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ESCRAVIDÃO, HISTÓRIORAFIA E OS SERTÕES:

Pensando a presença escrava nos interiores da Bahia. Século XIX

Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!


Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: Conheço o meu lugar!
- Meu lugar, Belchior.

Resumo:
Este artigo procura compreender a dinâmica da escravidão nos sertões da Bahia. Assim,
consideramos as especificidades bem como as dessemelhanças com outros espaços desse recorte
regional a partir do prisma das conexões históricas, tanto quanto das comparações. A revisão de
literatura procura perceber o processo de interiorização portuguesa na colônia e as articulações com
os interesses particulares dos que realizaram o empreendimento, especialmente no processo de
incorporação socioeconômica destes sertões. Tenta-se reavaliar as concepções predominantes na
historiografia, durante algum tempo, que privilegiavam o recôncavo e a cidade de Salvador,
buscamos entender esse espaço “longínquo”, com sua própria forma de organização social,
cultural, econômica etc., tendo como foco a escravidão e seu desenvolvimento nesses sertões, seja
na pecuária, na mineração, na policultura ou em qualquer outro setor. É impar destacar que aí se
deram formas de sociabilidade diferentes das grandes monoculturas, por exemplo, e por isso faz-se
necessário estudos que deem conta tanto dessas singularidades quanto das irregularidades que
compõem a história do Brasil e se articulam em escala planetária.

Palavras-chave: Escravidão; Sertões da Bahia; mineração, pecuária.


VEJA NO RESUMO COMO USEI OS VERBOS. MELHOR NO
INFINITIVO DO QUE DA TERCEIRA PESSOA DO PLURAL. NA PRIMEIRA DO
SINGULAR TBM NÃO É BOM
1. Introdução:

O presente artigo objetiva conhecer esse “nosso lugar”, esses “sertões tão grandes
que não tem portas”,1 muitas vezes mal compreendido pela historiografia, bem como a
dinâmica da escravidão nessas terras. Desse modo, busca-se compreender o processo de
interiorização em direção aos sertões baianos, observando como se desenvolveu as formas
de viver e de trabalhar. PARA SUBSTITUIR A PALAVRA escravidão. PQ TÁ MUITO
REPETITIVA. CONSERTE TODOS OS VERBOS A PARTIR DAKI. TIRE A
TERCEIRA PESSOA E FAÇA COMO FIZ ACIMA

1
NOTA DO HOMENS DE CAMINHO. ESTA FALA É DE PEDRO LEOLINO MARIZ
Nesse sentido, destacamos que as formas de interiorização, seja a partir do
fomento da pecuária ou pela mineração levaram adiante os ensejos ora de elites e/ou
posseiros, ora de aventureiros e, em outros momentos, os da Coroa em levar aos sertões as
instituições do GOVERNO PORTUGUES. TIRE ESTADO NA CONCEPÇÃO
MODERNAEstado. Devemos levar em conta também que esses processos, inclusive
integralização configuraram para essa região uma forma específica de relações sociais que
verificadasNAO. CONFORMADAS A PARTIR DAS RELAÕES... nas relações entre
senhores e escravos. OBJETIVA-SE DEMOSNTRAR A ONIPRESENÇA DAS
ESCRAVIDÃO EM TODOS OS ASPECTOS DA VIDA EM SOCIEDADE, SEJA NO
QUE SE PERCEBE QUANTO À QUANTIDADE DE CATIVOS POR FAZENDA (TIRE
PLANTEIS), A PRESENÇA DE ESCRFAVO NAS ELAÇÕES COMERCIAIS, AS
ATIVIDADES ECONOMICAS QUE DESENVOLVEIAM E AS ESTRATEGRIAS DED
MOBILIADE TRAÇADOS POR ELES.... EXPLIQUE ESTAS IDEIAS AKI. SÃO ELAS
QUE VAMOS DESENVOLVER

2. Aporte teórico-metodológico ESCRAVIDÃO E HISTORIOGRAFIA


Até o século XVIII o Sertão foi sempre associado à ideia do “distante”, em
contraposição ao litoral.2 Se este representava a civilidade, os “recônditos” sertões
representavam a barbárie, a incivilidade.3 Mas com a ocupação e povoamento,
impulsionado pela pecuária, seguida pela mineração, na transição para o século XVIII
consolidou-se uma ideia de complementaridade sertão/litoral. 4
A historiografia do século XIX contribuiu para afirmar a perspectiva da distância
em relação à administração colonial, o local longe da jurisdição do Estado. No tocante aos
sertões baianos, a historiografia ao longo do século XX não rompeu de forma significativa
com as concepções do século XIX, dando ênfase aos “bravos conquistadores” e
enaltecendo a grandeza do empreendimento (NEVES, 2003; 2012). Os estudos sobre a
Bahia até a década de 1990 restringiam-se a estudar o recôncavo e a cidade de Salvador,
focando na monocultura açucareira e negligenciando a policultura sertaneja, mas a partir
daí, principalmente com programas de pós-graduação, os estudos sobre os sertões vêm
ganhando visibilidade dentro da cena historiográfica.5

