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Doi: 10.5212/Emancipacao.v.15i1.

0001

Considerações em torno de uma concepção


exigente da dignidade humana

Considerations around a demanding conception of


human dignity

Ricardo Rojas Fabres*

Resumo: O trabalho discute questões relativas ao conceito de “dignidade


humana”, sugerindo a interpretação de que tanto o paradigma tradicional quanto o
paradigma contemporâneo são limitados do ponto de vista político-social. Nesse
sentido, após mapear o conteúdo da ideia normativa de dignidade, a partir de
Oliver Sensen, apresenta-se uma concepção que herda do jovem Marx a ideia de
um “funcionamento autenticamente humano” - nos termos de Martha Nussbaum.
O trabalho utiliza o procedimento dialético como método, desdobrando o tema
central a partir de uma análise ontológica baseada no materialismo-histórico.
Desse modo, o argumento central do trabalho é que a realização da dignidade
humana está profundamente vinculada à realização das capacidades humanas.
Palavras-chave: Dignidade. Justiça. Marx.

Abstract: This paper discusses issues related to the concept of “human dignity”,
suggesting the interpretation that both the traditional paradigm as the contemporary
paradigm is limited to the political and social point of view. In this sense, after
mapping the contents of the normative idea of dignity, from Oliver Sensen, we
present a conception that inherits the young Marx the idea of a “authentically human
functioning” – in the terms of Martha Nussbaum. The work uses the dialectical
procedure as a method, exploring the central theme from an ontological analysis
based on the historical-materialism. In this way the central argument of the paper
is that the realization of human dignity is deeply linked to the realization of human
capabilities.
Keywords: Dignity. Justice. Marx.
Recebido em: 29/07/2014. Aceito em 02/09/2014

*
Doutorando em Filosofia (UFRGS) e bolsista do CNPq. E-mail: ricardorojasfabres@gmail.com

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Introdução humanidade. Da mesma forma, será comparti-


lhada a ideia de Martha Nussbaum (2007) que
A questão da Dignidade Humana ocupa encontra nos textos juvenis de Marx a ideia de
não apenas um lugar central no debate sobre um funcionamento plenamente humano. O que
justiça, mas também desempenha um papel po- será problematizado, neste sentido, é que a no-
lítico. Está, sem dúvida, no centro de um debate ção de Marx acerca da dignidade humana está
teórico sobre a realização de diferentes princípios diretamente relacionada à capacidade humana de
normativos, ao mesmo tempo em que exerce uma realizar uma essência pela qual este ser humano
significativa influência na orientação da prática difere-se dos demais seres naturais.
política. Atualmente, por exemplo, convencionou- Por fim, será sugerido que essa concepção
-se afirmar que os homens e mulheres possuem politicamente exigente da dignidade humana, se
na dignidade intrínseca à sua existência o fun- entendida de forma adequada como uma nega-
damento para a reivindicação de um conjunto de ção dos pressupostos liberais, é uma concepção
direitos que podemos considerar como humanos. consideravelmente mais abrangente do que as
É bem verdade, no entanto, que esta noção de noções tradicional e contemporânea. Assim, sen-
dignidade como valor intrínseco não foi unânime do razoável o argumento apresentado no capítulo
ao longo da história, como será demonstrado a anterior, supõe-se que a realização plena da
seguir. De qualquer forma, é natural que qual- Dignidade Humana é incompatível com a lógica
quer teoria que pretenda refletir sobre as normas econômica das sociedades hegemonizadas pelo
do agir humano, sobre o que é justo e injusto trabalho alienado, especialmente com a socieda-
ou sobre o que é desejável para o ser humano, de fundada pelo modo de produção capitalista.
deve dispor, ao menos minimamente, de uma Em que pese este trabalho reúna considerações
determinada explicação dos motivos pelos quais preliminares sobre o tema e, portanto, não tenha
o ser humano possui uma dignidade e porque ela a intenção de ser conclusivo na discussão propos-
deve ser respeitada. Assim, seguindo o caminho ta, pretende-se demonstrar que uma concepção
de Oliver Sensen (2011), serão apresentadas exigente de dignidade apenas pode ser realizada
duas concepções distintas de Dignidade. em uma sociedade humanamente emancipada,
Primeiramente será apresentada a ideia já conforme expressão de Marx (2010).
mencionada de que o ser humano possui uma Do ponto de vista metodológico, o trabalho
dignidade intrínseca à sua existência – uma ideia assume o procedimento materialista histórico e
que, especialmente após as experiências totalitá- dialético, que se caracteriza como um movimento
rias da primeira metade do século XX, mostra-se de apreensão da realidade a partir da superação
como hegemônica. A seguir, discute-se a con- fenomênica do objeto. Essa superação, por sua
cepção que Sensen denomina de “paradigma vez, passa pela desconstrução de uma lógica
tradicional”, que fundamenta a dignidade a par- formal cuja origem está no princípio grego de
tir de uma determinada posição especial que o não-contradição - onde o contraditório emerge
homem ocupa na natureza de acordo com suas como falsidade. É mérito de Kant perceber as
capacidades superiores em relação aos outros contradições imanentes ao pensamento humano,
animais. Expostos estes dois momentos, será mas foi Hegel quem operou uma transformação
explorada uma abordagem diferente para funda- epistemológica em torno da importância das con-
mentar uma concepção politicamente exigente de tradições. Com isso, Hegel redefiniu, em termos
dignidade. O ponto de partida para essa análise de categorias lógicas, a relação entre sujeito e
está nos escritos do jovem Marx, onde o autor objeto, cuja compreensão mais geral se dá atra-
apresenta uma concepção específica das carac- vés da totalidade. Desse modo, a característica
terísticas que constituem o ser do homem, isto primordial da dialética marxista tem como ponto
é, sua própria essência humana. Isto significa, de partida a noção de conhecimento totalizan-
portanto, compartilhar a constatação de Agnes te - reorganizado, a partir de Hegel, em termos
Heller (1982) e Gyorgy Márkus (1974) sobre a histórico-sociais.
essência humana como uma realização gradativa
das possibilidades imanentes aos seres humanos
e não como tudo que sempre esteve presente na

