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0001
Abstract: This paper discusses issues related to the concept of “human dignity”,
suggesting the interpretation that both the traditional paradigm as the contemporary
paradigm is limited to the political and social point of view. In this sense, after
mapping the contents of the normative idea of dignity, from Oliver Sensen, we
present a conception that inherits the young Marx the idea of a “authentically human
functioning” – in the terms of Martha Nussbaum. The work uses the dialectical
procedure as a method, exploring the central theme from an ontological analysis
based on the historical-materialism. In this way the central argument of the paper
is that the realization of human dignity is deeply linked to the realization of human
capabilities.
Keywords: Dignity. Justice. Marx.
Recebido em: 29/07/2014. Aceito em 02/09/2014
*
Doutorando em Filosofia (UFRGS) e bolsista do CNPq. E-mail: ricardorojasfabres@gmail.com
animais, possui razão (descrição) e, além disso, Nossa raça tem a sua dignidade de natureza,
deve agir de acordo com esta razão (obrigação). enquanto a figura de bondade divina continua
É possível visualizar, portanto, que a obrigação a ser refletida em nós como em uma espécie
moral, neste caso, deriva diretamente de uma de espelho.
premissa teleológica. A propósito, para Sandel Isto é, o homem é dotado de uma raciona-
(2012, p. 140), esta é também a visão de Kant, lidade que faz parte da criação divina. Ao mesmo
segundo a qual a razão e a liberdade constituem tempo, deve comportar-se de acordo com esta
a superioridade humana em relação à existência racionalidade, dado que sua natureza deriva da
meramente animal. semelhança com Deus. Em suma, embora esta
A filosofia cristã não deixou de se apropriar reflexão seja mais uma hipótese do que uma
destas premissas, embora adequando de acordo tese, é possível perceber a diferença entre os
com sua finalidade. Tomás de Aquino, por exem- dois padrões argumentativos como uma substi-
plo, admitia a natureza racional do ser humano tuição terminológica entre elementos igualmente
como motivo pelo qual a existência humana sin- metafísicos. No primeiro caso, baseia-se em um
gular poderia ser considerada como uma pessoa valor inerente que não pode ser definido senão
dotada de particularidades. Como explica Tomás derivando-o da evidência de que o homem é um
de Aquino (2001, p. 327) “[...] dado que viver de ser digno – pelo fato de ser é um ser humano,
acordo com a natureza humana é de máxima é um ser possuidor de dignidade. No segundo
dignidade, todo indivíduo de natureza racional caso, o homem é um ser superior na natureza
é chamado de pessoa1”. Ou seja, a elevação do e, portanto, sua superioridade diante dos outros
ser humano na natureza, desta forma, estaria animais o torna um ser naturalmente possuidor
diretamente ligada a esta natureza racional que de dignidade. Neste caso, no entanto, sua digni-
constitui a pessoa. Mas, apenas acrescentando o dade só pode ser realizada de fato ao passo em
elemento divino é que Tomás de Aquino concebeu que este ser comporta-se como um possuidor
a efetiva superioridade humana: a racionalida- de dignidade.
de, dotada da graça divina, o transformava em
criação – uma ideia exemplar que Deus tinha Em torno de uma concepção politicamente
do homem. exigente
Segue Tomás de Aquino (2001, p. 297):
A partir de agora, será argumentado que
[...] pode-se dizer que a felicidade é o fim últi-
ambas as concepções de dignidade apresentadas
mo da natureza racional. Mas ser o fim último
da natureza racional é algo que só pertence não são concepções politicamente exigentes. Por
a Deus. Então a única bem-aventurança dos outro lado, será apresentada uma concepção de
bem-aventurados é Deus2. dignidade que, suponho, seja mais abrangen-
te. Em síntese, esta concepção fundamenta-
Argumento semelhante está em Leão -se em um funcionamento plenamente humano
Magno, como observa Oliver Sensen (2011). (NUSSBAUM, 2012), isto é, um conjunto maior
Segundo Leão Magno apud SENSEN (2011, p. de capacidades e necessidades pelas quais os
158) seres humanos se diferenciam de outros animais
[...] se refletirmos sobre o início da nossa cria- (MARX, 2004). A proposta de investigar uma
ção com fé e sabedoria vamos chegar à con- concepção alternativa parte de um pressuposto
clusão de que os seres humanos foram for- semelhante às teorias já mencionadas: a singula-
mados de acordo com a imagem de Deus [...]. ridade do gênero humano. Neste sentido, portan-
to, admite-se que o ser humano possui algumas
características pelas quais se torna possível falar
1
Tradução livre. No original (c.29 a4): “como quiera que subsistir de uma particularidade genérica e, portanto, de
en la naturaleza racional es de la máxima dignidad, todo individuo
de naturaleza racional es llamado de persona”
uma “dignidade humana”.