2
CITA OS AUTORES QUE PARTILHAM DESTA IDEIA
3
IDEM
4
IDEM. VEJA CAMINHOS E FRONTEIRAS DE SERGIO BUARQUE
5
FLA UM LEVANTAMENTO NA UFBA, UNEB E UESB E CITE OS TRABALHOS AKI
Na historiografia do século XIX, no que toca à escravidão, abolicionistas e
viajantes construíram uma visão do cativeiro pautada na completa alienação e imobilidade
do cativo frente às estruturas de poder e dominação. 6 Na década de 1930, Gilberto Freyre
trazia contribuições importantes, como a negação da corrente ideia de superioridade dos
brancos sobre os negros, destacando o importante papel dos negros na formação social do
Brasil, além de trazer os cativos para o primeiro plano de análise. Apesar disso, suas
concepções vislumbravam uma parcimônia do escravismo, suavizando, de certa forma, o
regime de cativeiro. TA ERRADO ISSO SOBRE FREIRE. FALAMOS PELO

MEET DEPOIS Entre as décadas de 1950 e 1970 houve uma forte refutação dessa
suposta benevolência da escravidão. Autores como Florestan Fernandes, Emília Viotti,
Fernando Henrique Cardoso, Ciro Flamarion Cardoso etc. negavam a ideia freyriana de
"paraíso racial", enfocando justamente a violência que se dava nas relações senhor/escravo,
mas trazendo de volta concepções do XIX, uma “reificação dos cativos”. EXPLORE MAIS
ISSO...ELES COISIFICARAM OS ESCFRAVOS. FAÇA UM NOTA COM AS OBRAS. A CRITICA A
FREIRE AKI NÃO PROCEDE. ESCREVER MELHOR
Essas concepções, mesmo que na tentativa louvável de rever as concepções de
“democracia racial”, se pautaram e generalizaram concepções do século XIX, tirando dos
cativos sua agência. Somente a partir da “virada analítica” da década de 1980 é que, com a
ampliação de temáticas e metodologias, os estudos sobre escravidão passaram a privilegiar
a sua complexa dinâmica, focando na agência cativa e na construção de espaços de
sociabilidade e negociações em que estes, mesmo que limitados pelo sistema, possuíam
algum raio de ação.
PAREI AKI
É também a partir da década de 1980, com a ampliação do arcabouço teórico e
metodológico da historiografia, momento também em que se toma consciência da extensão
territorial do Brasil, com especificidades locais e marcada pela heterogeneidade. É nessa
época, fundamentalmente, que “Resistir ao sistema significou diversificar as estratégias de
acordo com as peculiaridades de cada região e de cada período do escravismo” (PAIVA,
1995, p. 61). Nesse sentido, a principal contribuição foi de Lara (1988), que deslocou
visceralmente a questão da violência para o cotidiano, que era onde se dava tanto a
violência quanto os acordos.

6
OU DEMONSTRA ISSO HSITORIOGRAFICAMENTE, OU RETIRA A CITAÇÃO. MELHOR SUAVIZAR
Delimitar melhor os nossos objetos de pesquisa nos possibilitaram entender as
suas singularidades e dessemelhanças com relação a outros espaços e tempos, e nesse
sentido que aportamos à história regional, uma vez que, mesmo sendo um recorte, nos
coloca em vista a totalidade histórica, pois “[...] depende do universo tomado como
referência de espaço e dos fatores intervenientes na sua definição” (NEVES, 2018, p. 13).
É o caso da categoria “sertão”.
A história comparada consiste na abordagem que coloca em tela contextos/objetos
diferentes, sem atribuir qualitativos, mas percebendo suas similitudes e diferenças
socioculturais. As histórias conectadas ressaltam as interconexões entre diferentes grupos
e culturas, imbricando ou conectando contextos, ideias, crenças, ritos, etnias, marcando
justamente as misturas (sem negar as impermeabilidades). Na modernidade, significou a
mundialização também da escravidão, em especial de africanos negros. O tráfico atlântico
transportou "um mundo" da África para as américas (o maior deslocamento humano de que
se tem registro, que transportou algo em torno de 12 bilhões de pessoas), o que influenciou
sobremaneira as relações e as trocas em escala planetária, conectando histórias
espacialmente e às vezes temporalmente distintas, colocando na mesma tela diferentes
culturas, saberes, sabores etc., que ora conflitaram e ora se conformaram (mesmo que as
conformações pudessem se dar de forma pragmática). Ambas as abordagens contribuem
por ampliar o leque de possibilidades, como a extrapolação de regiões e temporalidades.
Assim, tentaremos abordar tanto comparações, no estabelecimento de similitudes
e dessemelhanças, como ressaltaremos as conexões entre diferentes grupos e culturas na
busca das ligações inter e intra contextos. Buscamos apurar o “olfato” para, parafraseando
Bloch (2001), ser mais “como o ogro que fareja a carne humana”, buscando compreender a
história, no caso aqui, da escravidão nos sertões da Bahia.