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Enfoques hegemônicos sobre a Dignidade no preâmbulo da Declaração Universal da ONU


Humana de Direitos Humanos:
Em seu livro Kant on Human Dignity, Oliver Considerando que o reconhecimento da digni-
Sensen apresenta dois paradigmas usuais da dade inerente e dos direitos iguais e inaliená-
dignidade: o “paradigma contemporâneo” e o veis de todos os membros da família humana
“paradigma tradicional”. O primeiro, como mostra é o fundamento da liberdade, da justiça e da
paz no mundo [...]. Agora, pois a Assembléia
o autor, pode ser encontrado, por exemplo, nos
Geral proclama a presente Declaração
documentos da Organização das Nações Unidas Universal dos Direitos Humanos.
(ONU), especialmente na Declaração Universal
dos Direitos do Homem. O segundo, denominado Não há neste, tampouco nos demais
por Sensen de “paradigma tradicional”, apresenta documentos da ONU, uma justificação para o
uma concepção de dignidade historicamente entendimento da dignidade como inerente aos
destacada e que pode ser compreendida a partir seres humanos. De qualquer forma, o que por
das ideias de Cícero, Leão Magno e Pico Della ora podemos interpretar é que, como defende
Mirandola. Há nos dois exemplos, uma diferença Nussbaum (2012, p. 47), todas as pessoas gozam
evidente quanto à fundamentação da dignida- de uma dignidade humana inalienável que deve
de como um valor intrínseco ao ser humano ou ser respeitada pelas leis e pelas instituições. Ou,
como um valor relativo à determinada posição conforme Taylor, esta noção consiste “num senti-
de superioridade. do universalista e igualitário que nos permite falar
Atualmente, a noção acerca da dignidade da ‘dignidade [inerente] dos seres humanos’ ou
pode ser compreendida como um valor inerente de dignidade do cidadão” (2000, p. 242). Esta é, a
a todos os seres humanos e, portanto, como um julgar tanto por sua aplicação jurídica quanto por
conceito com fortes implicações morais. Não por sua influência no debate contemporâneo, a noção
acaso, costuma-se justificar a necessidade de de dignidade mais importante na atualidade.
respeito de uma pessoa para com a outra devido Entretanto, uma forma de compreendê-la
a sua dignidade. Como afirma Sensen (2011), “a melhor talvez seja apresentando uma outra con-
dignidade hoje é amplamente concebida como cepção não menos influente, que Oliver Sensen
uma propriedade de valor inerente com base na (2011) denomina de “paradigma tradicional”. Esta
qual se pode reclamar o respeito dos outros” (p. denominação refere-se a uma concepção es-
54). De fato, esta concepção de dignidade como pecífica, apresentada por Sensen (2011) como
valor inerente aos seres humanos pode ser ilus- dominante durante a maior parte da história da
trada a partir de documentos oficiais e políticos, filosofia. A estrutura argumentativa desta con-
como a Carta das Nações Unidas e, no caso cepção supõe que o ser humano ocupa uma
do Brasil, a própria Constituição Federal, que posição superior no universo – posição esta da
define a “dignidade da pessoa humana” como qual decorre sua dignidade. No entanto, segundo
fundamento do Estado Democrático de Direito. a concepção tradicional, esta dignidade inicial não
De uma forma geral, esta ideia de equi- coincide necessariamente com a realização desta
valência entre existência humana e dignidade dignidade. Neste sentido, a dignidade realizada
humana parece derivar de uma ideia absoluta é uma obrigação moral do sujeito portador de
– uma propriedade metafísica de valor imutável uma dignidade inicial. Um exemplo ilustrativo da
e independente (Sensen, 2011). Sua única exi- concepção tradicional é Cícero.
gência, portanto, seria a humanidade de quem O ponto de partida de Cícero é a supe-
a possui. Assim, em linhas gerais, o argumento rioridade dos seres humanos em relação aos
daqueles que defendem a dignidade como um outros animais. Neste caso, o que fundamenta
valor incomensuravelmente superior pressupõe a dignidade é a racionalidade humana, isto é,
que os seres humanos possuem, naturalmente, a capacidade do gênero humano de agir racio-
características elementares que constituem aque- nalmente. Para Sensen (2011), Cícero parte de
la humanidade já mencionada. Uma importante uma descrição da natureza humana para, então,
ilustração deste paradigma pode ser encontrado pressupor a moralidade compatível com esta
natureza. Ou seja, o homem, diferente dos outros

