a dianteira levantada, formando um toldo
sustentado por estacas.
Havia gente em toda a extensão da longa e bela praia,
com a qual, possivelmente, só poderia competir a de Ain
Diab. Em Casablanca há muitas piscinas, uma das quais,
alimentada com água do mar, consta ser a sétima do mundo
em comprimento. Há também menores, em grande
quantidade. Mas, geralmente, o público prefere o mar. Além
de Fedala e Ain Diab, há numerosas enseadas de grande
beleza na costa, também bastante concorridas pelos que
preferem um pouco mais de tranqüilidade.
— Naquele grupo — Ali deteve o carro. — Kino
Ombato alugou uma daquelas tendas. Espero que o
encontre.
— Já fiz coisas muito mais difíceis. Além disso, ele é
pessoa fácil de ver. Esteja onde estiver, ganhará de todos
por cabeça. Até logo, Ali.
— Que faço eu?
— Nada. Deixa o carro perto daqui, onde eu te possa ver
com facilidade, e espera.
— Acho que tomarei um pouco de sol entre as
palmeiras.
— Boa idéia — sorriu Brigitte, apeando.
Dirigiu-se para o grupo de tendas, caminhando com
aquela graça tio peculiar, aquela elegância ondulante que a
diferençava de qualquer mulher. Tirou os sapatos de salto
alto ao chegar à areia e levou-os presos por um dedo, junto
à maleta vermelha de beleza e morte.
O encarregado das tendas de aluguel era um árabe velho
e enrugado, mas cujos olhos lançaram labaredas tremendas
ao repararem no corpo da mais bela espiã do mundo.
“Baby” sabia apenas quatro palavras de árabe mas o homem
falava quase perfeitamente o francês e o espanhol. Ela
ocupou uma daquelas tendas que pareciam transportar uma
pessoa ao deserto, com os beduínos, e baixou o pedaço de
lona listrada que servia de porta. Despiu-se num instante,
ficando de biquíni, e saiu, com sua maleta, quando o velho
árabe parecia ainda estar refletindo sobre a conveniência de
encontrar um orifício na tenda por onde pudesse espiar a
bela estrangeira.
E a bela estrangeira, transformada em maravilhosa
bonequinha, aproximou-se mais da beira do mar, com sua
pequena barraca de cores, seu chapéu de palha, seus
óculos... Uma turista. Mais uma, entre as que pululavam
pela praia.
Viu Kino Ombato apenas cinco minutos mais tarde. O
gigantesco negro saia da água, a negríssima pele
rebrilhante, os músculos hercúleos em grande destaque. A
largura de seus ombros era formidável. Suas pernas, longas
e sólidas, pareciam colunas de ébano. A cintura,
delgadíssima, resultava incrível. O rosto, áspero e torvo,
tinha a enigmática beleza do negro puro, com as feições
suavizadas do homem de classe, dentro de sua raça. Os
cabelos eram curtos, muito crespos, como arame. Sim,
aquele era o mergulhador que ela vira na lancha branca e
vermelha, o homem que depois fotografara no “Blue Key
Motel”. Inconfundível.
Viu-o sentar-se sobre uma toalha, sem se dar ao trabalho
de se enxugar. Suas mãos eram tão grandes, que o cigarro
recém-aceso parecia um fósforo entre os dedos.
Brigitte esperou dois minutos.
Depois, tirou um cigarro do maço, pôs-se de pé e
aproximou-se de Kino Ombato. Deteve-se diante dele, até
que o negro, finalmente, ergueu a vista e ficou olhando-a,
na verdade surpreendido.’
— Perdão... — ela quase tartamudeou, em francês. —
Pode me dar fogo, monsieur?
Kino Ombato pareceu hesitar um instante, depois
apanhou seu isqueiro, acendeu-o e ofereceu-lhe a chama,
sem necessidade de levantar-se. Visto tão de perto, ainda
parecia maior, mais colossal. Era um assombroso espécime
humano.
— Obrigada... Oh, perdão, estou-lhe falando em francês
e não sei se me compreende...
— Compreendo-a muito bem.
Tinha uma voz profunda, de forte ressonância. Dessas
vozes nítidas que podem ser bem entendidas falando no tom
mais baixo.
— Ah ... obrigada. Obrigada, monsieur..
— Pos de quoi.
— Eu... O senhor é... marroquino?
— Não.
— Eu... eu também não.
Kino Ombato sorriu subitamente, mostrando os dentes
perfeitos. tão brancos que pareciam iluminar-lhe o rosto.
— Evidentemente — aceitou. — Não me pareceu
marroquina, em absoluto. Dizem que existem alguns, mas
nunca vi um árabe de olhos azuis.
— Claro ... Quero dizer que tampouco nasci aqui. Bem,
o que quero dizer
— Compreendo.
— Bom. Obrigada novamente. E a primeira vez que
venho a Fedala. Cheguei ontem a Marrocos.
— Muito bem.
— Mmm ... A água está fria?
— Regular.
— Regular... Acha que sentirei frio se nadar um pouco?
— Não sei. Isso depende de cada um.
— Tem razão. Não me agrada muito a neve. Prefiro o
trópico. É tudo tão belo no trópico... O senhor e um país
tropical?
Kino Ombato franziu a testa.
— Mademoiselle — murmurou — tenho a impressão de
que está tentando... entabular conversa comigo. Por quê?
Brigitte enrubesceu tão intensamente quanto sua prática
de dissimulação lhe permitia.
— Não... não...
— Talvez me engane, admito-o. Mas diria que não e
dessas mulheres que esquecem seu isqueiro. E pedir fogo,
hoje em dia, mademoiselle, é um pretexto já demasiado...
gasto. Que quer me dizer?
— Eu... Perdoe... Não tive intenção de incomodá-lo.
— Não disse tampouco que me esteja incomodando.
Pergunto apenas por que motivo dirigiu-se a mim. Há
muitos homens brancos ao nosso redor. E mulheres Por que
me pedir fogo e não a um deles?
— Bom... O senhor é mais forte que todos os outros.
— Como? — pestanejou Kino Ombato. — Mais fone?
Não compreendo.
— É que... Bem, eu sé queria que me deixasse sentar a
seu lado uns minutos e que... que me permitisse... segurar-
lhe uma das mãos.
Kino Ombato ficou estupefato.
— Segurar minha mão?
— Sim.
— Para quê?
— Penso que... que assim os assustarei. Quando virem
que estou com um homem tão forte, já não me... Já não se
atreverão a incomodar-me.
— Quem?
— Dois... dois homens... Dois árabes que estão me
olhando há algum tempo, de um modo desagradável...
Olham-me, sorriem e dizem coisas... Parece que estão me
vigiando... Talvez seja tolice minha, mas sinto medo
O negro pôs-se de pé, tomou a mão de Brigitte e fez-lhe
sinal que se sentasse. Sentou-se também ele, enquanto ela
ainda não se libertara da impressão de que tivera diante de
si uma montanha.
— Está bem assim?
— Estou. Obrigada, monsieur...
— Onde estão esses homens? Mostre-os, que eu lhes
ensinarei.
— Não, por favor! Não os olhe... Só quero que se
assustem e retirem-se. Se acreditarem que somos amigos,
ou algo parecido. eles irão embora.
— Como queira. Ainda estão por aqui?
“Baby” voltou lentamente a cabeça, com dissimulação,
olhando para os inocentes marroquinos, que, com efeito,
tinham estado a olhá-la com admiração, simplesmente.
Talvez tivessem alimentado esperança de algo mais. Agora,
porém, afastavam-se decepcionados.
— Vão embora.
— Ainda bem.
— Estou-lhe muito agradecida, monsieur... Eu me
chamo Brigitte. Brigitte Montfort.
— Francesa?
— Oh, não... sou norte-americana.
Uma fugaz centelha de alarma passou pelos olhos de
Kino Ombato.
— Estados Unidos? Pareceu-me que era francesa... Fala
muito bem o francês.
— Tampouco o senhor é francês e o fala muito bem —
sorriu ela. — Ou é francês? Argelino, talvez?
— Não. Diga-me: é de que lugar dos Estados Unidos?
— De Nova Iorque.
— Ah... — o alivio também foi fugazmente visível na
expressão de Ombato. — É uma bonita cidade.
— Não me agrada. Lá, no inverno, há muita neve... É
horrível. E depois, tão grande, tão monstruosa... Mas não
tenho outro remédio que viver em Nova Iorque. por
questões de trabalho. Já esteve lá?
— Já, sim.
— Alguns meses.
— Também fala o inglês?
— Bastante bem, já que estudei na Inglaterra.
— Oh... É verdade?
— É verdade — sorriu Ombato.
— Então, é uma pessoa culta, senhor... senhor...
— Kino Ombato.
— Muito prazer — pôs-se a rir nervosamente. — Ia dar-
lhe a mão, mas já estamos de mãos dadas, não é?
— Perdão — disse ele, soltando-lhe a mãozinha. — Eu
estava distraído. Parece que o perigo já passou, não é certo?
— Já sim. Obrigada, senhor Ombato.
— Não há de quê. Teria gostado de fazer algo mais.
Mais?
— Mais?
— Quebrar o nariz desses árabes que a incomodaram.
Brigitte sorriu. Agora parecia estar muito á vontade.
— Teria mesmo feito isso, senhor Ombato?
— Por que não? Era o que mereciam.
Ela olhou sem dissimular sua admiração os peitorais do
negro, seus ombros, seus braços.
— Eu não quereria estar na pele deles. O senhor é
lutador? Pugilista, ou algo assim?
— Não, não — riu ele. — Sou... Digamos, uma espécie
de diplomata.
— Claro. . Para isso é que foi estudar na Inglaterra. Eu...
eu sou jornalista.
— Uma profissão interessante. Veio a Marrocos fazer
alguma reportagem, talvez?
— Exato. Meu chefe não sabia o que fazer comigo e
disse-me, já que gosto tanto do sol, que podia vir a
Marrocos e, por uma vez, tratar de escrever algo
interessante.
— Seu chefe parece um pouco ... grosso, não?
— É um cretino! Bem, quero dizer...
— Compreendo — tomou a rir Ombato.
— Eu lhe disse que não Calo o árabe e, então,
recomendou-me
— Que lhe recomendou ele?
— Que o aprendesse.
— De fato, esse seu chefe parece mesmo...
— Um antipático. É o que ele é.
Ombato riu francamente.
— Bem. creio que vou atrever-me a nadar um pouco. O
senhor já o fez...
— Gosto de nadar.
— Pois se quiser... Quero dizer, se tanto lhe agrada
nadar, venha comigo.
O negro olhou-a surpreendido. Como tantos e tantos
homens, ia-se deixando envolver nas malhas da mais bonita
e astuta espiã do mundo. Era impossível estar com “Baby” e
não sentir-se enfeitiçado, maravilhado. encantado com a
vida. Ela sabia muito bem como conseguir isto.
Ombato levantou-se. Brigitte estendeu-lhe a mão e ele
ajudou-a a pôr-se de pé, com um sorriso de satisfação nos
grossos lábios
***
Por volta do meio-dia, os dois estavam sob a barraca de
“Baby”, conversando animadamente. Ela abriu sua maleta,
sacou um relógio e exclamou:
— Oh, já é tarde! Preciso ir...
— Tão cedo? — decepcionou-se ele.
— Bem, não é que tenha nada de urgente a fazer... Oh.
espero que aqueles dois homens não estejam mais por
aqui...
— Acompanho-a — brilharam os olhos do negro.
— Não será nenhum incomodo para mim. Ao
contrario...
— Obrigada, mas já abusei bastante de sua gentileza.
— Nada disso! — protestou Ombato.
— É que tenho que ir a Casablanca. Tomarei um táxi...
— Está hospedada em Casablanca?
— Estou. Num hotel... Não consigo me lembrar do nome
“El Badia”, ou qualquer coisa assim. É um moderno, em
estilo europeu, na Avenida de Mohamed...
— O “El Daiba Hotel”?
— Exatamente! Acho bom eu anotar o nome para... Mas
o que ocorre? Por que me olha tão surpreendido?
— Eu também estou hospedado nesse hotel.
A expressão de assombro de Brigitte foi digna de figurar
na melhor antologia de representações teatrais.
— Também? Mas... Não é possível!
— É! — riu o negro.
— Que maravilha! Bom ... Quero dizer que sua
companhia... Oh! Suponho que terá outros compromissos
em Casablanca...
— Nenhum. E considero minha sorte fantástica! Mas é
incrível... como não a vi antes no hotel?
— É que cheguei esta noite e estive descansando... Não
sai de minha suíte até hoje de manhã, para vir diretamente a
Fedala.
— Quer que regressemos juntos?
— Oh, sim!
***
Kino Ombato olhou-a ainda com maior admiração
quando a viu pronta para voltar, com seu jérsei decotado e a
saia curta.
Caminharam juntos para a avenida litorânea, onde se
viam vários táxis à espera de passageiros com destino a
Casablanca, que certamente abundavam. Brigitte precisava
erguer a cabeça para falar com o enorme negro. Chegava-
lhe apenas ao ombro e a todo o momento tinha a impressão
de marchar ao lado de um carro de combate. Kino Ombato
dava a impressão de que derrubaria, esmigalharia, sem ao
menos se dar conta, qualquer obstáculo que encontrasse em
seu caminho.
Não houve obstáculos.
Tomaram um táxi, sem que Brigitte tivesse olhado mais
de uma vez para Ali, que, resignado, dispôs-se a
empreender sozinho o regresso a Casablanca, a prudente
distância do táxi que conduzia, o par tão dispar que
formavam a espiã e o espiado.
Entretanto, durante o trajeto, teve algo com que se
ocupar, não sem rir como um boboca devido aos pan
sarnentos que lhe cruzavam a mente- Nunca, nunca ele
conhecera ninguém como aquela miss Montfort.
E certamente jamais teria notícia de nenhuma outra
caçadora tão doce e delicada com relação ao tamanho da
caça, e que a esta conduzisse ao matadouro com tanta
facilidade.
— Alá foi generoso contigo em sua distribuição de
dotes, miss Montfort.