3. Sertões: ocupação e inserção socioeconômica ESCRAVIDÃO E


SERTÕES
Em artigo Neves (2001) analisa as repartições das terras, tanto na formação de
Portugal quanto do Brasil, através do sistema de sesmarias. Esse regime chegou na colônia
através do sistema de capitanias hereditárias criado por D. João III em 1534. Assim, as
terras deveriam ser limitadas a 10 léguas litorâneas por determinação régia, distribuída aos
donatários, o que não impediu o avanço aos sertões, conquistando e ocupando terras
indígenas. As determinações (Provisão Régia de 20 de Janeiro de 1699) concebiam os
latifúndios, mas obrigavam ao uso produtivo da terra, o que possibilitou a ação de
posseiros. Esse sistema deu sustentação à construção e consolidação dos grandes
latifúndios durante sua vigência.
A pecuária, importante no processo de interiorização, foi introduzida no Novo
Mundo desde a segunda viagem de Colombo (1493), e na América portuguesa, no governo
de Tomé de Sousa (1549-1552) bem como muitas espécies vegetais, se associando assim à
policultura. Na Bahia chegaram reses advindas de Cabo Verde e, posteriormente, de
Pernambuco, além de Portugal e da ilha da Madeira, pululando-se rapidamente.
Destacaram-se os d'Ávila e os Guedes de Brito como grandes criadores de gado,
competindo pelo estabelecimento de fazendas de finais do século XVII até o início do
XVIII. "Desde então, a pecuária tornou-se a principal atividade econômica do vale do São
Francisco e dos sertões intermediários do litoral" (NEVES, 2009, p. 93).
Alguns fatores foram responsáveis pela interiorização da pecuária, como a
produção açucareira, inclusive proibindo-se a criação de gado a menos de 10 léguas da
costa, e também pelas invasões holandesas. A expulsão destes marcou o início da crise na
produção açucareira, o que impulsionou a formação de grupos que realizaram entradas
para os sertões, conquistando e ocupando terras indígenas, principalmente a partir das
margens do São Francisco e seus afluentes.
A ocupação do Alto Sertão se iniciou no século XVII por Antônio Guedes de
Brito, que expandia seus territórios através das conquistas estabelecendo fazendas de gado
e se valendo de mão de obra cativa ou da “meação”. A criação bovina, e a economia gerada
em torno dela, contribuiu para a ocupação do sertão (continuado depois, pela mineração),
bem como para sua inserção econômica, sendo escravista e de predominância do
latifúndio, apesar de arrendarem terras a pequenos criadores. Segundo Neves (2009, p.
100), "Nos trânsitos de boiadas e tropas estabeleceram-se núcleos populacionais pelo
sertão, onde era possível o abastecimento permanente de água. Formou-se, desse modo, no
sertão semi-árido, uma sociedade pecuarista, com a predominância do latifúndio".
Esse processo de adentramento ganhou impulso com a mineração. A ocupação
econômica dos sertões, que se deu a partir da pecuária, foi fomentada pela busca de metais
preciosos, especialmente a partir do início do século XVIII, com uma já declinante
economia açucareira e o interesse de aventureiros em enriquecerem-se. Nesse contexto de
euforia do início do século XVIII, em decorrência da descoberta de ouro nas mais diversas
regiões da colônia, inclusive no interior da Bahia, foram criadas as vilas de Jacobina
(concluída em 1722) e Rio de Contas (1725). Aí mineraram, segundo Neves (2006), a
“gente de pequena esfera” (mineradores individuais), apesar da presença também de outros
que empregaram a mão de obra cativa (especialmente paulistas).
Ivo (2012) perscruta essas entradas partindo da região centro-norte de Minas
Gerais e centro-sul da Bahia, principalmente a partir da expansão da Comarca do Serro do
Frio, no início do século XVIII. Segundo ela, o empreendimento foi realizado tanto pelos
“homens de caminho”, que eram mais ligados à administração colonial, inclusive com o
direito de arrendar e cobrar impostos nos caminhos fluviais ou terrestres, o que coloca em
tela o fomento da Coroa portuguesa à empreitada; quanto pelos conquistadores, movidos
mais pelos mitos sobre pedras preciosas, eram aventureiros (mesmo que, em alguma
medida, também ligados ao rei).
Nesse sentido, conquista do Sertão da Ressaca se dá a partir do início do
setecentos com a construção da estrada de Montes Altos, para conectar os sertões e
propiciar o escoamento do salitre, sob o comando do romano Pedro Leolino Mariz. Este,
por sua vez, dirigiu os empreendimentos do mulato João da Silva Guimarães, importante
por fazer combate aos índios da região, e do preto forro João Gonçalves da Costa, que
expandiu as conquistas e derrotou os índios, tornando possível a fundação do Arraial da
Vitória (hoje Vitória da Conquista). Para Ivo (2012), foram estes “agentes imersores” os
responsáveis por interiorizar as instituições de administração e por incorporar
economicamente a região. Há que se levar em conta também que não só as pedras
preciosas despertavam o interesse nas regiões interioranas, mas conquistar estas vastidões
possibilitava a produção de alimentos e a pecuária, além de que “Tornar-se proprietário
destas terras significava ascender na hierarquia colonial ao controlar os destinos daqueles
que impediam a interiorização dos interesses metropolitanos” (IVO, 2012, p. 17).
A partir de meados do século XVIII, com o escassemento das jazidas de aluvião, a
metrópole estabeleceu uma cota mínima de extração (100 arrobas anuais), na tentativa de
manter a arrecadação, o que significou o início do declínio do colonialismo português no
Brasil. Assim, as descobertas auríferas tiveram um impacto sobremaneira nos rumos da
colônia, pois dinamizou a economia com um redirecionamento do centro de poder da
Bahia para o Rio de Janeiro, proporcionou uma expansão demográfica e territorial, com a
ocupação dos sertões do Brasil, e os sertões da Bahia estiveram inseridos neste contexto,
influenciando e sendo influenciado por ele em um todo complexo.
Mas junto à ocupação, seja através da pecuária ou da mineração, desenvolveu-se
pari passu uma economia policultora que garantia o sustento interno, mas também artigos
de exportação, como o algodão e o couro (mesmo com as inerentes dificuldades de
transporte). Assim, nas palavras de Neves (2003, p. 15),
considera-se que as policulturas cerealíferas e o algodão representam para
as caatingas, gerais e veredas do Alto Sertão da Bahia o que a cana-de-
açúcar, a mandioca e o tabaco significaram para os massapés do entorno
da baía de Todos os Santos, complementando-se no abastecimento
interno e nas exportações.

