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2a edição | Nead - UPE 2010

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Núcleo de Educação à Distância - Universidade de Pernambuco - Recife

Bezerra, Benedito Gomes

B574l Letras: linguística II / Benedito Gomes Bezerra. - Recife: UPE/NEAD, 2010.



56 p. il.

ISBN

1. Linguística – Estudo e ensino. 2. Linguagem – Estudo e ensino. 3.


Língua. I. Universidade de Pernambuco - UPE. II. Título.

CDU 801
Universidade de Pernambuco - UPE
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NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

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Edição 2010
Impresso no Brasil - Tiragem 150 exemplares
Av. Agamenon Magalhães, s/n - Santo Amaro
Recife - Pernambuco - CEP: 50103-010
Fone: (81) 3183.3691 - Fax: (81) 3183.3664
5

Linguística II
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra
Carga Horária | 60 horas

Ementa
Formalismos x funcionalismos em linguística. Linguística cognitiva. Sociocogni-
tivismo e sociointeracionismo em linguística. Língua e linguagem em perspectiva
sociointeracionista. Teorias de gêneros textuais. Temas em linguística aplicada
ao ensino: concepções de língua e linguagem; gêneros textuais e ensino; variação
linguística e ensino.

Objetivo Geral
Analisar diferentes teorias sobre língua e linguagem na linguística contemporâ-
nea: pontos de aproximação e/ou de afastamento.

Apresentação da Disciplina
Caro estudante!

Você já teve um primeiro contato com a disciplina Linguística. Espero que te-
nha gostado e esteja aproveitando tudo que pode desse campo de estudos tão
importante para a sua formação em Letras. Em Linguística II, você terá a oportu-
nidade de aprofundar e ampliar sua compreensão do estudo científico dos fatos
da língua e da linguagem em geral. Não perca essa oportunidade e retire dela o
máximo de proveito.

Nesta disciplina, teremos contato com as principais ideias e teorias sobre os fatos
e fenômenos da língua e linguagem em geral e da nossa língua em particular.
Com esse estudo, você entenderá por que o ensino de língua portuguesa hoje
ocorre de uma forma bastante diferente do que era no passado, uma vez que
agora podemos ter uma noção muito mais adequada do que seja aprender uma
língua, falar e ouvir, escrever e ler, compreender e ser compreendido.

A Linguística, em sua forma contemporânea, é uma disciplina jovem, mas já


conta com uma significativa contribuição para o esclarecimento das questões re-
levantes sobre a língua e tudo mais que está relacionado com ela. Você não pode
deixar de se beneficiar dessa contribuição.

Portanto, boa sorte e muita disposição para aprender coisas novas nessa etapa de
sua formação!

Abraços!
Benedito
Capítulo 1
Capítulo 1 7

Funcionalismos em
Linguística Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra
Carga Horária | 15 horas
Objetivos Específicos
• Compreender a polêmica formalismos x funcionalismos em linguística;

• Conhecer as diversas tendências funcionalistas na Europa, nos Estados Uni-


dos e no Brasil;

• Entender os principais conceitos propostos pelo funcionalismo.

Introdução
Este capítulo apresenta a você as principais questões relacionadas com as tendên-
cias funcionalistas em linguística, começando por um olhar contrastivo entre os
formalismos, que caracterizaram a maior parte do século XX, e os funcionalis-
mos, que se opuseram a estes a partir dos anos de 1970. Em seguida, você com-
preenderá, mais a fundo, o que são as diversas teorias funcionalistas, divididas
em dois grandes ramos, quais sejam o funcionalismo europeu e o funcionalismo
norte-americano, além de algumas informações sobre esse tipo de linguística no
Brasil. O capítulo se encerra com uma discussão em detalhe dos principais con-
ceitos propostos por uma linguística funcional.

1. A Polêmica Formalismos x Funcionalismos


Conforme Marcuschi (2008), o século XX testemunhou o triunfo dos formalis-
mos de variada espécie. Na linguística, disciplina cuja constituição, nos tempos
modernos, tem como marco fundador a publicação do Curso de linguística geral
de Ferdinand de Saussure em 1916, os formalismos estiveram representados pelo
estruturalismo, iniciado a partir dos estudos do próprio Saussure, e pelo gerati-
vismo, teoria proposta por Noam Chomsky em fins da década de 1950.

Já as diversas teorias e tendências da linguística caracterizadas como funciona-


lismos tomaram forma especialmente no decorrer da segunda metade do século
XX e, aos poucos, ofuscaram as tendências formalistas, assumindo uma posição
central nos estudos da linguagem ao fim da primeira década do século XXI.
Uma vez que os formalismos representados pelo estruturalismo e pelo gerati-
vismo já foram estudados em Linguística I, não entraremos em detalhes sobre
eles. Assim, vamos nos concentrar, ao longo deste capítulo, em algumas tendên-
cias funcionalistas, detendo-nos, de forma especial, no chamado funcionalismo
norte-americano.

Mas em que consiste a oposição formalismo x funcionalismo?


8 Capítulo 1

Tentaremos entender isso com mais clareza. Pri- Língua (Langue) x fala (parole)
meiro, é preciso dizer que o mestre de Genebra, Sincronia x diacronia
Saussure, não podia senão refletir e, em parte, re- Significante x significado
produzir um legado que já recebera dos estudiosos Sintagmático x paradigmático
que o precederam, em especial no século XIX. Nes- Social x individual
se século, os estudos da linguagem assumiram uma Competência x desempenho
forte conotação historicista e comparativista, ou Sentido x referência
seja, os fenômenos linguísticos eram estudados em Conotação x denotação
sua evolução histórica e também numa perspectiva Literal x figurado
comparativa entre as diversas línguas conhecidas. Escrita x fala

De acordo com Marcuschi (2008), Saussure rece- A principal característica de um projeto formalista,
beu como legado da linguística histórico-compara- na linguística do século XX, é a exclusão dos aspec-
tiva a concepção de que a língua pode e deve ser tos relacionados ao uso e funcionamento do sis-
vista como uma instituição social, cuja forma é a de tema linguístico. Em função disso, determinou-se
um sistema autônomo de significação, totalmente que não cabia à linguística preocupar-se com a fala,
organizado como um sistema de signos arbitrários, que, por ser individual, seria consequentemente
que pode, em consequência, ser estudado em si e tão caótica que não poderia ser objeto de estudo
por si mesmo, sem considerações a respeito do uso científico.
linguístico ou do contexto, por exemplo.
Entretanto, a preocupação de linguistas como
Esta era uma maneira de ver a língua inteiramente Saussure e Chomsky, entre outros, com um estudo
voltada para a sua forma e não para a sua função, rigorosamente científico da linguagem e da língua
como se tornou mais comum na linguística con- não gerou, como consequência, o sucesso desse es-
temporânea. Embora Saussure definisse a língua tudo. Na opinião de Marcuschi, “ao que tudo indi-
(langue) como uma instituição social e não indivi- ca, uma das tristes heranças do século XX foi a in-
dual, o termo “social” não tinha o sentido que a suficiência explicativa e o reducionismo decorrente
linguística lhe atribui hoje, isto é, um sentido li- do projeto formalista” (2008, p. 31). Quer dizer,
gado ao uso da língua pelas pessoas na sociedade. a preocupação exclusiva com os aspectos formais
Nas palavras de Marcuschi, “o mestre genebrino empobreceu a linguística, diminuiu sua eficácia e a
concebia a língua como um fenômeno social, mas impediu de apresentar explicações mais completas
analisava-a como um código e um sistema de sig- e adequadas dos fenômenos da linguagem.
nos” (2008, p. 27).
Nesse contexto, floresceram as tentativas de des-
Assim, tanto o estruturalismo como o gerativis- crever a língua não apenas de um ponto de vista
mo, em suas formas clássicas, negaram qualquer formal mas também do ponto de vista de seu fun-
espaço para considerações sobre o uso concreto cionamento. O que importava, diziam os funcio-
da linguagem ou, dizendo de outra maneira, so- nalistas, não era apenas o estudo do sistema como
bre a sua função. Diversos conceitos, formulados abstração mas o estudo da língua em sua relação
de maneira dicotômica (isto é, na forma de pares com os usuários e com as situações concretas em
opostos), caracterizaram a linguística formalista do que ela é usada. Vejamos a seguir a proposta fun-
século XX, na maioria dos casos, definindo o que cionalista em detalhe.
deveria e o que não deveria ser objeto de estudo.
O que ficava de fora invariavelmente tinha a ver
com o uso individual, real e concreto da língua e 2. Os Funcionalismos: Panorama
da linguagem. O que era incluído dizia respeito a
considerações sobre o sistema abstrato, desvincula- Para uma visão de conjunto dos modelos funcio-
do do uso e apegado às formas. nalistas em oposição aos formalistas, veja o quadro
abaixo:
Entre as diversas dicotomias, típicas da linguística
do século XX e hoje decididamente em crise, Mar-
cuschi (2008) aponta as seguintes:
Capítulo 1 9

Formalismos Funcionalismos Consequentemente, é necessário admitir a existên-


cia de fenômenos linguísticos que não podem ser
Estudo da linguagem Estudo da linguagem em
como sistema autônomo relação com suas funções explicados pelo simples apelo à análise gramatical.
sociais Imagine o seguinte diálogo:
A língua como fenômeno A língua como fenômeno
mental social 1. Você é desonesto.
Os universais linguísti- Os universais linguísticos
2. Desonesto é você.
cos como derivados de como derivados dos usos
herança genética da linguagem Do ponto de vista de uma análise formal e tradi-
A aquisição da lingua- A aquisição da lingua- cional, a diferença de A para B é que, em A, temos
gem como capacidade gem como desenvolvi- uma frase na ordem direta (sujeito + verbo de li-
inata mento de necessidades gação + predicativo do sujeito), enquanto, em B,
comunicativas
encontramos a “mesma” frase em ordem inversa
(predicativo do sujeito + verbo de ligação + sujei-
As oposições enfocadas no quadro refletem já uma to). O sentido de ambas as frases seria idêntico, e
polêmica aberta entre as propostas funcionalistas a inversão é apenas uma possibilidade do sistema.
que iam se delineando no final do século XX e Note que não há, nessa explicação, nenhuma refe-
o paradigma gerativista, a quem se pode atribuir, rência ao contexto de uso dos enunciados.
com exclusividade, todas as teses formalistas, com
exceção da primeira, que também era uma marca Já numa explicação do ponto de vista funcionalis-
central no estruturalismo. Quer dizer, a batalha ta, o que causa a inversão em B é um fator externo
principal dos funcionalistas contemporâneos foi ao sistema linguístico. No hipotético contexto de
contra Chomsky e o gerativismo e não, contra o uso, que agora é centralmente levado em conta, o
estruturalismo saussureano, que a essa altura já ti- primeiro enunciado é um insulto de A dirigido a
nha seu prestígio bastante diminuído. B, em que “você” é o tópico de que se fala, e “deso-
nesto” é o comentário sobre o tópico. Na réplica de
Como se pode perceber no quadro, o funciona- B dirigida a A, o tópico passa a ser “desonesto”, e o
lismo se apresenta, em contraposição ao estrutu- comentário, “você”. Portanto, o que causa a inver-
ralismo e ao gerativismo, como um conjunto de são no segundo enunciado é o ato de replicar a um
perspectivas teóricas que se preocupam em estudar insulto, de modo que as necessidades dos falantes
a relação entre a estrutura gramatical das línguas e os acabam interferindo e moldando a organização da
diferentes contextos comunicativos em que são usadas. própria estrutura linguística.
Não se considera suficiente, portanto, estudar
apenas o sistema linguístico como tal. Para os fun- Traçando uma síntese das tendências teóricas da
cionalistas, a linguagem tem como função central linguística no século XX, Marcuschi (2008) oferece
propiciar a interação social, mais do que transmitir um quadro composto de cinco diferentes modelos
informações ou expressar o pensamento individu- que, de forma simplificada, mostra os principais
al, embora essas funções não sejam descartadas. O desenvolvimentos da disciplina desde seu surgi-
essencial é que, num modelo funcionalista, o estu- mento até os dias de hoje.
do da linguagem concentra-se no uso real da língua
e não nas possibilidades abstratas do sistema. Modelos Caracterização

1. Modelos Foco na estrutura e no sistema lin-


Em síntese, poderíamos afirmar, conforme Cunha formalistas guístico; estudos da língua como
(2008), que os funcionalistas defendem duas teses código verbal (estruturalismo, ge-
essenciais: rativismo)

1. A língua desempenha funções que são exter- 2. Modelos Foco na relação entre a língua e
nas ao sistema linguístico como tal; pragmáticos seus usuários; estudos da língua
como forma de ação (pragmática)

2. As funções externas, controladas pelo uso,


3. Modelos Foco na percepção e identificação
influenciam a organização interna do sistema sociolingüísticos da variação social da linguagem;
linguístico. estudos da língua em sua relação
com a sociedade (sociolinguística)
10 Capítulo 1

4. Modelos Foco na linguagem como fenôme- relação com os modelos funcionalistas. Noutras
cognitivistas no cognitivo; estudos da língua palavras, também análise da conversação, pragmá-
numa perspectiva dos processos e tica, psicolinguística e outras subdisciplinas da lin-
modelos cognitivos (cognitivismo,
sociocognitivismo)
guística podem ser consideradas funcionalistas em
sentido amplo, enquanto fonologia, morfologia e
5. Modelos Foco no discurso, no texto e na
discursivos enunciação; estudos da língua sintaxe, por exemplo, na maioria das vezes, estão
numa perspectiva textual e discur- associadas a um estudo linguístico mais formal do
siva (análises do discurso, linguís- que funcional.
tica de texto, teorias enunciativas)
Conforme Pezatti (2004), as principais teses fun-
cionalistas poderiam ser resumidas como se segue:
Observe que os modelos de 2 a 5 podem todos ser
considerados funcionalistas num sentido amplo, 1. Recusa das explicações formalistas para os fa-
uma vez que todos eles se caracterizam por aban- tos da linguagem;
donar uma abordagem meramente formal aos fe-
nômenos da linguagem, embora com ênfases, por 2. A linguagem como instrumento de comunica-
vezes, muito diferentes. Acrescente-se ainda que ção e interação social;
as distinções entre um modelo e outro são pou-
co mais do que distinções didáticas, pois, na vida 3. Objeto de estudos baseado no uso real (não-se-
real, os modelos tendem a se comunicar bastante e paração entre sistema e uso; estudo do sistema
provavelmente pode-se dizer que nenhum linguis- subordinado ao uso);
ta pratica um determinado modelo sem nenhuma
consideração pelos demais. A prática de aproveitar 4. Linguagem como ferramenta cuja forma se
contribuições teóricas e metodológicas de um e de adapta às funções que exerce;
outro modelo ao invés de se isolar numa perspec-
tiva única parece ser, ademais, uma marca que a 5. Processos diacrônicos têm motivação funcio-
cada dia vai caracterizando a linguística brasileira nal;
por oposição a tendências internacionais. 6. A linguagem não é um fim em si mesmo, mas
um requisito pragmático da interação ver-
bal;

7. A pragmática abrange e determina a


semântica e a sintaxe.

Para os fins de nossa disciplina, é possível


classificar os modelos funcionalistas em
dois grandes grupos por procedência geo-
gráfica: o funcionalismo europeu e o fun-
cionalismo norte-americano. Vamos a uma
Fonte: (WEEDWOOD, 2002, p. 11)

breve caracterização de ambos.

3. O funcionalismo europeu

Cunha (2008, p. 159) lembra que, embora


Figura 1: Microlinguística e macrolinguística muitas vezes contrastado com o estrutu-
ralismo clássico, é exatamente das fileiras
deste que o funcionalismo emerge. Nesse
A figura acima, em que as subdisciplinas que cons-
sentido, as primeiras análises funcionalistas, espe-
tam no centro se caracterizam como o “núcleo
cialmente voltadas para os estudos da fonologia,
duro” da linguística por oposição às tendências cir-
provêm do Círculo Linguístico de Praga, destacan-
cundantes, representa outra maneira de caracteri-
do o papel dos fonemas em distinguir e demarcar
zar abordagens essencialmente formalistas em sua
as palavras. Nessa escola, fundada pelo tcheco Vi-
Capítulo 1 11

lém Mathesius em 1926, os linguistas não concor- como um par mínimo e permite a diferenciação
davam com a distinção rígida entre sincronia e dia- entre palavras, como pata x bata e pico x bico.
cronia, conforme defendida por Saussure, assim
como não aceitavam a ideia de que a língua fosse De acordo com Trubetzkoy, os fonemas possuem
um sistema homogêneo. uma função tríplice: distintiva (vista acima), de-
marcadora e expressiva. A função demarcadora
Os linguistas do Círculo de Praga foram respon- é responsável por indicar os limites entre uma e
sáveis pelas seguintes contribuições para o funcio- outra palavra na fala. Em português, o acento grá-
nalismo: fico, ao indicar a tonicidade da sílaba na palavra,
configura-se como um importante traço suprasseg-
1. O uso dos termos “função” e “funcional”; mental do fonema, capaz de demarcar a diferença
entre “fábrica” (substantivo) e “fabrica” (verbo). A
2. O estabelecimento dos fundamentos básicos função expressiva refere-se à possibilidade de um
do funcionalismo; fonema ser usado para manifestar o estado emo-
cional do falante, como no alongamento da vogal
3. A inclusão de parâmetros pragmáticos e dis- em /liiindo/.
cursivos em suas análises.
VOCÊ SABIA?
Entretanto, foi na área dos estudos fonológicos em si-
s de Praga pensassem
que a Escola de Praga obteve maior destaque, em Embora os linguista is, ho je ser á ba stante
enciona
tuações de fala conv res siv a dos
especial com dois de seus mais ilustres representan- a exploração exp
produtivo considerar vir tua l (ch ats e
tes, os russos Nikolaj Trubetzkoy e Roman Jakob- s de interação
fonemas em prática et) , em qu e o alo nga-
Intern
son. Responsável por desenvolver os fundamentos outras ferramentas da qu en te.
fenômeno bem fre
da fonologia em geral, Trubetzkoy nos legou as se- mento de vogais é um
guintes contribuições:
Jakobson, por sua vez, foi o introdutor do conceito
1. A definição de uma teoria estruturalista do fo- de marcação, primeiramente na fonologia e depois
nema; na morfologia. O conceito de marcação comporta
a oposição entre duas categorias (marcada e não
2. A distinção funcional entre os conceitos de fo- marcada) com base em um traço distintivo e fun-
nética e fonologia; cional. Na fonologia, a distinção entre /p/ e /b/,
vista anteriormente, é um bom exemplo. Nesse
3. O conceito de fonema como feixe de traços par, o /b/ é marcado como sonoro, enquanto o
distintivos simultâneos; /p/ é não marcado quanto a esse traço. No par
“meninos” x “menino”, a primeira forma traz a
4. A teoria dos sistemas fonológicos desenvolvida marca “+ plural”, ausente na segunda. “Meninos”,
em parceria com Jakobson. pois, é uma forma marcada quanto à categoria de
número. A forma no singular, “menino”, é não
Segundo a teoria da Escola de Praga, os fonemas, marcada (– plural).
embora tidos como elementos mínimos do sistema
linguístico, caracterizam-se como feixes de traços Os estudos do linguista fundador do Círculo Lin-
distintivos perfeitamente funcionais no interior guístico de Praga, Vilém Mathesius, deram origem
do sistema. Dessa forma, se considerarmos o par ao que posteriormente se chamaria de análise
mínimo /p/ - /b/, temos os seguintes traços, res- funcional da sentença ou perspectiva funcional
pectivamente: da sentença. No enfoque de Mathesius, um par
de orações, como o exposto abaixo, que aparente-
/p/ - oclusivo, bilabial, surdo mente se refere ao mesmo fato, apenas ordenando
/b/ - oclusivo, bilabial, sonoro os componentes das orações de forma variada, no
entanto não é equivalente do ponto de vista prag-
Portanto, os fonemas /p/ e /b/ distinguem-se tão mático:
somente pelo traço de sonoridade. Dizemos que
o /b/ é + sonoro e o /p/ é – sonoro. Essa distin- a) Eu já li esse livro.
ção (+ ou – sonoro) caracteriza ambos os fonemas b) Esse livro eu já li.
12 Capítulo 1