CAPITULO SEXTO
Um gravador ultra-sensível
Uma bonita vila na colina de Anfa
“Okui”!

No hotel havia uma pequena noticia para Kino Ombato,


que lhe foi transmitida na portaria: um cavalheiro havia
perguntado por ele e fazia pouco menos de uma hora que o
estava esperando no bar. Não dissera seu nome. Apenas
pedira que o avisassem quando Ombato chegasse.
— Parece que coincidimos em tudo — sorriu Brigitte.
— Eu pensava em tomar um martini. Mas não quero
intrometer-me em seus assuntos, meu amigo. Espero que
nos encontremos em outra ocasião.
— Sem dúvida. Desculpe-me...
— Estou acostumada a tomar sozinha o meu martini,
não se preocupe.
— Até logo, então.
— Oh — sorriu ela — mas pelo menos podemos ir
juntos até o bar.
— Claro.
Chegaram ao bar. Brigitte despediu-se com um aceno
amistoso e dirigiu-se a uma mesa, Quando se sentou, viu
Kino Ombato chegando a outra mesa, á qual estava sentado
um homem branco, que lhe indicava uma cadeira a seu lado.
Era um homem alto e seco, de cabeça quadrada. olhos
muito claros e cabelos tão louros que lhe davam uma
aparência de albino. Enquanto ambos se dedicavam à sua
conversa, com expressões um tanto preocupadas, a espiã
internacional fazia a sua parte.
Isto é: abrir a maleta vermelha, sacar o que parecia um
pequeno rádio e colocá-lo de modo que um de seus lados
ficasse perfeitamente orientado para os dois homens. A
impressão foi de que o pequeno rádio a incomodava para
encontrar outras coisas dentro da maleta... E assim devia
ser, pois finalmente encontrou seu isqueiro de platina e
brilhantes, e os cigarros. Acendeu um. E certamente nem o
garçom, que esperava a seu lado, pode ouvir o suave “clic”
do diminuto mecanismo oculto no isqueiro ao tirar a
primeira fotografia.
— Martini. Com gelo, por favor.
O garçom inclinou-se e se afastou. Ao voltar com o
martini, “Baby” já tirara meia dúzia de fotos e o pequeno
rádio ultra-sensível já gravara boa parte da conversa entre
os preocupados Kino Ombato e seu visitante.
Finalmente, quase dez minutos mais tarde, Brigitte
compreendeu que os dois homens iam despedir-se.
Levantou-se, após recolher a toda a pressa seus artefatos, e
saiu do bar antes que eles tivessem terminado sua
despedida.
Subiu rapidamente á sua suíte, fechou a porta e tirou da
maleta o rádio de bolso, parecido com uma carteira de
cigarros.
— Ali?
— Ás suas ordens, miss Montfort.
— Onde estás?
— Rondando o hotel como um chacal ronda um
acampamento.
— Pois vais deixar de rondar — riu “Baby”. — Presta
atenção: dentro de alguns segundos vai sair do hotel um
homem alto, magro, muito louro, de olhos claros e cabeça
quadrada. Tens que...
— Segui-lo?
— Exatamente.
— Posso fazer coisa melhor. Esse homem procurará um
táxi, com certeza... Poderia levá-lo a seu destino e, ainda
por cima, ganhar algum dinheiro.
— És um perfeito malandro Ali. — riu Brigitte. — Mas
não me interessa isso. Quero...
— Ai vem! Está saindo!
— Segue-o. Mas de longe, Ali. Nada de ganhar dinheiro
extra quando estás trabalhando para mim. — Okay?
— Okui.
— Okui. não: okay. Não me chame, mesmo sabendo
alguma coisa. Eu te chamarei mais tarde. Okay?
— Okui.
Rindo, “Baby” fechou o rádio e dispôs-se a mudar de
roupa para descer ao restaurante. Súbito, pareceu desgostar-
se consigo mesma e, abrindo a maleta, sacou a toda a pressa
o pequeno gravador ultra-sensível. Abriu-o o contemplou os
diminutos carretéis onde se enrolava a fita magnética.
Apertou um botão. Toda a fita voltou ao primeiro carretel.
Então, pos o aparelho em marcha para ouvir o que estava
gravado.
E então, sim, enquanto escutava aquela conversa,
dedicou-se a mudar de roupa, muito atenta às palavras que
os dois homens trocavam, em inglês:
— ... não devia ter vindo aqui, doutor.
— Lamento, senhor Ombato, mas a coisa se está
tomando difícil. Além disso, tomei a precaução de não dar
meu nome. A ninguém interessa que o Dr. Helmut Frankel
esteja aqui ou em Berlim. Tudo isto, sem dúvida, é algo
pueril, senhor Ombato.
— Por que pensa assim?
— Meu passaporte, minha viagem... É lógico que se note
minha ausência em Berlim.
— Não concordou em utilizar um passaporte falso,
doutor...
— Claro que não! Mas o assunto começa a inquietar-
me. O paciente é... um tanto nervoso. Mais que paciente,
deveria chamá-lo impaciente. Já quer se retirar.
— Ele disse isso?
— Disse. E asseguro-lhe que ainda não está em
condições. Dois dias é pouco tempo. Advirto-o de que se ele
fizer algo diferente de minhas disposições, declinarei de
toda responsabilidade.
— Está bem, doutor. Tranqüilize-se: irei vê-lo hoje e o
convencerei. Não acontecerá nada.
— Assim espero. Foi uma intervenção delicada e
requer...
A conversa prosseguia nessas linhas, insistindo no
mesmo ponto: a impaciência do paciente, a declinação de
responsabilidade por parte do Dr. Helmut Frankel, a
segurança de Ombato de que poria termo a tal
impaciência...
Quando a gravação terminou, Brigitte deu a volta nos
dois carretéis, de modo que ficava tudo disposto para gravar
uma nova conversa, sem apagar a anterior, caso necessário.
Depois, tal como fizera dias antes em Big Pine Key,
dedicou-se a redigir lentamente um telegrama, diretamente
em alemão. Quando terminou, o mesmo era estt:
PRECISO TODA URGÊNCIA CONHECER ATIVIDADES E
POSSÍVEIS ANTECEDENTES EM NOSSA PROFISSÃO DE
UM DOUTOR HELMUT FRANKEL QUE PARECE
RESIDIR BERLIM E ATUALMENTE ENCONTRA-SE
CASABLANCA PT BEIJOS COM AMOR
BRIGITTE.

O telegrama ia dirigido a um certo Barão Wilhelm von


Steinheil. Um homem amado por Brigitte e que com ela
vivera algumas aventuras. Quer dizer: o espião germânico
“Alexandria”.
E “Baby” tinha certeza de que a resposta chegaria com
rapidez. “Alexandria”, tal como ela e Número Um, ou Mr.
Fantasma, ou Nataniel, era um desses que jamais falhavam.
O dia em que falhassem seria por terem caído.
***
— Ali?
— Alá seja contigo, miss Montfort. Já estou outra vez
rondando o hotel.
— Já sei que demorei muito a te chamar. Tive que ir
passar um telegrama urgentíssimo, pois não queria que o
mandassem expedir do hotel. Depois, almocei com Kino
Ombato
— Tornaram-se amigos?
— Por enquanto, sim. Esta tarde, ás cinco, tornaremos a
ver-nos para dar um passeio por Casablanca. Quer me
mostrar a Cidade Velha e diz que ficarei encantada com o
Parque de Lyautey...
— É fato! Fica no centro de Casablanca e... parece um
oásis em pleno deserto. Há milhares de flores e...
— Ali: aonde foi o homem louro?
— A colina.
— Aonde?
— A colina de Anfa. Fica a cavaleiro da praia de Ain
Diab.
— Bem, mas ... que foi ele fazer lá?
Ouviu-se o riso de Ali.
— A colina de Anfa, miss Montfort, á a zona residencial,
onde estão as bonitas vilas, rodeadas de flores e arvores,
com centenas de pássaros que cantam o dia inteiro. Para
milionários.
— Compreendo. O dr. Frankel entrou numa dessas
vilas?
— Quem?
— O homem louro que se chama Helmut Frankel.
Entrou numa das vilas de Anfa?
— Entrou sim. Na de número sessenta da Avenida de
Iben Saifa. É muito bonita, grande, com um espaçoso
jardim cheio de amendoeiras, oliveiras...
— Não tem romãzeiras?
— Também.
— Menos mal... Viste mais alguém lá?
— Não. Esperei para ver quem abria a porta, mas foi ele
mesmo quem abriu, com sua chave. Entrou, e só isso. Não
pude ver ninguém. Queres que eu vá...
— Não, não! Fica onde estás.
— Sigo a ti e ao homem preto quando saírem?
— Mmm... Não. Tira umas horas de descanso.
— Talvez necessites de mim...
— Não creio. Nosso querido Kino Ombato vai levar-me
a passeio e estou certa de que me devolverá ao hotel antes
da hora do jantar, sem novidade. E, sem dúvida, esta noite
não quererá sair comigo. Tem que visitar o paciente.
— Visitar quem?
— O paciente. Descansa umas horas, Ali. Tomarei a
chamar-te quando Ombato se despedir de mim esta noite,
lamentando muito não me poder convidar para ver
Casablanca noturna porque terá negócios a que atender.
***
— Lamento muito, Brigitte — disse Ombato. —
Gostaria de acompanhá-la esta noite, mas tenho alguns
assuntos inesperados a tratar.
— Compreendo — sorriu ela. — Foi uma tarde
deliciosa, Kino. Tudo tão bonito e pitoresco! Os jardins, as
fontes, a Cidade Velha... Tudo!
— Bom. Mas vimos tudo com demasiada pressa. Penso
que talvez possamos voltar lá com mais calma.
— Mas não esta noite. Não gostaria que, por minha
culpa, negligenciasse os seus assuntos, Kino.
— Terá que me desculpar.
— Por favor! O que temo é ter lhe tomado um tempo
excessivo. Se lhe for possível amanhã, adorarei tornar a sair
com você. Desejo-lhe boa sorte.
— Obrigado, até amanhã.
Pouco depois, Brigitte Montfort, em sua suíte, recorria
uma vez mais ao rádio de bolso.
— Ali.
— Fala, miss Montfort.
— Passa para me apanhar dentro de... cinco minutos.
Terás que me levar a toda a pressa á colina de Anfa, ao
número sessenta da Avenida de Iben Saifa. De acordo?
— Okui.