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animais, possui razão (descrição) e, além disso, Nossa raça tem a sua dignidade de natureza,
deve agir de acordo com esta razão (obrigação). enquanto a figura de bondade divina continua
É possível visualizar, portanto, que a obrigação a ser refletida em nós como em uma espécie
moral, neste caso, deriva diretamente de uma de espelho.
premissa teleológica. A propósito, para Sandel Isto é, o homem é dotado de uma raciona-
(2012, p. 140), esta é também a visão de Kant, lidade que faz parte da criação divina. Ao mesmo
segundo a qual a razão e a liberdade constituem tempo, deve comportar-se de acordo com esta
a superioridade humana em relação à existência racionalidade, dado que sua natureza deriva da
meramente animal. semelhança com Deus. Em suma, embora esta
A filosofia cristã não deixou de se apropriar reflexão seja mais uma hipótese do que uma
destas premissas, embora adequando de acordo tese, é possível perceber a diferença entre os
com sua finalidade. Tomás de Aquino, por exem- dois padrões argumentativos como uma substi-
plo, admitia a natureza racional do ser humano tuição terminológica entre elementos igualmente
como motivo pelo qual a existência humana sin- metafísicos. No primeiro caso, baseia-se em um
gular poderia ser considerada como uma pessoa valor inerente que não pode ser definido senão
dotada de particularidades. Como explica Tomás derivando-o da evidência de que o homem é um
de Aquino (2001, p. 327) “[...] dado que viver de ser digno – pelo fato de ser é um ser humano,
acordo com a natureza humana é de máxima é um ser possuidor de dignidade. No segundo
dignidade, todo indivíduo de natureza racional caso, o homem é um ser superior na natureza
é chamado de pessoa1”. Ou seja, a elevação do e, portanto, sua superioridade diante dos outros
ser humano na natureza, desta forma, estaria animais o torna um ser naturalmente possuidor
diretamente ligada a esta natureza racional que de dignidade. Neste caso, no entanto, sua digni-
constitui a pessoa. Mas, apenas acrescentando o dade só pode ser realizada de fato ao passo em
elemento divino é que Tomás de Aquino concebeu que este ser comporta-se como um possuidor
a efetiva superioridade humana: a racionalida- de dignidade.
de, dotada da graça divina, o transformava em
criação – uma ideia exemplar que Deus tinha Em torno de uma concepção politicamente
do homem. exigente
Segue Tomás de Aquino (2001, p. 297):
A partir de agora, será argumentado que
[...] pode-se dizer que a felicidade é o fim últi-
ambas as concepções de dignidade apresentadas
mo da natureza racional. Mas ser o fim último
da natureza racional é algo que só pertence não são concepções politicamente exigentes. Por
a Deus. Então a única bem-aventurança dos outro lado, será apresentada uma concepção de
bem-aventurados é Deus2. dignidade que, suponho, seja mais abrangen-
te. Em síntese, esta concepção fundamenta-
Argumento semelhante está em Leão -se em um funcionamento plenamente humano
Magno, como observa Oliver Sensen (2011). (NUSSBAUM, 2012), isto é, um conjunto maior
Segundo Leão Magno apud SENSEN (2011, p. de capacidades e necessidades pelas quais os
158) seres humanos se diferenciam de outros animais
[...] se refletirmos sobre o início da nossa cria- (MARX, 2004). A proposta de investigar uma
ção com fé e sabedoria vamos chegar à con- concepção alternativa parte de um pressuposto
clusão de que os seres humanos foram for- semelhante às teorias já mencionadas: a singula-
mados de acordo com a imagem de Deus [...]. ridade do gênero humano. Neste sentido, portan-
to, admite-se que o ser humano possui algumas
características pelas quais se torna possível falar
1
Tradução livre. No original (c.29 a4): “como quiera que subsistir de uma particularidade genérica e, portanto, de
en la naturaleza racional es de la máxima dignidad, todo individuo
de naturaleza racional es llamado de persona”
uma “dignidade humana”.
A primeira constatação, e também mais
2
Tradução livre. No original (c.26 a2-3): “la bienaventuranza es abrangente, é que o ser se efetiva humano pelo
el fin ultimo de la naturaleza racional. Pero ser el ultimo fin de la
naturaleza racional es algo que solo le corresponde a Dios. Luego
trabalho – sendo esta uma determinada e especí-
la unica bienaventuranza de los bienaventurados es Dios”. fica forma de intercâmbio entre ele e a natureza.

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Antes disso, no entanto, o ser humano é um ser natureza. Além disso, quando apropria-se de
natural. Natural porque, assim como o sol é uma objetivações anteriores, da história, das tradições
necessidade de primeira ordem para a planta, a e da própria evolução dos meios e métodos de
natureza o é igualmente para o homem - no sen- produção, o produto deste trabalho humano não
tido de que as carências humanas apenas podem é outra coisa senão um produto social, determi-
ser supridas pelos objetos que estão fora de si. nado, em primeira instância, pelas condições
Como afirma Sérgio Lessa (2012, p. 25). “[...] é criadas antes da sua produção.
no trabalho que se efetiva o salto ontológico que Também por isso, ao afirmar que o primeiro
retira a existência humana das determinações pressuposto da humanidade é a existência de
meramente biológicas”. indivíduos vivos, Marx (2007, p. 87) conclui que
Mas trabalho não deve ser entendido no “o primeiro fato a constatar é, pois, a organização
sentido de uma atividade produtiva e sim no sen- corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua
tido de um trabalho livre e consciente. Ou seja, relação dada com o restante da natureza”. Como
a relação do animal com a natureza é, embora explica Marx (2004, p. 84):
mediada por uma atividade produtiva, uma rela-
Fisicamente o homem vive somente destes
ção limitada porque retira da natureza o objeto
produtos da natureza, possam eles aparecer
que supre sua carência biológica mais imediata. na forma de alimento, aquecimento, vestuá-
Está, portanto, preso a esta carência. O homem, rio, habitação etc. Praticamente, a universa-
por outro lado, em sua atividade consciente pro- lidade do homem aparece precisamente na
duz universalmente, visto que produz enquanto universalidade que faz da natureza inteira o
gênero e conforme uma série de particularidades seu corpo inorgânico.
propriamente humanas. Assim, defronta-se livre-
mente com o resultado de sua atividade produ- Para Marx, a natureza é uma espécie de ex-
tiva, de modo que, diferente dos animais, esta tensão do corpo humano, um “corpo inorgânico”.
configura-se como sua obra – como o resultado Não é possível, evidentemente, concebê-la como
prático da transformação objetiva da natureza parte do corpo natural do homem, porém sem ela
pelo trabalho. tampouco seria possível conceber a existência
Contudo, este processo não é acessível humana. Neste ponto, Marx compreende que a
para o ser natural, apenas para o ser humano. existência dos objetos naturais é independente
E o motivo pelo qual se torna possível fazer esta da consciência do homem, muito embora não se
distinção é, precisamente, o fato de que a cons- possa supor nenhuma relação de independência
ciência também é um traço ontológico do ser entre o ser social e o ser natural, como observa
humano. Deste modo, é pela consciência que Lukács (1979, p. 17). Esta constatação, como
primeiramente o homem difere-se dos animais, vimos, está diretamente relacionada ao fato de
mas é no trabalho que esta diferença é efetivada, que a relação humana com a natureza não se
isto é, “na produção dos seus meios de vida” resume à adaptação externa aos objetos naturais.
(MARX, 2007, p.87) o homem diferencia-se en- Pelo contrário, é possível afirmar a universali-
quanto gênero. A consciência inicial do homem, dade como traço característico do ser humano
neste sentido, apenas será desenvolvida por precisamente porque o homem, o ser natural que
meio da produtividade, das novas necessidades tornou-se humano, é capaz de atuar na natureza,
que surgem desta relação com a natureza e, modificá-la e transformá-la em produto social.
principalmente, do aumento populacional (idem). De uma forma muito resumida, portanto,
Esta constatação é fundamental. pode-se apresentar as características do ser
Primeiramente porque torna-se possível afirmar humano como sendo, essencialmente, o trabalho,
que não é apenas o “trabalho” a categoria fun- a consciência, a sociabilidade, a universalidade
dante do ser social, mas é o trabalho enquanto e a historicidade. Ou, em outras palavras, o ser
atividade consciente, livre das determinações humano é um ser natural, que através do trabalho
biológicas. Se o homem é um ser humano, isto consciente idealiza a natureza em objetos de seu
se dá pelo trabalho consciente. Se dá pelo fato consumo, tornando-a uma extensão inorgânica do
do homem ser potencialmente capaz de plane- seu próprio corpo. Além disso, este ser humano
jar, antecipar e idealizar a sua objetivação da parte sempre de condições que são anteriores a