O que motivaria a colocação de “esse livro” no fi- João chegou cedo.


nal da frase seria seu status informacional como
informação nova. Inversamente em b), o segmento Em que “João” é sujeito (sintaxe), agente (semântica)
“esse livro” viria para o início do enunciado por se e tema (pragmática). Portanto, para Dik, a linguís-
tratar de informação dada ou velha. tica deve tratar de regras (1) semânticas, sintáticas,
morfológicas e fonológicas (estrutura) bem como
Jan Firbas, no começo dos anos de 1960, denomi- de regras (2) pragmáticas (interação verbal).
na tema a parte da sentença que contém informa-
ção dada e, portanto, apresenta menor dinamismo Por último, mas não menos importante, cabe aqui
comunicativo. A parte da sentença que contém uma também rápida referência ao linguista rome-
informação nova e consequentemente possui um no Eugenio Coseriu, que teve uma longa e produ-
elevado grau de dinamismo chama-se rema. Trata- tiva atividade na linguística da segunda metade do
se de uma maneira de descrever funcionalmente a século XX. Essa atividade desenvolveu-se em di-
ordenação da sentença, de acordo com o status da versos países onde Coseriu trabalhou ou os quais
informação. Veja o diálogo: visitou, incluindo entre eles a Itália, o Uruguai e
a Alemanha, além de passagens pela Argentina,
A) O que Maria comprou? Brasil e outros países. As publicações de Coseriu
B) Maria comprou [T] uma bolsa preta [R]. abrangem os idiomas romeno, italiano, espanhol,
alemão, inglês e francês.
Em B, “Maria comprou” representa o tema (infor-
mação dada em A), e “uma bolsa preta” é o rema Para esse linguista tão importante e culto, o estudo
(informação nova). A ideia é a de que os segmen- de muitos fenômenos linguísticos, particularmen-
tos com menor dinamismo comunicativo sejam ex- te o estudo dos textos como nível autônomo da lin-
pressos no início da sentença, enquanto as partes guagem, só poderia ocorrer como uma abordagem
de maior dinamismo vêm no final. funcional. Para Coseriu (2007), a “verdadeira” e
“própria” linguística do texto necessariamente de-
A contribuição da Escola de Praga, portanto, foi veria receber uma “fundamentação funcional”, pois
extremamente relevante por enfatizar o caráter a mera compreensão do significado linguístico pre-
multifuncional da linguagem num contexto em sente em um texto não garante a compreensão do
que, como lembra Cunha (2008, p. 161), se enfo- sentido desse texto.
cava “o estudo da linguagem enquanto expressão
do pensamento”. No exemplo dado por Coseriu, alguém pode en-
tender perfeitamente o conto A metamorfose de
Outras contribuições para o funcionalismo na Eu- Franz Kafka do ponto de vista do que ele signifi-
ropa vieram da Escola de Genebra, em que Char- ca, digamos, ao pé da letra: um homem chamado
les Bally desenvolveu estudos sobre a estilística e Gregor Samsa acorda e se vê, numa determinada
seu impacto sobre o sistema, enquanto Henri Frei manhã, transformado em um monstruoso inseto.
analisou desvios da gramática normativa do ponto O eventual leitor pode compreender, ainda, os
de vista funcional. eventos narrados a partir desse fato. Mesmo assim,
poderá não alcançar o sentido do texto num senti-
No âmbito da Escola de Londres, Michael Halli- do muito mais profundo.
day, na década de 1970, desenvolve uma teoria fun-
cional que abrange desde as unidades estruturais
menores até os textos, além de defender uma semi- 4. Funcionalismo Norte-Americano
ótica social em que a linguagem é tratada como sis-
tema semiótico, encarado no contexto dos papéis A diversidade de enfoques autodenominados
sociais de cada indivíduo. funcionalistas fez surgir uma inusitada compara-
ção. Segundo Elisabeth Bates (citada por NEVES,
Na Holanda, Simon Dik defende, no final da dé- 1997), o funcionalismo seria como o protestantis-
cada de 1970, uma sintaxe funcional em três níveis mo: diversos grupos separados que concordam em
(sintático, semântico e pragmático), conforme o um só assunto – a rejeição ao papa (no caso dos
exemplo: funcionalistas, entenda-se o “papa” como Noam
Chomsky, o fundador do gerativismo).
Capítulo 1 13

Nos Estados Unidos, o cenário linguístico foi do- tada por dissidentes do gerativismo como Ronald
minado inicialmente pelo estruturalismo na linha Langacker, George Lakoff e outros, que rejeitaram
de Leonard Bloomfield, na primeira metade do sé- a tese chomskyana da autonomia da sintaxe. Esses
culo XX, até que este veio a perder prestígio, sendo autores defendem, particularmente, a incorpora-
ofuscado pelo gerativismo proposto pelo já citado ção dos processos sociocognitivos nos estudos lin-
Chomsky nos últimos anos da década de 1950. guísticos.

O funcionalismo iria se impor gradativamente, a Em síntese, de acordo com Pezatti (2004), três
partir do trabalho de alguns precursores que cha- grupos se destacam no funcionalismo norte ame-
maram a atenção para aspectos pragmáticos e fun- ricano:
cionais em meio ao estruturalismo e gerativismo
prevalecentes. Nomes, como Dwight Bolinger e 1. o grupo da Califórnia, que inclui Talmy Gi-
Joseph Greenberg, fizeram parte dessa história. vón, Sandra Thompson, Wallace Chafe e Paul
Hopper, entre outros;
Entretanto, é a partir de 1975 que estudos propria-
mente funcionalistas se tornam comuns na lin- 2. o grupo de Buffalo, Nova Iorque, organizado
guística norte-americana. Passa-se a defender, em em torno de Van Valin, sob o rótulo de Gra-
comum com os funcionalistas europeus, a impossi- mática de Papel e Referência (Role and Referen-
bilidade de uma descrição linguística que não leve ce Grammar);
em conta os aspectos comunicativos e a vinculação
entre discurso e gramática. A explicação dos fatos 3. o terceiro e último grupo, situado em Berke-
da língua deveria se prender à análise tanto do con- ley, também na Califórnia, representa uma
texto linguístico como da situação extralinguística. tendência funcional-cognitiva, promovida por
George Lakoff e Ronald Langacker, conforme
Uma tese comum no funcionalismo será a afir- visto acima.
mação de que a gramática é modificada pelo uso.
Isso equivale a defender que a língua está sujeita à Como você pode ver, diversidade é, de fato, uma
mudança e variação. Essa tese hoje não causa mais boa palavra para descrever as diversas formas de
nenhum espanto, mas não era nada comum no funcionalismo.
contexto do apogeu do gerativismo e da influência
continuada do estruturalismo.
5. Funcionalismo no Brasil
Conforme Cunha (2008), o funcionalismo norte-
americano tem como marco a publicação de The Em nosso país, os estudos funcionalistas ganha-
origins of syntax in discourse [A origem da sintaxe no ram impulso a partir da década de 1980 com a
discurso], de autoria de Gillian Sankoff e Penelo- constituição de vários grupos de pesquisa e com o
pe Brown, no ano de 1976. Na obra, as autoras espaço criado por esses pesquisadores em eventos
demonstram que as mudanças sintáticas podem científicos e programas de pós-graduação de várias
efetivamente ser motivadas pelo discurso. Uma se- universidades. Cunha (2008) destaca como repre-
gunda publicação importante foi From discourse to sentante pioneiro do funcionalismo no Brasil o
syntax [Do discurso para a sintaxe] (1979), em que trabalho de Rodolfo Ilari, publicado em 1987, com
Talmy Givón busca oferecer explicações funcionais o título Perspectiva funcional da frase portuguesa. Nes-
para os fatos gramaticais. Uma terceira obra rele- se trabalho, o autor explora os conceitos de tema
vante foi Transitivity in grammar and discourse [Tran- e rema, aplicados à frase em português, seguindo,
sitividade na gramática e discurso] (1980), em que portanto, na linha do funcionalismo europeu da
os autores Sandra Thompson e Paul Hopper argu- Escola de Praga.
mentam sobre a existência de fatores discursivos
que condicionam a gramática no que diz respeito Entre os projetos e grupos de pesquisa constituí-
à transitividade. dos, segundo os princípios funcionalistas, Cunha
(2008) aponta:
Outro enfoque bastante produtivo resultou da
aproximação entre linguística funcional e linguís- 1. o conhecido Projeto Norma Urbana Culta
tica cognitiva, em particular a tendência represen- (NURC), que foi aplicado a cinco capitais
14 Capítulo 1

brasileiras, entre elas o Recife. Muitos estudos 1. Informação dada – também chamada de in-
ainda são feitos hoje com base nos dados reu- formação velha, acontece em duas situações
nidos por esse Projeto; distintas. A informação pode ser considerada
velha ou dada, quando: a) já ocorreu no texto
2. o Projeto de Estudo do Uso da Língua (Peul), ou b) está disponível no contexto de interação.
ligado à Universidade Federal do Rio de Janei- Chamamos a informação que já ocorreu no
ro (UFRJ), de tendência sociolinguística, em texto de referente textualmente dado. Por sua vez,
que se destacou a presença do linguista An- a informação disponível na situação de fala
thony J. Naro. O grupo foi influenciado pelo chama-se de referente situacionalmente dado. Veja
funcionalismo norte-americano e, em especial, os exemplos dados por Cunha (2008, p. 166):
pelos trabalhos de Talmy Givón;
a) aí o mecânico falou que... (ø) não sabia
3. o Grupo de Estudos Discurso & Gramática, qual o homem que tinha apertado aquilo
composto por pesquisadores de várias univer- ((riso))
sidades do Rio de Janeiro e pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), b) e: e:: agora eu queria que você me... me dis-
criado por Sebastião Votre e também baseado sesse... alguma coisa que você sabe fazer... Ou
no funcionalismo norte-americano, desenvol- que você... goste de fazer... e como é que se faz
vendo estudos principalmente na temática da isso...
gramaticalização (ver definição adiante). O li-
vro Manual de linguística, organizado por Mário No primeiro caso, o sujeito de “não sabia” é
Eduardo Martelotta, embora não se dedique omitido (a omissão é representada pelo símbo-
exclusivamente ao funcionalismo, foi produzi- lo ø) por já ser conhecido dos interlocutores.
do por autores ligados ao Grupo. Trata-se do referente “o mecânico”, que é dado
no enunciado anterior. Trata-se de um referen-
6. Funcionalismo te textualmente dado.
Norte-Americano: No segundo caso, somente as pessoas que
Principais Conceitos estão envolvidas na situação de fala expressa
pelo enunciado sabem quem está sendo re-
Considerando que o funcionalismo norte-ameri- presentado pelo termo “você”. Sabemos que
cano apresenta categorias bastante influentes no “você” é aquela pessoa a quem nos dirigimos
pensamento linguístico brasileiro, destacaremos os como interlocutor. Embora não saibamos de
principais conceitos dessa corrente que, como se quem exatamente se trata nesse caso, o refe-
verá, são conhecidos e aplicados por muitos pes- rente é dado ou velho para os interlocutores. É
quisadores que não se identificam a si mesmos um exemplo de referente situacionalmente dado.
primeiramente como funcionalistas, mas como
linguistas de texto ou sociolinguistas, por exemplo. 2. Informação nova – é aquela que está sendo in-
troduzida pela primeira vez no discurso. Veja o
6.1. Informatividade exemplo, em que os referentes “um ônibus” e
“um caminhão” representam informação nova
De acordo com Cunha (2008, p. 166), “o princípio para o interlocutor:
da informatividade focaliza o conhecimento que
os interlocutores compartilham, ou supõem que c) aí quando chegou... ali na:: descida/ porque
compartilham, na interação verbal”. Na linguística é... Barra... Tijuca... né? quando estava quase
funcional, a aplicação do princípio da informativi- chegando a... Tijuca... vinha... um ônibus na::
dade está relacionada com o status informacional direção deles... e tinha um caminhão... parado
das palavras numa sentença, o qual interfere em aqui...
sua posição no enunciado. Do ponto de vista do
status, a informação contida numa palavra (refe- 3. Informação disponível – refere-se a uma informa-
rente) pode ser classificada como dada, nova, dis- ção que já consta na mente do ouvinte por ser
ponível ou inferível. Vejamos detalhadamente cada geralmente um referente único no contexto.
uma dessas situações: É o caso de termos, como “o sol”, “a lua”, “a
Capítulo 1 15

terra”, “Pelé” ou nomes de cidade como “Pe- sa, no processo histórico, de um sentido tempo-
trópolis”: ral para um sentido adversativo, de modo que
sua iconicidade se anula ou fica enfraquecida.
d) ... mas... eu fui a Petrópolis com uma amiga...
que nunca tinha subido a serra. Percebe-se, portanto, que a noção de iconicida-
de se torna problemática em várias situações, até
4. Informação inferível – neste caso, o referente é porque há situações em que uma só forma corres-
identificável por um processo inferencial a par- ponde a várias funções bem como diversas formas
tir de certas informações disponibilizadas para podem corresponder a uma única função. Confira
o interlocutor. Cunha (2008) afirma que infor- o quadro abaixo:
mações inferíveis normalmente são introduzi-
Uma forma Diversas funções
das por artigo definido. No exemplo a seguir,
apesar de que não constitui informação dada, Embora • Concessiva: “Embora tenha estu-
o referente “motorista” pode ser inferido da dado, não passou.”
referência a “ônibus”.
• Partícula de afastamento: “Vou-

me embora pra Pasárgada...”
e) ... quando ela viu o ônibus passar... mas o
ônibus já estava indo... e ela começou a gritar e Diversas formas Uma função
todo o ponto de ônibus assim lotado... né? ela
começou a gritar pro motorista... mas ela estava Embora Concessiva
um pouco longe... Mesmo que
Ainda que
Apesar de
6.2. Iconicidade

Este é um princípio caro aos funcionalistas, uma Em função dessas dificuldades, a iconicidade re-
vez que para eles a estrutura da língua revela a estrutu- cebeu uma versão moderada, que se manifesta em
ra da experiência, ou o funcionamento da mente. Desse três princípios:
modo, o princípio da iconicidade expressa a tese
de que há uma correlação natural e motivada entre 1. Princípio da quantidade – pelo qual “quan-
a forma linguística e sua função, ou entre o código lin- to maior a quantidade de informação, maior
guístico e o significado, entre a expressão e o conteúdo. a quantidade de forma” (CUNHA, 2008, p.
O princípio não é sempre fácil de sustentar, pois, 168). De acordo com esse princípio, a quan-
em muitos casos, a relação forma e função é arbi- tidade de estrutura linguística corresponde à
trária ou perdeu sua motivação original. Vejamos complexidade do pensamento que se expressa.
alguns exemplos em que a relação de motivação Confira o exemplo apresentado por Cunha
(iconicidade) se perdeu: (2008) em que o progressivo aumento no ta-
manho das palavras corresponderia a uma am-
1. Perda da iconicidade por modificação na es- pliação do nível de complexidade dos respecti-
trutura fonética e morfológica: vos conceitos:

Em boa hora > embora Belo > beleza > embelezar > embelezamento

A expressão “em boa hora”, além de sofrer altera- 2. Princípio da integração – o qual estabelece
ção fonética e morfológica na sua mudança para que “os conteúdos que estão mais próximos
“embora”, ainda passa por alterações semânticas, cognitivamente também estarão mais integra-
perdendo a relação com “hora”, isto é, tempo. As- dos no nível da codificação” (CUNHA, 2008,
sim, para se recuperar o aspecto icônico em “embo- p. 168). Dito de outra forma, significaria que a
ra”, será necessário retomar a história da palavra, proximidade mental se reflete numa proximi-
ou seja, será necessário entrar em considerações dade sintática, confirmando a tese funcionalis-
diacrônicas. ta de que a estrutura linguística reflete os usos
sociais bem como os processos cognitivos. Se-
2. Alteração semântica como resultado de pro- gundo o princípio da integração, nas frases a
cessos metafóricos: o termo “entretanto” pas- seguir, haveria um progressivo distanciamento
16 Capítulo 1

entre as ações expressas pelos verbos “ordenar” Cunha (2008, p. 170) salienta que as formas não
e “ficar”, “fazer” e “ficar” e “querer” e “ficar”, marcadas apresentam várias características:
respectivamente, que se reflete na ampliação
da distância sintática entre a primeira e a últi- 1. Maior frequência de ocorrência;
ma frase: 2. Contexto de ocorrência mais amplo;
3. Forma mais simples ou menor;
a) Maria ordenou: fique aqui. 4. Aquisição mais precoce pelas crianças;
b) Maria fez a filha ficar ali.
c) A filha não queria ficar ali. Assim, no nível sintático, a marcação resulta numa
frase mais rara e, por isso mesmo, mais expressiva,
3. Princípio da ordenação sequencial – segundo menos neutra. A forma marcada pode expressar
o qual, em primeiro lugar, tende a haver uma as emoções do falante de um modo muito mais
ordenação linear das orações no discurso, re- claro do que a forma não marcada. Compare os
presentando a sequência temporal em que os exemplos:
eventos ocorrem:
a) Eu uso esta roupa.
Sabe como é feito um bom strogonoff... compra b) Esta roupa eu uso.
o camarão:: limpa o camarão... põe o cama-
rão... boto cebola... pimentão... tomate... cozi- Você entendeu qual é a forma marcada
nho ele... deixo ele cozinhar um pouquinho (ou seja, qual é a forma menos comum,
assim... menos frequente etc.)?