CAPÍTULO SÉTIMO
Uma conversa em língua desconhecida
Brilham lâminas na escuridão da noite
Á festa continua

— Aquela é a vila, miss Montfort.


— Muito bonita, de fato, Ali. Fizeste bem em parar neste
ponto. Ficarás aqui enquanto eu me aproximo.
— Não posso te ajudar em nada?
— Não sei. Espero não me ver em nenhum apuro, já que
vou apenas dar uma olhadela, por enquanto.
Ali ouviu atrás dele esse inconfundível rumor de tecido e
voltou-se no assento. Sobressaltou-se e tomou a olhar para
frente, enquanto Brigitte, sorrindo, acabava de tirar o
vestido que pusera para o jantar. Ficou de calcinhas e
soutien, para imediatamente vestir uma negra malha que
cobria todo o seu corpo, desde o pescoço até os pés. A
malha era muito fina e adaptava-se ao seu corpo como a
própria pele. Calçou uns mocassins, também negros.
Finalmente, sacou de seu envoltório um grande manto
branco, com capuz, que colocou sobre a malha,
Dispunha-se a sair do carro quando se deteve em seco.
olhando para sua maleta, que levava na mão. Hesitou uns
segundos, mas terminou por decidir que a maleta não
necessitava camuflagem do encapamento negro que
também tinha para tais ocasiões. Sendo vermelha e azul, era
pouco visível na escuridão.
— Até logo, Ali. Porta-te com discrição e fica sempre
atento ao rádio.
— Não te preocupes, miss Montfort.
Saltou do carro, por fim, envolta em seu manto branco
de mulher marroquina á antiga, das quais, por muito que se
diga, ainda restam muitas em Marrocos. Inclusive com véu
ocultando o rosto.
Em passo miúdo e como fatigado, foi-se aproximando da
vila de número sessenta de Iben Saifa, olhando atentamente
para a casa, numa de cujas janelas se via luz, no pavimento
térreo. Também no andar superior havia uma janela
iluminada.
Um gradil rodeava o grande jardim. protegendo a
propriedade, mas evidentemente incapaz de impedir que o
aroma das flores se espalhasse por toda a avenida,
somando-se ao das outras vilas próximas.
Em determinado ponto da grade, Brigitte tirou o manto
branco, dobrou-o rapidamente muitas vezes e escondeu-o
entre as plantas, rente á calçada, Depois, convencida de que
ninguém a tinha visto, escalou as barras com a maior
facilidade e sem o menor esforço.
Caiu silenciosamente do outro lado, sobre as pontas dos
pés, flexionando as pernas da maneira justa, adequada. Tal
como uma pantera negra, lenta e veloz ao mesmo tempo,
indolente e alerta, deslizou para a casa. sem o menor ruído,
sem mover um só ramo da vegetação. O odor era tão
intenso que quase a entontecia. Estava também presente o
cheiro do mar, trazido pela fresca brisa noturna. Com um
pouco de esforço. ao pé da colina de Anfa podia-se ver a
praia de Ain Diab, negra e prateada.
Refugiou-se entre umas plantas, bem em frente á janela
iluminada do andar térreo. Abriu a maleta e sacou os três
tubos de alumínio que compunham o fuzil de ar
comprimido que tanto lançava ampolas explosivas como
microfones ou cápsulas de gás.
Montou agilmente o fuzil, colocou-lhe a culatra e sacou
um dos microfones do tipo dardo, que deslizou. pela boca
do tubo. Depois colocou o joelho em terra e firmou bem o
outro pé no solo. Apontou cuidadosamente a moldura da
janela, durante cinco segundos, firme o pulso, imóvel, como
petrificada.
Quando apertou o gatilho, ouviu-se apenas um zumbido
no ar. Deixou o fuzil desmontável a seu lado, sacou o
binóculo para visão noturna e olhou para a janela.
Okay.
Lá estava o dardo, cravado justamente no ponto para
onde tinha apontado, sem sequer um décimo de polegada de
desvio. Sacou o receptor-gravador, pequeníssimo, que pos
em marcha. Acima de tudo, entre as folhas das árvores,
ouvia-se um leve rumor intermitente, que a alarmou um
instante. Mas, após olhar para cima com o binóculo, sorriu
aliviada. Passarinhos perturbados em seu sono,
simplesmente.
Bem. Agora se tratava de recorrer ao fone auxiliar para
que, ao mesmo tempo em que a conversa era gravada, ela
pudesse ir ouvindo-a. Sacou o fio de conexão, com o
pequeno pingue na extremidade, e introduziu-o no orifício
do aparelho. Depois lhe adaptou o fone, pequeno como um
chiclete.
Estava a ponto de efetuar a conexão definitiva para
servir-se do fone quando ouviu um rumor à sua esquerda.
Um rumor abafado, levíssimo, mas que chegou com toda a
clareza aos seus ouvidos apurados. Voltou somente a
cabeça... a tempo de ver um homem saltar o gradil, mais
longe, pelo lado contrário àquele que ela havia utilizado.
Um homem também vestido de negro, á européia.
O ruído de seus pés ao tocar o chão chegou também aos
ouvidos da espiã, que imediatamente desistiu de escutar a
conversa. Bastaria, no momento, que ficasse gravada.
Encolheu-se mais, ficando absolutamente submersa nas
sombras, o olhar fixo naquela silhueta que parecia a ponto
de fundir-se na treva.
Mas o homem não estava só. Havia mais um. Pelo
menos mais um. Viu as duas sombras se moverem,
deslocar-se por entre as plantas do jardim, inclinadas...
Duas. Somente duas.
Esteve olhando os dois durante uns segundos. Depois,
enquanto um deles ficava sob uma romãzeira, agachado, o
outro continuava caminhando, sempre encolhido, até ocupar
uma posição mais avançada, mais próximo à porta principal
da casa. Então, lá ficou, imóvel, tão silencioso e invisível
como seu companheiro, como a própria espiã internacional.
Que aconteceria agora?
Esteve pensativa uns segundos. Depois. tranqüilamente,
terminou a conexão do fone e levou-o ao ouvido.
Imediatamente ouviu uma voz. Uma voz de mulher, sem
dúvida. Mas estava falando num idioma completamente
desconhecido para ela. Não tinha a menor idéia de qual
podia ser. Depois lhe respondeu uma voz de homem. No
mesmo idioma. Parecia a voz de Kino Ombato, mas não se
atreveria a garanti-lo. A mesma pessoa, falando em línguas
diferentes, parece que muda de voz... Sim, devia ser Kino
Ombato, provavelmente. Estava falando com uma mulher
de sua raça, de seu país.
— Está bem — disse subitamente a voz de Helmut
Frankel, em seu inglês seco, duro. — O que importava era
acalmar o paciente e o senhor conseguiu. Ombato.
— Convenci-o a esperar uma semana, doutor — disse
Ombato, num inglês muito mais fluente e preciso.
— Depois o senhor poderá regressar a Berlim, após
colocar as últimas bandagens.
— De acordo. Esse foi o trato. Sinto-me mais aliviado,
Ombato. Nós, médicos, precisamos de obediência por parte
dos pacientes, do contrário tudo sai mal.
— O caso está resolvido — asseverou Kino Ombato. —
Portanto, eu me retiro. E, por favor, doutor, não tome a
aparecer no hotel.
— Eu julguei necessário...
— Era, certamente. Mas se tornar a acontecer alguma
coisa, é melhor que me deixe um recado telefônico.
— Da parte do Dr. Helmut Frankel?
— Não precisa ser irônico. Bastará o recado de que
telefonaram a Kino Ombato. Eu compreenderei.
— Está bem. Boa-noite, Ombato. Subirei para ver se o
paciente está precisando de alguma coisa.
— Adeus.
Quase imediatamente, tomou a soar a voz da mulher,
naquele idioma desconhecido. E novamente a voz de
Ombato. Estiveram falando alguns minutos. Ela, em
determinado momento, riu mansamente, como se estivesse
brincando. A voz de Ombato sofreu uma alteração... Ela
tornou a rir e seu tom foi mais amável que antes.
Novamente a voz de Ombato, mais calma... Ruído de uma
porta, distante. Pisadas fortes. As vozes de Ombato e da
mulher...
A porta da casa abriu-se então, subitamente, e o
gigantesco negro ficou parcialmente visível no escuro
vestíbulo, perto do umbral. Junto a ele, a figura de uma
mulher cujas proporções eram também assombrosas, pois
teria um metro e oitenta de altura, chegando a alcançar o
nariz de Kino Ombato. Apenas duas sombras negras,
formidáveis, incríveis.
Ombato saiu da casa, por fim encaminhando-se
diretamente para o portão gradeado. Ia lentamente,
tranqüilo, seguro de si mesmo. Brigitte viu-o chegar ao
portão, abri-lo e sair.
— Félix
A voz apenas sussurrada, sobressaltou-a. Por uns
segundos, tinha esquecido os dois homens que estavam no
jardim, perto dela, emboscados também.
— Félix — sussurrou novamente a voz — entramos
agora?
— Não... Espera.
Brigitte sentia-se desconcertada. Aqueles homens
falavam em espanhol, com um sotaque arrastado, como...
Cubanos? Possivelmente.
Queriam entrar na casa, isso estava claro. E não menos
claro estava que não deviam pretender nada de bom.
Ela sacou suas luvas finíssimas de malha negra e calçou-
as. Apanhou depois a pistolinha de coronha de madrepérola
e prendeu-a á cintura, passando pelo guarda-mato uma alça
existente em seu traje de malha. Depois, apanhou a escova
para cabelo, empunhou-a fortemente e deslizou para onde
estava o tal Félix, que era o mais próximo a ela.
Tinha percorrido apenas cinco metros quando o viu.
Continuava agachado sob uma romãzeira e algo brilhava em
sua mão. Algo longo, metálico, frio... Uma faca. Era bem
certo que não pretendiam nada de bom.
Continuou deslizando para o homem, quase rastejando,
cônscia de cada um dos próprios movimentos.
Já estava a menos de quatro metros de Félix quando,
inesperadamente, a porta da casa tomou a se abrir.
Contendo um sobressalto, ela encolheu-se quanto pode, mas
sempre sem perder de vista a porta.
Viu a mulher altíssima surgindo no jardim. Era negra,
sem dúvida da mesma raça de Kino Ombato. Suas
proporções eram perfeitas, pese a estatura excessiva. Usava
um vestido escuro, decotado. Caminhou pela alameda, para
a saída, ao mesmo tempo majestosa e felina.
Ninguém se moveu no jardim. Chegou sem novidade ao
portão e abriu-o. Saiu.
Segundos depois, o jardim estava novamente silencioso,
como se ali não houvesse ninguém.
Félix ergueu-se, a faca brilhando na mão.
— Lorenzo, vamos agora.
Brigitte deslocou-se silenciosamente para as costas de
Félix. Talvez não tão silenciosamente quanto teria sido
necessário, porque o homem fez menção de voltar-se e...
Demasiado tarde.
Um braço fino, mas forte como aço, rodeou sua
garganta, vindo de trás, com um golpe seco que abafou
completamente sua voz. Ao mesmo tempo, da ponta da
escova brotava um estilete, que mergulhou nos rins de
Félix, com rapidez fulminante.
Ele gemeu e inteiriçou-se, como se o frio da morte
subitamente lhe invadisse o corpo. Mas logo após seu
gemido, o estilete tornou a penetrar em seus rins, um pouco
mais abaixo, com mais força. Sua faca tombou no chão e,
inerte, ele foi arrastado para trás, depois depositado
cuidadosamente sobre a terra.
Em seguida, a esguia mão coberta de malha negra
apanhou sua faca.
— Félix... que aconteceu! Por que não vens?
Lorenzo tinha-se voltado, inquieto, já perto da porta.
Abandonara a proteção proporcionada pelas plantas e agora
aparecia nitidamente, como uma sombra negra contra a
fachada da casa.
Viu a vegetação mover-se no jardim e moveu a mão
num gesto peremptório.
— Vamos, vamos! Temos que aproveitar a chance.
Depressa!
Tornou a voltar-se e caminhou para a casa,
Atrás dele, Brigitte Montfort arremessou a faca de Félix,
com toda a força de seu braço, que tinha surpreendido já a
mais de um homem. Viu-se o vôo brilhante da lâmina na
escuridão, ouviu-se o choque do aço contra carne.
— Aaahhh...!
Lorenzo crispou-se, soltando sua faca e levando ambas
as mãos ás costas. Caiu de joelhos e ainda teve forças para
voltar-se. lentamente, ofegando. Seus olhos arregalados
ainda puderam ver a fina silhueta negra diante dele, imóvel,
pernas um pouco separadas. Na mão direita brilhava alguma
coisa- As mãos de Lorenzo ergueram-se para aquela
silhueta desconhecida.
— Aaaa... aaaaa...
Caiu de bruços e ficou imóvel. Ouviu-se um leve
estalido e o estilete desapareceu dentro da escova para
cabelo. Brigitte correu paro onde havia deixado sua maleta
e dela sacou o rádio de bolso.
— Ali!
— Que houve, mis...?
— Calma, não me aconteceu nada. Viste passar uma
mulher muito alta?
— Uma negra?
— Sim! Tens que...
— Vou atrás dela agora mesmo! Ou não?
— Okay! Chamarei-te depois.
— Precisas...
— Preciso que sigas essa mulher. Só isso,
Fechou o rádio, deixou-o na maleta, guardou também a
escova, desenroscou os tubos e fez o mesmo com eles.
Chegou junto de Félix e contemplou-o. Mais longe, via-se
claramente Lorenzo, estendido de bruços, a faca cravada
nas costas.
Durante uns segundos, “Baby” ali ficou, hesitante,
pensativa. Por fim, afastou-se de Félix, dirigiu-se á alameda
lateral e viu a garagem ao fundo. Era uma sorte que em
AMa as vilas fossem para milionários, com sua garagem
particular.
Abriu a porta da garagem e olhou para dentro. Nenhum
carro. Deixou-a aberta, aproximou-se de Lorenzo e,
inclinando-se, tomou-lhe um braço e passou-o pelos
ombros, erguendo-se depois e carregando-o sem grande
esforço para a garagem. Deixou-o no chio, de qualquer
maneira, e foi para junto de Félix, que carregou do mesmo
modo. Finalmente, sob uns quantos pneus velhos e caixas
de madeira, os dois cadáveres ficaram provisoriamente
escondidos dentro da garagem.
Pouco depois, “Baby” estava novamente junto de sua
maleta. Novamente pode colocar o fone no ouvido, ficando
uns minutos á escuta. Silêncio completo. Ao que parecia, o
paciente e o médico já estavam dormindo.
Foi à janela, recolheu o dardo-microfone, certificou-se
depois que sua maleta estava em ordem, guardou nela a
pistola, da qual não tivera necessidade, e correu para o
gradil. Saltou-o e, já no exterior, apanhou seu manto branco,
com o qual se cobriu quando chegou ao outro lado da
avenida.
Várias ruas mais abaixo, fez sinal a um táxi. O chofer
olhou-a, mais que surpreendido, atônito.
— Uma festa entre amigos — explicou Brigitte,
sorrindo. — Pode levar-me ao “El Daiba Hotel”.
— Oui, Madame.
— À parte traseira, por favor. A festa ainda continua.
— Espero que se divirta, Madame.
— Faço o possível para isso. Depressa, meu amigo.