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ele, construídas através da história do seu próprio [...] o dever-ser se apresenta como algo sepa-
gênero. O ser humano, deste modo, não é apenas rado– subjetiva e objetivamente – das alterna-
um ser racional, mas um ser social, consciente, tivas concretas dos homens: à luz de tal abso-
universal e histórico. lutização da razão moral, essas alternativas
aparecem como meras encarnações, adequa-
das ou inadequadas, de preceitos absolutos
A dignidade humana como valor moral no que, enquanto tais, são transcendentes ao
jovem Marx Homem.
Com base no apresentado no capítulo an- Desse modo, o traço distintivo da aborda-
terior é possível perceber o ser humano como gem marxiana em relação às anteriores, pode
fundamento da análise da realidade concreta, ser resumida no fato de que, para Marx, por um
da crítica ao caráter contraditório da sociedade lado, o universo de valores não antecede o in-
burguesa e da possibilidade de uma emancipa- divíduo humano tampouco é independente de
ção efetivamente humana. O de partida, nesse sua práxis e, por outro, os valores não podem
sentido, é a investigação das interconexões re- ser considerados preceitos absolutos que se
cíprocas que formam o complexo de complexos impõem ao ser humano de forma independente
que constituem a totalidade social. Essa posição das circunstâncias práticas. A atitude de Marx
epistemológica assumida por Marx o conduziu para com essas formas a-históricas de funda-
à reflexão sobre o ser humano, considerando mentar os valores culmina na sua abordagem
esse o pressuposto vivo de todo o processo de ontológica sobre a passagem do ser natural para
produção e reprodução social. O impacto dessa o ser natural humano, como vimos no primeiro
reflexão, do ponto de vista ético, se traduz na capítulo. Ou, nas palavras de Marx:
conclusão de Vázquez:
Um ser só se considera primeiramente como
[...] o homem é o fundamento da moral, quer independente tão logo se sustente sobre os
dizer, produz moral enquanto ser livre (irre- próprios pés, e só se sustenta primeiramen-
dutível à casualidade natural) e social (não te sobre os próprios pés tão logo deva sua
contraposta sua qualidade social ao indiví- existência a si mesmo. Um homem que vive
duo, posto que o indivíduo é um ser social dos favores de outro se considera como um
(VÁZQUEZ, 1997, p. 402). ser dependente. Mas eu vivo completamente
dos favores de outro quando lhes devo não
Do ponto de vista epistemológico, a distân- apenas a manutenção da minha vida, mas
cia que separa Marx da tradição filosófica anterior quando ele, além disso, ainda criou a minha
é considerável. Afinal, a investigação da gênese vida; quando ele é a fonte da minha vida, e
ontológica do ser humano prioriza a compreen- minha vida tem necessariamente um tal fun-
são do conjunto de propriedades objetivas que damento fora de si quando ela não é minha
caracterizam o valor intrínseco ao ser social, própria criação. A criação é, portanto, uma re-
fundamentando de forma igualmente objetiva a presentação (Vorstellung) muito difícil de ser
moral dos homens. Isso porque, segundo Marx eliminada da consciência do povo. O ser-por-
-si-mesmo (Durchsichselbstsein) da natureza
(2005, p. 151), “[...] a raiz, para o homem, é o pró-
e do homem é inconcebível para ele porque
prio homem”, de modo que podemos interpretar, contradiz todas as probabilidades da vida prá-
como Vázquez (1997), que a raiz da moralidade, tica. (MARX, 2004, p. 113).
o valor, está no próprio homem. Esse ponto de
vista difere, como mostra Lukács3, das teorias Assim, podemos dizer que o valor moral,
segundo as quais em Marx, será encontrado na própria produção
e reprodução da vida social e não em qualquer
ideal transcendente. Mais especificamente, será
encontrado na orientação da práxis, enquanto
3
Não existe uma tradução do capítulo sobre o trabalho da On- conjunto de finalidades vislumbradas pelas ações
tologia do Ser Social. Nesse caso, utilizamos a tradução ainda humanas em circunstâncias concretas. A relação
não publicada e produzida por Ivo Tonet e Mario Duayer. Dis-
ponível em: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/ entre valor e dever-ser, nesse caso, é evidente:
Lukacs,%20Georg/O%20TRABALHO%20-%20traducao%20revi- estabelecido o valor orientador da ação humana,
sada.pdf.