Desde os inícios do século XIX,


[...] a agricultura de exportação na Bahia vivia uma fase de grande
prosperidade que reativara não apenas o setor de exportação (açúcar,
fumo e algodão), mas também o tráfico de escravos e os demais setores
da economia vinculados à agro-indústria e ao comércio” (OLIVEIRA,
1979, p. 31).
O algodão, muito produzido nos sertões baianos, se beneficiou da demanda europeia para a
indústria têxtil, sendo impulsionada pela paralização da expansão norte americana em
decorrência da guerra de Independência (a estadunidense). Essa prosperidade foi afetada
em toda a Bahia pela Guerra de Independência do Brasil, com a diminuição do
investimento de portugueses, provocado pelo antilusitanismo, situação agravada ainda por
outros fatores como a transferência de mão de obra para o sudeste cafeeiro, a
desestabilização da moeda e proliferação de moedas falsas, as secas e as epidemias.
No século XIX houve melhorias nos transportes, bem como aumentaram os
minifúndios, em detrimento dos latifúndios (que não desapareceram). As terras dos Guedes
de Brito, herdadas por seus sucessores, em muito graças ao costume dos casamentos entre
famílias, são um exemplo elucidativo disso, pois foram dilapidadas na primeira metade do
século XIX pelos herdeiros do Sexto Conde da Ponte. Tudo isso contribuiu para um
aumento de produção agrícola, em especial a de subsistência, mas também a de exportação.
Em decorrência da Revolução Industrial e da crise de produção estadunidense, houve um
aumento vertiginoso da produção algodoeira para abastecimento do mercado europeu.
Entretanto, como aponta Neves (2003) em sua tese, as secas tiveram forte impacto sobre a
produção agrícola, assim como nos plantéis de cativos. Em artigo de 1997, Neves investiga
os contratos de trabalho sem remuneração nos sertões da Bahia, especialmente no Sertão
da Ressaca, de base policultora e agropecuária, mas marcado por secas prolongadas, como
as de 1857 a 1861, que assolou os sertões baianos provocando fome, emigração, mortes e
crise na produção.

4. As estruturas de poder
Dada a natureza da conquista e ocupação dos sertões, estabeleceram-se complexas
redes de poderes locais, estando as correlações de força aí permeadas pelo mandonismo
local, no mais das vezes ligados aos grandes latifundiários ou responsáveis pelos
empreendimentos. Segundo Silva (2010), a cultura barroca perpetrou na colonização
portuguesa não apenas um estilo artístico, mas uma determinada maneira de agir, um ethos
que influenciou sobremaneira nas articulações entre poder privado e poder régio - mediado
ou não pelos poderes locais estatais -, forjada no conflito e na subversão.
Para ela, essa lógica se verifica nos sertões setecentistas das Minas e na conquista
dos sertões baianos, pois os seus agentes utilizaram-se dessa “legalidade paralela”, mestiça
e adaptada, nos empreendimentos de conquistas bem como em sua administração, que
passaram de hábitos à direitos costumeiros indissociáveis das formas de controle nos
sertões. Os jagunços conformavam as bases dessa cultura política baseada no mando, em
sua função mediadora. Assim, “O ethos barroco constituiu o alicerce das formas de
sociabilidade no sertão” (SILVA, 2010, 130).
Neves (1996) procura compreender a estruturação do poder local no Alto Sertão
da Bahia, com destaque para o município de Caetité, bem como sua dinâmica e interação
com as instâncias estadual (provincial) e nacional de poder. Em meados do século XVIII
foram criados os Regimentos de Ordenanças, sendo as patentes superiores conferidas aos
senhores de terras. Essa e muitas outras ordenações foram criadas com o intuito de
articular o controle metropolitano com as instâncias de poder local para a garantia da
ordem. A oligarquia senhorial aliava-se à metrópole, bem como à burguesia crescente e à
nobreza decadente, não sendo as milícias remuneradas, mas gozando de prestígio social,
privilégios e isenção de impostos. No Alto Sertão da Bahia, desde inícios do século XVIII,
organizaram-se milícias e ordenanças ligadas aos conquistadores da região, compostas
pelos primeiros povoadores, arrendatários e compradores de terra.
Essas estruturas coloniais não foram abolidas com a transição para o Império. No
início do Período Regencial, “Depois de malogradas tentativas de unificação das forças
auxiliares, em 1832 extinguiram-se Ordenações, Milícias e Guardas Municipais,
instituindo-se a Guarda Nacional como única força de segunda linha, auxiliar do exército e
da armada” (NEVES, 1996, p. 328), se tornando permanente essa nova milícia de
latifundiários. Com o Segundo Reinado foram feitas reformulações nas estruturas de poder,
com um novo Código de Processo Criminal, que estabelecia a centralização em torno do
monarca e restringia a autonomia dos municípios, o que não significou o fim dos poderes
locais, mas apenas o governo como instituição que intermedia os conflitos internos; ao fim
e ao cabo, foi apenas uma mediação do governo imperial, através de delegados e
subdelegados, sobre os conflitos locais, mas mantendo as mesmas bases e hierarquias
oligárquicas.
Nesse sentido, destaca-se a divisão das terras conquistadas no Sertão da Ressaca
em que foram priorizados a família de João Gonçalves da Costa e seus parentes mais
próximos, bem como a distribuição de cargos na administração. A partir da elevação do
Arraial à Imperial Vila da Vitória, se deu um processo de incorporação da justiça, com a
criação de leis e normatizações para regular a sociedade e coibir as desordens. O artifício
da criação de vilas se deu em diversas partes da colônia com o intuito de interiorizar as
instituições estatais, verificando-se também no Alto Sertão da Bahia, um pouco antes:
Jacobina (1822) e Rio de Contas (1825). O mandonismo local surge, segundo Ivo (2017),
justamente da incapacidade do Estado em regular de forma eficiente essas localidades,
tecendo então um complexo quadro político, jurídico e administrativo que resulta em
correlações de força e disputas pelo poder, de modo que, “Mandonismo e cultura política
baseada na violência misturaram-se no exercício político discricionário das elites locais”
(2017, p. 54).
Por esta via, cumpre lembrar que a estrutura de poder baseada no mandonismo
tem uma importância nine qua non na dinâmica das formas de interação social nos sertões,
configurando assim uma maneira singular de relações escravistas nessas regiões. Apesar
disso, os sertões estavam inseridos num contexto de mundialização de práticas, de saberes
e de culturas. Nas palavras de Ivo (2012, p. 33), essas
Culturas múltiplas criaram novos espaços de vida econômica para além
da vocação puramente agropecuária. Abrindo caminhos e conectando-se
ao mundo ultramarino, os sertanistas, ao buscarem riquezas e
acumularem grandes propriedades rurais, foram responsáveis pelo ir e vir
de práticas culturais num trânsito até então desconhecido para os sertões.