CAPÍTULO OITAVO
Um tapete mourisco
Duas beldades nuas em conflito
Cortesia da agente “Baby”

Kino Ombato ergueu vivamente a cabeça quando ouviu


a batida na porta de sua suíte. Estava de pijama, lendo um
dos diários editados em francês em Casablanca. Franziu a
testa. Deixou o cigarro sobre o cinzeiro e aproximou-se da
porta.
— Quem é?
— Brigitte, Kino.
Não pouco surpreendido, o colossal negro abriu.
— Brigitte... Que aconteceu?
— Posso entrar?
Ele pestanejou, confuso. A belíssima jornalista usava um
vestido de noite, negro, com um decote que se furtava a
qualquer definição. Sua pele dourada brilhava como se
fosse ouro puro. E um finíssimo perfume chegou, como um
doce impacto, ás suas narinas.
— Entre, por favor. Espero que não... tenham voltado a
incomodá-la.
Fechou a porta e voltou-se para ela, que o olhava
sorrindo maravilhosamente.
— Ninguém voltou a incomodar-me. Só que estava
muito aborrecida em minha suíte e... tive a idéia de
perguntar se você já tinha regressado ao hotel. Disseram-me
que sim. Então, vesti-me e... aqui estou.
— Bem, eu voltei antes do que esperava... Posso fazer
alguma coisa por você?
— A estas horas há poucas coisas que se possa fazer por
uma mulher. Kino.
Ombato voltou a pestanejar. Certamente, estava
sonhando. Claro, devia ser isso: estava sonhando. Tinha-se
posto a ler, tinha adormecido e agora estava sonhando...
— Receio que minha imaginação seja um pouco pobre,
Brigitte.
— Não é preciso imaginação, querido.
Ombato sentiu como um golpe de lança em pleno peito.
Esta sensação se repetiu, com mais força, quando “Baby’
aproximou-se dele e ergueu os braços para envolver-lhe o
pescoço.
— Não vai me beijar? — murmurou ela.
— Mas, Brigitte, eu.
— Não é nenhum capricho de mulher, Kino. Só lhe peço
que compreenda que eu ... não podia dormir pensando em
você.
— Está zombando de mim? — perguntou ele.
— Por quê? Por que você é negro? — sorriu ela,
docemente. — Oh, querido, não me atribua uma
mentalidade tão estreita. Você é ou não um homem?
— Penso que sim.
— E pensa que sou uma mulher? Talvez esteja
esperando que o demonstre?
— Não, não...
— Não quer que demonstre? Eu... já estou sentindo que
você é um homem. Não, não me afaste: gosto de sentir-me
em presença de um homem, de um homem viril!
Kino Ombato saltou para trás, rosto crispado, ajeitando o
pijama. Brigitte olhava-o intensamente e, súbito, baixou as
alças do vestido, deixando a descoberto os seios perfeitos,
que não precisavam realmente de soutien.
— Venha... — pediu, estendendo os braços. — Abrace-
me com força, Kino!
Ele retrocedeu outro passo. Pareceu que ela fosse segui-
lo, mas optou por estender-se no tapete. Seu corpo coleava
em movimentos serpentinos e suas pálpebras se agitavam
como as azuladas asas de uma borboleta, enquanto ela
sussurrava:
— Kino, venha apertar-me em seus braços... Venha,
venha.
Viu Ombato dar uns passos para ela e compreendeu que
havia ganhado a partida. O vestido de noite foi atirado para
um lado e sobre o tapete de desenhos mouriscos, tecido a
mão, ficou estendido o mais esplêndido corpo de mulher
que poderia existir.
— Venha, Kino Não quero passar toda a noite pensando
em você, sem poder dormir.
Tinha fechado quase completamente os olhos e,
súbitamente, sentiu uma daquelas mãos enormes entre suas
pernas, enquanto a outra lhe cobria quase completamente os
seios. Uma boca ávida, úmida, caiu sobre a sua, num grande
beijo que logo se tomou ardente, como fogo líquido.
Depois, dois braços poderosos envolveram-lhe o corpo e
todo o peso do africano hercúleo pareceu esmagá-la.
Sem dúvida, “Baby” havia ganhado a partida.
***
Estavam os dois sentados no sofá, com os pés descalços
sobre o tapete mourisco, tecido a mão. “Baby” tinha entre
as suas uma das mãos possantes de Ombato e sorria
docemente.
— Resolveu seus assuntos? — perguntou-lhe.
— Sim... Espero que não tornem a precisar de mim.
— Tanto melhor. Oh, Kino. aquele homem... o que falou
com você no bar esta manhã ... Acho que o conheço.
Ombato teve que fazer um esforço para ocultar seu
alarma. Quer dizer, para tentar ocultá-lo, pois que Brigitte o
captou perfeitamente.
— Conhece-o?
— Sim. Estou cena disso Mas não sei de onde. já o tinha
visto antes. É francês?
— Não.
— Não é francês — murmurou ela, pensativa.
Entretanto, lembro-o da última vez em que estive na
Europa. Talvez tenha visto seu rosto em algum jornal, ou
em... Em Berlim! Num jornal alemão, estou certa? Seu
nome ... seu nome ... Não me diga: tenho certeza de que o
lembrarei!
— Você quer tomar alguma coisa? — ofereceu Ombato,
inquieto.
— Não, não.
— Temos um bar á mão. Não será preciso.
— Já sei. Também eu tenho um bar. Mmm ... Seu nome
e Wilhelm ... Não, não. Filermann... Helmut... Helmut
Prankel! Oh, sim, é o Dr. Helmut Frankel, de Berlim!
Acenei?
— Já é tarde
— Tarde? Mas se não faz nem meia hora que estou aqui!
E quero passar toda a noite com você... Mas diga-me se
minha memória é má: você não me contou que era
diplomata, ou qualquer coisa assim?
— Contei.
Então — uma deliciosa surpresa apareceu no lindo rosto
de “Baby” —, que tem você a ver com um módico alemão?
— Nada.
— Nada? Kino. Não me diga que está doente..
— Não, não. O dr. Frankel não está aqui por mim, mas
por ... por um amigo.
— Que amigo?
— Um que você não conhece.
— Oh, claro, não conheço nenhum de seus amigos... E
gostaria de conhecer todos. Quem é esse amigo? Ele tem
alguma coisa grave?
— Não, não
— Para que necessita de um médico tão importante?
— Para nada.
Ela olhou para Ombato com uma dolorida expressão de
censura.
— Você não confia em mim... — murmurou. — Talvez
você esteja fazendo algo mau e não confia em mim.
Entretanto, eu, com você, fui...
— Não é isso, Brigitte. Confio em você, sim. Mas o caso
não tem a menor importância. Uma pequena intervenção
cirúrgica, apenas isso.
— Que há com seu amigo? Não se atreveu a ir a Berlim,
por ser negro?
— Não é negro. É branco, Brigitte
— Então... já sei! Se está escondendo alguma coisa. É
um fugitivo da lei! — pôs-se a rir. — Diga-me seu nome,
Kino. Estou certa de que é um fugitivo da Interpol, ou coisa
parecida!
— Você se engana — sorriu Ombato. — É um homem
honrado. Seu nome é...
Uma batida na porta sobressaltou-os. Olharam-se
alarmados. Brigitte ergueu-se de salto, soltando a mão de
Ombato. Apanhou seu vestido e seus sapatos, olhando
atentamente para o negro.
— Quem pode ser a estas horas? — murmurou.
— Não sei. Não estou esperando ninguém
— Talvez esse seu amigo tenha necessidade de você.
Como se chama?
— Eu lhe direi depois. Vou ver quem é. Será melhor que
você se esconda no quarto.
— Sim. Despeça logo esse importuno, querido.
Brigitte correu para o quarto e Ombato foi até a porta,
colocando rapidamente o pijama, enquanto perguntava:
— Quem é?
— Zunia — sussurrou uma voz. — Abre, Kino.
depressa.
Novamente surpreendeu-se o gigantesco negro. Abriu a
porta, deixando passar a mulher negra de quem se despedira
na vila da Avenida de Mohamed, em Anfa. A criatura
escultural que tinha passado pelo jardim a poucos metros de
Brigitte.
— Fecha depressa. Entrei pela parte traseira, ninguém
me viu... E não quero que me vejam.
O atônito Ombato já tinha fechado a porta. Sua
perplexidade era tão grande como ele próprio.
— Aconteceu alguma coisa na vila? — perguntou
alarmado.
— Nada. Tudo vai bem, que eu saiba. Vim apenas ficar
com você um pouquinho, Kino.
— Mas, não compreendo...
— Não compreende? Bem, esta noite, antes, eu lhe disse
que não... E agora lhe digo que sim. Compreende? Há
alguma coisa para beber aqui? Anisete francês, se for
possível. Estou um pouco nervosa, emocionada.
Kino Ombato sacudiu a cabeça. Incrível.
Completamente assombroso.
— Não aconteceu nada mesmo na vila? — insistiu.
— Não seja bobo — riu a negra. — É tão surpreendente
que eu aceite suas atenções?
— Não, na verdade... Essa noite nada me surpreende.
— Por que diz isso?
— Não sei. Simplesmente, não me surpreende nada.
Olhe, Zunia, sirvo-lhe alguma bebida das existentes no bar e
depois você vai embora.
— Kino!
— Vai, sim. E amanhã à tarde passarei pela vila. Se você
continuar com a mesma idéia, então. Que está fazendo?
Zunia tinha-se despido rapidamente. Passou seus braços