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esse desdobra-se subjetiva e objetivamente na para o desenvolvimento desse ser específico”


forma de um dever-ser necessário para sua con- (HELLER, 1985, p. 23).
cretização. Sob essa estrutura de argumentação, Assim, ainda que esse valor humano seja
como já vimos, é natural que teorias normati- próprio do ser social em todas as sociedades,
vas se preocupem em fundamentar a natureza independente da configuração econômica, social
do valor ou, em outros casos, as propriedades e cultural dessas sociedades, a validade para-si
objetivas do agente moral. No caso de Marx, a do valor não é possível nas sociedades hegemo-
interpretação aponta para um critério ontológico nizadas pelo trabalho alienado e pela alienação.
fundante, de modo objetivo, da dignidade humana Nesse contexto, as sociedades de classe, como
como valor moral intrínseco. mostra Márkus (1974, p. 64), o valor humano pos-
Essa fundamentação normativa ocorre com sui um caráter “em-si”, abstrato. Portanto, revela
base no metabolismo social entre o homem e a a contradição entre a existência e a essência
natureza. Ele deriva, diretamente, de sua noção humanas. Por isso, a revolução social possui
de “riqueza genérica”. Como afirma Mészáros como tarefa a retomada da validade para-si do
(2002b, p. 168), esse é “[...] o critério que deve valor humano. Nas palavras do próprio Marx,
ser aplicado a avaliação moral de toda relação
[...] uma revolução social se situa do ponto de
humana e não há outros critérios além dele”. Esse
vista da totalidade porque [...] é um protesto
caráter, supostamente independente de juízos do homem contra a vida desumanizada, por-
de valor, serve de base para qualquer pretensão que parte do ponto de vista do indivíduo sin-
teórica em relação a uma ética marxista. De forma gular real, porque a comunidade, contra cuja
direta, percebe-se isso na afirmação de Marx: separação o indivíduo reage, é a verdadeira
comunidade do homem, é a essência humana
Vê-se como o lugar da riqueza e da miséria (MARX, 2010b, p. 75).
nacional-econômicas é ocupado pelo homem
rico e pela necessidade humana rica. O ho- Nessa direção, a abordagem de Marx abre
mem rico é simultaneamente o homem caren- caminho para duas interpretações distintas, mas
te de uma totalidade da manifestação humana não excludentes sobre o tipo de moralidade pre-
da vida (MARX, 2004, p. 112).
sente nos textos juvenis do autor. Por um lado,
Nesse sentido, a primeira consideração a percebe-se a semelhança com a tradição kantia-
fazer à crítica a respeito da forma como a cate- na, para quem a dignidade está relacionada com
goria riqueza é concebida pela economia políti- a ideia de que o homem de uma maneira geral
ca – isto é, a abundância ou ausência de bens existe como um fim em si mesmo. Essa é também
econômicos. Marx presume, dessa forma, a partir a interpretação de Peffer (1990). A semelhança
da negação dessa abordagem tradicionalmente se torna mais clara quando se analisa o modo
burguesa, a superioridade do sentido humano das pelo qual Marx estabeleceu, via negação, uma
categorias miséria e riqueza – ou seja, considera apreciação ética do capitalismo nos Manuscritos
a riqueza como a necessidade humana rica. Ao Econômico-Filosóficos. Por outro lado, no que
mesmo tempo, ele relaciona essa riqueza com diz respeito à realização ou desenvolvimento
a “totalidade da manifestação humana da vida” da “totalidade da manifestação humana”, Marx
(idem), fazendo dessa manifestação o valor moral se aproxima da tradição aristotélica, segundo a
por excelência. Podemos afirmar, portanto, que qual interessava descobrir o tipo de vida mais
para Marx o valor moral do ser humano é consti- adequada para um ser humano. Essa é a lei-
tuído por um conjunto de elementos que formam tura de Brenkert (2010, p. 31), que considera
uma totalidade – a “totalidade da manifestação “a abordagem marxiana da moral semelhante
humana”. Assim, conclui Mészáros (2002b, p. a dos gregos, para quem a natureza da virtude
169), para Marx “[...] nada é digno de aprovação ou excelência humana era a questão central da
moral a menos que contribua para a realização moralidade”.
da atividade vital do homem como necessidade Diante disso, a questão permanece em
interior”. Nessa perspectiva, pode-se considerar aberto. Na próxima seção, ao discutir as impli-
como valor “tudo o que pertence ao ser específico cações do terceiro capítulo da dissertação para
do homem e contribui direta ou indiretamente a relação entre revolução e ética nos textos do