Ligado a esse princípio, existe ainda um sub- Se você pensou na opção b), está completamen-
princípio da relação entre ordem sequencial te certo. Agora observe como a opção b) é muito
e topicalidade. Por esse subprincípio, há uma mais expressiva do que a opção a) em que a ordem
correlação entre o status informacional e a po- direta é respeitada.
sição que o referente assume na frase: infor-
mações novas tendem a ocorrer no final da 6.4. Transitividade e Plano Discursivo
sentença, enquanto as informações velhas vêm
no início: Ao contrário da gramática tradicional, a gramática
funcionalista não opõe binariamente verbos tran-
Tenho vários amigos, mas meu preferido é sitivos a intransitivos. Para Hopper e Thompson
Carlos. Carlos está sempre comigo nas horas de (citados por CUNHA, 2008, p. 171), a transitivi-
diversão. dade é uma “propriedade escalar, que focaliza di-
ferentes ângulos da transferência da ação de um
6.3. Marcação agente para um paciente em diferentes porções da
oração”. Nesse sentido, há uma escala crescente de
O conceito de marcação se refere à oposição es- transitividade nas frases de a) a d), considerando
tabelecida entre dois elementos de uma categoria fatores, como a dinamicidade do verbo, a agentivi-
linguística, nos planos fonológico, morfológico ou dade do sujeito e o efeito sobre o objeto:
sintático, em que um dos elementos será conside-
rado marcado e o outro, não marcado. A forma a) Esse rio tem uma forte correnteza.
marcada se caracteriza por apresentar um traço b) A Mulher Gato não gostava do Batman.
ausente na forma oposta, tida como não marcada. c) Então o Pinguim chegou na festa.
Um exemplo de forma marcada e não marcada, na d) Batman derrubou o Pinguim com um soco.
morfologia, pode ser dado pela categoria de núme-
ro, em que o elemento no plural será marcado, e o Segundo o pensamento funcionalista, a transitivi-
elemento no singular, não marcado: dade tem uma função pragmática, sendo constru-
ída de acordo com os objetivos do falante e sua
Livros [+ plural] percepção sobre o interlocutor. Dessa forma, uma
Livro [– plural] transitividade elevada corresponderia, no texto, à
importância do segmento no conjunto do plano
discursivo. Expressões menos centrais no pensa-
Capítulo 1 17

mento do produtor do texto poderão ter um grau


menor de transitividade.
SAIBA MAIS!
6.5. Gramaticalização
undar o conteúdo
Se você desejar aprof
encontrar muitos
deste capítulo, pode
Conforme Cunha (2008, p. 173), a gramaticaliza- na Internet. Veja
subsídios disponíveis
ção designa “um processo unidirecional, segundo es de leitura:
aqui algumas sugestõ
o qual itens lexicais e construções sintáticas, em
tese da aborda-
determinados contextos, passam a assumir funções • Para uma boa sín
tti (20 04 ) a respeito do
gem de Peza
gramaticais e, uma vez gramaticalizados, continu- guística, veja
funcionalismo em lin
am a desenvolver novas funções gramaticais”. É o p:/ /teoriadalin-
a página Web htt
que acontece nos exemplos abaixo, em que os ele- sp ac es. co m/Aula+30-
guagem.wiki
cê encontrará
mentos destacados sofrem um desgaste semântico 04-2009, em que vo
we rPoint pre-
e assumem funções meramente gramaticais. Veja o a apresentação Po
me str an da Amanda
parada pela
exemplo em que o verbo “querer” passa a ser utili- sobre o texto
D’Alarme Gimenez
você desejar
zado como uma simples conjunção alternativa: da autora. Se, depois,
de Pe zatti, veja a
ler o texto integral
ste capítulo.
Quer chova, quer faça sol... referência ao final de

ectiva integradora
• Para uma persp
entre linguísti ca formal e linguís-
o artigo “For-
tica funcional, leia
lism o: fatias da
malismo e funciona
(O LIV EIR A, 2003),
mesma torta”
/www.uefs.br/
disponível em http:/
rmalismo_e_
sitientibus/pdf/29/fo
tia s_d a_ me sm a_
fun cio na lis mo _fa
RESUMO torta.pdf.

a contribuição
• Para saber sobre
Neste capítulo, vimos um panorama lism o pa ra o ensino de
do funciona
nfira o artigo
das teorias funcionalistas que vêm sen- língua portuguesa, co
ela Rios de Oli-
do desenvolvidas no âmbito da Linguís- escrito por Mariang
Ma rta Ce za rio, intitu-
tica. Para introduzir o capítulo, abor- veira e Maria
funcionalismo
damos a oposição entre formalismos e lado “PCN à luz do
A e CESARIO,
funcionalismos como uma possibilidade linguístico” (OLIVEIR
el no endereço
2007), disponív
de síntese do pensamento lingüístico, r/php/edico-
http://rle.ucpel.tche.b
que vigorou no século XX. Em segui- es/v10n1/03Maria.pd
f.
da, apresentamos o funcionalismo em
geral, para depois nos determos espe-
cificamente nas correntes europeias da
teoria bem como no chamado funcio-
nalismo norte-americano. Depois de al-
gumas informações sobre o impacto do Atividades | Escolha um livro didático de
funcionalismo no pensamento linguís- língua portuguesa do ensino Fundamental ou
tico brasileiro, estudamos os principais Médio, de sua preferência, e responda:
conceitos teóricos apresentados pelas
correntes funcionalistas. 1. Examinando o livro didático, ainda que
superficialmente, você diria que a abordagem
contida nele é predominantemente formalista
ou funcionalista? Justifique sua resposta.

2. Entre os temas funcionalistas destacados
neste capítulo, quais deles estão contemplados
nas leituras e atividades propostas pelo livro
didático? De que forma?
18 Capítulo 1

REFERÊNCIAS
CUNHA, Angélica Furtado da. Funcionalismo.
In: MARTELOTTA, Mário Eduardo (Org.). Ma-
nual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008.
p. 157-176.

MARCUSCHI, Luiz A. Produção textual, análise


de gêneros e compreensão. São Paulo: Pará-
bola, 2008.

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática


funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. Formalismo e fun-


cionalismo: fatias da mesma torta. Sitientibus,
Feira de Santana, n. 29, p. 95-104, jul./dez.
2003. Disponível em: <http://www.uefs.br/
sitientibus/pdf/29/formalismo_e_funcionalis-
mo_fatias_da_mesma_torta.pdf> Acesso em:
29 abr. 2010.

OLIVEIRA, Mariangela Rios de; CEZARIO, Ma-


ria Marta. PCN à luz do funcionalismo linguís-
tico. Linguagem & Ensino, v. 10, n. 1, p. 87-
108, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://
rle.ucpel.tche.br/php/edicoes/v10n1/03Maria.
pdf.> Acesso em: 29 abr. 2010.

PEZATTI, Erotilde Goreti. O funcionalismo em


linguística. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES,
Anna Christina (Org.). Introdução à linguística:
fundamentos epistemológicos (v. 3). São Paulo:
Cortez, 2004. p. 165-218.

WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da lin-


guística. São Paulo: Parábola, 2002.
2
Capítulo 2 19

Do Cognitivismo ao
Sociointeracionismo Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra
Carga Horária | 15 horas

Objetivos Específicos
• Conhecer a proposta teórica e as contribuições da linguística cognitiva;

• Compreender a transição do cognitivismo ao sociocognitivismo em Linguís-


tica;

• Entender a perspectiva sociointeracionista e seu papel na Linguística con-


temporânea.

Introdução
Neste capítulo, apresentaremos algumas das novas tendências em Linguística,
com destaque especial para a linguística cognitiva, o sociocognitivismo e o socio-
interacionismo. Você compreenderá como a Linguística seguiu um percurso, em
que se moveu de perspectivas intensamente formais, conforme visto no Capítulo
1, para diversificadas perspectivas em que os aspectos sociais e cognitivos passam
a ser considerados ao lado dos aspectos linguísticos. Como você poderá verificar,
as tendências de que trataremos neste capítulo têm mostrado uma grande influ-
ência sobre os rumos do ensino de língua portuguesa em nosso país, o que por si
só as credencia como um importante tema de estudo.

1. O Cognitivismo em Linguística:
Relação com o Gerativismo
Uma verdadeira revolução
cognitivista ocorre nos anos
de 1950, quando as inves-
tigações sobre a relação
língua-cognição surgem em
oposição ao behaviorismo
(comportamentalismo) do-
Fonte: http://dislexia.nireblog.com/

minante. Com origem na


psicologia cognitiva, os estu-
dos cognitivistas se estabele-
cem numa rica inter-relação
entre os campos da ciência
da computação, matemáti-
Figura 1: Cérebro e linguagem
ca, teoria da informação e
linguística, entre outros.
20 Capítulo 2

Com o cognitivismo, dá-se uma reabilitação dos gradamente, e não de forma modular. Embora não
processos mentais como objeto de investigação, de se questione o inatismo em si, entende-se que as
modo que as seguintes questões são levantadas: línguas não podem ser explicadas apenas por me-
canismos formais e abstratos.
como o conhecimento é representado e
estruturado na mente? Perguntas importantes e desafiadoras para um
cognitivismo mentalista são: como se dá a capta-
Como a memória se organiza? ção, compreensão e armazenamento de dados da
experiência na memória? E ainda, como se dá a
A mente é dividida em partes independentes organização, acesso, conexão, utilização e transmis-
ou há uma conexão entre elas? são desses dados? Contra o gerativismo, necessário
é afirmar a impossibilidade de separar linguagem,
O conhecimento é inato ou derivado pensamento e experiência. Daí o termo sociocog-
da experiência? nitivismo, pelo qual se confere especial destaque
aos aspectos sociais da cognição. Dito de outra for-
Como ressaltam Martelotta e Palomanes (2008), ma, a significação é entendida como um processo
o cognitivismo tem um papel de destaque na lin- que se define na interação.
guística do século XX, por meio da perspectiva ge-
rativista de estudo da linguagem. O gerativismo,
caracterizado como uma abordagem mentalista 2. Do Cognitivismo ao
aos fatos da língua, põe, em relevo, os aspectos
cognitivos envolvidos na compreensão da lingua-
Sociocognitivismo
gem, mas limita a cognição a questões meramente
Koch e Cunha-Lima (2004, p. 251) ressaltam que
biológicas. No gerativismo, não se estabelece uma
o sociocognitivismo, ao contrário do gerativismo,
ligação entre a cognição e as questões sociais, cul-
não é um programa de pesquisa bem delimitado
turais, históricas e interacionais.
nem uma tendência unificada, algo assim como
uma “escola”. Antes, se trata de “um conjunto de
Para o gerativismo, a linguagem é um sistema for-
preocupações e uma agenda investigativa em ascen-
mal e racional que pode ser explicado por uma
são na Linguística atual”.
teoria lógico-matemática. A linguagem seria um
componente mental, um módulo entre outros mó-
Compreendida como dissidência do cognitivismo
dulos responsáveis pelas diversas ações de que os
gerativista inaugurado por Chomsky, a Linguísti-
seres humanos são capazes. Entre as teses clássicas
ca Cognitiva rompe com o modelo modularista
do gerativismo, inclui-se, portanto, a modularida-
da mente, compreendendo a linguagem como um
de da mente, em que se postula um módulo sin-
fenômeno integrado a “uma grande rede de capa-
tático autônomo em relação aos demais módulos
cidades cognitivas da mente humana”, no dizer de
linguísticos e não linguísticos.
Carrara, Uchoa e Rodrigues (2009). Assim, na Lin-
guística Cognitiva, a produção e a recepção da lin-
Outra tese fundamental para o sistema gerativista
guagem conectam-se a uma dimensão experiencial,
é a do inatismo linguístico: todos os seres huma-
que é tanto individual como social, integrando
nos nascem dotados de uma espécie de dispositivo
modos de vida, cultura e interação. Proponentes
mental de geração da linguagem, o que consequen-
célebres dessa visão foram George Lakoff e Ronald
temente dispensará os aspectos sociais, julgando-os
Langacker.
irrelevantes para a compreensão dos fenômenos
linguísticos.
De acordo com Martelotta e Palomanes (2008, p.
179), o termo sociocognitivismo enfatiza “a impor-
Característica dos estudos que estamos chamando
tância do contexto nos processos de significação e o
de linguística cognitiva é uma revisão de vários pos-
aspecto social da cognição humana”. Desse modo,
tulados do gerativismo. Entre eles, a modularidade
a cognição deixa de ser visto como um fenômeno
é repensada e criticada, de modo que se considera
apenas mental, individual e estanque e passa a ser
que não é necessário distinguir entre conhecimen-
considerado no interior de relações sociais, cultu-
to linguístico e outros conhecimentos na mente.
rais e históricas mais amplas.
As diversas formas de conhecimento operam inte-
Capítulo 2 21

O conceito de cognição, portanto, é significativa- compreende que os usuários da língua estão no


mente ampliado no sociocognitivismo. Para Koch centro mesmo da construção do significado e são
e Cunha-Lima: co-participantes dessa construção.

Ampliar esse campo significa incluir entre os fatos a serem O sociocognitivismo, portanto, entende a lingua-
investigados não apenas capacidades cognitivas nobres, gem como uma forma de ação no mundo, que
como a linguagem, o raciocínio matemático, mas também se dá de forma integrada com outras capacidades
fenômenos bem mais simples em sua aparência, como, por
cognitivas. Para Koch e Cunha-Lima (2004, p.
exemplo, nossas capacidades de nos movermos em uma
255), “compreender a linguagem é entender como
sala, sem esbarrar nos móveis; de, dadas diferentes condi-
ções de iluminação, enxergarmos as cores de forma consis-
os falantes se coordenam para fazer alguma coisa
tente; ou, ainda, nossa capacidade de, ao balançarmos uma juntos, utilizando simultaneamente recursos in-
caixa de leite, sabermos, aproximadamente, quanto de leite ternos, individuais, cognitivos e recursos sociais”.
resta lá dentro (2004, p. 253). A questão central para o sociocognitivismo não é,
entretanto, como relacionar os aspectos cognitivos
Nessa concepção, não só o conhecimento é um e os aspectos sociais, mas como integrá-los numa
processo complexo mas também o sentido das ex- só questão: o modo como a cognição se constitui
pressões linguísticas não é algo pronto e acabado, no próprio curso da interação.
porém é construído no decorrer da própria intera-
ção. Os autores exemplificam esse aspecto com o 3. Aspectos de uma Teoria
processo de categorização da realidade. Uma ope- Cognitiva: O Pensamento
ração simples como reconhecer um objeto como
sendo uma xícara de café implica associar represen- Corporificado
tações diversas: visuais (aparência) e táteis (manei-

Fonte: http://fogonasentranhas.wordpress.com/
ra de segurar, expectativas sobre a temperatura),
olfativas (cheiro do café) e gustativas (sabor especí-

category/pulp-fictions-pero-no-mucho/
fico, modo de consumir). Essas representações são
criadas em diferentes regiões do cérebro, sempre
que ouvimos ou lemos o nome do objeto.

