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Meillassoux e o lugar da mulher numa sociedade doméstica

Acadêmico, diplomata, poeta, historiador, cronista, e um grande africanista brasileiro, Alberto


da Costa e Silva é autor de uma serie de obras fundamentais e um dos mais importantes
intelectuais brasileiros e especialista na cultura e historia da África.
Premiado com o Prêmio Juca Pato, Intelectual do Ano de 2003, da União Brasileira de
Escritores e Folha de S. Paulo, eleito Homem de Ideias em 2007 pelo Jornal do Brasil,
Doutor Honoris pela Universidade Federal da Bahia, Doutor Honoris Causa em Letras pela
Universidade Obafemi Awolowo (ex-Uni-versidade de Ifé), da Nigéria, em 1986, e em
História pela Universidade Federal Fluminense, em 2009, e pela Universidade Federal da
Bahia, em 2012, e ainda primeiro autor de historia a receber o prestigioso prêmio Camões em
2014 pelo conjunto de sua obra.
Considerando a relevância e contribuição deste autor no que se refere aos estudos africanos no
Brasil, algumas de suas obras foram selecionadas como referências iniciais de pesquisa com o
objetivo de explorar as influências, memorias ou heranças das praticas agrícolas africanas na
agricultura brasileira. O presente trabalho objetiva atentar-se para possíveis questões de
relação de gênero relacionadas à temática supracitada.
Em entrevista concedida ao Programa Ciência e Letras, do Canal Saúde e Editora Fiocruz, em
2013, Alberto da Costa e Silva aborda sua trilogia, não havido sendo o terceiro volume ainda
concluído:
A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses.
A Manilha e o Libambo: a Africa e a escravidão, de 1500 a 1700
O Fuzil e a Azagaia (nome provisório)

Questionado a respeito do significado do nome do primeiro volume, “A Enxada e a Lança”, o


Sr. Alberto nos traz a seguinte explicação:

“A Enxada e a Lança tem um titulo muito curioso. Porque a enxada é o instrumento das
mulheres, e a lança é um instrumento dos homens. Então é a historia das mulheres e a
historia dos homens. Mas é também a historia da paz e a historia da guerra. Porque a enxada
é um instrumento da paz, é um instrumento da produção de alimento, e a lança é um
instrumento da guerra. Então a Enxada e a lança quer dizer o homem e a mulher, guerra e
paz, e quer dizer também vida e morte. Porque a enxada é um instrumento da vida e a lança
um instrumento da morte.”

No que diz respeito a abordagem da enxada como um instrumento feminino, ele ainda
acrescenta:

“O homem, masculino, ser masculino, sempre fugiu do trabalho, e passou sempre o trabalho
para as mulheres. Então, nas civilizações ou culturas de enxada, são as mulheres que fazem
esse trabalho. Na cultura de civilizações de cultura de arado, é o homem que maneja o
arado porque quem maneja o trabalho é o boi. Então o homem descobriu sempre maneiras de
por a mulher para trabalhar para ele. E ele inventou profissões politicas, todo tipo de
profissão que não exige trabalho monótono, repetitivo e complicado! Você quer ver uma
coisa: o homem rema, virou esporte olímpico, o homem veleja barcos, virou esporte olímpico,
o homem corre, carregando peso, virou esporte olímpico, o homem joga lança, virou esporte
olímpico, o homem usa o arco e a flecha, virou esporte olímpico. Agora, você não tem
competição olímpica de lavar roupa, você não tem competição olímpica de cozinhar, você
não tem competição olímpica de limpar as crianças, você não tem competição olímpica de
varrer a casa. Então você esta vendo ai que sempre houve um desiquilíbrio muito grande
entre o homem e a mulher. O homem sempre explorando como pode a mulher. A tal ponto
que se pode pretender que a escravidão de inicio era puramente feminina, ou era
substancialmente feminina... o que acontecia, numa batalha, numa guerra? Os homens eram
geralmente trucidados, e as crianças e as mulheres eram incorporadas ao grupo vencedor.
Porque o grupo vencedor precisava sempre de aumentar de numero de seus componentes.
Porque do numero de componentes dependia sua força, não é verdade?”