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jovem Marx, o objetivo dessa dissertação está em de acordo com esta dignidade humana e, desta
demonstrar como o autor, via negação, respalda forma, o que seria uma violação da dignidade ou
a tese da fundamentação ontológica da dignidade uma condição de vida indigna.
humana. O argumento será o seguinte: na crítica Como mostra Nussbaum (2004, p. 170)
de Marx ao capitalismo, ele incorporou a noção
A dignidade não é algo que possa definir-se
de que a dignidade humana é um valor moral e
de forma prévia e independente das capaci-
incorporou também o imperativo kantiano de que dades, mas que se encontra de certo modo
o homem existe como um fim em si mesmo. Esse imbricada nelas em sua definição.
argumento se baseia, como já foi afirmado, na
estrutura da crítica marxiana, isto é, na negação Assim, pois, compreende-se uma vida dig-
dos pressupostos que possibilitam a existência na como uma vida de acordo com as capacidades
da alienação como fenômeno social (propriedade humanas, de modo que o objetivo torna-se então
privada, exploração, etc.). De uma forma geral, desvendar os requisitos para a realização destas
pretende-se apresentar o caminho que leva Marx capacidades. Para Marx (2004; 2007), por exem-
afirmar, na última obra de sua fase juvenil, que a plo, o requisito consiste justamente na riqueza
burguesia, enquanto classe dominante, “fez da genérica do ser humano, quer dizer, nas suas
dignidade pessoal um simples valor de troca” capacidades humanas elementares. Mais ainda,
(MARX, 1998, p. 42). como observa Agnes Heller (1999, p. 40), para
Marx “[...] o pressuposto da riqueza humana cons-
Por que uma concepção exigente? titui a base para a livre manifestação de todas as
capacidades e sentimentos humanos, quer dizer,
Se entendermos a racionalidade como fun- para a manifestação da livre e múltipla atividade
damento da dignidade ou a dignidade como um de todo o indivíduo”. Deste modo, como insistem
valor intrínseco, a manutenção desta dignidade Heller (1982) e Nussbaum (2004), é necessário
está diretamente ligada à manutenção da vida conceber a total interconexão entre capacidades
humana. O ser humano vivo é um ser racional e, e necessidades humanas. Isto significa que
portanto, possuidor de dignidade. Seguindo este
raciocínio, ainda que em condições materiais [...] as ‘capacidades básicas’ dos seres hu-
degradantes, o ser humano permanece possuidor manos geram sempre uma exigência mo-
ral: a exigência moral de desenvolvê-las e
de sua dignidade. Neste sentido, por exemplo,
integrá-las em uma vida plena, não atrofiada
um ser humano censurado em suas liberdades (NUSSBAUM, 2004, p. 278).
políticas, religiosas e civis ou então um ser hu-
mano que vive abaixo da linha da pobreza não Se trata, portanto, não apenas de respeitar
viveria em condições indignas – talvez, apenas, a dignidade humana mas oferecer as condições
em situação de desvantagem perante os demais materiais para que possa ser realizada a digni-
seres humanos que não vivem nesta situação. dade humana de acordo com as capacidades
Em outras palavras, as concepções apre- humanas. Ou seja, antes de um fundamento para
sentadas anteriormente não podem fundamentar, a exigência do respeito, a dignidade humana
senão de forma arbitrária, um respeito humano implica em uma exigência própria: a sua reali-
entre os membros de uma sociedade. Não seria zação. Seria impossível neste ponto negar que,
possível, a menos que arbitrariamente, supor com base na reflexão ontológica proposta por
que da racionalidade humana deriva a necessi- Marx, o ser humano é, essencialmente, carente
dade religiosa e, portanto, o direito à liberdade de necessidades e que estas necessidades estão
religiosa, por exemplo. Da mesma forma, a me- de acordo com as capacidades que o ser humano
nos que suponhamos o ser humano como um possui (Heller, 1999; 1982). A dignidade humana,
ser essencialmente político, sua dignidade não desta forma, exige que tanto as capacidades
pressupõe a necessidade de liberdades políti- sejam fomentadas quanto aquelas necessidades
cas. Precisamente por isso, supõe-se que seja sejam supridas. Ou, nas palavras de Sen (1993, p.
necessário a descrição do que seria um funcio- 313-334), refere-se a uma concepção de sucesso
namento autenticamente humano (NUSSBAUM, da vida humana “em termos de cumprimento das
2004) para fundamentar o que seria uma vida atividades humanas necessárias”.

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Considerações em torno de uma concepção exigente da dignidade humana ...

Ainda sobre a questão das necessidades O que será sugerido agora é que o capita-
é importante destacar que uma parte importante lismo enquanto modo de produção hegemônico
do projeto marxiano diz respeito ao fato de o ser não é compatível com a realização plena de uma
humano construir, conforme o desenvolvimento concepção exigente de dignidade. Para tentar
de suas capacidades, novas necessidades. É confirmar esta hipótese, a argumentação será
assim, segundo Márkus (1974), que o homem composta, basicamente, por três pontos. Isto
se apropria das forças da natureza e do conhe- é, o capitalismo 1) afasta o ser humano de sua
cimento produzido pelo gênero, tornado-se cada comunidade genérica; 2) desumaniza o traba-
vez mais universal. Agnes Heller discutiu longa- lho humano; 3) trata o homem como um meio.
mente sobre esta questão (HELLER, 1982; 1985; Como pode ser notado, estas constatações (não
1999), muito embora talvez não seja o momento necessariamente corretas, pois esta é uma con-
de aprofundá-la. O importante, por outro lado, sideração preliminar) derivam do conceito de ser
é destacar que uma concepção politicamente humano apresentado.
exigente de dignidade deve levar em conta, tam-
bém e principalmente, as necessidades humanas O ser humano como mônada isolada
produzidas de acordo com suas capacidades.
Isto significa que, conforme esta concepção Certamente o conceito de indivíduo aqui
de dignidade, quando a comunidade não fomenta apresentado não assemelha-se ao conceito de
as capacidades humanas ela ao mesmo tempo indivíduo das teorias contratualistas, por exem-
não realiza a dignidade dos indivíduos. Ou, nas plo. Por isso, é importante destacar que a ideia
palavras de Nussbaum (2004, p. 342), podemos de natureza humana aqui não pressupõe que os
dizer que está se provocando “uma morte pre- homens são lobos dos próprios homens, como
matura: a morte de uma forma de florescimento queria Hobbes, ou pessoas preocupadas em
que foi julgada como merecedora de respeito e promover seus próprios interesses, como su-
admiração”. Ou seja, a própria dignidade humana pôs Rawls (2000). Tampouco que entre os seres
que, em algum momento, fora merecedora de humanos existe uma sociabilidade insociável,
respeito não está sendo fomentada e, portanto, nos termos de Kant (HOFFE, 2003). Assim, na
não haveria motivo para exigir respeito deste (e reflexão antropológica proposta por Marx e, mais
para este) indivíduo. Portanto, esta concepção tarde por Lukács, a única consideração verificável
de dignidade já mencionada como sendo uma em relação aos atributos humanos é o fato de
concepção politicamente exigente, pressupõe a o homem ser, essencialmente, um ser social4.
solidariedade entre os membros de uma comu- O capitalismo, por sua vez, concebe o ho-
nidade: sua realização depende da comunidade, mem separado de sua comunidade. Como
pois o indivíduo é a comunidade. mostra Marx (2010, p. 50), referindo-se aos
direitos humanos:
O capitalismo como obstáculo para a
[...] muito longe de conceberem o homem
dignidade
como um ente genérico, esses direitos dei-
A noção de ser humano apresentada an- xam transparecer a vida do gênero, a socie-
teriormente baseia-se na constatação de que o dade, antes como uma moldura exterior ao
indivíduo, como limitação de sua autonomia
homem é um ser que efetiva sua consciência
original. O único laço que os une é a necessi-
pelo trabalho, é essencialmente social e cujos dade natural, a carência e o interesse privado,
objetos de consumo estão fora de si - precisa- a conservação de sua propriedade e de sua
mente na natureza, como mostra Marx (2004), pessoa egoísta. (MARX, 2010, p. 50)
Lukács (1974) e Meszáros (2010). Mais adiante
argumentei, baseado em Nussbaum (2004) e
Heller (1999), que uma concepção exigente de
dignidade deveria levar em conta as capacida-
4
Não seria o caso de retomar as questões relativas à antropolo-
gia marxiana, no entanto, em linhas gerais, podemos dizer que
des e necessidades autenticamente humanas e a sociabilidade do homem deriva, especialmente, do fato de que
que, neste sentido, se justificaria a realização da o indivíduo não é um indivíduo humano se não apropria-se das
capacidades, ideias, experiências, etc, dos indivíduos que o ante-
dignidade como uma exigência moral. cederam e que convivem com ele.