A primeira constatação, e também mais
2
Tradução livre. No original (c.26 a2-3): “la bienaventuranza es abrangente, é que o ser se efetiva humano pelo
el fin ultimo de la naturaleza racional. Pero ser el ultimo fin de la
naturaleza racional es algo que solo le corresponde a Dios. Luego
trabalho – sendo esta uma determinada e especí-
la unica bienaventuranza de los bienaventurados es Dios”. fica forma de intercâmbio entre ele e a natureza.
Antes disso, no entanto, o ser humano é um ser natureza. Além disso, quando apropria-se de
natural. Natural porque, assim como o sol é uma objetivações anteriores, da história, das tradições
necessidade de primeira ordem para a planta, a e da própria evolução dos meios e métodos de
natureza o é igualmente para o homem - no sen- produção, o produto deste trabalho humano não
tido de que as carências humanas apenas podem é outra coisa senão um produto social, determi-
ser supridas pelos objetos que estão fora de si. nado, em primeira instância, pelas condições
Como afirma Sérgio Lessa (2012, p. 25). “[...] é criadas antes da sua produção.
no trabalho que se efetiva o salto ontológico que Também por isso, ao afirmar que o primeiro
retira a existência humana das determinações pressuposto da humanidade é a existência de
meramente biológicas”. indivíduos vivos, Marx (2007, p. 87) conclui que
Mas trabalho não deve ser entendido no “o primeiro fato a constatar é, pois, a organização
sentido de uma atividade produtiva e sim no sen- corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua
tido de um trabalho livre e consciente. Ou seja, relação dada com o restante da natureza”. Como
a relação do animal com a natureza é, embora explica Marx (2004, p. 84):
mediada por uma atividade produtiva, uma rela-
Fisicamente o homem vive somente destes
ção limitada porque retira da natureza o objeto
produtos da natureza, possam eles aparecer
que supre sua carência biológica mais imediata. na forma de alimento, aquecimento, vestuá-
Está, portanto, preso a esta carência. O homem, rio, habitação etc. Praticamente, a universa-
por outro lado, em sua atividade consciente pro- lidade do homem aparece precisamente na
duz universalmente, visto que produz enquanto universalidade que faz da natureza inteira o
gênero e conforme uma série de particularidades seu corpo inorgânico.
propriamente humanas. Assim, defronta-se livre-
mente com o resultado de sua atividade produ- Para Marx, a natureza é uma espécie de ex-
tiva, de modo que, diferente dos animais, esta tensão do corpo humano, um “corpo inorgânico”.
configura-se como sua obra – como o resultado Não é possível, evidentemente, concebê-la como
prático da transformação objetiva da natureza parte do corpo natural do homem, porém sem ela
pelo trabalho. tampouco seria possível conceber a existência
Contudo, este processo não é acessível humana. Neste ponto, Marx compreende que a
para o ser natural, apenas para o ser humano. existência dos objetos naturais é independente
E o motivo pelo qual se torna possível fazer esta da consciência do homem, muito embora não se
distinção é, precisamente, o fato de que a cons- possa supor nenhuma relação de independência
ciência também é um traço ontológico do ser entre o ser social e o ser natural, como observa
humano. Deste modo, é pela consciência que Lukács (1979, p. 17). Esta constatação, como
primeiramente o homem difere-se dos animais, vimos, está diretamente relacionada ao fato de
mas é no trabalho que esta diferença é efetivada, que a relação humana com a natureza não se
isto é, “na produção dos seus meios de vida” resume à adaptação externa aos objetos naturais.
(MARX, 2007, p.87) o homem diferencia-se en- Pelo contrário, é possível afirmar a universali-
quanto gênero. A consciência inicial do homem, dade como traço característico do ser humano
neste sentido, apenas será desenvolvida por precisamente porque o homem, o ser natural que
meio da produtividade, das novas necessidades tornou-se humano, é capaz de atuar na natureza,
que surgem desta relação com a natureza e, modificá-la e transformá-la em produto social.