Considerando os aspectos e exemplos de dominação citados pelo autor, faz-se as seguintes


questões: afinal, quais atividades desenvolviam as mulheres nesta comunidade agrícola?
como compreender o papel da mulher na cultura agrícola? Como entender a importância das
mulheres na estrutura deste modo de produção?
Relendo Meillassoux em “Mulheres, celeiros e capitais”, e interpretando esta obra como uma
tentativa de compreensão da transformação da sociedade humana pré para a capitalista,
tentarei aqui um paralelo entre a cultura agrícola africana e a comunidade doméstica citada
por este autor e outros, para tentar compreender a atuação e papel da mulher na pratica
agrícola.
Dirceu Lindoso em seu livro “Lições de etnologia geral: introdução ao estudo de seus
princípios”, diz que Eduard Hahn divide a humanidade em três fases: sendo a primeira de
coleta, caça e pesca; a segunda é a da cultura da enxada, usada até o fim do séc XIX para o
cultivo do solo na África negra, Indochina, Insulindia, Papuásia e nas Américas Central e do
Sul. E a terceira seria o desenvolvimento da cultura da enxada, por meio de técnicas e
tecnologias na produção, dando lugar à “plantation”, que além de favorecer certos processos
econômicos, emprega ainda a escravidão. Este autor afirma ainda que a agricultura
propriamente dita se caracteriza pelo emprego da charrua, juntas de bois para a tração, e seu
principal objeto é a cultura de cereais, havendo na cultura do milho-painço a transição entre a
cultura de enxada e a cultura de cereais. Desta terceira fase surge também o pastoreio, onde se
realiza a domesticação de animais. Tal apontamento corrobora com o que apresentam Frost e
Hoebel (1981), que acrescem uma categoria, e resumem as técnicas de subsistência humana
numa escala descendente em ordem de prioridade de sua evolução e complexidade cada vez
maior de integração cultural. São elas: a agricultura intensiva (cultura do arado); agricultura
incipiente (horticultura/cultura da enxada) e pastoreio; forragem intensiva; caça e coleta.
Depois do ano de 1500, quando tem lugar as grandes navegações, talvez somente 15% da
superfície da terra estava ainda ocupada por caçadores e coletores (Murdock, 1968). Não
restavam mais povos caçadores, coletores ou forrageadores na Europa ou nas áreas do
Mediterrâneo. A África tinha-se tornado completamente pastoreadora e agrícola, com exceção
de alguns grupos dispersos (Frost e Hoebel, 1981). Segundo Silva (2011), neste continente a
agricultura e a criação de gado são, em geral, atividades separadas. Fundamentalmente um
povo é pastor ou agricultor. Não quer isto dizer, todavia, que uma pratica exclua a outra. O
pastoralismo puro é raro.
Assim como Duby (1962) assume a importância do gado com a introdução da charrua na
agricultura europeia, onde até mesmo seu condutor passa a ser valorizado e se torna um
domestico por excelência, a importância do gado na África é apontada por Silva (2011) não
somente como meio de troca, mas também como de reprodução e acumulação de riqueza.
Pois com o gado compram-se as mulheres, e se formam as famílias. Quem possuía grande
numero de bois podia ter muitas esposas, e muitos filhos.
Para Meillassoux (1976), o patrimônio associa-se à autossubsistência através da exploração
direta dos recursos. Esta forma de exploração não é exclusiva da comunidade domestica,
sendo nesta ligada a um modo especifico de circulação do produto. A agricultura praticada
por este modo de produção (doméstica), não requer um numero definido de trabalhadores nem
capacidades especificas para realização das tarefas, contudo ha a preocupação referente à
manutenção do funcionamento da célula produtiva.
A transformação da produção de subsistência agrícola em energia humana assegura a
perpetuação e reconstituição da comunidade doméstica. A reprodução esta subordinada à
economia, à produção de quantidades de subsistências necessárias ao crescimento biológico
dos futuros produtores.
A obra de Meillassoux aborda essa relação entre produção e reprodução, buscando o
entendimento do lugar das mulheres nessa estrutura. Como os grupos domésticos são
pautados na agricultura, importa o equilíbrio na distribuição das crianças, mais que a própria
distribuição dos alimentos.
A perda de autonomia da mulher tem seu lugar nesta obra juntamente com as questões
referentes à perda da possibilidade de livre transito das mesmas, decorrente da necessidade de
controle da sexualidade, importância do parentesco, filiação, etc. Tais questões não serão aqui
abordadas em profundidade, pois no momento o que se busca são os fatos relacionados
somente à produção, mais que a reprodução.
É observado na agricultura a divisão sexual do trabalho, que deixa transparecer a importância
da mulher no sistema agrícola, onde ela tem um papel essencial.
Antes de citar alguns exemplos da participação da mulher na atividade agrícola, vale ressaltar
que todas as economias de subsistência são mistas em maior ou menor grau (Frost e Hoebel,
1981). Os horticultores ainda são caçadores e pescadores, os pastoreadores fazem incursões
ou trocam carne pela farinha, e mesmo numa sociedade industrializada, a agricultura, o
pastoreio, a pesca e a caça são incluídos nas atividades. Quando identificamos uma economia
de subsistência agrícola, queremos apenas dizer que esta é a fonte predominante de alimento
(Frost e Hoebel, 1981).
Sendo assim, é apontado por Frost e Hoebel (1981), a participação de mulheres, e até mesmo
de crianças suficientemente robustas, na caça; na coleta de sementes, frutos e raízes; e no