roliços pelo pescoço de Kino Ombato e comprimiu seu
corpo contra o dele. Seus dentes brancos brilhavam num
sorriso cheio de promessas, enquanto toda sua carne nua
parecia vibrar, tumultuante de desejo.
— Preciso dar-lhe mais explicações? — sussurrou
Lentamente, Ombato retirou aqueles braços de seu
pescoço e dirigiu-se ao pequeno bar, evitando pousar os
olhos sobre a formosa negra de corpo elástico e possante,
cujos seios redondos, lisos, mantinham-se erguidos, como
se o desafiassem.
— Vou-lhe servir uma bebida... — murmurou. — E
amanhã nos veremos na vila,
— Tem certeza de que prefere assim? — ela parecia
incrédula.
— Tenho.
Abriu o bar, encontrou uma garrafa de anisete e sacou
dois cálices, que deixou sobre a mesinha. Zunia Wata
olhava-o fixamente, como se estivesse decepcionada,
aborrecida, mas Ombato esquivava-se àquele olhar que
parecia envolvê-lo numa onda de volúpia. Resmungou
alguma coisa e ergueu a garrafa.
— É preciso tirar a rolha...
— Tire-a — murmurou ela. — Eu não tenho pressa...
Ele voltou ao bar, à procura do saca-rolha, enquanto
Zunia, velozmente, levantava a grande ametista de seu anel
e vertia o conteúdo existente no pequeno compartimento
escondido sob a mesma dentro de um dos cálices. Um pé
que parecia composto de diminutos grãos cristalinos, quase
transparentes.
Quando Kino Ombato se voltou, ela já tinha recuperado
sua postura normal e, em sua esplêndida nudez, olhava-o
sorridente.
— Não esperava... essa frieza de sua parte. Kino.
— Estou cansado. Apenas isto.
— Você? — riu ela. — Cansado, o grande Kino? Não
creio.
— Zunia, terá que me desculpar... Já lhe disse que
amanhã irei à vila e lá, se você quiser mesmo...
— Talvez não, Kino. O que fiz por você deveria...
explicar-lhe muitas coisas. Acha que uma mulher entra
como uma ladra num hotel, para ser... repelida?
— Sinto muito. Aqui está o anisete...
Dentro do quarto, Brigitte Montfort esperava, irritada
por não poder compreender o que estavam falando aqueles
dois interessantes personagens. A chegada da negra
escultural, certamente, não poderia ter sido mais inoportuna,
no exato momento em que Ombato ia dizer-lhe o nome da
pessoa que precisava dos serviços do médico alemão
Helmut Frankel. Tinha-o trabalhado bem, tinha-o
abrandado... E quando ia obter o fruto de seu trabalho,
aquela mulher chegava para estragar tudo...
E para cúmulo dos males, não entendia nada. Talvez a
negra estivesse dizendo a Ombato que tinha encontrado dois
cadáveres na garagem. Tudo podia ser. Ou que a tinha
visto... Qualquer coisa. Talvez, inclusive, se tivesse dado
conta de que Ali a seguia e...
Não entendia nada, mas sabia que estavam bebendo.
E súbito ouviu a abafada exclamação de um deles... De
Kino Ombato. Uma exclamação que logo se transformou
numa queixa. E em seguida o ruído surdo de um corpo
pesado ao cair sobre o tapete mourisco e o inconfundível
ruído de cristal ao se partir.
A agente “Baby” não precisava entender o idioma para
saber o que ali estava acontecendo. Saiu rápida do quarto,
completamente nua, e seus olhos cravaram-se na
surpreendida negra, que lançou uma exclamação ao vê-la
tão despida quanto ela mesma, porém menor, olhos azuis,
pele dourada, ternos selos não agressivos.
Brigitte nem sequer olhou para o corpo caído de
Ombato, que gemia debilmente sobre o tapete. Saltou sobre
a mulher negra, sabendo que a vida de Kino Ombato
dependia da rapidez de ação de uma espiã chamada “Baby”.
Zunia Wata recebeu-a com um tapa violento que lhe
roçou os olhos e que a teria derrubado, não saltasse ela
precipitadamente para trás, passando do ataque à defesa.
Tão precipitadamente que caiu de costas, quase por cima do
gemebundo Kino Ombato. Zunia saltou atrás dela e caiu
sobre seu estomago quando Brigitte dava uma volta para
afastar-se. Os joelhos da negra comprimiam-lhe os braços,
imobilizando-a. E novamente sua mão direita se ergueu. Por
um instante. “Baby” viu aquela mão, aquelas unhas aduncas
que pareciam tão fortes e afiadas como garras... Esta vez, o
tapa foi direto contra sua garganta, qual o munhecaço de
uma leoa enfurecida, e a teria alcançado se ela não
conseguisse soltar o braço direito e interpô-lo entre aquela
mão e sua garganta.
As unhas de Zunia cravaram-se profundamente na mão
de “Baby”. Depois a adunca e perigosa garra tomou a alçar-
se, mas Brigitte lançou por sua vez um golpe seco de caratê,
que alcançou a negra na garganta, atirando-a para um lado.
Levantando-se de um salto, aproximou-se de Zunia e,
quando esta começava a erguer-se, golpeou-a no estomago,
que soou surdamente. como um tambor, olhado. A negra
lançou um gemido, mas resistiu bem ao golpe e acabou de
levantar-se, desferindo um par de munhecaços que
afastaram novamente Brigitte, sob pena de receber lanhos
profundos no ventre e no seio.
As duas mulheres ficaram inclinadas, ofegantes,
olhando-se com olhos onde brilhava a cólera. A nenhuma
das duas convinha os gritos, o ruído, o escândalo.
Tinha que ser em silêncio. A morte, mas em silêncio.
Zunia saltou de repente para Brigitte, que ao esquivar
seus golpes furiosos perdeu o ritmo defensivo. Os fortes
braços da negra rodearam sua fina cintura e o queixo
apoiou-se sobre sua clavícula direita, com força. Zunia
Wata era forte como um homem e, portanto, se continuasse
apertando, conseguiria quebrar as costelas da espiã, que
gemia, curvando-se para trás, pálida de dor, de medo... um
medo normal e lógico ante a iminência daquele estalido que
significaria a ruptura de sua espinha, a morte.
Sua mão direita, trêmula, fechou-se sobre os cabelos
crespos de Zunia Wata, puxando para trás, com a força do
desespero, sentindo já um princípio de vertigem, um
zumbido nos ouvidos característico da perda de
consciência... Por um instante, seu peito e suas costas
ficaram aliviados daquela pressão. Só um instante, menos
que um segundo. Mas o suficiente para que sua mão
esquerda, de canto, golpeasse a orelha direita de Zunia, que
soltou um grito contido e afrouxou novamente a pressão.
Brigitte puxou com mais força seus cabelos, conseguiu
afastá-la, tornou a golpear com a canhota, outra vez na
orelha. Depois, com a direita, em plena boca da poderosa
negra, que caiu de joelhos.
Um pontapé de Brigitte teve mau resultado. Zunia
segurou-a pelo pé, derrubou-a e saltou novamente sobre ela,
com todo o peso e a fúria de uma leoa. Dois munhecaços
seus perderam-se no ar. Em compensação, esta vez, o pé de
Brigitte alcançou-lhe a testa, fazendo-a tombar de costas.
Estava a negra se erguendo, quando recebeu a tremenda
pancada no crânio, tão tremenda que seria suficiente para
matar um homem. Mas a negra não morreu.
Caiu novamente de joelhos, mostrando o branco dos
olhos, a caminho da inconsciência.
Brigitte colocou-se rapidamente ás costas de Zunia.
Passou-lhe o braço esquerdo pelo pescoço, segurou a mão
esquerda com a direita e puxou com força para trás. As
mãos da negra subiram, mas ia debilmente. As unhas apenas
roçaram a dourada pele da espiã. Um estertor rouco brotou
de seus grossos lábios.
Quinze segundos depois, o corpo coberto de suor,
“Baby” abandonava sua presa e Zunia Wata caía morta a
seus pés, de bruços. Ficou imóvel, como se achatada contra
o chão.
Ofegante, Brigitte apressou-se a se ajoelhar junto a
Ombato. Virou-lhe o corpo e colocou a mão em sua
carótida. Ainda vivia. Levantou-se rapidamente e saiu
daquela suíte, após enfiar o vestido em poucos segundos,
coisa fácil, pois nada levava debaixo.
Voltou menos de um minuto mais tarde, com sua maleta,
da qual sacou o vomitório que nunca deixava de trazer em
suas viagens, desde aquela vez em que quase morrera
envenenada, em Hong-Kong3.
Correu ao quarto de banho e regressou com um copo
cheio de água, na qual verteu o vomitório. Era de tal
eficácia que, se ministrado a tempo, podia anular os efeitos
de quase todos os venenos conhecidos.
Custou-lhe não pouco esforço soerguer o corpanzil de
Kino Ombato. Baixou-lhe a mandíbula inferior e derramou-
lhe na boca, lentamente, o conteúdo do copo. Sorriu quando
o negro começou a engolir, com dificuldade, a mistura
emética. Qualquer outro homem dos que conhecia inclusive
“Alexandria” ou Número Um, ambos de um vigor físico