5. Aspectos da escravidão nos sertões baianos


Desde o processo de ocupação os escravos estão presentes no Sertão. Esses
espaços de sociabilidade imprimiram aí formas particulares de interação social, não sendo
diferente nas relações entre senhores e escravos, ou destes com o restante da sociedade.
Provenientes das mais diversas regiões da África, das mais diversas qualidades,
empregados em diversos tipos de atividades, como na criação de gado, na policultura, na
mineração ou no comércio local entre outros.
Com essa mistura mundializada pela modernidade conformou-se espaços com um
universo de possibilidades, ligou-se todos os oceanos em um fluxo constante. Esse
emaranhado mestiçou não apenas biológica e culturalmente, mas criou também formas de
organização, sejam familiares, econômicas, sociais, eclesiásticas, militares, civis etc. Por
exemplo o tabaco, fortemente produzido nos sertões da Bahia, foi introduzido em outras
partes do mundo. Nas palavras de Paiva (2009, p. 11), "Muito precocemente, o tabaco
americano ganhou a Europa e a costa atlântica africana, difundindo-se largamente entre
homens e mulheres das camadas mais ricas e entre os pobres também", o que conectava
não apenas as técnicas de trabalho e a mão de obra na colônia, mas também "culturas
separadas por um oceano". Essas práticas mundializadas poderiam, inclusive, servir como
elemento que facilitava a adaptação dos cativos a uma nova realidade, como o próprio
fumo, danças, religiosidades e incontáveis outras, uma vez que eram praticadas tanto na
África como no Brasil, bem como em outros espaços.
Explanado esse quadro socioeconômico e cultural, cabe observarmos a forma
como se desenvolveu a escravidão nos sertões da Bahia. No Alto Sertão, longe dos centros
açucareiros, a escravidão se deu a pari passu com a meação. A própria estrutura das terras
e distribuição em fazendas, bem como a natureza da exploração possibilitou que os
próprios senhores administrassem seus pequenos plantéis. Segundo Neves (1994, p. 74),
“até os feitores eram pouco empregados, porque predominavam os pequenos plantéis de
escravos, administrados pelos próprios senhores”. Dos inventários analisados por ele nessa
pesquisa, 53% informavam entre 1 e 10 cativos, sendo que 73% apresentam menos de 20
por proprietário, e mesmo quando apresentavam um grande plantel, este estava disperso
por várias fazendas.
Na sociedade mineira setecentista houve uma intensa diversificação do ponto de
vista econômico, comportando, além da importante exploração aurífera, atividades
comerciais, artesanais, agropastoris, muitas vezes exerciam mais de uma dessas atividades
simultaneamente. A base socioeconômica, cumpre destacar, era eminentemente escravista.
Nas minas, como nos sertões (guardadas as proporções), se verificou uma estrutura de
muitos plantéis de poucos escravos (média de 3,7 a 6,5 por proprietário), sendo muitos
desses senhores libertos, negros livres e brancos pobres. Essas relações também
comportavam certa proximidade entre os senhores e escravos, muitas vezes
compartilhando espaços de trabalho, de moradia, comida etc., proximidade que
possibilitava a criação de estratagemas que levassem à libertação (PAIVA, 1995). Seus
estudos apontam que em 1742 a escravaria de Minas Gerais representava uma cifra de 54%
da população, sendo que esse contingente, em 1776, representa 51%, caindo, a partir de
então para menos de 50 por cento da população, decorrente, entre outros, do intenso
número de manumissões.
Em artigo Marcondes e Knox (2001) analisam aspectos demográficos e
econômicos da escravidão no Piauí, na segunda metade do oitocentos. No final do século
XVII, dos habitantes das 129 fazendas da capitania, 48% eram cativos, constituindo a
maioria da população total (438 habitantes). Já em 1826 a população total chegava 84.273,
dos quais 29,7% eram cativos. 40% desse contingente cativo estava na faixa etária de 0 a
20 anos, um potencial jovem, e sua procedência era majoritariamente nascida na colônia, o
que denota uma forte reprodução interna. Havia também uma alta presença feminina
(47%), o que nos ajuda a entender a taxa de crescimento vegetativo entre a escravaria
piauiense. Dados que se assemelham, portanto aos sertões baianos e às Minas setecentistas.
Reis (1986) verifica em áreas litorâneas um quadro diferente do sertanejo. Um
censo realizado em 1808, em Salvador e nas freguesias sob a jurisprudência da Bahia,
apontou uma população total de 249.314 pessoas, sendo 37,3% escravos. Com
predominância de cativos provenientes da África, uma vez que a baixa expectativa de vida
e o alto índice de mortalidade infantil, agravadas pela dura situação de cativeiro, bem como
a baixa quantidade de mulheres escravas - tanto menos importadas, quanto mais suscetíveis
de atingirem a alforria - impediam o crescimento da mão de obra interna, fomentando um
contínuo e intenso tráfico internacional de cativos até meados do século XIX. Os dados
atestam, em 1816, uma taxa de 3,75 homens para cada mulher (REIS, 1986, p. 17-18),
situação que dificultou a formação de famílias. Isso mostra o peso da presença africana na
escravaria, uma vez que nos cativos nascidos no Brasil as mulheres eram pequena maioria
(10 mulheres para cada 9,2 homens).
Em comparação com a monocultura canavieira do recôncavo, os plantéis alto-
sertanejos eram no mais das vezes pequenos, sendo grande a quantidade de senhores de
poucos escravos, apesar das raras exceções. “Os grandes proprietários geralmente tinham
seus escravos distribuídos em pequenos grupos, por várias fazendas, empregados na
policultura agrícola, pecuária extensiva e serviços domésticos” (NEVES, 1994, p. 76-77).