Além disso, a maneira como categorizamos objetos


(por exemplo, a xícara de café) e atividades (como
gestos, por exemplo) implica larga medida e aspec-
tos marcados por nossa herança sociocultural. As- Figura 2: De mãos atadas
sim é que o simples ato de tomar café ou fazer um
sinal de positivo tem significados bastante peculia-
res em culturas diferentes. Numa visão integradora Segundo o princípio do pensamento corporifica-
da linguagem, a forma linguística em si é, apenas, do (embodied), baseado no pensamento de George
uma pista, um fator para a construção do sentido, Lakoff, a percepção que temos do mundo é orien-
que se constrói em associação com outros aspectos tada e limitada pela percepção que temos do nosso
cognitivos. corpo. Desse modo, compreende-se que a mente
não é, ao contrário do que diz a noção tradicio-
Portanto, um aspecto importante no sociocogniti- nal, separada do corpo, e o próprio pensamento
vismo é o caráter interacional do significado. A gra- é corporificado. Isso quer dizer que o pensamento
mática da língua não é simplesmente um conjunto é uma espécie de extensão do corpo, que por sua
de regras, mas um conjunto de princípios dinâmi- vez determina nossa percepção de espaço e tempo.
cos que produzem o sentido quando associados a
rotinas cognitivas que são moldadas, sustentadas e É assim, por exemplo, que falamos de fatos pas-
modificadas pelo uso diário da língua. A comuni- sados e futuros (tempo) em termos de para trás e
cação, portanto, é uma atividade compartilhada, para frente (noções espaciais) por analogia com a
co-construída pelos interlocutores. Não cabe a ima- movimentação do nosso corpo:
gem de um emissor e um receptor isolados e alter-
nando posturas ativas (falante) e passivas (ouvinte) Cem anos atrás, o mundo era diferente...
na produção da linguagem. O sociocognitivismo daqui para frente, as coisas serão diferentes.
22 Capítulo 2

Nesse caso, o corpo e a noção de espaço se tornam à centralidade que conferimos a um elemento
a base de nossos sistemas perceptuais, levando à em detrimento de outro na mesma cena. O ele-
conclusão de que os processos abstratos, entre eles mento em destaque se chama figura e aparece
a noção de tempo, são essencialmente metafóricos. em primeiro plano; o elemento denominado
Segundo essa teoria, o sentido se constrói metafo- fundo funciona como uma espécie de moldura
ricamente através da gradual extensão do sentido, e não constitui o centro de nossa atenção. Nos
a partir de noções espaciais até noções mais abs- enunciados a seguir, temos o “quadro” como
tratas. Confira o exemplo dado por Martelotta e figura em a); no enunciado b), “quadro” assu-
Palomanes (2008, p. 182), que transportamos para me o lugar de fundo em relação a “sofá”.
o quadro abaixo:
a) O quadro está sobre o sofá.
Frase Noção
b) O sofá está sob o quadro.
O ministro foi para São Espaço
Paulo.
c) Enquadres e domínios conceituais – os en-
O ministro adiou a en- Tempo quadres se entendem como a base do conheci-
trevista para amanhã. mento em relação à qual se impõe um determi-
O ministro elaborou o Finalidade nado foco de atenção comunicativa, enquanto
relatório para mudar a os domínios conceituais se definem como con-
opinião do presidente. juntos de conhecimentos estruturados, es-
O ministro entregou o paços de referenciação ativados por formas
Movimento/destino
relatório para o presi- linguísticas ou por fatores pragmáticos para a
dente. construção do significado e Os subdivididos
em domínios estáveis e domínios locais (MARTE-
Encarado dessa forma, o corpo entra decisivamen- LOTTA e PALOMANES, 2008). Para melhor
te na construção dos sentidos que resulta de nossa compreensão, confira o esquema:
interação com os objetos no mundo. Os sentidos
são, de acordo com os cognitivistas, entidades concei- Domínios
tuais, e as formas da língua são recursos para a re- conceituais
presentação de cenas e fatos da vida. Toda ativida-
de de conceitualização é atividade situada, ou seja,
Domínios Domínios
ligada à perspectiva do falante ou, dito de outra estáveis locais
forma, dependente do lugar que seu corpo ocupa
na situação de uso da língua.
Modelos Molduras Esquemas Espaços
cognitivos comunicativas imagéticos mentais
Martelotta e Palomanes (2008) exemplificam isso
com as noções de ponto de vista, alinhamento de fi-
gura e fundo e enquadre comunicativo. Vejamos exem- Vejamos cada um desses conceitos:
plos de cada uma delas:
1. Domínios estáveis são conjuntos de conheci-
a) Ponto de vista – nos exemplos abaixo, para mentos bastante gerais, armazenados na me-
dentro ou para fora correspondem simplesmen- mória pessoal ou social, como uma espécie de
te ao lugar em que o falante se situa cognitiva herança da humanidade, subdivididos, confor-
e corporalmente. Essencialmente, a cena é a me o esquema em modelos cognitivos idealizados,
mesma, e o fenômeno descrito é idêntico nos molduras comunicativas e esquemas imagéticos.
dois enunciados.

a) O caminho para dentro da floresta é Definição Exemplo
tortuoso. Modelos Estruturas pelas Domingo é um con-
b) O caminho para fora da floresta é tor- cognitivos quais o conhe- ceito compreendido
tuoso. idealizados cimento sobre no interior da cons-
entidades, eventos e trução sociocultural
b) Alinhamento de figura e fundo – neste atividades é orga- de semana
nizado
caso, a relação figura-fundo diz respeito
Capítulo 2 23

Molduras Estruturas de co- Uma aula tem uma Para Lakoff e Johnson (2002), a metáfora
comunicativas nhecimento relacio- forma própria de não é uma propriedade, apenas, da literatura
nadas com formas organização em ou mesmo da linguística, mas determina, so-
organizadas de que os participantes
interação cumprem papéis so-
bretudo, a forma como pensamos e agimos.
cialmente previstos Assim, todo o nosso sistema conceptual seria
e estabelecidos metafórico por natureza. Nossa forma de pen-
sar e agir é metafórica por natureza. A metáfo-
Esquemas “Estrutura abstracta Recipiente, origem-
imagéticos que tem por base a percurso-destino,
ra, portanto, longe de ser apenas uma figura
experiência humana parte-todo, em de linguagem, é um fenômeno que determina
na sua interacção fí- cima-embaixo, a maneira como conceitualizamos nossa expe-
sica e corporal com dentro-fora, riência corpórea e social no mundo.
o mundo” (FERRÃO, atrás-à frente
2010)
As metáforas, conforme esses autores, podem
ser classificadas como conceituais, orientacio-
2. Domínios locais (espaços mentais) são opera- nais e ontológicas. Veremos cada um desses tipos.
dores do processamento cognitivo, de caráter
dinâmico e sequencial, que podem ser ativa- Por meio de metáforas do tipo conceitual, articu-
dos por conectores, os quais exercem o papel lamos conceitos diversos que fazem parte de nos-
de construtores de espaços mentais (conectivos, sa vida diária. Um exemplo dessas metáforas, que
sintagmas preposicionais ou adverbiais, ora- podemos citar aqui, é DISCUSSÃO É GUERRA.
ções). Veja alguns exemplos de espaços men- A partir dessa metáfora, encontramos afirmações
tais: como:
Espaços mentais Modelos
Seus argumentos são indefensáveis.
Na novela, o ator brasileiro é Modelo cultural Ele atacou cada ponto fraco do meu argumento.
americano.
Suas críticas atingiram o alvo.
Na fotografia, Brad Pitt está Imagem Eu demoli o argumento dele.
feio. Jamais venci um debate com ele.
No Brasil, as pessoas não Lugar Ele arrasou com todos os meus argumentos.
falam inglês.
Quando eu era pequeno, eu
As metáforas orientacionais tomam o corpo como
Tempo
assistia desenho animado. referência muito clara, particularmente com base
na noção de espaço, como vimos anteriormente.
Se ele estivesse aqui, saberia Hipótese Exemplos de metáforas dessa categoria são BOM
como agir. É PARA CIMA e MAU É PARA BAIXO. Essas
metáforas geram enunciados como:

Ele me deixou com o ânimo elevado.


4. Teoria Sociocognitiva da Estávamos sempre de alto astral.
Metáfora Fomos bem-sucedidos e ficamos por cima.
Suas palavras me deixaram na fossa.
A partir da publicação de obras, como o livro Me- Estava me sentindo no fundo do abismo.
taphors we live by (1980), de George Lakoff e Mark Ela estava extremamente deprimida/para baixo.
Johnson, traduzido para o português como Metáfo-
ras da vida cotidiana (2002), foram lançadas as bases Já as metáforas ontológicas tomam por base a nos-
para uma nova compreensão desse fenômeno, que sa experiência com objetos e entidades físicas,
sempre foi considerado apenas como uma “figura por meio das quais explicamos noções abstratas,
de linguagem” e frequentemente circunscrita ao como eventos, emoções e ideias. Essas metáforas
domínio da literatura. Os estudos realizados nes- assumem a forma de esquemas imagéticos, como
sa linha resultaram numa teoria sociocognitiva da a noção de contentor (objeto que contém outros
metáfora que, em parte, já estudamos no tópico objetos ou substâncias). A metáfora O CORPO
anterior, quando tratamos do pensamento corpo- HUMANO É CONTENTOR DE EMOÇÕES é
rificado. responsável por frases como:
24 Capítulo 2

Eles quase explodiram de alegria. Joana nunca leu Machado de Assis.


Estava prestes a rebentar de tanta raiva.
Não podia se conter de tanta emoção. O que se estabelece é uma relação entre o
autor e sua obra, de modo que o enunciado
Conforme defendem Lakoff e Johnson (2002), as deverá ser entendido como “Joana nunca leu
metáforas são estruturadas em termos de “cone- os livros que compõem a obra de Machado de
xões entre domínios cognitivos”, quer dizer, entre Assis”, e não como se ela literalmente jamais
um domínio fonte (guerra) e um domínio alvo (discus- tivesse lido o autor propriamente.
são). Verificamos, então, o princípio de projeção,
pelo qual os elementos próprios do domínio fonte c) Projeção entre espaços mentais – nessa for-
são projetados sobre o domínio alvo. É assim que ma de projeção, os sentidos são construídos
usamos termos próprios da guerra para descrever na relação entre espaços mentais, ligados por
uma discussão e nem nos damos conta disso. Pode- sistema de referenciação (por analogia) entre
mos presumir que, numa cultura não competitiva distintos domínios cognitivos. No seguinte
como a nossa, a discussão pudesse ser metaforizada exemplo de Martelotta e Palomanes (2008),
de uma forma totalmente diferente (talvez como os espaços mentais em questão dizem respeito
uma dança, por exemplo). A metáfora, na verdade, à vida e à pintura, e o enunciado propõe uma
tanto estrutura como é estruturada por nossos pró- construção do sentido em que a vida é projeta-
prios valores culturais. da como sendo uma tela.

A construção do sentido, nos parâmetros estabele- A vida tem a cor que você pinta.
cidos pela linguística cognitiva, se realiza com base
no princípio de projeção, responsável por estabe- O processo que estabelece as relações de proje-
lecer diferentes formas de ligação entre domínios ção entre domínios é também compreendido
cognitivos (domínio fonte e domínio alvo). Pode- como mesclagem de espaços mentais, na teoria
mos falar aqui de três formas de projeção: proposta por Gilles Fauconnier, na década de
1980. Um exemplo do uso desse processo cog-
a) Projeção de domínios conceituais estrutura- nitivo se encontra na frase a seguir, em que
dos – forma de projeção bem representada nas espaços mentais diferentes se relacionam para
metáforas e analogias. Por exemplo, as metáfo- formar um espaço-mescla:
ras em que o tempo (domínio alvo) é descrito
como espaço (domínio fonte). Nessa metáfora, A floresta amazônica é o pulmão do mundo.
falamos de tempo como se fosse um lugar atrás
ou na frente. Podemos fazer a seguinte representação do enun-
ciado, explicitando os espaços em relação:
Cem anos atrás, a transmissão das informa-
ções era mais difícil.
“Daqui pra frente, tudo vai ser diferente.” Espaço fonte 1 Floresta amazônica (parte)
Mundo (todo)
Outro exemplo é a metáfora COMUNICAR
(domínio alvo) É ENVIAR (domínio fonte),
em que falamos de ideias como se fossem obje- Espaço fonte 2 Pulmão (parte)
Corpo humano (todo)
tos que enviamos de um lugar para outro e de
pessoa para pessoa.
Esquema Árvores “respiram” gás carbônico
Não soube passar a ideia. imagético e liberam oxigênio
Não recebeu bem minhas palavras. Pulmões respiram oxigênio e
Não sei colocar isso em palavras. liberam gás carbônico

b) Projeção de funções pragmáticas – forma de
Espaço-mescla A Amazônia é importante para o
projeção que se dá em virtude de uma relação
mundo, pois lhe oferece ar puro.
estabelecida pragmaticamente, como acontece
nas metonímias do tipo:
Capítulo 2 25

Como foi dito no início, o cognitivismo e o so- lingüísticas, como a Pragmática, a Sociolinguísti-
ciocognitivismo não são programas de pesquisa ou ca, a Psicolinguística, a Semântica Enunciativa, a
escolas teóricas fechadas, mas tendências variadas Análise da Conversação, a Linguística Textual e
e representadas por diferentes autores. Outras no- a Análise do Discurso, entre outras, uma vez que
ções e outros autores, como Eleanor Rosch, e a todas elas se caracterizam por uma reação contra
teoria dos protótipos, por exemplo, poderiam ter o “psicologismo”, que dominava as ciências da lin-
sido incluídos neste tópico, mas optamos por nos guagem até a segunda metade do século XX, além
restringir aos temas de que tratamos até aqui. de que “se pautam por uma postura externalista a
respeito da linguagem” (p. 312).

5. Sobre o Interacionismo em Com o tempo, o interacionismo se afirmou como


uma importante perspectiva para o estudo da lin-
Linguística guagem e outros aspectos da vida humana, con-
siderando-se que “toda ação humana procede da
Como você facilmente perceberá, não é possível
interação”. Para Morato (2004), isso significa que
falar das diversas tendências ou modelos epistemo-
a Linguística cometeria um grave equívoco sempre
lógicos vigentes em Linguística sem algum grau de
que negligenciasse ou deixasse de considerar “que
sobreposição teórica. Assim como não é possível
existe língua, porque existem falantes e que os fa-
falar de cognitivismo sem de algum modo tocar em
lantes existem em função das ações que os instam
tendências que já foram tratadas sob o rótulo de
de várias maneiras e em diferentes níveis de exigên-
funcionalismo, igualmente não será possível enfo-
cia a permanecer em relação a alguma coisa e na
car os modelos interacionistas sem mencionar as
relação com alguma coisa” (p. 313).
abordagens cognitivistas com as quais eles, muitas
vezes, estão relacionados. É importante frisar que
Entretanto, embora seja consenso que o interacio-
não estamos tratando de escolas de pensamento
nismo constitui uma abordagem central nos estu-
ou teorias linguísticas em sentido restrito e, sim,
dos da linguagem, não se pode dizer que haja uma
dos fundamentos epistemológicos que embasam as
compreensão única sobre o conceito nem que to-
correntes mais produtivas na Linguística contem-
dos os pesquisadores querem dizer a mesma coisa
porânea.
quando se referem à interação e ao interacionismo.
De acordo com Morato (2004, p. 315), “aquilo que
Fonte: http://contextopolitico.blogspot.com/2008/12/as-teorias-da-ao-

chamamos algo genericamente de interacionismo


parece ser de fato um mosaico de inteligibilidades
e métodos”.

Apesar da diversidade de pensamentos e teses de-


fendidas, o interacionismo é marcado por ideias
bastante características. Vejamos algumas:

a) A noção de uso da língua como ação conjun-


ta: a interação supõe a presença de indivíduos
em ação, seja ela conflituosa ou cooperativa,
social-de-weber-ao.html

de modo que o estudo do fenômeno permite


indagar sobre a qualidade e as circunstâncias
em que se dá o encontro dessas pessoas em
variados contextos, práticas e situações.
Figura 3: Interacionismo

b) A interação é constitutiva do sentido, ou seja,
Para apresentarmos um panorama bastante geral
o sentido é produto da interação, uma vez que
sobre o interacionismo no campo linguístico, to-
precisamos do outro tanto para sabermos o
maremos como nossa principal fonte de informa-
que dizer como para construir o sentido do
ção o ensaio de Morato (2004) sobre esse assunto.
que dizemos. A interação, portanto, não é algo
Para a autora, em um sentido mais amplo, pode-
simplesmente externo à linguagem, mas é con-
mos considerar como interacionistas disciplinas
dição de sua realização.
26 Capítulo 2

c) A noção de cognição situada: existe uma re- c) o interesse de correntes, como a Sociolinguís-
lação de interdependência entre ação e refle- tica Interacional, a Pragmática e a Análise do
xão. O contexto social, interacional, em que Discurso pela interação verbal;
a atividade se desenvolve faz parte da própria
atividade, não sendo apenas uma espécie de d) a difusão de uma Análise da Conversação de
moldura para o seu desenrolar. Assim, “todo inspiração etnometodológica.
ato cognitivo deve ser visto como uma respos-
ta específica para um conjunto de circunstân- O sociointeracionismo ou interacionismo socio-
cias” (MORATO, 2004, p. 327). cultural derivado de Lev Vygotsky, por sua vez, se
concentrou no desenvolvimento da cognição, com
Essas e outras ideias subjazem aos diversos enfoques base na interação social por meio da linguagem.
que podem ser destacados como interacionistas. Para Morato (2004), temas, como a construção da
referência, os processos meta, o discurso interior,
a indeterminação semântica, o contexto pragmáti-
6. Destaques entre os Enfoques co das operações cognitivas e a reflexividade, entre
outros, foram dinamizados na Linguística, a partir
Interacionistas de uma herança dos trabalhos de Vygotsky sobre a
cognição humana.
A chamada Linguística Interacional considera
como “material interativo” aspectos como as prá-
Para Vygotsky, o pensamento é mediado tanto ex-
ticas, estratégias e operações de linguagem, as di-
ternamente pelos signos linguísticos como interna-
nâmicas de trocas conversacionais, a comunicação
mente pelos sentidos. A linguagem é uma forma
verbal e não verbal, a construção de valores cultu-
privilegiada de cognição, que se realiza de duas ma-
rais, as atividades referenciais e inferenciais reali-
neiras: primeiro, é por meio da linguagem que a
zadas pelos falantes e as normas pragmáticas que
criança experimenta o processo de internalização,
governam a utilização da linguagem, entre outros.
pelo qual passa da condição de interpretada pelo
Apesar da ênfase na ação conjunta, cabe dizer que
discurso do outro (os pais, por exemplo) para intér-
monólogos, solilóquios e discurso interior tam-
prete das pessoas e das coisas no mundo.
bém são considerados como interacionais.
Em segundo lugar, e consequentemente, no pro-
A linguista suíça Lorenza Mondada defende que o
cesso de internalização, a linguagem exerce uma
estudo interacional da linguagem deve conceder à
função organizadora que emerge na relação entre
interação “um papel constitutivo não apenas nas
fala e ação. Isso determina toda uma transforma-
práticas dos falantes e das falantes como também
ção cognitiva na criança. Conforme Vygotsky:
na estruturação dos recursos linguísticos” (citada
por Morato, 2004, p. 336). Esse estudo deve ser Uma vez que as crianças aprendem a usar efetivamente a
levado a sério a ponto de causar uma verdadeira função planejadora de sua linguagem, o seu campo psico-
redefinição metodológica nos procedimentos da lógico muda radicalmente. Uma visão do futuro é, agora,
Linguística. Para Mondada, o simples trabalho parte integrante de suas abordagens ao ambiente imedia-
com dados transcritos da interação oral, por exem- to... com a ajuda da fala, as crianças adquirem a capacidade
plo, não significa que o pesquisador está fazendo de ser tanto sujeito como objeto de seu próprio comporta-
Linguística Interacional. O pesquisador deveria mento (citado por MORATO, 2004, p. 325).
ir além e mergulhar mesmo na vida dos sujeitos
pesquisados e interagir com o objeto de sua pes- Como se pode perceber, em Vygotsky, interação e
quisa. De acordo com a pesquisadora suíça, quatro cognição são fenômenos intrinsecamente relacio-
tendências atuais favorecem o crescimento dessa nados, o que também é um aspecto muito presente
forma de fazer linguística: em várias correntes linguísticas contemporâneas.