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Ricardo Rojas Fabres

Neste sentido, a liberdade é o direito de de produção possui seu método particular de


não prejudicar o outro, é a realização do homem extrair o excedente econômico dos produtores
enquanto “mônada isolada recolhida dentro de diretos. No capitalismo, a origem desta apropria-
si mesma” (MARX, 2010, p. 49). E disto Marx ção se dá pela escassez de capital em relação à
concluirá que o direito à liberdade torna-se o força de trabalho, o que, naturalmente, desvalo-
obstáculo para a efetivação de sua liberdade, riza o indivíduo que trabalha e faz com que este
visto que o direito do homem à liberdade se ba- submeta-se à exploração. Esta é uma ilustração
seia na separação do homem em relação ao rudimentar, mas explicativa. O resultado disso,
seu semelhante. Em contraposição a isto, em A dirá Marx, é que “a valorização do mundo das
ideologia Alemã, o autor afirma: coisas aumenta em proporção direta a desva-
lorização do mundo dos homens” (2004, p. 80).
[...] apenas na coletividade [de uns e outros] é
Esta desvalorização do mundo dos homens
que cada indivíduo encontra os meios de de-
senvolver suas capacidades em todos os sen- a qual Marx se refere gera um segundo proble-
tidos; somente na coletividade, portanto, tor- ma, não menos importante: a desvalorização do
na-se possível a liberdade pessoal. (MARX, trabalho humano. Já afirmamos que o trabalho
1987, p. 116-117) livre e consciente representa o salto ontológico
entre o ser natural e o ser social, de modo que
Constatação inversa pode ser verificada expressa a superioridade do homem e, portan-
na formulação das teorias tradicionais da justiça, to, sua dignidade. No capitalismo, porém, este
onde supõe-se que a liberdade individual deve trabalho configura-se como uma mercadoria – o
ser maior conforme menores forem as limitações trabalho é considerado abstratamente como uma
impostas pelos outros, ou, na interpretação de coisa (MARX, 2004). Isto é, a estrutura econômi-
Honneth (2009), quanto mais independente o ca do modo de produção capitalista transformou
indivíduo seja de seus parceiros de interação. o homem em uma engrenagem da produção e
O capitalismo, desta forma, apoiado na ideia reprodução da atividade capitalista, a ponto de
“segundo a qual os vínculos sociais em geral concebê-lo como uma das mercadorias produ-
devam ser tidos como limitações da liberdade zidas por ele.
individual” (HONNETH, 2009, p. 349), estabelece
Neste sentido, a constatação de Martha
como direito do ser humano a separação de sua
Nussbaum (2004, p. 276). é que, realmente,
própria comunidade.
seria questionável o fato de que “as empresas
Esta exigência de liberdade enquanto se-
ofereçam condições de trabalho degradantes
paração, observada nas constituições burguesas
para que maximizem seus benefícios”. Amartya
onde a dignidade aparece como um valor intrín-
Sen (2009), por sua vez, fala em trabalho digno
seco ao ser humano, só pode derivar de uma
como uma exigência da justiça. Também poderí-
concepção estreita do próprio ser humano. Pois
amos falar em trabalho decente como antônimo
do contrário o direito à separação seria incom-
de trabalho precário, conforme a Organização
patível com um ser “que encontra uma profunda
Internacional do Trabalho (OIT). O problema, no
realização nas relações políticas, sobretudo nas
relações caracterizadas pela virtude da justiça” entanto, é que ainda assim o trabalho humano
(NUSSBAUM, 20004). Precisamente por isso, não é considerado como fundamento primário da
por apoiar-se na ideia de que autonomia signi- dignidade. Isto é, a estrutura capitalista concebe
fica ausência de obstáculos para a realização o trabalho como uma atividade produtiva com-
de um plano individual de vida, uma concepção patível com sua racionalidade econômica, seja
politicamente exigente da dignidade não seria em condições físicas degradantes ou nem tanto.
realizável no capitalismo – pois é incompatível O trabalho humano, desta forma, é
com a sociabilidade natural do ser que a funda- desumanizado. Não apenas porque a economia
menta, isto é, o ser social. “conhece o trabalhador apenas como animal
de trabalho, como uma besta reduzida às mais
O trabalho desumanizado estritas necessidades corporais”, como afirmou
Marx (2004, p. 32). Mas, principalmente, porque
Uma das teses centrais do materialismo- o trabalho é uma obrigação para o indivíduo que
-histórico é que a classe dominante de cada modo precisa sobreviver. Em contraposição à autonomia

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Considerações em torno de uma concepção exigente da dignidade humana ...