3
Ver novela: O ÚLTIMO TENTÁCULO
fora do normal, já estaria morto. Mas Kino Ombato, com
seus cem quilos de peso e um metro e noventa de altura, ia
sobreviver, resistiria ao veneno. Assim parecia, pelo menos
Súbito, quando ainda restava líquido no copo, o colossal
negro estremeceu e, abrindo desmesuradamente a boca,
começou a vomitar.
***
Tinha conseguido levá-lo até o quarto e colocá-lo sobre
o tapete. Mas só isso. Fracassara em sua tentativa de erguer
até o leito aquele negro colossal. Entretanto, conseguira
salvá-lo. Lá estava ele, estendido de lado, para o caso de ter
mais a vomitar. Inconsciente, claro. E com um estranho tom
amarelo-verdoso no rosto.
Recorrendo novamente á sua maleta, “Baby” extraiu
uma pequena seringa que encheu com o líquido de uma
ampola, de coloração rosada. Procurou uma veia apropriada
no braço esquerdo de Ombato e cravou a agulha, depois
injetou lentamente.
A última coisa que fez foi tomar-lhe o pulso, sorrindo ao
senti-lo normal, fone, firme. Pena que não tivesse podido
sondá-lo tanto quanto a situação havia prometido, mas, pelo
menos, tinha absoluta certeza de que Kino Ombato não
estava fazendo nada que, segundo a justiça peculiar da
agente “Baby”, merecesse a morte.
Após recolher tudo quanto retirara da maleta, fechou
esta, saiu do quarto e contemplou o cadáver de Zunia. As
coisas iam-se encaixando... e possivelmente se encaixariam
mais quando ela estabelecesse contato com Ali.
Mas no momento o principal era remover aquele
cadáver, escondê-lo. Já que a negra ali entrara disposta a
assassinar Ombato, podia-se supor que tivesse utilizado, tal
como ela o fizera, a entrada traseira, evitando ser vista. E já
que ninguém a tinha visto, se a deixasse em outra suíte nem
ela nem Ombato ficariam comprometidos. Tinha apenas que
encontrar uma suíte vazia naquele andar e, aproveitando o
tardio da hora com a conseqüente retirada dos hóspedes do
hotel, deixar o cadáver em qualquer armário, ou debaixo de
uma cama...
***
Quase meia hora mais tarde, novamente no quarto de
Kino Ombato, “Baby” secou o suor do rosto, antes de
meter-se sob o chuveiro. Todo estava em ordem e podia
permitir-se mais cinco minutos de espera.
Banhou-se prazenteiramente, enxugou-se se vestiu,
voltou ao quarto de Ombato e, então, sim, chamou pelo
rádio.
— Ali?
— Miss Montfort! Estive te chamando pelo...
— Tive outras coisas que fazer, de modo que não podia
responder teus chamados. Acalma-te e dize-me onde esteve
aquela bonita negra antes de vir ao hotel.
— Ah, já sabes que ela está no hotel?
— É, além disso, convidada a passar alguns dias debaixo
de uma cama, por cortesia da agente “Baby”. Dize-me, Ali,
sabes aonde ela foi?
— Sei. Esteve no porto.
— Avistou-se com alguém lá?
— Entrou num iate.
— Pelo amor de.. . Alá! Conta-me tudo o que sabes!
— Ela esteve num iate grande, um pouco velho, que se
chama “Gavilán”...
— Bandeira cubana?
— Não reparei nisso. Sei onde está ancorado e que essa
mulher esteve a bordo, falando com uns homens. Esteve
mais de ... Quase uma hora e meia. Depois saiu, tomou um
táxi e foi ao hotel. Entrou pela porta de trás.
— Que horas são, Ali?
— Quase duas e meia.
— Sairei do hotel dentro de meia hora. Tu e eu vamos
caçar um gavião.
— Agora! — exclamou o marroquino.
— Não, homem, agora não... Dentro de meia hora.
Okui?
— Okui... — suspirou Ali. — Sempre te sais com uma
das tuas, miss Montfort.
— Sempre, com efeito. Do contrário não seria quem sou.

CAPÍTULO NONO
O fundo falso do iate “Gavilán”
Uma grande mistificadora
Atuar com rapidez

— Esse é o “Gavilán”, miss Montfort.


Brigitte, do carro parado num ponto do porto,
comtemplou o iate, cujas luzes estavam apagadas. Não se
via ninguém por ali, tudo parecia estar em calma. Não
obstante, ela sacou seu binóculo para visão noturna e
enfocou a embarcação.
— Há um homem na coberta, Ali. Nos verá, ao
aproximarmos. E isso não nos interessa.
Os brancos dentes do marroquino brilharam na sombra.
— Tenho uma faca — disse ele. — Se queres que...
— Não sejas primitivo, querido. As facas só se usam,
hoje em dia, quando é impossível utilizar armas melhores.
Aproxima-te um pouco mais. Bastará que fiquemos a
metade da distância de agora.
— Vai atirar com uma pistola?
— Com um fuzil — sorriu Brigitte.
Uma vez mais recorreu á maleta vermelha. Em menos de
um minuto montou os três tubos de alumínio e encaixou a
culatra. Ali já tinha parado o carro, que deslocara
silenciosamente, e olhava expectante aquele fuzil cujo
modelo era para ele completamente desconhecido. Viu a sua
querida e admirada miss Montfort introduzir pela boca da
estranha arma uma pequena ampola redonda, de vidro.
Depois ela passou a ponta da arma pela janela, apoiando-a
sobre a mesma.
— Observa. Ali.
Trás segundos mais tarde, este ouvia um levíssimo
zumbido. Viu o homem do iate levar as mãos ao rosto,
levantar-se e cair de bruços, como fulminado. Foi tudo.
— Tu o mataste, miss Montfort?
— Não. Mas podemos entrar tranqüilamente no iate.
Vamos.
Saíram do carro, ela com a maleta numa das mãos e o
fuzil de alumínio na outra. Efetivamente, abordaram o iate
sem o menor contratempo. “Baby” colocou-se diante da
entrada para o interior e apurou o ouvido, mas não escutou
nenhum som. Tinham deixado um homem de vigia; logo, os
demais deviam dormir.
Por via das dúvidas, desconfiada por natureza e por
profissão, ela jogou para dentro do iate duas das cápsulas de
gás. Esperou meio minuto, tranqüilamente. depois indicou o
homem adormecido sobre a coberta.
— Leva-o para dentro, Ali.
Brigitte desceu em primeiro lugar, ainda com
precauções, pois podia acontecer, embora remotamente. que
alguém lá dentro tivesse ouvido alguma coisa e recorrido á
proteção de uma máscara antigás. Muito pouco provável,
mas possível.
Não. Ninguém tinha escapado aos efeitos do gás. Ao
todo, havia mais três homens no iate, todos muito mais
profundamente adormecidos que pelo sono natural. Ali
tinha arrastado o da coberta por um pé e olhava atentamente
para Brigitte, aguardando ordens.
— Retira todos eles de seus beliches, Ali. E amarra-os
bem, pés e mãos. Não economizes corda, nem te preocupes
em tão lhes causar nenhum dano. Quero-os tão bem
amarrados que não se possam soltar.
— Ali fará isso muito bem, miss Montfort.
— E enquanto isto, “Baby” dará uma volta pelo iate. E
também o fará muito bem.
***
Fê-lo tão bem, que encontrou a remessa de armas,
escondida no fundo falso do iate, antes de decorrida meia
hora: fuzis, revólveres, metralhadoras granadas de mão,
alguns morteiros, caixas de munição... Alguns milhões de
dólares em armas. O “arsenal” tinha sido camuflado com
tanta habilidade que não era estranho terem aqueles homens
atracado tranqüilamente no cais de Casablanca levando
semelhante carregamento. O fundo falso estava
perfeitamente camuflado e parecia, por sua sujeira e a
suavidade com que funcionava seu mecanismo de entrada,
não ser a primeira vez que utilizavam aquela embarcação
para o transporte de armas.
“Baby” ficou uns minutos pensativa. Por fim, tomou a
subir. Ali tinha amarrado exemplarmente os quatro homens,
um deles barbudo. Outro que resultava interesse para ela era
um formidável negro, de compleição e traços semelhantes
aos de Kino Ombato.
— Ótimo, Ali.
— Que fazemos agora?
— Deixaremos que durmam um pouco mais, enquanto
termino de regularizar a situação. Volto já. Vigia bem, pois
pode vir algum visitante.
— E se alguém entrar no iate?
— Disseste que tinhas uma faca, não?
— É verdade — sorriu Ali: — tenho uma boa faca.
Brigitte também sorriu, apanhou a maleta e desapareceu.
Tomou a aparecer quinze minutos mais tarde. Ali estava
junto á entrada para o interior do barco e olhou-a esperando
alguma nova ordem. Mas tudo o que fez Brigitte, após
examinar os quatro homens, foi acender um cigarro e
sentar-se. Tinha que esperar.
***
Quase ás seis da manhã, o primeiro homem despertou. O
negro, naturalmente, cuja fortaleza física era superior á dos
três brancos. Tardou ainda uns segundos a se dar conta da
situação. Agora, olhava fixamente para Brigitte. em
silencio.
— Olá, amigo — saudou ela, em inglês.
O homem não respondeu. Olhou para Ali, sentado no
degrau mais baixo da escada que levava à coberta.
Depois para Brigitte. Fez um esforço para soltar-se, mas
compreendeu imediatamente que isso não ia ser possível,
apesar de sua formidável musculatura.
Brigitte encolheu os ombros, levantou-se e chegou á
larga janela. Tinha amanhecido já e todo o céu estava
vermelho. Bocejou, tornou a sentar-se e acendeu outro
cigarro.
Quase meia hora mais tarde, quando já o dia estava
cheio de sol, despertou o barbudo. E muito poucos minutos
depois, os outros dois homens brancos. Um a um, todos eles
cravaram seus olhares na agente “Baby”, que os olhava
friamente. Por fim, quando compreendeu que os quatro
homens estavam perfeitamente acordados, perguntou:
— Quem manda neste barco?
— Eu — disse o barbudo, também em espanhol.
— E as armas? Para que são a armas?
Os três brancos sobressaltaram-se visivelmente e
trocaram um rápido olhar de alarma.
— Que armas? — perguntou o barbudo.
— Vamos, vamos, capitão! Não tenho tempo a perder.
Quero saber tudo, e depressa. Vocês são cubanos, como
Félix e Lorenzo, e têm um carregamento de armas no fundo
do iate. Eu vi. Quero que compreendam que, se alguma
coisa me aborrece, é perder tempo quando ainda há o que
fazer. Na Rússia, a perda de tempo é considerada como
pecado nacional, como um atentado contra a pátria.
— Você é russa? — pareceu animar-se o barbudo.
— Talvez.
— É ou não é? Isso... poderia mudar muito as
— Então, sou russa — sorriu gelidamente “Baby”.
— Se é russa — disse o barbudo, em russo — poderá
entender o que estou dizendo agora. Já sei que meu russo é
deficiente, mas faço-me entender, não é verdade?
— É verdade — disse Brigitte, também em russo: —
Seu russo é tão mau que só um autêntico russo poderia
entendê-lo. De qualquer modo, você aproveitou a
permanência de meus compatriotas em sua ilha, ao que
parece. Então? Está convencido de que sou russa?
— Estou.
— Então, por favor, tornemos a falar espanhol, já que o
falo melhor que você o russo e não gosto que ninguém
estropie de tal modo meu idioma. De acordo?
— De acordo —— sorriu o barbudo. — Quem é você?
Brigitte franziu a testa.
— Marya Smirkov Protopov. Da MVD, se lhe interessa.
— Ótimo — sorriu o cubano. — Solte-me, por favor.
Tudo poderá resolver-se entre...
— Primeiro, capitão do “Gavilán”, quero saber que
fazem vocês aqui e para que são as armas. Nós os estamos
vigiando há dias, Oh: saiba que Félix e Lorenzo estão
mortos. Matou-os um negro gigantesco, parecido com esse,
chamado Kino Ombato, e que está hospedado no “El Daiba
Hotel”. Além disso, o mesmo homem matou uma negra alta
e bonita, em sua suíte no hotel e escondeu o cadáver em
outra suíte. Você mandou Félix e Lorenzo à vila da colina
de Anfa?
— Mandei ... Maldito Ombato!
— Que disse ela? — perguntou o negro, em inglês.
— A partir de agora, falaremos em inglês, para que o
negro nos compreenda — disse Brigitte. — Explique-lhe o
que eu disso, capitão.
O barbudo assim fez e os olhos do negro brilharam de
cólera.
— E ela? — perguntou, olhando para “Baby”. — Quem
é ela?
— Nossa amiga, Sarnio. Trata-se de um engano que
prontamente será corrigido. Não é verdade, Marya
Smirkov?
— É apenas possível, capitão. Preste atenção, pois não
tornarei a repetir: vai me explicar o que significa tudo isto,
pois do contrário matarei os quatro. Compreende-se bem o
meu inglês?
— Sim.
— Adiante, então. A MVD tem muito interesse em saber
que fazem vocês nesta parte do mundo com um
carregamento de armas retirado de Cuba. Explique-se em
poucas palavras e com clareza. As perguntas esclarecedoras
virão depois, se necessário. Adiante.
— Este homem se chama Onio Sarnio. É de Kongânia4,
na costa ocidental da África. Ele se pós em contato conosco
há dois meses, em Cuba, para propor-nos a compra de uma
partida de armas.
— Com que fim?
— Organizar uma revolução em seu país.
— Entendo que Kino Ombato é também de Kongânia,
não?
— Claro. É um diplomata muito importante e, por ordem
do Presidente de Kongânia, foi aos Estados Unidos, há um
mês ou pouco menos, para pôr-se em contato com um
homem que lhes interessava. Esse homem ia ajudar o
Presidente de Kongânia e a Kino Ombato a governar o país.
Com o que Onio Sardo não estava de acordo.