principalmente, do aumento populacional (idem). De uma forma muito resumida, portanto,
Esta constatação é fundamental. pode-se apresentar as características do ser
Primeiramente porque torna-se possível afirmar humano como sendo, essencialmente, o trabalho,
que não é apenas o “trabalho” a categoria fun- a consciência, a sociabilidade, a universalidade
dante do ser social, mas é o trabalho enquanto e a historicidade. Ou, em outras palavras, o ser
atividade consciente, livre das determinações humano é um ser natural, que através do trabalho
biológicas. Se o homem é um ser humano, isto consciente idealiza a natureza em objetos de seu
se dá pelo trabalho consciente. Se dá pelo fato consumo, tornando-a uma extensão inorgânica do
do homem ser potencialmente capaz de plane- seu próprio corpo. Além disso, este ser humano
jar, antecipar e idealizar a sua objetivação da parte sempre de condições que são anteriores a
ele, construídas através da história do seu próprio [...] o dever-ser se apresenta como algo sepa-
gênero. O ser humano, deste modo, não é apenas rado– subjetiva e objetivamente – das alterna-
um ser racional, mas um ser social, consciente, tivas concretas dos homens: à luz de tal abso-
universal e histórico. lutização da razão moral, essas alternativas
aparecem como meras encarnações, adequa-
das ou inadequadas, de preceitos absolutos
A dignidade humana como valor moral no que, enquanto tais, são transcendentes ao
jovem Marx Homem.
Com base no apresentado no capítulo an- Desse modo, o traço distintivo da aborda-
terior é possível perceber o ser humano como gem marxiana em relação às anteriores, pode
fundamento da análise da realidade concreta, ser resumida no fato de que, para Marx, por um
da crítica ao caráter contraditório da sociedade lado, o universo de valores não antecede o in-
burguesa e da possibilidade de uma emancipa- divíduo humano tampouco é independente de
ção efetivamente humana. O de partida, nesse sua práxis e, por outro, os valores não podem
sentido, é a investigação das interconexões re- ser considerados preceitos absolutos que se
cíprocas que formam o complexo de complexos impõem ao ser humano de forma independente
que constituem a totalidade social. Essa posição das circunstâncias práticas. A atitude de Marx
epistemológica assumida por Marx o conduziu para com essas formas a-históricas de funda-
à reflexão sobre o ser humano, considerando mentar os valores culmina na sua abordagem
esse o pressuposto vivo de todo o processo de ontológica sobre a passagem do ser natural para
produção e reprodução social. O impacto dessa o ser natural humano, como vimos no primeiro
reflexão, do ponto de vista ético, se traduz na capítulo. Ou, nas palavras de Marx:
conclusão de Vázquez:
Um ser só se considera primeiramente como
[...] o homem é o fundamento da moral, quer independente tão logo se sustente sobre os
dizer, produz moral enquanto ser livre (irre- próprios pés, e só se sustenta primeiramen-
dutível à casualidade natural) e social (não te sobre os próprios pés tão logo deva sua
contraposta sua qualidade social ao indiví- existência a si mesmo. Um homem que vive
duo, posto que o indivíduo é um ser social dos favores de outro se considera como um
(VÁZQUEZ, 1997, p. 402). ser dependente. Mas eu vivo completamente
dos favores de outro quando lhes devo não
Do ponto de vista epistemológico, a distân- apenas a manutenção da minha vida, mas
cia que separa Marx da tradição filosófica anterior quando ele, além disso, ainda criou a minha
é considerável. Afinal, a investigação da gênese vida; quando ele é a fonte da minha vida, e
ontológica do ser humano prioriza a compreen- minha vida tem necessariamente um tal fun-
são do conjunto de propriedades objetivas que damento fora de si quando ela não é minha
caracterizam o valor intrínseco ao ser social, própria criação. A criação é, portanto, uma re-
fundamentando de forma igualmente objetiva a presentação (Vorstellung) muito difícil de ser
moral dos homens. Isso porque, segundo Marx eliminada da consciência do povo. O ser-por-
-si-mesmo (Durchsichselbstsein) da natureza
(2005, p. 151), “[...] a raiz, para o homem, é o pró-
e do homem é inconcebível para ele porque
prio homem”, de modo que podemos interpretar, contradiz todas as probabilidades da vida prá-
como Vázquez (1997), que a raiz da moralidade, tica. (MARX, 2004, p. 113).
o valor, está no próprio homem. Esse ponto de
vista difere, como mostra Lukács3, das teorias Assim, podemos dizer que o valor moral,
segundo as quais em Marx, será encontrado na própria produção
e reprodução da vida social e não em qualquer
ideal transcendente. Mais especificamente, será
encontrado na orientação da práxis, enquanto
3
Não existe uma tradução do capítulo sobre o trabalho da On- conjunto de finalidades vislumbradas pelas ações
tologia do Ser Social. Nesse caso, utilizamos a tradução ainda humanas em circunstâncias concretas. A relação
não publicada e produzida por Ivo Tonet e Mario Duayer. Dis-
ponível em: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/ entre valor e dever-ser, nesse caso, é evidente:
Lukacs,%20Georg/O%20TRABALHO%20-%20traducao%20revi- estabelecido o valor orientador da ação humana,
sada.pdf.