e dignidade do trabalho humano está a garantia tra a racionalidade limitada de um liberalismo


da existência material (GORZ, 1997). O trabalho que, histórica e inevitavelmente, produziu efei-
como capacidade humana, essencialmente livre tos contrários aos seus objetivos (GORZ, 1997).
e criativa, transforma-se no trabalho alienado Neste sentido, uma concepção politicamente
pelo Capital: para o ser humano este trabalho exigente não se justifica, apenas, pelo fato de
configura-se como um meio para a manutenção que o ser humano é um fim em si mesmo, mas
da vida e não para a realização da humanidade. pelo fato de que o ser humano como ser so-
cial, consciente, universal e histórico possui nas
O ser humano como meio suas capacidades essencialmente humanas o
fundamento de sua dignidade.
Na seção anterior afirmou-se que a vida
do ser humano, no capitalismo, é submetida à Considerações Finais
“mercantilização da força de trabalho”, isto é, a
situação em que os trabalhadores que não pos- Propusemos nesse trabalho uma refle-
suem os meios de produção se veem obrigados xão crítica sobre o núcleo normativo da ideia de
a vender sua força de trabalho em troca de sua “dignidade” - com especial destaque para aquilo
subsistência (CALLINICOS, 2006; COHEN, 1986; que denominamos uma “concepção exigente” da
RAVENTÓS, 2012). Também foi sugerido que dignidade humana. Essa concepção se diferen-
isso não apenas fere a dignidade humana, mas cia das formulações tradicionais especialmente
inviabiliza sua exigência – visto que as capa- porque considera o ser humano como um ser cuja
cidades humanas são encaradas como meras particularidade deriva de um conjunto indivisível
mercadorias que possuem determinado valor de capacidades e necessidades. Fundamental
de uso. Neste momento, o objetivo é demonstrar para a referida abordagem é a ideia de que, por
como o capitalismo transforma a humanidade do um lado, a particularidade humana (sua digni-
ser humano em valor de troca, de modo que este dade) reside na potencial riqueza de possibili-
transforma-se em um meio para a realização de dades imanentes ao gênero e que, por outro,
necessidades alienadas. essas possibilidades são merecedoras de serem
Dirá Marx que o homem não pode ser es- fomentadas. Não se trata, portanto, de conferir
cravizado e esta constatação está plenamente (ou dar) dignidade a um indivíduo, mas sim de
de acordo com o que afirma Kant - que atuar respeitar um estatuto que é seu “por natureza”.
livremente é atuar autonomamente. E se Kant Considera-se, desse modo, a fundamentação
diz que o homem deve ser tratado “sempre como ontológica da dignidade humana como critério
um fim e nunca apenas como um meio”, Marx, objetivo de avaliação moral dos arranjos sociais.
sem dúvida, não negaria. Tanto que o próprio É por meio dessa fundamentação, a título de
autor considera necessário elaborar “o imperativo exemplo, que se pode julgar o modo capitalista de
categórico de subverter todas as relações em produção por depreciar a dignidade do indivíduo
que o homem é um ser humilhado, escravizado, humano - transformando-a em um valor de troca
abandonado, desprezível” (MARX, 2008, p. 154). (ou, o que dá no mesmo, transformando o valor
O capitalismo, por outro lado, assume a proposição humano em um preço).
que o homem “tal como todo cavalo tem de receber o Significa, portanto, que sob as
suficiente para poder trabalhar” (MARX, 2004, p. 30) circunstâncias capitalistas, quando o consumo
A questão, portanto, é que as capacidades assume a centralidade da condução da vida
humanas são instrumentalizadas e reduzidas, cotidiana, o resultado é a elevação do “ter” sobre
assim, ao estreito horizonte do formalismo jurí- o “ser”: a desvalorização do sentido humano
dico. Nussbaum (2004), ao argumentar em de- da vida e a consolidação da reificação entre as
fesa do enfoque das capacidades, justifica que relações sociais. Isso porque o modo capitalista
as capacidades humanas “não são instrumen- de produção, conforme as leis de sua base
tais para uma vida com dignidade humana: são material, faz com que o ser social renuncie sua
formas de fazer efetiva uma vida com dignidade determinação essencial e com isso negue a sua
humana” (NUSSBAUM, 2004, p. 169). Esta ar- dignidade humana. O fato de que o homem não
gumentação parece apropriada, pois demons- tenha oportunidades de desenvolver o seu ser

Emancipação, Ponta Grossa, 15(1): 9-21, 2015. Disponível em <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao> 19


Ricardo Rojas Fabres

(suas capacidades, em outras palavras), não é, Revista de Ciências Sociais, v. 9, n. 3, p. 345-368,


digamos, um acidente de percurso. Pelo contrário, 2009.
a não manifestação plenamente humana do ser LESSA, Sergio. Mundo dos homens: trabalho e ser
social é uma exigência da manutenção do sistema. social. São Paulo: Boitempo, 2012.
Não por acaso, a sociedade civil reproduz essa
tendência asfixiante da economia capitalista, de LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os
modo que, nas suas relações pessoais, o homem princípios ontológicos fundamentais de Marx. São
perpetua a negação de sua natureza humana. Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1979.
Dessas constatações desdobram-se al- MÁRKUS, György. Marxismo y antropología.
gumas questões éticas (mas também episte- Grijalbo, 1974.
mológicas), dentre as quais o estabelecimento
da dignidade humana como um referencial uni- MARX, Karl. Para a Questão Judaica. Expressão
Popular, 2009.
versal capaz de suprassumir distintas formas
de diferença (para utilizar um termo caro ao MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã.
pós-modernismo). Essa universalização deve- Boitempo Editorial, 2007.
-se ressaltar, quando fundada objetivamente na
gênese ontológica do ser social impede que seus ________. Contribuição à crítica da economia
política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
princípios reproduzam a exigência moral do ho-
mem fundado pelo capitalismo, isto é, o homem _________. Manuscritos econômico-filosóficos.
individualista e possessivo. Por fim, à guisa de Boitempo Editorial, 2004.
sugestão para novas reflexões, podemos afirmar
_________. Sobre a questão judaica. São Paulo:
que essa concepção exigente de dignidade huma-
Boitempo, 2010.
na reivindica uma postura ativa das instituições
sociais (do Estado em particular) no sentido de MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Boitempo,
configurar politicamente um ambiente propício 2002.
para sua promoção. ______________. A teoria da alienação em Marx.
Boitempo, 2002b.
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