4
Kongânia é país imaginário (NE)
— Devo entender que o Presidente da Kongânia ia trazer
um estrangeiro para que o ajudasse nas tarefas do Governo?
— Exatamente. E isso foi o que não agradou a Onio
Sardo, que é Ministro da Guerra em Kongânia.
De modo que resolveu preparar uma revolução,
antecipando-se à partida de Kino Ombato para os Estados
Unidos a fim de trazer o homem que ia ajudar a ele e ao
Presidente a governar o pois. Aproveitando a ausência de
Ombato, muito querido em Kongânia, Onio Sardo resolveu
levar já as armas ao seu país para dar início à revolução.
Mas as coisas sofreram atrasos imprevisíveis e soubemos
que, finalmente, Kino Ombato havia regressado ã África,
encontrando-se em Casablanca juntamente com o
americano que ia ajudar o Governo de Kongânia.
— E decidiram eliminar Kino Ombato e o homem que ia
ajudar o Presidente de Kongânia. Para isso, enviaram Félix
e Lorenzo à vila da colina de Anfa. Lorenzo e Félix tinham
que esperar até que na casa só estivesse o americano e o
médico que o atende, para entrar e matar os dois.
— Sim.
— E por que não deviam entrar antes para matar Kino
Ombato também?
— Por que Zunia Wata estava na casa e convinha que
tudo ocorresse em sua ausência. Além disso, ela havia
pedido para eliminar Kino Ombato, á sua maneira. De modo
que saiu da vila deixando o campo livre a Félix e Lorenzo, e
veio aqui buscar o veneno que nos tinha encomendado.
Depois esperou algum tempo, para que houvesse pouca
gente, ou ninguém, na parte traseira do hotel, e disse que
poderíamos considerar Kino Ombato eliminado.
— Bem... Pois sucedeu o contrário: Ombato matou-a. E,
antes, já havia matado Félix e Lorenzo. Finalmente, levou o
americano e o médico que o atende para longe da vila da
colina de Anfa. Mas... eu sei onde estão, agora.
— Onde?
— Eu faço as perguntas, capitão. Bem. Resumindo,
tratava-se de eliminar Kino Ombato e o americano que iria
ajudar o Presidente de Kongânia. E ao mesmo tempo, claro,
iniciar uma revolução que derrubasse o atual Governo,
assumindo a presidência o senhor — indicou o negro —
Onio Sardo.
— Isso mesmo. Na realidade, o Presidente de Kongânia
já foi deposto.
— Ah, sim? E seu sucessor será Onio Sarnio?
— Para isso, será necessário matar Kino Ombato, que é
muito querido em Kongânia. Depois, será também
necessário fazer um pouco de... guerra, para acabar de
convencer os partidários de Ombato e do Presidente
falecido.
— Assassinado, quererá dizer.
— Bom... É a mesma coisa. Não?
— Claro — sorriu Brigitte. — É a mesma coisa. O plano
é bom, senhores. Mas pergunto-me — olhou diretamente
para Onio Sarnio — que espécie de sistema político pensam
implantar eu, Kongânia, senhor Sarnio?
Este sorriu amplamente.
— Se está me sugerindo o comunismo, lhe direi que já
havia pensado nisso. E esta ocasião me parece excelente
para fazer chegar minha... simpatia pela Rússia ao
conhecimento de Moscou. Eu aceitarei com muito boa
vontade as diretrizes políticas russas.
— Isso é muito de meu agrado, senhor Sarnio — sorriu
“Baby”. — Parece que vamos nos entendendo.
— Foi o que eu disse — sorriu o barbudo.
— E qual a sua parte em tudo isto, capitão?
— Onio Sarnio tem que me pagar dois milhões de
dólares quando desembarcarmos as armas. Eu cobro e
desapareço. O resto é com ele e sua revolução.
— Uma revolução que, estou certa, merecerá o
beneplácito de Moscou afirmou com satisfação “Baby”. —
Mais ainda, senhor Sarnio: talvez eu lhe consiga um certo...
assessoramento para a revolução.
— Eu o aceitaria com muito gosto! — exclamou o
negro.
— Terei que consultar a respeito. E este será um
trabalho meu que merecerá felicitações por parte da MVD.
Segundo parece, senhores, todos poderemos dar-nos por
satisfeitos. Falta apenas um pequeno detalhe.
— Qual?
— Matar Kino Ombato, o americano e o médico que
cuida deste.
— Se nos disser onde estão...
— Não — interrompeu Brigitte, pensativa. — Não, não.
Será melhor que eu me encarregue disso... pessoalmente. Se
estiverem de acordo, claro.
— De pleno acordo!
— Muito bem. Vejamos... Oh, Ali, já podes desamarrá-
los.
— Pois não... — balbuciou o estupefato marroquino.
Brigitte acendeu outro cigarro e esteve fumando,
pensativa, enquanto Ali soltava os quatro homens. Quando
estes ficaram livres, permaneceram atentos a ela, que por
fim falou, lentamente:
— Não quero complicações com o carregamento de
armas, já que são vitais para uma revolução rápida. Levaria
algum tempo para que a Rússia pudesse enviar outras a
Kongânia, de modo que as existentes neste barco deverão
chegar com a máxima brevidade. De acordo?
— De acordo — apressou-se a aceitar Onio Sarnio.
— Além disso, tampouco interessa que se relacione a
Rússia com o armamento de que dispõem os
revolucionários de Kongânia sob o comando de Onio
Sarnio... Sim, partirão para Kongânia imediatamente. Eu me
encarregarei de Kino Ombato e dos outros.
— Tem certeza de que não falhará?
— Absoluta. Entretanto... Sim, creio que é o melhor.
Não partirão até que tenham recebido a noticia de que eles
estão mortos. Capitão, vou lhe dar... Ali, dá-lhe teu rádio.
O marroquino entregou seu rádio de bolso ao barbudo
cubano, que o recebeu sorrindo.
— É de fabricação americana — observou divertido. —
Sei como se maneja.
— Neste caso, capitão, nada mais temos a tratar. Quando
eu houver terminado minha parte em Casablanca, os
senhores partirão. Imediatamente, comunicarei o fato a
Moscou e receberão a ajuda clandestina necessária para que
os planos de Onio Sarnio não falhem. Há alguma dúvida?
— Nenhuma.
— Senhores — Brigitte estendeu a mão a cada um dos
quatro homens — foi um prazer conhecê-los. Desejo-lhes
êxito em seu empreendimento. Vamos, Ali.
Apanhou a maleta e dirigiu-se á escada que levava á
coberta. Mas tornou a voltar-se, como se lhe ocorresse uma
nova idéia.
— Ah... Opino que será melhor zarparem agora,
senhores. Podem colocar-se a duas milhas do porto de
Casablanca, á espera de minhas notícias para prosseguir
viagem a Kongânia. Está bem assim?
— Perfeito — sorriu o barbudo. — Perfeito, porque se
algo sair mal, poderemos escapar rapidamente.
— Essa é a questão. Boa viagem.
Pouco depois, Brigitte e Ali entravam no táxi deste. O
marroquino ainda não conseguira sair de seu assombro.
— Miss Montfort, perdão, mas eu...
— Meu bom Ali, teus serviços foram inapreciáveis. E
serão ainda mais se continuares me obedecendo em tudo.
Às cegas.
— Alá é testemunha de que...
— Obrigada. Então, escuta bem. A primeira coisa que
farás será deixar-me no centro da cidade. Depois, irás ao
“El Daiba Hotel”, subirás á suíte de Kino Ombato e, sem
mencionar meu nome, lhe dirás... Oh, terás que bater com
força, Ali, porque ele deve estar profundamente
adormecido.
— Muito bem. E o que lhe digo?
— Que o esperas embaixo com o carro, e que é de todo
necessário atuar com rapidez para...
CAPITULO DÉCIMO
O rosto por trás das ataduras
Ninguémganha as guerras
O iate ‘Gavilán levanta vôo...