jovem Marx, o objetivo dessa dissertação está em de acordo com esta dignidade humana e, desta
demonstrar como o autor, via negação, respalda forma, o que seria uma violação da dignidade ou
a tese da fundamentação ontológica da dignidade uma condição de vida indigna.
humana. O argumento será o seguinte: na crítica Como mostra Nussbaum (2004, p. 170)
de Marx ao capitalismo, ele incorporou a noção
A dignidade não é algo que possa definir-se
de que a dignidade humana é um valor moral e
de forma prévia e independente das capaci-
incorporou também o imperativo kantiano de que dades, mas que se encontra de certo modo
o homem existe como um fim em si mesmo. Esse imbricada nelas em sua definição.
argumento se baseia, como já foi afirmado, na
estrutura da crítica marxiana, isto é, na negação Assim, pois, compreende-se uma vida dig-
dos pressupostos que possibilitam a existência na como uma vida de acordo com as capacidades
da alienação como fenômeno social (propriedade humanas, de modo que o objetivo torna-se então
privada, exploração, etc.). De uma forma geral, desvendar os requisitos para a realização destas
pretende-se apresentar o caminho que leva Marx capacidades. Para Marx (2004; 2007), por exem-
afirmar, na última obra de sua fase juvenil, que a plo, o requisito consiste justamente na riqueza
burguesia, enquanto classe dominante, “fez da genérica do ser humano, quer dizer, nas suas
dignidade pessoal um simples valor de troca” capacidades humanas elementares. Mais ainda,
(MARX, 1998, p. 42). como observa Agnes Heller (1999, p. 40), para
Marx “[...] o pressuposto da riqueza humana cons-
Por que uma concepção exigente? titui a base para a livre manifestação de todas as
capacidades e sentimentos humanos, quer dizer,
Se entendermos a racionalidade como fun- para a manifestação da livre e múltipla atividade
damento da dignidade ou a dignidade como um de todo o indivíduo”. Deste modo, como insistem
valor intrínseco, a manutenção desta dignidade Heller (1982) e Nussbaum (2004), é necessário
está diretamente ligada à manutenção da vida conceber a total interconexão entre capacidades
humana. O ser humano vivo é um ser racional e, e necessidades humanas. Isto significa que
portanto, possuidor de dignidade. Seguindo este
raciocínio, ainda que em condições materiais [...] as ‘capacidades básicas’ dos seres hu-
degradantes, o ser humano permanece possuidor manos geram sempre uma exigência mo-
ral: a exigência moral de desenvolvê-las e
de sua dignidade. Neste sentido, por exemplo,
integrá-las em uma vida plena, não atrofiada
um ser humano censurado em suas liberdades (NUSSBAUM, 2004, p. 278).
políticas, religiosas e civis ou então um ser hu-
mano que vive abaixo da linha da pobreza não Se trata, portanto, não apenas de respeitar
viveria em condições indignas – talvez, apenas, a dignidade humana mas oferecer as condições
em situação de desvantagem perante os demais materiais para que possa ser realizada a digni-
seres humanos que não vivem nesta situação. dade humana de acordo com as capacidades
Em outras palavras, as concepções apre- humanas. Ou seja, antes de um fundamento para
sentadas anteriormente não podem fundamentar, a exigência do respeito, a dignidade humana
senão de forma arbitrária, um respeito humano implica em uma exigência própria: a sua reali-
entre os membros de uma sociedade. Não seria zação. Seria impossível neste ponto negar que,
possível, a menos que arbitrariamente, supor com base na reflexão ontológica proposta por
que da racionalidade humana deriva a necessi- Marx, o ser humano é, essencialmente, carente
dade religiosa e, portanto, o direito à liberdade de necessidades e que estas necessidades estão
religiosa, por exemplo. Da mesma forma, a me- de acordo com as capacidades que o ser humano
nos que suponhamos o ser humano como um possui (Heller, 1999; 1982). A dignidade humana,
ser essencialmente político, sua dignidade não desta forma, exige que tanto as capacidades
pressupõe a necessidade de liberdades políti- sejam fomentadas quanto aquelas necessidades
cas. Precisamente por isso, supõe-se que seja sejam supridas. Ou, nas palavras de Sen (1993, p.
necessário a descrição do que seria um funcio- 313-334), refere-se a uma concepção de sucesso
namento autenticamente humano (NUSSBAUM, da vida humana “em termos de cumprimento das
2004) para fundamentar o que seria uma vida atividades humanas necessárias”.