a) o surgimento de gramáticas do uso oral; Relacionada com o nome do pensador russo Mi-
khail Bakhtin, verificamos, na Linguística de hoje,
b) o estabelecimento de corpora (conjuntos de “uma teoria social forte aplicada ao entendimento
dados) orais autênticos e sociolinguisticamen- da noção de interação” com grande influência em
te diversificados; vários domínios. A interação verbal ocupa, para
Capítulo 2 27

Bakhtin, um lugar central no funcionamento das dido como um percurso em que “o conhecimento
relações sociais, apresentando-se mesmo com a seja um produto das interações sociais e não de
“realidade fundamental da língua”. Na leitura que uma mente isolada e individual”. Nessa inter-rela-
Geraldi (citado por Morato) faz de Bakhtin, “os ção entre interação e cognição, esta “passa a ser
sujeitos se constituem como tais, à medida que in- vista como uma construção social e não individu-
teragem com os outros” (2004, p. 331). Essa intera- al, de modo que para uma boa teoria da cognição
ção acontece em um contexto social e histórico, de precisamos, além de uma teoria linguística, tam-
modo que interação verbal e interação social estão bém de uma teoria social” (MARCUSCHI, 2003,
necessariamente ligadas. A concepção de interação p. 45).
em Bakhtin se relaciona com a noção de dialogis-
mo como característica da linguagem humana. Operando com um conceito de língua como ati-
Dito de outra forma, a interação tem um lugar vidade sociointerativa situada e não como mero
central na linguagem, porque esta é inerentemente sistema de formas ou como simples código, Mar-
dialógica: o outro sempre está presente no discurso cuschi defende que é “na interação (seja com um
de um determinado falante, ainda que se trate de texto ou um outro indivíduo) que emergem os sen-
um monólogo ou do chamado discurso interior. tidos numa espécie de ação coletiva”. Essa perspec-
tiva adotada por Marcuschi se reflete não só em
seus trabalhos mas também em muitos outros que
7. O (Socio)interacionismo e os foram influenciados por ele, mostrando-se uma
linha muito produtiva na pesquisa linguística bra-
Estudos do Texto no Brasil sileira.
Ainda seguindo o estudo de Morato (2004) so-
Os estudos das atividades textuais-discursivas re-
bre o interacionismo, destacaremos, nessa seção,
alizados por Marcuschi e Koch, em geral abriga-
o impacto dessa abordagem sobre a pesquisa em
dos sob o rótulo de Linguística Textual, sempre
Linguística no Brasil. Apesar de reconhecermos
estiveram muito próximos, chegando mesmo a
igualmente uma grande diversidade desses estu-
surgir como fruto de diálogo e parceria entre os
dos no país, com muitos representantes de valor
dois pesquisadores. Koch (2001, p. 66) define a lin-
e com abordagens muito variadas que podem ser
guagem como “inter-ação, ação inter-individual e,
classificadas como interacionistas, concordamos
portanto, social”, alinhando-se a uma concepção
com Morato (2004) em destacar aqueles que são os
de língua como atividade social e interacional. O
dois linguistas, cujo trabalho representa um marco
funcionamento da língua, apoiado formalmente
indiscutível nos estudos do texto falado e escrito
numa gramática específica, se dá, de modo especial
no Brasil. Ao destacar o trabalho de Luiz Antonio
e necessário, “no interior de situações sociais” às
Marcuschi e Ingedore Grünfeld Villaça Koch, faze-
quais as ações linguísticas se dirigem para construir
mos igualmente a opção de enfatizar os estudos do
e reconstruir. Nessa concepção, Morato (2004, p.
texto em especial, embora a pesquisa interacionista
340) observa que a linguagem “não está ligada à
possa legitimamente seguir, e de fato siga, outros
ação ou ao outro, ela é a ação”. Considerada como
rumos além deste.
atividade, a linguagem resulta de estratégias de na-
tureza diversificada:
Marcuschi e Koch se alinham com uma “aborda-
gem interacionista de base sociocognitiva” (MO-
a) Estratégias cognitivas, em que estratégias são
RATO, 2004, p. 338), por meio da qual têm-se
entendidas como instruções globais “para cada
dedicado ao estudo da conversação face a face, da
escolha a ser feita no curso da ação”;
textualidade, do processamento textual, da referen-
ciação, da construção dos objetos de discurso, dos
b) Estratégias sociointeracionais, que incluem a
processos de compreensão, da metáfora e da rela-
maneira de realizar os diversos atos de fala, a
ção entre sentido literal – não literal, entre outros
preservação das faces e a polidez, entre outros
temas.
aspectos;
c) Estratégias textualizadoras, que dizem respei-
A partir dessa perspectiva, Marcuschi identifica
to à forma de organização das informações,
como percurso produtivo para a Linguística “o ca-
formas de referenciação e de “balanceamento
minho que vai do código para a cognição”, enten-
entre explícito e implícito”.
28 Capítulo 2

Para Koch, os textos são formas de cognição social o interacionismo são, com toda certeza, noções es-
que permitem aos seres humanos organizarem o senciais não só para a compreensão da linguagem e
mundo em que vivem. Os textos são estratégias de da língua mas também para a aplicação dessa com-
organização cognitiva da própria realidade social, preensão ao ensino.
de modo que muitos aspectos dessa realidade só
existem enquanto organizados discursivamente.

Em suma, a noção de interação, ou de sociointe-


ração, assume hoje uma importância decisiva nos
estudos linguísticos contemporâneos. Em balanço
final do seu estudo sobre o interacionismo, Mora- RESUMO
to (2004) apresenta quatro pontos para reflexão:

• Primeiro, a autora faz uma crítica ao fato de Neste capítulo, tivemos como objetivo
que muitos usam “interação” e “interacionis- conhecer algumas tendências que ali-
mo” sem definir com clareza o que querem mentam, com muita força, as principais
teorias linguísticas contemporâneas. Em
dizer com isso. Notamos que isso se reflete
razão disso, examinamos a proposta te-
não só nos estudos acadêmicos mas também órica e as contribuições apresentadas
no discurso pedagógico, em que professores da pelos modelos cognitivistas e meados
Educação Básica, por exemplo, repetem esses do século passado. Vimos que o cog-
termos sem mostrar uma compreensão ade- nitivismo, tomado inicialmente como
quada do que estão dizendo. fenômeno estanque e individual, foi
suplantado por uma perspectiva social
• Segundo, Morato (2004) destaca a necessidade que deu origem ao termo cognitivismo
de pensar a linguagem em relação com outros social ou simplesmente sociocognitivis-
fenômenos que também fazem parte do con- mo, que teve e tem uma grande e pro-
dutiva influência sobre a Linguística. A
ceito de interação. Isso significa falar de inte-
partir daí, apresentamos a você as no-
ração verbal em relação com interação social e ções de interação e interacionismo em
interação interpessoal, por exemplo. diversas perspectivas, destacando, no
final de nosso capítulo, a contribuição e
• Terceiro, destacam-se as vantagens que o uso a influência de um interacionismo social
do conceito de interação tem trazido para o ou sociointeracionismo sobre a Linguís-
avanço da ciência linguística. Podemos ir além tica no Brasil. Para isso, destacamos es-
e reconhecer esse avanço também no plano do pecialmente a obra e o pensamento de
ensino, que hoje deixa de ser, apenas, trans- dois linguistas extremamente influentes
missão de formas e regras linguísticas e requer no país, Marcuschi e Koch, cujas pes-
quisas têm se voltado preferencialmente
uma firme consideração dos aspectos sociais,
para os estudos do texto escrito e falado.
cognitivos e interacionais relacionados, sobre-
tudo, com a leitura e produção de textos. Mais uma vez chamamos sua atenção
para a importância que as tendências
• Por último, a autora levanta a seguinte ques- estudadas neste capítulo têm não só
tão: o “interacional” seria uma dimensão do como teoria mas como conhecimentos
estudo da linguagem, um aspecto do tema, construídos e aplicados, de modo espe-
ou a linguagem efetivamente deve ser vista de cial, ao ensino de língua portuguesa em
uma perspectiva interacionista mais global? nosso país.
Para Morato (2004), essa é uma questão a ser
respondida pelos pesquisadores.

Independentemente dos questionamentos, aliás,


necessários para o avanço da ciência, a autora re-
conhece que a noção de interação é responsável
hoje por boa parte do status da Linguística como
ciência relevante para a nossa época. A interação e
Capítulo 2 29

REFERÊNCIAS
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SAIBA MAIS!
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fora-SEXO-AL
KOCH, Ingedore Villaça; CUNHA-LIMA, Maria
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interacionismo sim bólico, consulte o
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endereço: http://www
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• Sobre as contribu 2004. p. 251-300.
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cionismo sociodiscurs
Jea n-Paul Bron-
ligada ao nome de MARCUSCHI, Luiz Antonio. Do código para a
o let ram en to escolar,
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encontra em: cognição: o processo referencial como ativida-
leia o texto que se
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MARTELOTTA, Mário Eduardo; PALOMANES,
Roza. Linguística cognitiva. In: MARTELOTTA,
Mário Eduardo (Org.). Manual de linguística.
São Paulo: Contexto, 2008. p. 177-192.

MORATO, Edwiges Maria. O interacionismo no


campo linguístico. In: MUSSALIM, Fernanda;
Atividade | Para resolver a atividade a seguir, BENTES, Anna Christina (Org.). Introdução à
você novamente precisará utilizar um livro di- linguística: fundamentos epistemológicos (v. 3).
dático de língua portuguesa, do ensino Fun- São Paulo: Cortez, 2004. p. 311-351.
damental ou Médio, como objeto de análise.

1. Examine o que o livro didático diz sobre


metáforas. Como se define a metáfora? Que
atividades são propostas com metáforas e figu-
ras de linguagem?

2. Há algo em comum entre o tratamento


da metáfora no livro didático e neste capítulo
deste livro? Diferenças? Comente.
3
Capítulo 3 31

Teoria dos
Gêneros Textuais
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra
Carga Horária | 15 horas

Objetivos Específicos
• Compreender a amplitude e a importância do conceito de gêneros textuais;

• Conhecer as diversas abordagens teóricas e práticas à questão dos gêneros


textuais;

• Refletir sobre as implicações de uma teoria de gêneros para o ensino de lín-


gua portuguesa.

Introdução
O objeto deste capítulo, ao contrário dos anteriores, não serão os modelos ou
paradigmas epistemológicos que alimentam as diversas tendências da linguísti-
ca contemporânea. Trataremos de um tema bem mais concreto e que tem sido
de fundamental importância para a definição dos rumos tanto da pesquisa em
linguística como da sua aplicação ao ensino de língua portuguesa: os gêneros
textuais. Apesar de uma ligação natural entre esse tema e a Linguística Textual,
os gêneros textuais são hoje uma premissa para os estudos em várias disciplinas
da linguística. Além disso, por sua aplicação atual como base para o ensino de
escrita e leitura na escola, os gêneros assumem uma centralidade decisiva. Para o
desenvolvimento deste capítulo, apresentaremos inicialmente as principais ten-
dências em estudo de gêneros. Em seguida, exporemos alguns conceitos funda-
mentais relacionados com o estudo dos gêneros.

1. Origens do conceito de gênero

Nas últimas décadas, o termo gênero tem sido utilizado por muitos autores nos
mais variados campos do conhecimento e com as mais diversas conotações. Na
área de linguística, particularmente, os gêneros se tornaram um conceito central
tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista da aplicação ao ensino
de língua portuguesa.

Conforme a estudiosa do texto Ingedore Koch, a preocupação particular da lin-


guística com os gêneros está diretamente ligada ao desafio que enfrenta de acom-
panhar as mudanças sociais ao lado das quais os novos gêneros emergem e se
constituem. Uma vez que as mudanças na vida da sociedade se fazem necessaria-
mente acompanhar do desaparecimento ou da transmutação de velhos gêneros,
por um lado, e do surgimento de novos gêneros, por outro, a discussão desses
fenômenos se torna hoje algo incontornável.
32 Capítulo 3

A noção de gênero é muito antiga, embora o termo O estudo dos gêneros, portanto, ao deixar de se
tivesse uma aplicação muito mais restrita, situação referir, apenas, aos gêneros da literatura ou da retó-
que só mudou há muito pouco tempo. Conforme rica, e ao se estender para os domínios mais diver-
indica Marcuschi (2002a), o conceito de gênero, sificados da atividade humana, inclusive ao âmbito
encontrado já no filósofo grego Aristóteles e rela- do dia a dia e da interação humana em geral, en-
cionado com os estudos de retórica, remonta, na trou decisivamente na agenda acadêmica do nosso
verdade, a Platão e aos estudos literários. tempo. Conforme ressalta Bhatia (2002, p. 3), a
análise de gêneros sempre foi uma “atividade mul-
Com Aristóteles, a arte retórica desenvolve-se no tidisciplinar”, caracterizada por perspectivas analí-
sentido de capacitar escritores e oradores a produ- ticas variadas, de modo que o pesquisador pode
zirem diferentes gêneros textuais, de acordo com legitimamente se perguntar “se há algum elemento
diferentes propósitos e audiências particulares. As- comum entre essas perspectivas, quer em termos
sim, estreitamente ligada à oratória, a retórica per- de paradigmas teóricos, enquadres metodológicos
mitiu a criação e o desenvolvimento de diferentes ou campos de aplicação”. No tópico a seguir, vere-
gêneros, definidos em função de “tema, audiência, mos como essa pluralidade de enfoques costuma
ponto de vista, propósito, sequência de idéias e os ser classificada em termos de escolas ou tradições
melhores recursos linguísticos para expressar essas específicas.
idéias” (ARAÚJO, 1996, p. 22-23).

Desde a Antiguidade até os primórdios do século 2. Tendências Contemporâneas em


XX, o conceito de gênero esteve quase completa-
mente limitado à área dos estudos literários, na
Estudos de Gênero
qual a classificação tradicional dos gêneros perma-
De acordo com Bhatia (2004), a teoria de gêneros
neceu presa a convenções de forma e de conteúdo.
desenvolveu-se inicialmente na forma das seguintes
Nessa concepção, divisavam-se três gêneros literá-
escolas: a Escola Americana, também chamada de
rios maiores, o lírico, o épico e o dramático, cada
“Nova Retórica”, representada por autores como
um deles admitindo algum tipo de subclassificação
Carolyn Miller e Charles Bazerman; a Escola de
em gêneros menores, como o soneto, a ode, a epo-
Sydney, derivada da linguística sistêmico-funcional
peia e a tragédia. Dentro dessa classificação, o gê-
de Michael Halliday, conforme desenvolvida por
nero caracterizava-se como “(a) primariamente lite-
John Martin e Brian Paltridge, entre outros e a
rário, (b) inteiramente definido por regularidades
Escola Britânica (também chamada no Brasil de
textuais de forma e de conteúdo, (c) fixo e imutável
“abordagem sociorretórica”), voltada para o estudo
e (d) classificável em categorias e subcategorias or-
de Inglês para Fins Específicos e representada por
denadas e mutuamente exclusivas” (FREEDMAN
John Swales e pelo próprio Vijay Bhatia. Paralela-
e MEDWAY, 1994b, p. 1).
mente, cabe acrescentar, por sua grande importân-
cia no Brasil, a chamada Escola de Genebra, re-
Assim, o enfoque literário ao estudo dos gêneros,
presentada por autores, como Bernard Schneuwly
mesmo em sua configuração contemporânea, ain-
e Joaquim Dolz, e amplamente baseada nas ideias
da se concentra em certas categorias genéricas tra-
do russo Mikhail Bakhtin. Vamos saber mais so-
dicionalmente valorizadas, de modo que para o crí-
bre as diversas escolas, começando pela Escola de
tico literário será muito mais natural, como lembra
Genebra.
Bazerman (1997), refletir sobre gêneros líricos ou
cômicos do que sobre uma questão da vida cotidia-
na, como, por exemplo, um manifesto a respeito 2.1. A Escola de Genebra ou
de um problema ambiental. “Interacionismo Sociodiscursivo”