O dr. Helmut Frankel abriu a porta e ficou olhando


atônito para Kino Ombato, que tinha junto a ele um rapaz
marroquino de olhos brilhantes, negríssimos.
— Ombato. Que aconteceu?
— Acorde o paciente, doutor. Depressa! E desçam os
dois ao living.
— Mas...
— Depressa!
Helmut Frankel optou por obedecer, como meio mais
rápido de inteirar-se do que estava acontecendo. Ombato e
Ali entraram na sala da vila e, pouco depois, o médico
alemão, acompanhado pelo paciente, reunia-se a eles. No
rosto de Frankel estampava-se ainda a surpresa, mas no do
paciente nada se podia ver, pois toda sua cabeça estava
envolta em bandagens, com aberturas unicamente para os
olhos, boca e fossas nasais.
— Que se passa. Ombato? — perguntou o paciente.
A resposta chegou procedente da porta da sala, por trás
do homem com a cabeça vendada.
— Eu lhe explicarei, general Manchester.
O paciente lançou uma exclamação de surpresa e voltou-
se para a porta. Não foi o único que ficou olhando cheio de
assombro a mais bela espiã internacional de todos os
tempos.
— Quem á você? — perguntou o paciente.
— Ela se chama... — começou Ombato, ainda atônito.
— Por favor, Kino — sorriu “Baby” — eu explicarei
tudo, se você não se importa. Agradeço-lhe muito que tenha
seguido as indicações de Ali, sem hesitação, sem perguntar
por mim no hotel, sem se interessar por Zunia Wata... Por
favor, cavalheiros, não permaneçam de pé por minha causa.
Apanhaste o telegrama, Ali? Ou não tinha chegado ainda?
— Chegou sim — respondeu o marroquino. — Aqui
esta.
Brigitte tomou o telegrama, abriu-o e leu rapidamente
seu conteúdo. Ergueu um olhar sorridente para os três
homens, que se haviam sentado, de fato, mas aparentemente
sobre brasas.
Deixou a maleta sobre uma mesinha mourisca, muito
baixa, e acendeu o cigarro.
— Cavalheiros — indicou Ombato: — apresento-lhes o
novo Presidente de Kongânia.
Ombato deu um salto de sua poltrona.
— Como disse? — exclamou. — O Presidente de...!
— Sente-se, Kino. Lamento dar-lhe esta má noticia, mas
o Presidente morreu. Foi assassinado. E neste momento, seu
país espera que você volte para substituí-lo.
— Morreu... — murmurou Ombato. — Foi assassinado!
Mas quem pode...? E por quê? Por quê?
— Conhece um homem chamado Onio Sarnio?
— Naturalmente! É o...
— Foi quem organizou tudo. Por favor, cavalheiros,
ouçam-me atentamente.
***
— Espero ter explicado tudo.
— Sim — murmurou Ombato. — Explicou muito bem,
Brigitte. Eu... terei que voltar imediatamente a Kongânia.
— É uma idéia sensata. Um país não pode ficar sem
Governo. Espero que você saiba exercer a presidência em
paz. Sei que é muito querido por seu povo e isso é para mim
uma garantia, Quanto ao senhor, general Manchester...
— Como sabe quem sou eu? — perguntou o paciente.
— Ora, vamos, general! Devo admitir que, no princípio,
estive um pouco desorientada, ou completamente, para ser
franca. Mas depois compreendi a verdade. Sua jogada do
passaporte falso com o nome de Pierre Civette, cidadão
francês, era só para despistar. Ninguém o matou debaixo
d’àgua, em Big Pine Key. O que aconteceu foi que Ombato
lhe deixou uma jaqueta de borracha no fundo, assim como
tubos de ar, óculos, pés-de-pato... e um arpão com um peixe
fisgado. O senhor esteve esperando na praia até Kino fisgar
um. Ele subiu à lancha, o senhor compreendeu, nadou mar
afora e enquanto eu, que o vigiava, temia por sua vida, o
senhor colocava entre os dentes o bocal do tubo de ar.
Depois, o resto do equipamento. Logo saía da água com um
bonito peixe... E ambos se foram. Kino desembarcou-o num
local convencionado e foi para o seu motel, enquanto o
senhor, com outro passaporte falso, tomava, talvez naquela
mesma noite, um avião com destino a Casablanca. Correto,
general?
— Sim. É assombroso que tenha conseguido...
— Não dê tanta importância a isso. É meu trabalho,
simplesmente. Mas, prossigamos: o senhor chegou a
Casablanca, onde o dr. Helmut Frankel, eminente cirurgião
plástico conhecido em toda a Europa, estava a sua espera
para levá-lo à vila da colina de Anta, que previamente havia
sido alugada por Kino Ombato. Lá, sem perda de tempo, o
dr. Frankel alterou seu rosto. Estou certa, general, que
quando essas bandagens forem retiradas, o senhor não se
parecerá muito com Malcolm Manchester.
— Assim o espero — murmurou este.
— Por que, general? Entendo que deseja ir para
Kongânia, governar.
— Não! — exclamou Manchester. — Governar, não.
Vou a Kongânia para descansar e preservar a paz.
— Preservar a paz, general? Temo não compreender.
— Residirei em Kongânia até o fim de meus dias. Estive
naquele formoso país há alguns anos. É... ainda um mundo
pacífico. Conheci Kino Ombato e disse-lhe que não me
importaria ficar em Kongânia para sempre. Não faz muito
tempo, ele esteve nos Estados Unidos e visitou-me. Disse-
me, então, que Kongânia, corria perigo de transformar-se
em mais um desses países africanos envolvidos em guerras,
em revoluções, em assassinatos. E me propôs um posto no
Governo. Sabia que amo a paz e teve a gentileza de dizer-
me que se havia assessorado bem a meu respeito, e que
estava convencido de que Kongânia precisava de mim,
necessitava de um político de meu porte. Naturalmente,
neguei-me a aceitar um posto no Governo konganiano,
mas... compreendi que tinha chegado o momento de
escapar. Escapar para um país onde pudesse na verdade ser
um político da paz.
— Não o era nos Estados Unidos? — perguntou “Baby”.
— Nos Estados Unidos? — riu acerbamente o general.
— Que era eu nos Estados Unidos? Um homem respeitado
e admirado, certamente, mas... levavam em conta minhas
sugestões? Nem sequer minha própria esposa o fazia. Ela se
considera viúva, agora, e estou seguro de que não é
demasiado infeliz. Deixei-lhe uma boa fortuna e ela... Oh,
ela saberá desfrutá-la, sem dúvida. Não me chorará muito.
— E sua pátria, general? Nossa pátria não o chorará?
— Chorar-me? Acaso foram chorados os americanos
que, por centenas de milhares, morreram em diferentes
guerras? Oh, sim, foram choradas umas quantas lágrimas ao
término de cada guerra. Mas logo começou outra, seguida
de outra, e outra... Sempre a guerra. E eu pergunto: por que
não sempre a paz?
— É uma pergunta que também eu já me fiz em muitas
ocasiões, general.
— Nos Estados Unidos, eu nada podia evitar. Não era
ninguém, Em Kongânia, Ombato me prometeu seguir meus
conselhos em assuntos políticos, com o que estava de
acordo o Presidente assassinado. Eles teriam sido os
governantes de seu país. Eu apenas um conselheiro político
empenhado em preservar a paz. Ninguém ganha as guerras.
Todas são perdidas, inclusive pelos vencedores. Eu teria
vivido em Kongânia, sozinho, com minha música, minhas
pinturas, minha poesia... O sol, o mar e a poesia da paz.
Kongânia tem três vizinhos. Kino Ombato disse-me que se
seu país se mantiver em paz com eles tudo irá bem, por
muito tempo, enquanto a África irá elevando o seu nível
cultural, político e humano.
— E o senhor ficaria na sombra, dedicando-se à
preservação da paz, general? Sem prêmios, sem menções
honrosas, sem cargos importantes, sem nunca dizer nada? O
senhor faria isso? Manteria a paz com sua sabedoria política
entre esses quatro paises, o que poderia constituir um ponto
luminoso no mapa político da África, o ponto de partida? O
senhor faria isso... por nada?
— Pela paz. Pela paz em todo o mundo. Não importa a
raça, o país, o continente. Nos Estados Unidos, nada podia
fazer. Aqui, na África, posso fazer muito. Sabia que o
general Manchester jamais teria obtido permissão para isto.
Eis por que resolvi que o general Manchester falecesse.
— Não espera nada em troca? — perguntou Brigitte.
— Paz, amor, sol e poesia. Parece-lhe pouco?
— Parece-me demasiado. — murmurou “Baby”, com
emoção na voz.
— Sim ... Talvez fosse pedir demasiado, sonhar
demasiado. Kino, sinto muito, mas já que fomos
descobertos...
— O senhor será julgado em seu país, general? —
perguntou o gigante negro.
— Não sei. Talvez considerem o meu, um ato de traição.
Eu...
— Por falar em traições — interrompeu Brigitte
havíamos esquecido de Onio Sarnio.
— Você disse que ele está esperando seu chamado para
prosseguir viagem a Kongânia... Vai permitir isso, Brigitte?
Você me retira o general, envia armas ao meu país.
— Por que diz isso, Kino? As armas ainda não chegaram
lá.
— Mas chegarão. Se aquele iate já está em alto-mar...
— Está a duas milhas do porto. esperando.
— E eu? — perguntou Helmut Frankel, impressionado.
— Que faço eu?
— Esperará também, dr. Frankel.
— Esperar... o quê?
— Que seu paciente esteja em condições de viajar,
naturalmente. Deve ter cobrado bom preço por essa
operação, não é mesmo?
— Nada fiz de desonroso — disse altivamente Frankel.
— Disseram-me que não devia saber quem era o paciente,
mas...
— Por favor, dr. Frankel, não se preocupe em desculpar-
se. Sei que o senhor é boa pessoa. Olhe, leia este telegrama.
O cirurgião apanhou o telegrama que, um pouco antes,
Ali entregara a Brigitte. O conteúdo era o seguinte:
PERSONAGEM QUE LHE INTERESSA É CIRURGIÃO
PLÁSTICO FAMOSO NA EUROPA PT NÃO PERTENCE
NEM JAMAIS PERTENCEU À NOSSA PROFISSÃO PT
HOMEM DIGNO SOB TODOS OS ASPECTOS PT
SEMPRE COM AMOR
WILHELM

— Não compreendo... Quem é esse Wilhelm?


— Um amigo muito querido. Então, doutor, podemos
contar com que ficará até o término de seu trabalho?
— Sem dúvida alguma, se ninguém se opuser.
— Mas para quê? — perguntou Malcolm Manchester.
— Posso viajar. estou certo, e nos Estados Unidos me
atenderão perfeitamente, até... o meu julgamento.
— Pensa entregar-se, general? — sorriu Brigitte. — E
renunciar a todos os seus sonhos de paz?
— Entregar-me? Eu? Não... Mas você é uma agente
americana e quererá...
— Perdão, general. Eu não sou uma agente americana.
— Não compreendo
— Sou a agente “Baby”, general. Sé isso. A espiã mais
linda do mundo a serviço da paz. Justamente. general, meu
maior defeito é que mato implacavelmente, sem piedade
alguma, aqueles que atentam contra a paz. E respeito os que
lutam a seu favor.
— Mas ainda não compreendo.
— Direi o que faremos, general. Kino Ombato seguirá
agora mesmo para Kongânia. E quando digo agora mesmo
quero dizer neste instante, não dentro de uma hora. Quanto
ao senhor, espero que o dr. Frankel o atenda devidamente e
que seu rosto continue sendo tão honrado e nobre como o
que recordo. Quanto ao mais, só lhe posso desejar uma feliz
permanência e uma longa vida em Kongânia.
— Como...? Vai permitir que eu...?
— Que realize seus sonhos e os meus. Na verdade,
general, o senhor vai ser um colaborador eficaz no mundo
da agente “Baby”.
— Mas, se trabalha para a CIA, como penso...
— Digamos que a CIA financia minhas empresas — riu
Brigitte. — Mais alguma pergunta?
— Posso, então... poderei partir para Kongânia?
— Quando quiser. Pelo que me diz respeito, o general
Malcolm perdeu vida num infeliz acidente, em Big Pine
Key, Flórida. USA.
— Meu Deus... Como lhe poderei pagar...
— O senhor e Kino Ombato terão facilidade em manter-
me contente, general. Por favor, não quero mais palavras de
agradecimento. É só. Quer dizer... Ficam por ai alguns
senhores que são o oposto do que quero. Tenham a bondade
de aproximar-se da janela, todos, por favor. Poderão ver,
sob o límpido céu africano, o iate “Gavilán”, a duas milhas
da costa. Lá está... É tão pequeno, que até parece de
brinquedo. Vêem?
— Sim... Podemos vê-lo muito bem.
— Ótimo, Não o percam de vista, por favor. “Baby”
abriu sua maleta e sacou um pequeno aparelho metálico, no
qual, por trás de um vidro redondo, viam-se números e uma
agulha. A um lado, um diminuto dial vermelho, que ela
moveu para a direita, com os olhos fixos no minúsculo
“Gavilán”... Houve uma centelha, um estalido, viram-se
objetos brilhantes lançados ao ar, depois elevou-se uma
tromba d’água... O mar logo voltou á calma, Um mar sem
“Gavilán”,
— Pois já não o vêem — disse ela, friamente. — Como
disse muito bem, general, ninguém ganha as guerras.

UMA PÁGINA DO ALCORÃO

Ali abriu apressadamente a porta traseira e estendeu a


mão para a mais formosa passageira que jamais passara pelo
aeroporto de Casablanca.
Depois apanhou a maleta, sem insinuar sequer a
possibilidade de levar ele mesmo a maletinha vermelha com
flores azuis. A cara do rapaz marroquino estava triste e
comprida como um cipreste.
Cumpridas as formalidades que lhe permitiam tomar
aquele avião, e enquanto um empregado do aeroporto
transportava a maleta para o aparelho, “Baby” bateu
carinhosamente no rosto de Ali.
— Meu bom Ali ... Não fiques triste, querido.
— Quando... quando tomarei a ver-te? — quase gemeu o
rapaz.
— Logo. Qualquer dia miss Montfort virá te fazer uma
visita... se Alá o permitir. E nós dois sabemos que, em sua
grande misericórdia, Alá permitirá. Bem... desta vez não te
vou dar dez mil dólares, mas um pouco menos. Não
trouxe...
— Mas eu não quero nada... Nada!
— Como! — sorriu Brigitte. — Não queres dinheiro,
Ali?
— Não. E sou eu que, esta vez, vou te dar alguma coisa.
— Verdade! — exclamou ela, surpresa. — Que coisa?
— Eu... enquanto esperava tuas ordens, no carro, fui...
gravando algo com minha faca e...
— Oh, estou morrendo de curiosidade!
Ali tirou de sob suas roupas um pedaço de madeira de
ébano, brilhante, polidíssimo. Deixando uma pequena
margem dos lados, havia no centro o que evidentemente
parecia uma página de um livro, com inscrições em árabe.
— É uma página do Alcorão, que eu gravei para te dar.
— És muito amável, Ali. Mas... que diz esta página?
— Diz: Não há mais Deus que Deus; um só Deus e
nenhum Deus senão Ele. Assim está no princípio do
Alcorão... E eu sempre rezarei para que Ele não te
abandone, miss Montfort.
— É um bonito presente — murmurou a espiã. —
Adeus, meu bom Ali... E que Alá esteja sempre contigo.

A seguir:
O primeiro passo para se atingir uma meta é convencer-se
de que se é capaz disso!
CHAMPANHA COM CEREJA

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