Na documentação analisada por Neves (2003), ele identifica que na segunda


metade do século XVIII apenas 4% dos inventários não constam escravos, número que
cresce para 25% entre 1851 e 1887, o que mostra o impacto da abolição do tráfico pela Lei
Eusébio de Queirós (1851), evidenciando também um processo lento e gradual de abolição.
Outras informações aparecem também, como na tabela apresentada por ele (vide página
122), que coloca em tela a condição jurídica e classificação étnica do Município de Caetité
em 1872, que mostra uma população total do Município em 75.645 pessoas, dos quais
12,05% são escravos. Desse contingente populacional total, 22.900 aparecem como
brancos, 30.696 como pardos, 19.906 como pretos e 2.143 como caboclos.
Dessa forma, a mão de obra escrava passa a ser, cada vez mais, uma mercadoria
desvalorizada, mas que encontra aumento nos preços devido ao comércio interprovincial.
Neves (2000) analisa a venda de mão de obra dos sertões da Bahia, em especial da
policultora Vila de Caetité, para a monocultura do Sudeste cafeeiro, empreendimento
protagonizado pelos sampauleiros, assim denominados os baianos que regressavam de São
Paulo. Um recurso muito disseminado nesse comércio intrarregional foi a figura de um
intermediário, que receberia do senhor uma procuração para comercializar o escravo em
seu nome. Assim, segundo os dados arrolados por Neves (2000), entre 1874 e 1884 foram
intercambiados 346 escravos com procuração – dentro e fora da província. Nesse
interstício de 11 anos foram comercializados em Caetité 499 cativos, dos quais 66,9%
tinham idade entre 11 e 30 anos, concentrando-se um maior número entre 21 e 30 anos.
Nessa documentação analisada por ele, para Caetité (1874-1880), estão presentes
287 escravos vendidos para outras províncias, sendo 48,4% brasileiros, classificados como
crioulos (16,7%), mestiços (31,7%) divididos entre cabras, mulatos e pardos; outros 44,2%
identificados como pretos (provavelmente brasileiros) e 2 africanos (sem menção à etnia),
o que demonstra uma forte presença de escravaria endógena, apesar de apenas 9
aparecerem como casados e 1 como viúvo. O total desse contingente apresenta uma ligeira
maioria de homens (53,7%), sendo as mulheres 46,3% - um alto percentual feminino com
uma relativa igualdade no número de homens e mulheres. Desse total de 287, os que
apresentavam alguma profissão foram apenas 3, um ferreiro, um garimpeiro e uma
cozinheira.
A dinâmica sertaneja possibilitava a inserção de uma figura importante: o
vaqueiro, geralmente remunerado pelo sistema de sorte. Para Neves (1999, p. 126-127),
Essa categoria profissional, como escravo, trabalhava com alguma
autonomia; relativamente às outras atividades, pouca repressão; e maior
possibilidade de constituir micropatrimônio com reses que eventualmente
recebesse do senhor – estímulo não raro na escravidão pecuarista regional
– com as quais frequentemente libertavam familiares, mantendo-se cativo
para conservar o direito de permanecer com seu microcriatório na
fazenda senhorial (grifo nosso).
O que parece um contrassenso, manter-se cativo para conservar algum direito, é, na
verdade, a expressão conjugada da dinâmica complexa que assumiu a escravidão, a
complexidade das condições intermediárias, nesse caso, da escravidão no Alto Sertão da
Bahia, fortemente marcada pela instituição de vínculos e “apadrinhamentos”.
Essa ralação mais próxima entre senhores e cativos proporcionava um controle
maior dos senhores sobre cada um deles, mas também possibilitava um espectro de
possibilidades maior de que cativos podiam se beneficiar, como o compadrio. Entretanto, o
escasso emprego de feitores como agentes intermediários não tornava a escravidão nos
sertões menos degradante, o que era inerente ao próprio escravismo. Inclusive as formas de
resistência também existiram, apesar de, à primeira vista, parecer uma forma idílica de
escravidão, o que de fato não existiu.
Nesse sentido, Paiva (1995) entende resistência como “pragmática”, na medida
em que as adaptações ao sistema, as acomodações, as afeições aos senhores, fossem elas
dissimuladas ou reais, representavam uma possibilidade de alforria, fosse gratuita (pelos
“bons serviços” prestados) ou condicional. É nessa medida que se verificavam as
estratégias cotidianas de resistência, não como submissão, mas ao contrário, como
possibilidade de se mover pela estrutura social, alcançando a manumissão, podendo chegar
a ser, inclusive, proprietários de cativos. Isso não exclui, de forma alguma, outras formas
de resistência, como as agressões e revoltas, apenas contribuíram por ampliar o escopo de
possibilidades. Entretanto, como adverte Paiva (1995, p. 94), as alforrias “[...] tornaram-se
eficazes instrumentos de manutenção da ordem, porque, pelo simples fato de existirem
virtualmente, acabavam inibindo rebeliões, revoltas e outros movimentos contestatórios,
nos planos coletivo e individual”.
Era prática comum se alforriar escravos no ato do inventário, seja por “seus bons
serviços prestados”, pela “benevolência” do senhor ou pela compra da alforria aos
herdeiros. Na documentação avaliada por Neves (1994), 6% do total conseguiram a
manumissão nessas circunstâncias.
Outra forma dos escravos garantirem alguma autonomia ou ao menos
influenciarem nas decisões senhoriais foram os “direitos costumeiros”, que entrementes,
contribuíam para gerar ou fortalecer vínculos com os senhores. Para Silva Júnior (2013),
uma vez que não se produziram nas américas código específico que regulasse a escravidão,