Além do mais, ressalta esse autor, dado o caráter Combinando elementos teóricos provenientes dos
geralmente contemplativo da produção e recepção estudiosos russos Mikhail Bakhtin e Lev Vygotsky,
de gêneros literários, à parte das exigências con- integrantes da equipe de ciências da educação da
cretas da vida, no âmbito de tais estudos “a im- Universidade de Genebra realizam uma aplicação
bricação social do gênero tem sido menos visível” educacional (transposição didática) da teoria de
(BAZERMAN, 1997, p. 20). gêneros para a Educação Básica. Esses estudiosos
enfatizam, propriamente, a teoria da enunciação
Capítulo 3 33

tal como proposta por Bakhtin (1997), a fim de se Na literatura sobre a reconceituação dos gêneros
elucidar e até possibilitar a inserção da criança no textuais, tornou-se muito comum qualificar o ar-
universo das instituições sociais, por meio do uso tigo de Miller (2009) como “seminal”, devido à
dos diversos gêneros. Ao contrário dos demais en- relevância de sua contribuição teórica para os tra-
foques de gênero, concentrados basicamente nos balhos posteriores. Nesse artigo, “Gênero como
gêneros mais complexos (chamados de “secundá- ação social”, publicado originalmente em 1984,
rios” por Bakhtin), aqui se destaca o uso e o do- Miller redefine o gênero como uma entidade instá-
mínio de gêneros primários (mais simples) como vel, que “transforma-se, desenvolve-se e decai”, de
passo para a construção dos gêneros secundários forma que “o número de gêneros existente em uma
por parte das crianças. Os principais teóricos, nes- sociedade é indeterminado e depende da comple-
sa abordagem, são Jean-Paul Bronckart, Bernard xidade e diversidade daquela sociedade”. Miller
Schneuwly e Joaquim Dolz. supera, dessa forma, a tradicional classificação de
gêneros como simples exemplares de tipos de tex-
Para Schneuwly, o gênero pode ser considerado to. O gênero é então encarado como ação social
como “uma ferramenta psicológica no sentido praticada dentro de um contexto retórico amplo,
vygotskyano do termo”, ou um “mega-instrumen- em situações recorrentes.
to”, que possibilita a mediação entre a criança e a
situação social em que ela se insere. Essa mediação A noção de gênero como uma realidade socialmen-
ou instrumentalização inicia-se no “nível real” dos te construída implica, para além da mera teoria e
gêneros primários e vai se tornando, cada vez mais, crítica de gêneros, uma nova concepção do próprio
complexa até se chegar aos gêneros secundários. processo de inserção humana na vida da socieda-
Tal instrumentalização funciona de acordo com as de. De acordo com a autora, “o que aprendemos,
seguintes particularidades: quando aprendemos um gênero, é mais que um
simples padrão formal ou mesmo uma maneira de
1. Modos diversificados de referência a um con- atingir nossos objetivos. Antes, aprendemos quais
texto linguisticamente criado; objetivos podemos ter”. Assim, a contribuição de
Miller consiste em localizar a noção de gênero no
2. Modos de desdobramento do gênero; contexto das ações sociais, retóricas, empreendidas
pelos atores sociais em situações recorrentes, de
3. Pela “existência e construção de um aparelho modo que os gêneros possibilitam exatamente “a
psíquico de produção de linguagem” (Schneu- chave para a compreensão sobre como participar
wly, 1994, p. 7), não mais imediato, como no das ações de uma comunidade”.
caso dos gêneros primários.
Já de acordo com Charles Bazerman, os gêneros
A abordagem da Escola de Genebra tem grande não podem ser reduzidos a simples estruturas for-
influência no Brasil por ter sido aquela que mais mais, identificáveis por traços textuais peculiares.
diretamente se refletiu na formulação dos Parâ- Embora não deixe de ter certa utilidade para a des-
metros Curriculares Nacionais, constituindo as crição e interpretação de textos e documentos, a
diretrizes primárias para toda atividade de leitura mera identificação formal dos gêneros nos levaria
e produção de textos em vigor no ensino de língua a uma concepção enganosa e incompleta. Os gêne-
portuguesa, na atualidade. ros não devem ser vistos como conjuntos de traços
formais, e sim como lugar privilegiado de constru-
2.2. Escola Norte-Americana ou ção da realidade social:
“Nova Retórica”
Gêneros são formas de vida, modos de ser. Eles são en-
quadres para a ação social. São ambientes para a apren-
Nesta tendência, destacamos as ideias de dois es-
dizagem. São lugares em que o sentido é construído. Os
tudiosos muito influentes mundialmente falando,
gêneros moldam os pensamentos que formamos e as re-
e também no Brasil, país que ambos têm visitado lações comunicativas pelas quais interagimos. Os gêneros
com certa frequência nos últimos anos, tendo tam- são os lugares familiares a que recorremos para realizar atos
bém algumas de suas obras mais importantes sido comunicativos inteligíveis e as placas de sinalização que
recentemente traduzidas para a língua portuguesa. usamos para explorar um ambiente desconhecido (BA-
Trata-se de Carolyn Miller e Charles Bazerman. ZERMAN, 1997, p. 19).
34 Capítulo 3

Os gêneros, portanto, devem ser concebidos e orientação completamente unificada, os pesqui-


analisados a partir de sua inserção na vida social, sadores que seguem essa tradição sustentam, em
como parte importante da própria organização das comum, uma forte ênfase nas implicações políticas
interações humanas. Outros autores apoiarão essa e ideológicas dos gêneros.
concepção de que critérios meramente formais são
insuficientes para distinguir os gêneros, pois duas As preocupações do grupo abrangem desde a de-
características centrais dos gêneros são precisamen- monstração crítica de como os diferentes gêneros
te (1) a orientação para um propósito ou objetivo incorporam e afirmam os valores das classes do-
e (2) a sua natureza histórica, ou seja, eles se desen- minantes até o compromisso pedagógico de dotar
volvem e se transformam de acordo com transfor- os estudantes menos favorecidos dos recursos ne-
mações socioculturais correspondentes. A forma, cessários para que possam dominar esses gêneros
portanto, tem um papel secundário em relação à socialmente prestigiados. Assim, a ênfase pode ser
função e à historicidade dos gêneros. colocada no estudo dos condicionamentos sociais
por trás do texto ou na explicitação didática das
Essa visão a respeito dos gêneros implica localizá- características textuais de cada gênero, como parte
los no interior de complexas relações sociais e do currículo escolar desde os níveis iniciais.
psicológicas. Sejam eles textos orais ou escritos,
o fato é que os gêneros se referem à “vida diária Como uma espécie de subdivisão dentro da escola
com padrões sócio-comunicativos característicos australiana, existe uma primeira tendência, relacio-
definidos por sua composição, objetivos enunciati- nada com a obra de John Martin e Joan Rothery,
vos e estilo, realizados por forças históricas, sociais, que se concentra mais numa descrição linguística
institucionais e tecnológicas” (MARCUSCHI, e estrutural do texto, sem desprezar sua função e
2003, p. 17). Também para Bazerman, os gêneros, sua relação com o contexto. Para esses autores, o
tais como percebidos e usados pelas pessoas, “se termo gênero envolve tudo que se possa relacionar
tornam parte de suas relações sociais regulares, de linguisticamente com o texto. O foco dos estudos
seu panorama comunicativo e de sua organização é colocado no propósito e nas tarefas que os pro-
cognitiva” (1997, p. 22), apresentando-se como re- dutores de um texto desejam realizar com e por
cursos multidimensionais que ajudam o indivíduo meio do texto.
a localizar sua ação discursiva no âmbito da vida
social estruturada. Os gêneros se definiriam como Numa segunda vertente, representada por Gun-
recursos para responder à própria complexidade ther Kress, o interesse maior concentra-se “nos tra-
da interação social. ços estruturais da ocasião social específica em que
o texto foi produzido”. A configuração linguística
A partir dessa compreensão dos gêneros como peculiar a um gênero é, nessa visão, reflexo das es-
“fenômenos psicossociais de reconhecimento”, truturas e relações sociais que o circundam. A prio-
relacionados com processos e atividades social- ridade, para os estudiosos, é a análise dos fatores
mente organizadas, Bazerman propõe os conceitos sociais em torno do texto, uma vez que “todos os
de “conjunto de gêneros”, “sistema de gêneros” e aspectos desse texto têm uma origem social e po-
“sistemas de atividades”, com a finalidade de elu- dem ser explicados em termos do contexto social
cidar como os gêneros efetivamente se encaixam e em que o texto foi formado”. Essa análise do con-
atuam no conjunto das relações sociais (ver item 4 texto social precede qualquer consideração sobre
adiante). as características intrínsecas do gênero textual.

2.3. A Escola de Sydney ou “Perspectiva De acordo com os autores Freedman e Medway


Sistêmico-Funcional” (1994a), a Escola de Sydney apresenta as seguintes
características:
A Escola de Sydney deve esse nome a sua vincula-
ção com o Departamento de Linguística da Uni- 1. a primazia do social e do papel do contexto
versidade de Sydney, anteriormente dirigido pelo na comunicação dos gêneros, ao lado de uma
estudioso Michael A. K. Halliday. Nesse grupo, o ênfase na elucidação de aspectos textuais ba-
estudo de gêneros caracteriza-se como uma aplica- seados nos esquemas hallidayanos de análise
ção pedagógica da linguística sistêmico-funcional. linguística;
Embora dentro do próprio grupo não haja uma
Capítulo 3 35

2. uma concepção estática de gênero, com ten- social e do contexto na compreensão dos gêneros
dências prescritivistas, refletidas no projeto textuais. De acordo com os autores, as ênfases des-
escolar australiano, chegando a contrariar a sa escola são as seguintes:
teoria linguística hallidayana que lhe serviu de
fonte; 1. A revelação da complexidade das relações en-
tre texto e contexto, que decorre do fato de
3. por outro lado, a “Escola de Sydney” é marca- que ambos os conceitos são também muito
da por uma “postura liberacionista”, que leva complexos;
seus adeptos a considerarem o seu projeto e
a si mesmos como agentes de transformação 2. A defesa de um conceito dinâmico de gênero.
social em favor dos alunos menos favorecidos. A estabilidade do gênero é “provisória e frá-
Termos como “poder” e “dominação” são co- gil”, pois é possível, pelo menos para certos
muns em seus escritos. usuários, “jogar” com os gêneros, embora isso
não seja normalmente permitido ou esperado
Em consonância com as vertentes que, conforme de escritores iniciantes.
dissemos, caracterizam a Escola de Sydney, alguns
dos seus representantes podem ser criticados por A ideia principal é a de que, no que diz respeito
tacitamente aceitarem os gêneros como entidades à produção e compreensão de gêneros textuais,
estáticas, baseando neles uma pedagogia prescriti- “especialistas criticam e questionam; novatos repe-
va, que busca, apenas, prover o acesso aos gêneros tem” (Johns, 1993, p. 14). Vijay Bhatia, outro autor
por parte dos alunos, parecendo esquecer que os importante nessa vertente, reconhece a existência
gêneros são entidades dinâmicas e complexas. Es- de relações de poder entre membros experientes
ses autores tenderiam a ver o ensino de gêneros e membros iniciantes de uma dada comunidade,
como ensino de modelos fixos, o que pode limi- refletidas no trato com as restrições impostas pelas
tar a eficácia do processo pedagógico. Os gêneros, convenções de cada gênero. Assim, a possibilida-
embora inevitavelmente implicados nos processos de de exploração dos gêneros para “efeitos espe-
econômicos e políticos, não deixam de ser “mutá- ciais” demanda uma grande familiaridade com as
veis, revisáveis, localizados, dinâmicos e sujeitos a convenções estabelecidas acerca de seu propósito,
uma ação crítica”. modo de construção e uso. O novato não possui
tal familiaridade, motivo pelo qual “escritores es-
É essa visão crítica que a tendência defendida por pecializados de gêneros muitas vezes parecem ser
Gunther Kress procura despertar, uma vez que esse mais criativos” (BHATIA, 1993, p. 15). Claramen-
autor explicitamente defende a necessidade de se te, para Bhatia, o discurso acadêmico bem como
enfocar, no ensino de gêneros, “as possibilidades o profissional não ocorrem entre iguais. Em suas
e os meios de alterar as formas genéricas” (Kress, palavras, a igualdade é “mais excepcional que ha-
1993, p. 28). Especificamente, Kress postula um bitual” (p. 9).
projeto pedagógico mais ambicioso que o simples
projeto de acesso às formas privilegiadas de gêne- Nesse sentido, o que se deseja é chamar a atenção
ro. Tal projeto, pensado em termos de “reforma para a insuficiência de um tratamento dos gêneros
linguística e social”, deveria “não só proporcionar textuais como modelos de texto para produção.
a todos os cidadãos uma parcela igual do capital Os gêneros devem ser vistos como respostas típi-
cultural, mas, pelo menos, alimentar a possibi- cas dos usuários em múltiplos contextos sociais
lidade de reforma das estruturas e dos processos de funcionamento da língua. Uma vez que esses
existentes, onde quer que eles sejam vistos como contextos são fluidos e dinâmicos, não faz sentido
limitadores das potencialidades humanas” (p. 37). se concentrar, apenas, no ensino das características
formais dos gêneros.
2.4. A Escola Britânica ou “Abordagem
Sociorretórica” Na perspectiva sociorretórica, John Swales defende
a concepção de gênero como um “evento comuni-
Para Freedman e Medway (1994a), os estudos de cativo”. Conforme esse autor:
gênero nessa vertente apresentam, em relação à
Escola de Sydney, um perfil ideológico particular, Um gênero compreende uma classe de eventos comunica-
tivos, cujos membros compartilham um conjunto de pro-
ao lado da premissa comum acerca da primazia do
36 Capítulo 3

pósitos comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos [...] redes sociorretóricas que se formam a fim de atuar em
pelos membros especializados da comunidade discursiva e favor de um conjunto de objetivos comuns. Uma das ca-
dessa forma passam a constituir o fundamento do gênero. racterísticas que os membros estabelecidos dessas comuni-
Esse fundamento modela a estrutura esquemática do dis- dades possuem é a familiaridade com gêneros particulares
curso e influencia e limita a escolha de conteúdo e estilo que são usados nas causas comunicativas desse conjunto
(SWALES, 1990, p. 58). de objetivos. Em conseqüência, gêneros são propriedades
de comunidades discursivas; o que quer dizer que gêneros
Para Swales, o principal critério que transforma pertencem a comunidades discursivas, não a indivíduos,
um grupo de eventos comunicativos em um de- a outros tipos de grupos ou a vastas comunidades de fala
(SWALES, 1990, p. 9).
terminado gênero é a existência de propósitos
comunicativos em comum. Entretanto, além de
apresentarem “um conjunto de propósitos comu- As comunidades discursivas são grupos sociorre-
nicativos”, os gêneros também são marcados por tóricos bastante heterogêneos, que compartilham
padrões de similaridade quanto à estrutura, ao es- objetivos e interesses profissionais, acadêmicos ou
tilo, ao conteúdo e à audiência pretendida. Uma ligados ao lazer, entre outras possibilidades. Essas
vez preenchidas essas expectativas, a comunidade comunidades não são agrupamentos naturais, mas
discursiva na qual circula um determinado gênero surgem e se mantêm relativamente estáveis em tor-
poderia reconhecê-lo em suas diferentes e concre- no dos propósitos e necessidades comunicativas de
tas realizações, a partir de uma noção geral de pro- seus integrantes.
totipicidade.
Mas como podemos reconhecer uma comunidade
No entanto, Swales mostra que existem variadas discursiva? De acordo com Swales, uma comunida-
formas de compreender e definir os gêneros textu- de discursiva se caracteriza pelas seguintes marcas:
ais. Para o autor, as diferentes definições de gêne-
ro são metáforas que têm, cada uma delas, algum 1. A existência de um conjunto de objetivos pú-
mérito em captar algum aspecto relevante do com- blicos amplamente aceitos. No entanto, deve
plexo fenômeno sob descrição. Cada definição, à ser reconhecida a possibilidade de conflitos
sua maneira, lança “em diferentes proporções, e de internos quanto aos objetivos da comunidade
acordo com as circunstâncias, sua própria luz em discursiva;
nossa compreensão” (Swales, 2004, p. 61). O pró-
prio autor seleciona e discute seis dessas metáforas, 2. A posse de mecanismos de intercomunicação
cada uma delas definindo gêneros com diferentes (como boletins, jornais, listas de discussão on-
implicações: line) entre seus membros;

Metáforas Implicações 3. O uso de mecanismos de participação para


(definições de gênero) prover informações e feedback. O uso desses
Frames para a Princípios mecanismos de participação possibilita tanto
ação social orientadores a inovação como a manutenção de sistemas de
Padrões de Expectativas crenças e valores e a ampliação do espaço pro-
linguagem convencionais fissional;
Espécies Historicidades
biológicas complexas 4. O domínio e a utilização de um ou mais gêne-
Gênero

Famílias e Conexões variáveis ros para o encaminhamento de seus objetivos.


protótipos com o centro Porém, o uso de conjuntos ou agrupamentos
Instituições Contextos modela- de gêneros para a realização de objetivos não é
dores; papéis
estático, mas dinâmico;
Atos de fala Discursos
direcionados
5. O desenvolvimento de um léxico específico.
Metáforas sobre gêneros (SWALES, 2004)
Deve-se reconhecer, porém, a expansão cons-
tante desse léxico da comunidade discursiva;
Diretamente relacionada ao conceito de gênero,
Swales ainda destaca a noção de comunidade dis- 6. A admissão de novos membros dotados do
cursiva. Segundo o autor, comunidades discursi- nível apropriado de conhecimento relevante e
vas definem-se como: habilidade discursiva. No entanto, esses proces-
Capítulo 3 37

sos de admissão e promoção interna dos mem- cionados, os membros especializados das co-
bros da comunidade são orientados por uma munidades profissionais e disciplinares mui-
estrutura hierárquica explícita ou implícita. tas vezes exploram os recursos genéricos para
expressar “intenções particulares” e organiza-
cionais ao lado dos “propósitos comunicativos
3. Gêneros Acadêmicos e socialmente reconhecidos”;
Profissionais na Perspectiva 5. Como reflexo de culturas organizacionais e
Sociorretórica disciplinares, o foco dos gêneros se concentra
na atividade social imbricada no interior das
De acordo com Bhatia (1999), o estudo dos gêne- práticas disciplinares e profissionais;
ros deve ser capaz de abranger os vários aspectos
que compõem o fenômeno. Para tanto, o autor 6. Todos os gêneros disciplinares e profissionais
propõe como elementos a serem considerados: possuem uma integridade própria, que geral-
mente se identifica com relação a uma combina-
1. Os propósitos comunicativos definidos como ção de fatores textuais, discursivos e contextuais.
relevantes pela comunidade;
Em síntese, os traços mais importantes a serem
2. Os produtos, entendidos como os textos ou destacados nessa visão de gênero dizem respeito,
gêneros que são produzidos ou lidos; por um lado, ao aspecto convencionado de sua
construção e, por outro, à sua dinamicidade. Esses
3. As práticas, procedimentos e processos discur- dois traços, aparentemente contraditórios, com-
sivos em uso naquele contexto; põem a natureza do gênero de forma central. Nos
termos de Bhatia (2004, p. 24), o gênero se carac-
4. E os participantes, identificados por uma rela- teriza simultaneamente por uma ênfase no aspecto
ção de pertença com a comunidade discursiva convencional e por uma tendência à inovação, o
ou profissional. que gera uma tensão inerente à sua própria cons-
trução e uso. Essa tensão se expressa, de acordo
Na visão de Bhatia (2004, p. 23), a abordagem com o autor, da seguinte forma:
baseada em gêneros compreende “o estudo do
comportamento linguístico situado em contextos 1. Embora sejam identificados por traços con-
acadêmicos ou profissionais institucionalizados”. vencionais, os gêneros mudam e se desenvol-
Concretamente, a concepção de gênero aí defendi- vem constantemente;
da abrange os seguintes pressupostos:
2. Embora estejam associados a padrões de tex-
1. Gêneros são eventos comunicativos, caracteri- tualização típicos, os gêneros costumam ser
zados por um conjunto de propósitos comu- explorados pelos usuários experientes para a
nicativos, identificados e compreendidos pela criação de novos padrões;
comunidade acadêmica ou profissional em
que ocorrem; 3. Embora sirvam a propósitos comunicativos so-
cialmente reconhecidos, os gêneros podem ser
2. Gêneros são construtos altamente estrutura- apropriados para a veiculação de “intenções
dos e convencionados, com pouco espaço para particulares ou organizacionais”;
a contribuição individual em sua construção;
4. Embora sejam frequentemente identificados e
3. Os membros experimentados das comunida- descritos como formas puras, no mundo real,
des profissionais e acadêmicas possuem um co- os gêneros, muitas vezes, se apresentam como
nhecimento e uma compreensão muito maior formas híbridas, mistas ou imbricadas;
do que os novos membros, os aprendizes ou os
de fora sobre o uso e a exploração dos recursos 5. Embora os gêneros possuam nomes típicos,
dos gêneros; nem sempre recebem a mesma interpretação
de todos os membros da comunidade especia-
4. Embora os gêneros sejam construtos conven- lizada;
38 Capítulo 3