Ainda sobre a questão das necessidades O que será sugerido agora é que o capita-
é importante destacar que uma parte importante lismo enquanto modo de produção hegemônico
do projeto marxiano diz respeito ao fato de o ser não é compatível com a realização plena de uma
humano construir, conforme o desenvolvimento concepção exigente de dignidade. Para tentar
de suas capacidades, novas necessidades. É confirmar esta hipótese, a argumentação será
assim, segundo Márkus (1974), que o homem composta, basicamente, por três pontos. Isto
se apropria das forças da natureza e do conhe- é, o capitalismo 1) afasta o ser humano de sua
cimento produzido pelo gênero, tornado-se cada comunidade genérica; 2) desumaniza o traba-
vez mais universal. Agnes Heller discutiu longa- lho humano; 3) trata o homem como um meio.
mente sobre esta questão (HELLER, 1982; 1985; Como pode ser notado, estas constatações (não
1999), muito embora talvez não seja o momento necessariamente corretas, pois esta é uma con-
de aprofundá-la. O importante, por outro lado, sideração preliminar) derivam do conceito de ser
é destacar que uma concepção politicamente humano apresentado.
exigente de dignidade deve levar em conta, tam-
bém e principalmente, as necessidades humanas O ser humano como mônada isolada
produzidas de acordo com suas capacidades.
Isto significa que, conforme esta concepção Certamente o conceito de indivíduo aqui
de dignidade, quando a comunidade não fomenta apresentado não assemelha-se ao conceito de
as capacidades humanas ela ao mesmo tempo indivíduo das teorias contratualistas, por exem-
não realiza a dignidade dos indivíduos. Ou, nas plo. Por isso, é importante destacar que a ideia
palavras de Nussbaum (2004, p. 342), podemos de natureza humana aqui não pressupõe que os
dizer que está se provocando “uma morte pre- homens são lobos dos próprios homens, como
matura: a morte de uma forma de florescimento queria Hobbes, ou pessoas preocupadas em
que foi julgada como merecedora de respeito e promover seus próprios interesses, como su-
admiração”. Ou seja, a própria dignidade humana pôs Rawls (2000). Tampouco que entre os seres
que, em algum momento, fora merecedora de humanos existe uma sociabilidade insociável,
respeito não está sendo fomentada e, portanto, nos termos de Kant (HOFFE, 2003). Assim, na
não haveria motivo para exigir respeito deste (e reflexão antropológica proposta por Marx e, mais
para este) indivíduo. Portanto, esta concepção tarde por Lukács, a única consideração verificável
de dignidade já mencionada como sendo uma em relação aos atributos humanos é o fato de
concepção politicamente exigente, pressupõe a o homem ser, essencialmente, um ser social4.
solidariedade entre os membros de uma comu- O capitalismo, por sua vez, concebe o ho-
nidade: sua realização depende da comunidade, mem separado de sua comunidade. Como
pois o indivíduo é a comunidade. mostra Marx (2010, p. 50), referindo-se aos
direitos humanos:
O capitalismo como obstáculo para a
[...] muito longe de conceberem o homem
dignidade
como um ente genérico, esses direitos dei-
A noção de ser humano apresentada an- xam transparecer a vida do gênero, a socie-
teriormente baseia-se na constatação de que o dade, antes como uma moldura exterior ao
indivíduo, como limitação de sua autonomia
homem é um ser que efetiva sua consciência
original. O único laço que os une é a necessi-
pelo trabalho, é essencialmente social e cujos dade natural, a carência e o interesse privado,
objetos de consumo estão fora de si - precisa- a conservação de sua propriedade e de sua
mente na natureza, como mostra Marx (2004), pessoa egoísta. (MARX, 2010, p. 50)
Lukács (1974) e Meszáros (2010). Mais adiante
argumentei, baseado em Nussbaum (2004) e
Heller (1999), que uma concepção exigente de
dignidade deveria levar em conta as capacida-
4
Não seria o caso de retomar as questões relativas à antropolo-
gia marxiana, no entanto, em linhas gerais, podemos dizer que
des e necessidades autenticamente humanas e a sociabilidade do homem deriva, especialmente, do fato de que
que, neste sentido, se justificaria a realização da o indivíduo não é um indivíduo humano se não apropria-se das
capacidades, ideias, experiências, etc, dos indivíduos que o ante-
dignidade como uma exigência moral. cederam e que convivem com ele.