era necessário tanto se valer do repertório jurídico tradicional quanto uma reatualização ao
novo contexto, forjar maneiras específicas de se regular a escravidão na colônia. Um
desses rearranjos foi a possibilidade de o cativo comprar a sua alforria, um “direito
costumeiro” que somente foi regulamentado com a Lei do Ventre Livre (1871), que até
então se constituía prerrogativa do senhor, mas silenciada na lei. A não incorporação de
alguns direitos costumeiros à legislação serviam aos interesses senhoriais, na medida em
que funcionavam como formas de controle social, garantindo prerrogativa do senhor na
autorização de casamentos ou na concessão de alforrias, podendo estas ser condicionadas
ou, inclusive, serem revogadas em caso de “ingratidão” por parte do manumitido.
Geravam, portanto, um forte vínculo de dependência para com os senhores, mesmo após a
alforria.
Cabe assinalar que a sociedade colonial foi permeada por representações e valores
de fidalguia, baseadas no ócio e na opulência. Entrecortada pela escravidão, era uma
sociedade muito hierarquizada, o que não impedia os cativos, a "gente de cor" de buscar
espaços de socialização e ascensão social. Nesse sentido, as associações religiosas ou
militares se constituíam enquanto espaços de aquisição de status social, como era o caso
das irmandades negras e "milícias de pretos e pardos". Esta última, apesar de restrita, era
talvez o único meio de nobilitação de pretos no período colonial, porém mais restrita às
regiões açucareiras. Um exemplo foi a dos henriques, fundada por Henrique Dias, em
Pernambuco e difundida em outras capitanias, como na Bahia. "E em uma sociedade tão
estratificada quanto a da América açucareira, o pertencimento a instituições reconhecidas,
quaisquer que fossem, garantia o próprio reconhecimento social enquanto membro honrado
[...]" (SILVA, 2012, p. 22-23).
A abolição do tráfico negreiro foi estimulada tanto por grupos internos como pela
Inglaterra, que desde o início do século XIX pressionava no sentido da abolição gradativa
da escravidão. Mas a passagem para o Império não foi capaz de romper com o legado
colonial, pelo contrário conservou as velhas estruturas, entre as quais a escravidão.
Destarte, o escravismo especialmente no Nordeste entrou em um declínio
paulatino após a abolição do tráfico Atlântico. O tráfico inter-regional para o sudeste foi
alvo de taxação por parte da administração – Bahia, 1862; São Paulo, 1871 etc.
Finalmente, em 1885 a Lei dos Sexagenários estipulava a permanência dos cativos em sua
província de matrícula, salvo se acompanhando o senhor. Todavia, não conseguiu conter os
efeitos socioeconômicos da transferência da mão de obra da policultura sertaneja para a
monocultura cafeeira. É significativo que em 1872, no Município de Caetité, de uma
população total de 54.622, apenas 4.406 eram cativos. Enquanto na freguesia de Santana,
no mesmo município, em 1862 19% da população total era escrava, declinando em uma
década para a cifra de 5,9%. Inclusive, no caso de Caetité, até mesmo os próprios
traficantes acabaram por migrar para São Paulo (NEVES, 2000).
Ainda assim, segundo ele, alguns fatores contribuíram sobremaneira para
alavancar essa tendência, como a busca de mercados alternativos e, no ápice do comércio
inter-regional de escravos (década de 1870), crise na agricultura do Nordeste e secas
sucessivas (1857-1861 e 1877-1879). A escravidão nos sertões já apresentava sinais de
cansaço mesmo antes do intercâmbio com os paulistas e outras províncias, o que
provocava baixa nos preços, sendo assim o Sudeste cafeeiro representou uma demanda e
aumento dos preços de uma “mercadoria” em declínio. Rumo ao Sudeste, mascates
conduziam “[...] comboios de cativos dos dois gêneros e diversas idades marchavam pelos
tórridos caminhos dos sertões baianos e mineiros, acorrentados, com gargalheiras ao
pescoço para evitar fugas e sob ameaça de chicotes para manter a disciplina” (NEVES,
2000, p. 110).
A mestiçagem se fez presente aí, como em qualquer outra região do Brasil, sendo
diversificada a escravaria, procedendo de regiões diversas da África, bem como se
misturando com brancos e índios. Na documentação investigada por Neves (1994), 76%
foram identificados como brasileiros, qualificados como crioulos, cabras, mestiços,
mulatos e pardos, o que denota um alto grau de reprodução interna da escravaria; outros
12% tinham origem na África – angolas, minas, benguelas, hauçás, nagôs, congos e
rebolos – e outros 12% foram identificados apenas como pretos ou não constavam
referência à cor. Do total de escravos, os homens representavam uma maioria significativa
(56,1%), todavia entre os escravos brasileiros havia uma relativa igualdade numérica entre
gêneros (206 homens para 186 mulheres), enquanto que a disparidade era maior entre
cativos africanos, com 53 homens e apenas 11 mulheres. Suas ocupações constavam em
apenas 5% dos inventários, dos quais 16 aparecem como agricultores e 8 como vaqueiros.
Entre outros, Falci (2007) investiga as pesquisas recentes, especialmente do Rio
de Janeiro e Minas Gerais, sobre a formação de famílias no cativeiro. Ela aponta que a
noção de “família escrava” perpassa “parâmetros sociais, culturais, talvez até políticos, que
sobrepujam os conceitos biológicos” (FALCI, 2007, p. 153). Assim, novas configurações
familiares sob a escravidão, como a matrifocalidade e o pouco número de cativos casados
pela igreja, moldaram a dinâmica da família escrava, que por sua vez, é por ela entendida
como uniões de casais na igreja, por pais solteiros com filhos ou pessoas viúvas.