6. Embora os gêneros muitas vezes transponham são ampla da produção, circulação e uso dos gêne-
as fronteiras disciplinares, frequentemente se ros, de acordo com Bazerman, reside em “concen-
verificam variações de disciplina para discipli- trar-se no que as pessoas estão fazendo e no modo
na, especialmente no contexto acadêmico; como os textos as ajudam a fazê-lo, e não nos textos
como fins em si mesmos” (2004, p. 319).
7. Embora a análise de gêneros normalmente
seja vista como investigação textual, estudos Em síntese, e nos próprios termos de Bazerman,
mais abrangentes podem utilizar uma varieda- “juntos, os tipos de textos se encaixam em conjun-
de de ferramentas, tais como análise textual, tos de gêneros dentro de sistemas de gêneros, os
técnicas etnográficas, procedimentos cogniti- quais fazem parte dos sistemas de atividade huma-
vos e análise computacional, entre outras. na” (2004, p. 311). Assim, entende-se que, por meio
dos textos, as pessoas criam “novas realidades de
Como você pode verificar, a Escola Britânica ou sentido, relação e conhecimento” (BAZERMAN,
Sociorretórica é uma abordagem bastante adequa- 2004, p. 309), que podem ser definidas como “fa-
da e produtiva, especialmente para o estudo dos tos sociais” que vieram a existir pela mediação dos
gêneros textuais em contextos acadêmicos e pro- textos. O foco analítico, aqui, se concentra no pa-
fissionais. pel que os textos desempenham na realização das
atividades das pessoas e não, nos próprios textos.

4. Produção, Uso e Circulação O ambiente acadêmico em geral, como um dos


muitos domínios da atividade humana, eviden-
de Gêneros no Ambiente
temente abrange e produz incontáveis gêneros,
Acadêmico localizáveis dentro de conjuntos de gêneros, que,
por sua vez, se integrarão a sistemas de gêneros e
Conforme posto anteriormente, para descrever a sistemas de atividades. Basta considerar, por exem-
forma como os gêneros se apresentam no comple- plo, o conjunto de gêneros que um estudante de
xo das variadas atividades sociais, Charles Bazer- graduação deverá produzir até chegar à conclusão
man (2004) propõe os conceitos de conjunto de de seu curso. Ou nos variados gêneros que um
gêneros, sistemas de gêneros e sistemas de ativi- professor produz no cumprimento das diversas res-
dades. ponsabilidades impostas por sua vida profissional
e acadêmica. Pode-se presumir que um professor
Um conjunto de gêneros designa a totalidade dos universitário deverá produzir um conjunto de gê-
gêneros que um determinado indivíduo, no exercí- neros bastante complexo para atuar intensamente
cio de sua função profissional, por exemplo, prova- em sua profissão. É fácil perceber a inviabilidade
velmente virá a produzir, quer falando quer escre- de se tentar descrever todos os gêneros, conjuntos
vendo. Um sistema de gêneros abrange os diversos de gêneros e sistemas de gêneros produzidos por
conjuntos de gêneros produzidos por pessoas que alunos, professores e outros atores sociais no am-
desempenham atividades similares e inter-relacio- biente acadêmico.
nadas de modo organizado, mas inclui também as
relações padronizadas que se desenrolam na pro- Apenas a título de exemplo, podemos traçar o se-
dução, circulação e utilização desses gêneros. Por guinte percurso, pensando nos processos que ge-
sua vez, o sistema de gêneros se caracteriza como ram a produção escrita, publicada por um profes-
parte de um sistema de atividades, sendo este sor universitário. O professor, localizado em um
compreendido como os enquadres que organizam determinado departamento universitário, vincula-
a produção dos gêneros e a execução das demais do a um programa de pós-graduação, desenvolve
ações próprias do ambiente. uma determinada linha de pesquisa. Ele, junta-
mente com outros colegas e/ou alunos de gradu-
Em certas atividades, os gêneros podem ser predo- ação e pós-graduação, produz um projeto de pes-
minantemente orais, mas noutras, eles poderão ser quisa, que será submetido a um órgão de fomento.
essencialmente escritos. Ainda noutras situações, O encaminhamento do projeto poderá requerer a
como entre os atletas em um jogo de futebol, por produção de outros gêneros, como algum tipo de
exemplo, predominará a atividade física e não, a comunicação por e-mail ou carta, ou algum de tipo
produção de gêneros escritos. A vantagem dessa vi- formulário a ser preenchido. Uma vez aprovado,
Capítulo 3 39

o acompanhamento do projeto exigirá a produção • Em primeiro lugar, devemos entender gênero


de relatórios sobre o andamento da pesquisa. textual como evento comunicativo dotado
de um ou mais propósitos comunicativos no
Esse professor, como fruto de sua participação no sentido em que é definido por Swales (1990)
projeto de pesquisa, produzirá comunicações ou e Bhatia (2004), entre outros. Assim compre-
conferências para congressos; para isso, provavel- endidos, os gêneros textuais se apresentam em
mente submeterá um resumo ou abstract do seu situações dinâmicas e recorrentes da vida diá-
trabalho à comissão organizadora do congresso; ria, assumindo padrões característicos em sua
uma vez apresentado oralmente, o trabalho será composição, estilo e propósitos, de forma a
impresso e publicado na forma de um artigo em realizar ações sociais (MILLER, 2009) no qua-
periódicos especializados e/ou nos anais do con- dro das relações pessoais, profissionais, institu-
gresso. Do mesmo projeto de pesquisa e dos tra- cionais e sociais em geral.
balhos originalmente apresentados em congressos,
obras individuais ou coletivas poderão ser organi- • Em segundo lugar, concebemos os gêneros
zadas e publicadas na forma de livro. textuais como formas de vida ou “enquadres
para a ação social”, concordando com Bazer-
Na publicação do livro, além do conteúdo central, man (1997, p. 19). Os gêneros devem ser vis-
qual seja, um ensaio individual ou uma coletânea tos como realidades localizadas no interior de
de artigos por diversos autores, entre eles o referi- práticas sociais complexas. Uma implicação
do professor, diversos outros gêneros poderão ser disso é que a análise de gêneros textuais não
produzidos. A mesma pessoa que contribuiu com pode ser reduzida à análise de formas, embora
um capítulo para o livro pode ser convidada a es- eles obviamente apresentem “padrões sócio-
crever uma apresentação, prefácio ou introdução. comunicativos característicos”, como ressalta
Pode ser que ela produza um desses textos na qua- Marcuschi (2003, p. 17).
lidade de organizadora da obra. Ou pode ser convi-
dada, porque seu nome serve como referencial de • Em terceiro lugar, embora o gênero textual
autoridade na respectiva área disciplinar. não deva ser analisado essencialmente como
forma, pois admitimos com Atkinson que
Dentro do mesmo processo, o autor ou colabo- “critérios formais jamais serão suficientes para
rador do livro em si pode ainda produzir gêneros distinguir os gêneros” (1999, p. 8), isso não sig-
como dedicatória, epígrafe e agradecimentos. nifica que os gêneros não apresentem algum
Portanto, se considerarmos individualmente as tipo de padrão mais ou menos estável, como já
pessoas envolvidas com a produção dos gêneros apontava Bakhtin (1997), entre muitos outros.
acadêmicos, incluídos os introdutórios, podemos Entendemos que as dimensões concretas des-
visualizar, apenas nesse aspecto particular da vida sa estabilidade variam de gênero para gênero,
acadêmica, um conjunto de gêneros bastante ex- numa relação complexa com fatores sociais va-
pressivo relacionado com cada um desses atores. riados, tais como as relações de poder e o grau
Esses conjuntos individuais de gêneros formarão de inserção na respectiva comunidade discur-
complexos sistemas de gêneros, por meio dos quais siva ou de práticas. Os gêneros são entidades
o jogo das relações sociais, envolvendo questões mais ou menos estáveis, maleáveis mas tam-
como prestígio, autoridade e poder, se desenrolará bém dotados de propriedades que lhes permi-
no interior do sistema de atividades ligado à pro- tem ser vistos como “fenômenos psicossociais
dução acadêmica impressa. de reconhecimento” (BAZERMAN, 2004).
Essas são facetas da complexidade dos gêneros
textuais, reflexo da complexidade da própria
5. Resumindo: O Que Entendemos realidade social da qual procuram dar conta.
Por Gênero Textual • Em quarto lugar e em decorrência dos pontos
anteriores, acreditamos que os gêneros podem
Considerando todas as escolas e suas abordagens
ser analisados do ponto de vista de sua cons-
específicas à problemática dos gêneros textuais,
trução textual e retórica, como ponto de parti-
como podemos defini-los de modo abrangente?
da para uma análise mais profunda, do gênero
Vejamos.
como construto sociocomunicativo e socioin-
40 Capítulo 3

teracional.

• Em quinto e último lugar, vemos o gênero


como uma entidade definida essencialmente SAIBA MAIS!
pelo seu propósito comunicativo, sem descon- temas tratados neste
Para aprofundar os
siderar a importância de outros aspectos como umas sugestões:
capítulo, seguem alg
a forma composicional, o conteúdo e o supor-
-
te em que o gênero se realiza. sobre o uso de gêne
• Para saber mais lei tur a, lei a
o de
ros textuais no ensin
e se encontra em
o artigo científico qu
br/paginas/ensi-
http://www3.unisul.
/Port/99.pdf.
no/pos/linguagem/cd
temática do ensino
• Ainda sobre a
veja um texto
de gêneros textuais,
ão a partir dos
que analisa a quest
rri cu lar es Nacionais
Parâmetros Cu
ioeste /prppg/
.br
em http://www.un
istas/travessias/
RESUMO mestrados/letras/rev
s/l ing ua ge m/ pd fs/
ed _0 04 /a rti go
xtu ais %2 0- %2 0
G% EA ne ro s% 20 Te
Cristina.pdf.
Neste capítulo, apresentamos um pa-
norama das principais teorias de gêne- de de recursos so-
• Para uma varieda
consulte o blog
ros textuais, enfatizando a perspectiva bre gêneros textuais,
a GenTe (Gêne-
sociorretórica, que se concentra prio- do Grupo de Pesquis
En sin o), no endereço
ritariamente no estudo dos gêneros do ros Textuais e
gspot.com/.
mundo acadêmico e profissional. No http://grupogente.blo
desenvolvimento do tema, você teve
contato com os principais autores e
seus conceitos nessa área de tão gran-
de importância para os estudos da lín-
gua, especialmente no que diz respeito
à leitura e produção de textos. Como
dissemos no início do capítulo, o tema
é por demais pertinente, considerando
a centralidade atual do ensino baseado
na perspectiva dos gêneros textuais. Atividades | O estudo de gêneros textuais
não é apenas teórico. Encontramos os gêneros
em todas as atividades que desenvolvemos no
dia a dia. Nos estudos, inevitavelmente lida-
mos com gêneros. Considerando isso, faça o
que se pede:

1. Elabore uma listagem dos gêneros textuais


acadêmicos (mínimo de 05) com que você teve
contato na prática (lendo, escrevendo, ouvin-
do ou falando) como consequência de estar
cursando Letras a Distância;

2. Descreva brevemente sua experiência em


lidar com esses gêneros: dificuldades, desco-
bertas etc.
Capítulo 3 41

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In:
Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1997. p. 279-326.

BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipifica-


ção e interação. São Paulo: Cortez, 2005.

_____. Escrita, gênero e interação social. São


Paulo: Cortez, 2007.

BEZERRA, Benedito G. A distribuição das infor-


mações em resenhas acadêmicas. 2001. Dis-
sertação (Mestrado em Linguística) – Universi-
dade Federal do Ceará, Fortaleza.

_____. Gêneros introdutórios em livros acadê-


micos. 2006. Tese (Doutorado em Linguística)
– Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2006.

BIASI-RODRIGUES, Bernardete; ARAÚJO, Jú-


lio César; SOUSA, Socorro Cláudia Tavares de
(orgs). Gêneros textuais e comunidades discur-
sivas: um diálogo com John Swales. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2009.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de lingua-


gem, texto e discursos: por um interacionismo
sócio-discursivo. – São Paulo: EDUC, 1999.

DIONÍSIO, Angela P.; MACHADO, Anna Ra-


chel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.) Gêne-
ros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna,
2002.

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de


gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola,
2008.

MILLER, Carolyn R. Estudos sobre gênero textu-


al, agência e tecnologia. Recife: Ed. Universitá-
ria da UFPE, 2009.
4
Capítulo 4 43

Temas em Linguística
Aplicada ao Ensino
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra
Carga Horária | 15 horas

Objetivos Específicos
• Compreender diversas concepções de língua/linguagem e suas implicações
para o ensino;

• Entender a proposta de um ensino de língua baseado na diversidade de gê-


neros textuais;

• Refletir sobre a necessidade de uma pedagogia da variação linguística.

Introdução
Neste capítulo, você conhecerá mais especificamente como se dá a relação entre
linguística e ensino de língua portuguesa. Inicialmente, veremos como uma con-
cepção adequada do que seja a língua e a linguagem está na base de um ensino
de qualidade em língua portuguesa, uma vez que permite uma visão mais abran-
gente do que se deve estudar e aprender, não se limitando à mera transmissão
de formas gramaticais. Num segundo momento, destacaremos a aplicação do
tema dos gêneros textuais, como contribuição da linguística textual em diálogo
com outras abordagens linguísticas, ao ensino de leitura e produção de textos na
escola. Por último, destacaremos a contribuição da sociolinguística, que chamou
a atenção para a língua como um complexo de variedades linguísticas a serem
reconhecidas e valorizadas pela escola, sem esquecer a importância de se concen-
trar no padrão culto como instrumento de empoderamento social dos alunos.
Desta forma, você terá, neste capítulo final de Linguística II, uma breve noção
das relevantes contribuições que as ciências da linguagem têm trazido para o
ensino de língua portuguesa.

1. Concepções de Língua/Linguagem e suas Implicações


para o Ensino

A concepção que o professor tem de sua língua, ou do que é, afinal de contas, a


linguagem humana, determina, em larga medida, a maneira como esse professor
se comporta em sala de aula, que conteúdos privilegia no ensino, como vê seus
alunos enquanto usuários da língua, como trata as variedades linguísticas não
padrão trazidas para o ambiente escolar e de que forma encara a leitura e a pro-
dução de textos, entre outras coisas.
44 Capítulo 4