cultivo do painço. Nuns lugares, homens e mulheres fiavam e teciam, noutros, só mulheres.
Em alguns grupos a olaria é exclusivamente feminina, em outros divide-se com o homem
(Silva, 2011). Ou seja, em qualquer atividade de subsistência humana pode-se notar a
presença da mulher em atividades cruciais, mesmo que passem muitas vezes, até mesmo na
literatura, desapercebidas ou sem seu devido peso.
Esses fatos, aqui relacionados diretamente com a produção agrícola, não querem dizer que as
demais atuações femininas, como aquelas da esfera reprodutiva, estejam dela dissociadas.
Nestas compreende-se cuidado com a prole, preparação dos alimentos, cuidados com a
moradia, dentre outros. Todos essenciais à manutenção e reprodução da esfera produtiva
propriamente dita, contrariamente à afirmação da teoria marxista onde assume-se uma
dissociação entre as esferas produtivas e reprodutivas, como criticado por algumas correntes
feministas.
Ora, nos grupos domésticos, ou mesmo em outros, as mulheres cumprem um papel crucial na
alimentação e reprodução, sendo a ultima a característica mais valiosa neste grupos,
diferentemente das hordas. É pois justamente a capacidade reprodutiva da mulher, capaz de
perpetuar as relações e modos de produção do grupo, que fazem dela objeto de cobiça,
submetendo-a à necessidade de proteção. Esta proteção só será eficiente sendo exercida por
“alguém não cobiçado”, ou seja, pelos homens. A proteção se traduz em controle e
dependência, que preludia a submissão secular feminina. Nos grupos domésticos ela será
responsável pela preparação do alimento, pela emancipação dos homens mais novos e acaba
também por reforçar a autoridade dos mais velhos (chamados decanos) que exercem sua
dominação de forma mais marcantes sobre as mulheres. Sendo elas tão necessárias à produção
agrícola e à reprodução, por que a mulher é subjugada desta forma?
Os indivíduos dominadores (homens) e suas ações reforçam uma questão comum na
comunidade doméstica: a alienação da mulher para manutenção e beneficiamento dos homens
do grupo.
Meillassoux apresenta o lugar da mulher numa sociedade doméstica, pré-capitalista, onde ela
tem sua importância na produção das subsistências, na manutenção do papel dos decanos e
sobretudo, na reprodução. Sendo este ultimo papel o principal, ou motivo inicial de sua
alienação. Este autor parte de um ponto de analise marxista, entendendo então os fatos através
das condições materiais de existência dos homens. O materialismo histórico dialético servirá
como base para a compreensão do modo de funcionamento e reprodução da sociedade
doméstica. Observa-se como o modo de produção impacta diretamente o modo de vida do
homem em variáveis diversas, sendo portanto a mulher parte deste processo, contudo,
subjugada.
Para este autor, assim como para Bourdieu, o que parece natural nas praticas sociais é
historicamente construído, têm uma razão histórica. As regras socialmente impostas são
escolhas instituídas, uma vontade hegemônica se impõe, neste caso mostrando a mulher como
vulnerável em seu papel social, mesmo com fortes atribuições e contribuições para a
reprodução e produção.
Segundo a analise de Meillassoux, pode-se então observar que através da fixação do grupo
para desenvolvimento da atividade agrícola, ha uma divisão sexual do trabalho e consciência
da necessidade de mulheres para manutenção do equilíbrio entre o tamanho do grupo (através
da progenitura) e as subsistências produzidas. Apesar dessa necessidade das mulheres tanto
para manutenção do grupo quanto para as atividades agrícolas, pois elas participavam de
forma crucial na preparação do alimento cultivado, dentre outras atividades cruciais
anteriormente citadas, elas não são consideradas como produtoras. Através de sua alienação
estabelecida desde sua necessidade de proteção, e com sua consequente perda de autonomia, o
produto do trabalho da mulher (tanto os filhos quanto as subsistências) só entra no circuito
doméstico por intermédio de um homem. Elas não podem ser consideradas produtoras, pois
são produtos, mercadorias matrimoniais. Aqui o autor traz esta abordagem pensando na
transição de uma comunidade primitiva, nômade, para outra que se fixa num local, com um
modo de vida distinto, sedentário, baseado essencialmente na agricultura. O que não nos
impede de extrapolar a questão para outros contextos onde a subjugação da mulher persiste.
Como apontado por Silva (entrevista), ha uma exploração do trabalho mulher, haja visto que
ela exerce funções não reconhecidas, e muitas vezes com uma maior valorização daquelas
exercidas pelos homens. Para Meillasoux, na logica da subjugação dos homens sobre as
mulheres, elas e as crianças são exploradas, havendo também em seu contexto a questão da
mulher como objeto de mercadoria, a primeira troca.
Retomando as questões inicialmente abordadas sobre o papel da mulher na cultura agrícola e
sua importância neste modo de produção, pode-se concluir que sua importância é crucial,
como apontado por diversos exemplos de sua participação na produção agrícola e sua obvia
participação na reprodução. Quanto ao seu papel, igualmente importante, pode-se observar a
prevalência da subjugação das mulheres na cultura agrícola, onde as mesmas nunca
dominaram em grupos humanos sedentários, modo de vida este consequente da agricultura. A
sedentarização trouxe o aprisionamento da mulher. Para finalizar, aponto uma citação de
Gilberto Freyre (1966), que ilustra a importância social e econômica da mulher, neste caso da
indígena, na formação social do Brasil, igualmente subjugada:

“Da indígena se salvaria a parte por assim dizer feminina de sua cultura. Esta, alias, quase
que era só feminina na sua organização técnica, mais complexa, o homem limitando-se a
caçar, a pescar, a remar e fazer guerra...A toda contribuição que se exigiu dela (indígena) na
formação social do Brasil – a do corpo foi a primeira a oferecer ao branco, a do trabalho
domestico e mesmo agrícola, a da estabilidade, a cunha correspondeu vantajosamente.”

BIBLIOGRAFIA
• Biografia Alberto da Costa e Silva. Disponível em:
http://www.academia.org.br/academicos/alberto-da-costa-e-silva/biografia . Acesso
em: 01/06/2017

• BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

• DUBY, Georges. Economia Rural e vida no campo no Ocidente Medieval. Lisboa:


Ediçoes 70. v. 1, 1962, 248p.

• FROST, Everett L. e HOEBEL, Edward Adamson. Antropologia cultural e social.


Ed Cultrix, 1981, 470 p.

• LINDOSO, Dirceu. Lições de etnologia geral: introdução ao estudo de seus


princípios. Maceió: Ed UFAL, 2008.

• MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, Celeiros e capitais. Porto: Editora


Afrontamento, 1976.

• Murdock, Jorge Peter. 1968. The current status of the world’s hunting and gathering
peoples. In: R. Lee and I. DeVore (eds), Man the Hunter, 13-20. Chicago: Aldine.

• NICHOLSON, Linda. Feminismo e Marx: Integrando o parentesco com o econômico.


In: BENHABIB, Seyla, CORNELL, Drucilla. Feminismo como critica da
modernidade. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos.

• SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.


5ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2011.

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