6. Conclusão:
Da dinâmica de mundialização que se coloca especialmente a partir das
descobertas do Novo Mundo e o incremento do escravismo moderno, que foram
fundamentais para conectar as “quatro partes do mundo”, colocando em marcha um
processo de trocas econômicas e culturais, seja de saberes, de práticas, de sabores, de
técnicas e até mesmo de pessoas. É a partir desse mundo conectado que se dá a
interiorização aos sertões da colônia portuguesa na América, empreendimento que se deu
principalmente com a expansão da pecuária, no século XVII, e com a mineração, no XVIII,
estando o poder ligado às instâncias locais, em muito aos próprios conquistadores. Ao
contrário do que postulou durante muito tempo a historiografia, a Coroa tinha sim um
projeto de colonização daquela que era “a joia mais preciosa do Brasil”. A policultura foi
aí um grande fomento, abastecendo o mercado interno e também, especialmente no século
XIX, como culturas de exportação.
A base de toda essa estrutura esteve assentada na escravidão, mesmo que
houvesse outras formas de exploração dos recursos, como a meação, os arrendamentos ou
o sistema de “sorte”, entre outros. Diferentemente das regiões litorâneas, os sertões
desenvolveram uma forma de organização e socialização próprias, no caso da escravidão
podemos perceber uma alta taxa de reprodução endógena, dada a quantidade de cativos
brasileiros e a enorme presença de crianças e jovens. Além disso, a formação de muitos
plantéis de poucos escravos (claro, com exceções), que possibilitavam relações mais
próximas entre senhores e escravos, compartilhando espaços de trabalho e lazer. Essa
proximidade permitia a formação de espaços intermediários, como os vaqueiros, e uma
malha de dependência através dos “compadrios”, aproveitados pelos cativos para amenizar
a degradante condição de cativeiro, negociando alguns direitos instituídos pelo costume, a
principal forma de resistência. O estabelecimento dessa rede complexa de relações tornava
viável a alforria, que muitas vezes se concretizava, mas ajudava, em contrapartida, na
conformação do cativeiro e a firmar vínculos e dependências que ultrapassavam a
escravidão, se estendendo aos libertos.
Por fim, devemos considerar que esses sertões baianos foram espaços
mundializados, pois negros africanos de diversas etnias, como bantos, hauçás, angolas,
rebolos, congos, minas, benguelas, nagôs e outros, ou brasileiros – crioulos, cabras,
mulatos, pardos – que viveram sob o regime escravista dividiram a cena com outros
agentes de diversas nacionalidades, condições e qualidades, idades, sexos, especialidades
compondo uma miscelânea cultural nessa região, com consequências sociais, econômicas e
políticas. Difundiram, além da mão de obra, sabores, saberes, dizeres, práticas e técnicas
marcadas pelas permeabilidades e impermeabilidades que formaram o que chamamos aqui
de sertões da Bahia.
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