Embora muitos não se deem conta disso, o fato o uso concreto, histórico e cultural da linguagem,
é que há mais de uma maneira de se conceber o dando atenção, ainda, a aspectos, como a cognição
que é língua/linguagem. A linguística, particular- e a interação social.
mente, trouxe a possibilidade de se encarar o fenô-
meno da linguagem humana de várias maneiras, Como você pode perceber, essas concepções tão
umas consideradas mais, outras menos adequadas. díspares só podiam estar na base de noções igual-
mente diferentes quando se trata de responder à
Como você aprendeu no Capítulo 1, os estudos da questão: Para que serve a língua/linguagem? O que
linguagem, desde o surgimento da linguística no significa, afinal, usar uma língua? Quem é o sujeito
século vinte, seguiram um percurso dos modelos usuário dessa língua? O que significa ler e escrever
formalistas aos modelos funcionalistas. A polêmi- textos numa determinada língua? Vejamos as no-
ca formalismos x funcionalismos teve uma grande ções que se tornaram clássicas:
força, com um predomínio inicial das visões for-
malistas e uma gradual supremacia dos enfoques 1.1. Língua como Representação
funcionalistas a partir dos últimos vinte e cinco ou do Pensamento
trinta anos do século passado. Apesar de hoje pre-
dominarem as concepções funcionalistas, isto é, Nessa concepção, a língua é um sistema abstrato
aquelas baseadas no uso da linguagem mais do que e autossuficiente, e o contexto de uso não tem
em sua forma, ambos os modelos ainda exercem qualquer importância. Segundo Oliveira e Wilson
uma grande influência sobre o modo como se con- (2008, p. 236),
cebe a linguagem e a língua e, consequentemente,
sobre como são ensinadas. “de acordo com tal perspectiva, não importa à análise
quem, como, quando ou para que (se) faz uso da língua,
Os modelos formalistas, representados especial- uma vez que o que está no foco da atenção é tão-somente
mente pelo estruturalismo, originado em Saus- a própria estrutura linguística, de certo modo descolada
sure, e pelo gerativismo, proposto por Chomsky, de todas as interferências comunicativas que cercam sua
caracterizaram-se por apresentar a língua como sis- produção e recepção”.
tema de formas virtual e abstrato. Segundo o estru-
turalismo, esse sistema ou estrutura era de nature- Conforme Koch e Elias (2006), na concepção de
za social, e não individual. Com isso, Saussure, por língua como representação do pensamento, acredi-
exemplo, queria dizer que o indivíduo não tinha ta-se que o texto é produzido por um autor-sujeito
muita importância na definição da língua, pois ela psicológico, individual, soberano em sua vontade
seria uma espécie de convenção social, coletiva e e ações. Esse autor se utiliza da língua, adquirida
abstrata, acima do uso concreto e, portanto, dos como um sistema formal, para articular e exteriori-
indivíduos históricos e reais. Já no modelo gerati- zar seu pensamento.
vista, a língua seria uma estrutura mental de cará-
ter imanente e inata à espécie humana. A língua, As implicações de uma visão como essa para o en-
gerada por um dispositivo biológico, também não sino são claras. Se a escrita é o processo de exte-
dependia, em sua análise científica, de se conside- riorização e registro do pensamento, a leitura, por
rar o uso individual, que seria variável e caótico, sua vez, consiste na atividade de captação da repre-
enquanto o sistema em si seria matematicamente sentação mental impressa no texto pelo autor. As-
coerente. sim, a escrita seria um processo ativo de registro do
pensamento, enquanto a leitura seria um processo
Os paradigmas funcionalistas, por sua vez, rom- passivo de captação das ideias do autor, sem con-
piam com os formalismos por encarar a língua siderar as experiências e os conhecimentos prévios
como entidade funcional, interacional, cognitiva, do leitor. Uma visão como essa seria extremamente
social e cultural, sem desprezar o aspecto linguís- prejudicial para a formação de leitores na escola.
tico em si, ou seja, o componente formal que, em Todo o foco desse tipo de concepção está no su-
última instância, permite a interação numa deter- jeito falante ou escritor e em suas intenções, vistas
minada língua. Ao contrário dos formalismos, no como recuperáveis pelo ouvido ou pela leitura.
entanto, os funcionalismos colocam o indivíduo
em posição de destaque e elegem como objeto de Do ponto de vista da análise linguística ou gramati-
análise não mais o sistema formal e abstrato, mas cal, essa concepção tende a se pautar pelas noções
Capítulo 4 45

de certo e errado, além de limitar as atividades à do pelo sistema linguístico e caracterizado como
palavra, ao sintagma ou à frase. O trabalho com uma “não-consciência”. O texto, nessa concepção,
textos se desenvolve em torno da ideia da identifi- é visto como mero produto da codificação de um
cação de um sentido único, refletido em atividades emissor; o papel do leitor é somente decodificar a
do tipo “retire a ideia central do texto”. mensagem. Para isso, precisa conhecer o código.
Tudo está no código, e tanto emissor como recep-
1.2. Língua como Instrumento tor são apenas usuários de um código sobre o qual
de Comunicação não exercem nenhuma interferência. Apenas pro-
curam usá-lo bem, livre de “ruídos” que perturbem
A língua e a linguagem também foram vistas, a a comunicação.
partir de certa interpretação dos estudos de Ro-
man Jakobson, linguista proveniente do Círculo Por seu lado, a leitura exige do leitor o pronto re-
de Praga, como um instrumento de comunicação. conhecimento do sentido das palavras e das estru-
Essa concepção teve um período de tal popularida- turas do texto. Temos assim, como na concepção
de que a disciplina de língua portuguesa chegou a anterior, uma ênfase na forma e na estrutura. O
ser chamada, no que seria hoje o Ensino Funda- foco desse tipo de leitura está na linearidade do
mental, de “comunicação e expressão”. No centro texto, e também aqui a leitura é uma atividade de
dessa abordagem, estavam as chamadas funções da reconhecimento e reprodução de sentidos que se
linguagem, respectivamente: expressiva, conativa, consideram “codificados”, prontos e acabados.
referencial, metalinguística, poética e fática. Cada Esse tipo de abordagem à língua foi e é responsável
uma dessas funções está ligada a um dos elemen- por um ensino formalista, gramaticalista, pouco
tos envolvidos no processo de comunicação: emis- capaz de lidar com textos reais e pouco sensíveis às
sor, receptor, referente, código, mensagem e canal. condições sociais em que são produzidos.
Confira na ilustração abaixo:
1.3. Língua como Lugar de
Interação Social
Fonte: http://acd.ufrj.br/~pead/tema01/lingfuncoes.html

(função referencial)
Na concepção de língua como lugar de
Referente interação social, que Oliveira e Wilson
Mensagem (2008) preferem chamar de “concepção
(função poética) funcional e pragmática”, a linguagem é
Destinador Destinatário encarada como um fenômeno constituí-
Contato do e constituinte da interação humana e
(função expressiva) (função conativa)
(função fálica) da atividade sociocultural, atividade dia-
lógica por natureza. As estruturas linguís-
Código
ticas deixam de ocupar o primeiro plano
(função metalinguística) na atenção dos estudiosos e passam a ser
Figura 1: Funções da linguagem
vistas como um aspecto entre outros que
constituem e possibilitam as práticas dis-
cursivas. Os aspectos dialógicos e socioin-
teracionais são vistos como responsáveis inclusive
Segundo Oliveira e Wilson (2008), apesar de se
por alterações no próprio sistema linguístico, que
originar de uma concepção funcionalista da lin-
está sujeito à mudança e variação decorrentes das
guagem, essa abordagem tratou o esquema das
diversas situações em que a linguagem é utilizada.
funções de Jakobson como algo fora de contextos
reais de interação e, dessa forma, transformou as
Conforme Koch e Elias (2006), ao contrário das
funções em entidades ideais e estruturais, descui-
concepções anteriores, na concepção interacional
dando dos problemas reais que interferem na situ-
e dialógica da língua, tanto o autor como o leitor
ação de comunicação.
são tidos como sujeitos sociais ativos, construtores
e construídos no texto. O texto, consequentemen-
Para Koch e Elias (2006), a concepção de língua
te, é visto como lugar de interação e de constitui-
como código ou instrumento de comunicação
ção dos interlocutores, e não como uma realidade
caracteriza o autor como um sujeito determina-
independente e preexistente.
46 Capítulo 4

A leitura se torna, por sua vez, uma complexa ati- Em outro documento oficial, intitulado Orienta-
vidade interativa de produção de sentidos, que ções Educacionais Complementares aos Parâme-
mobiliza não só os elementos linguísticos mas tam- tros Curriculares Nacionais (PCN+EM), também
bém vários outros saberes envolvidos no evento co- se destaca a grande importância dada aos gêneros.
municativo. Numa concepção interacional de lin- Segundo os autores do documento, quando se pen-
guagem, o foco da leitura se desloca do autor e do sa no trabalho com textos, o conceito de gêneros
texto como elementos isolados para uma relação se torna “indissociável”, uma vez que os gêneros re-
integrada entre autor e leitor, mediada pelo texto. presentam a forma como os textos se materializam.
Refletindo uma conhecida passagem bakhtiniana,
O leitor, na interação com o texto, não só decodi- os PCN+EM afirmam que os gêneros devem ser
fica informações explícitas mas também participa estudados “tomando-se como pilares seus aspectos
ativamente da construção do sentido. A leitura de temático, composicional e estilístico” (p. 77).
um texto, pois, considera outras experiências do
leitor, e não apenas o conhecimento do código lin- Em sua formação, os alunos devem ter a oportu-
guístico. É essa concepção mais complexa, conside- nidade de travar conhecimento com gêneros es-
rando não só a estrutura linguística mas também pecíficos que efetivamente façam ou possam vir a
os fatores contextuais mais amplos (sociais, cultu- fazer parte de suas vidas em todos os âmbitos. En-
rais, cognitivos e interacionais), que tem alimenta- tretanto, numa leitura crítica dos PCN, Marcuschi
do as propostas e diretrizes para o ensino de língua (2008) levanta a questão:
portuguesa em nossos dias.
será que existe um gênero ideal para
tratamento em sala de aula?
2. Gêneros Textuais e Ensino de
Poderíamos acrescentar muitas outras:
Língua Portuguesa
Que gêneros devem ser ensinados no ensino
2.1. Os PCN e o Ensino de Gêneros fundamental e médio?
Com a implantação dos Parâmetros Curriculares Como selecionar os gêneros para cada nível?
Nacionais (PCN) a partir dos últimos anos do sé-
culo vinte, o ensino de língua portuguesa confor- A escola deve privilegiar os gêneros da escrita
me proposto pelas diretrizes nacionais de ensino ou deve incluir também os gêneros orais?
assumiu um caráter muito mais afinado com o
progresso da pesquisa nas diversas disciplinas que E quanto aos gêneros que circulam em
integram a linguística. ambientes digitais como a Internet?
O ensino de leitura e escrita, por exemplo, não tem Qual o lugar deles no ensino escolar?
mais como ser realizado sem alguma referência ao
conceito de gêneros textuais (ou discursivos). Con- Como você pode ver, são muitas as questões e tal-
forme os Parâmetros Curriculares Nacionais para vez ainda não haja respostas adequadas para todas
o Ensino Médio (PCNEM), “o estudo dos gêneros elas.
discursivos e dos modos como se articulam propor-
ciona uma visão ampla das possibilidades de usos da Do ponto de vista do ensino de leitura e de escrita,
linguagem, incluindo-se aí o texto literário” (p. 8). de acordo com os próprios PCN, parece haver gê-
neros cujo tratamento é mais adequado para uma
ou outra finalidade. Ou seja, parece haver gêneros
Fonte: http://www.cdcc.usp.br/
cda/pcn/pcm-mais-astrono-

que seria mais produtivo ensinar do ponto de vista


da escrita e outros que seriam mais adequados do
mia-e-astrofisica.html

ponto de vista da leitura. E isso porque no mundo


real há gêneros que a maioria de nós só “consumi-
mos”, ou seja, podemos ler ou ainda ouvir, mas
Figura 2: PCN+EM não podemos produzi-los.
Capítulo 4 47

Por exemplo, todos nós podemos tanto escrever uns e outros podem ser mais ou menos complexos,
como ler um bilhete ou um e-mail. Todos nós Po- dependendo de fatores como os propósitos, os par-
demos ler uma reportagem de jornal, contanto ticipantes da interação e outros.
que, de alguma forma, tenhamos acesso ao jornal.
Entretanto, poucas pessoas podem escrever uma Por fim, Marcuschi (2008) critica os PCN por não
reportagem de verdade e, ainda mais, vê-la publi- fazerem uma distinção sistemática entre tipos (en-
cada no jornal. Esse aspecto chama a atenção para tendidos como construtos teóricos e linguísticos
o fato de que não basta ensinar modelos de gêne- que definem a organização textual em padrões
ros textuais, mas é preciso refletir sobre o que os como narrativa, descrição, argumentação, injun-
alunos realmente vão fazer com o que estão apren- ção e exposição) e gêneros textuais (entidades em-
dendo. píricas que são os textos concretamente produzi-
dos e recebidos no dia a dia: e-mails, cartas, ofícios,
Será útil ensinar a escrever algo que os alunos editoriais, anúncios, avisos, telefonemas etc.). De
nunca irão usar de verdade? fato, como mostra Alves (2010), a confusão ou a
não distinção entre tipos e gêneros textuais, que
Neste caso, é possível que o mais indicado seja en- faz toda a diferença entre o ensino tradicional de
sinar o aluno a compreender aquele gênero, não redação e o ensino atual de leitura e escrita, tam-
só do ponto de vista formal mas também do ponto bém é comum na escola e traz grandes dificulda-
de vista discursivo. Isso significa incluir na reflexão des para professores e alunos. Não é possível haver
a pergunta sobre a relação entre gêneros e poder, ensino baseado na diversidade de gêneros textuais
entre gêneros e papéis sociais: por que algumas sem se fazer claramente essa distinção.
pessoas podem escrever textos que têm grande in-
fluência na vida dos outros, e por que a maioria só Por último, Marcuschi (2008) ainda critica os PCN
pode consumir esses textos? Por esse caminho, os por sugerirem o trabalho com gêneros pouco co-
gêneros textuais passam a ser reconhecidos como muns na vida diária, desprezando, consequente-
parte da própria vida social com suas ideologias e mente, gêneros que seriam muito mais relevantes
relações desiguais entre as pessoas. para os alunos. Em especial, tendem a ser pouco
trabalhados ou mesmo esquecidos os gêneros da
Marcuschi (2008) destaca que os PCNs correta- oralidade, ou pela pouca tradição que a escola tem
mente defendem uma relação entre oralidade e es- de trabalhar com eles, ou porque se julga que eles
crita no contexto do contínuo de gêneros textuais. não precisam ser ensinados. É que o trabalho com
Quer dizer, o ensino de gêneros deverá considerar a oralidade em sala de aula costuma se reduzir à
que não há uma oposição radical entre gêneros conversa informal entre os alunos, em atividades
orais e gêneros escritos. Não há uma relação di- escolares, trabalhos em grupo etc. Os gêneros orais
cotômica, segundo a qual os gêneros da oralidade públicos mais formais tendem a não ser enfatiza-
seriam caóticos, desorganizados e não planejados, dos em situações didáticas.
enquanto os gêneros da escrita seriam marcados
pela ordem, organizados e planejados. Ressalte-se que essas críticas dirigidas aos PCN não
invalidam a constatação de que com eles temos um
Nesse contexto, também é bom lembrar que a grande avanço no que diz respeito à proposta de
terminologia bakhtiniana de gêneros primários e trabalho com a língua portuguesa na escola, espe-
gêneros secundários não corresponde a uma divi- cialmente quando pensamos em como o ensino
são entre gêneros orais e escritos. Isso quer dizer estava reduzido a questões meramente formais e
que há gêneros orais que são bastante complexos, voltadas para as estruturas linguísticas. Vejamos, a
como um debate entre candidatos a cargos políti- propósito, como uma pedagogia de gêneros assu-
cos, por exemplo, e gêneros escritos que são bas- me uma forma específica por meio das chamadas
tante simples, como um bilhete. Nesse caso, nem o sequências didáticas.
debate é um gênero primário somente por ser oral,
nem o bilhete é um gênero secundário apenas por 2.2. Ensino de Gêneros por Sequências
ser escrito. Não foi intenção de Bakhtin opor, sem Didáticas
mais nem menos, a oralidade e a escrita. No ensi-
no, é preciso considerar o contínuo em que se en- Uma sequência didática pode ser definida como
quadram tanto os gêneros orais como os escritos:
48 Capítulo 4

“um conjunto de atividades escolares organizadas, de ma- plares do gênero aos alunos. Essa apresentação
neira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou inclui a leitura/audição dos gêneros pelos alunos
escrito” (MARCUSCHI, 2008). com acompanhamento do professor.

Assim, com a finalidade de apresentar um deter- A produção inicial é a etapa em que se dá a pri-
minado gênero aos alunos, a sequência didática meira formulação do texto pelos alunos por meio
proporciona um trabalho gradual, dividido em di- de tarefa realizada coletiva ou individualmente.
versas etapas, que culminam com a produção do Do ponto de vista da avaliação, pode ser atribuída
referido gênero como avaliação final do processo. uma nota, mas é necessário se ter, em mente, que
A Figura 3 exemplifica as partes que compõem os alunos ainda não têm todos os elementos para
uma sequência didática: que lhes seja cobrada uma produção mais consoli-
dada. A produção inicial pode até mesmo ter a for-
ma de um esboço geral, como um primeiro treino
Apresentação
para ajustes posteriores. O fundamental é que essa
da Situação etapa será seguida de revisões e avaliações necessá-
rias até chegar ao estágio final.
Produção
Inicial Os módulos, embora exemplificados como três
na ilustração, podem ser vários, até que os alunos
tenham treinado o suficiente a produção, chegan-
módulo 1 do-se à elaboração final para a elaboração final do
texto com sua avaliação somativa. Inicialmente,
trabalham-se os problemas que apareceram na pri-
módulo 2
meira produção. Por exemplo, como foi o plane-
jamento do texto? Foi adequado ou é necessário
módulo 3
enfatizar mais esse passo?
Fonte: Marcuschi (2008)

Em seguida, podem-se fazer atividades de observa-


Produção ção e análise de textos bem como comparar textos
Final do mesmo gênero ou não, dependendo dos aspec-
tos que o professor deseja destacar. É aconselhá-
Figura 3: Sequência didática
vel que os problemas sejam analisados coletiva e
democraticamente, incentivando-se a participação
do maior número possível de alunos.
A etapa denominada apresentação da situação de-
fine a situação em que é formulada a tarefa para os No processo, espera-se, ainda, que professor e alu-
alunos. É o momento em que se definem os prin- nos trabalhem com diferentes sequências ou tipos
cipais aspectos da tarefa, dos objetivos e de outros textuais. É o momento também de se ressaltar a
aspectos, como, por exemplo, decidir a modalida- aquisição de linguagem técnica sobre o gênero e a
de de produção do gênero, se oral ou escrita. Em área a que pertence. Os alunos podem ser estimu-
seguida, é necessário definir qual gênero será pro- lados a produzir glossários contendo as definições
duzido, quais serão os destinatários desse gênero, mais relevantes para o estudo.
ou seja, para quem se vai produzi-lo, qual é a forma
de produção (pode ser para veiculação em rádio, A última etapa é a produção final do gênero,
jornal, blog etc.). acompanhada de avaliação somativa. Nessa etapa,
o aluno deve ter obtido controle satisfatório sobre
A sequência didática pode ser planejada como um sua própria aprendizagem, saber o que fez, por que
projeto coletivo que resultará na produção do gê- e como. Deve ser capaz de selecionar a situação em
nero. Ainda na apresentação da situação, definem- que o gênero pode ser produzido. A avaliação deve
se os conteúdos a serem desenvolvidos. Os alunos considerar tanto os progressos do aluno como o
podem ser solicitados a fazer uma pesquisa sobre a que lhe falta para chegar a uma produção efetiva
área em que se situa o gênero sob estudo, após o do gênero pretendido.
que chegará a hora de o professor apresentar exem-
Capítulo 4 49

2.3. Agrupamento de Gêneros e Progressão

Outra contribuição da linguística para o ensino do texto na escola, também relacionada com o conceito
de gêneros, consiste em propor seu agrupamento e distribuição pelas diversos níveis de ensino, conforme
critérios bem definidos. Com base na proposta de Schneuwly e Dolz (2004), os gêneros são agrupados de
acordo com o trabalho a ser feito por meio de sequências didáticas, considerando-se:

1. Os domínios sociais de comunicação, por exemplo, “documentação e memorização das ações huma-
nas”;

2. Os aspectos tipológicos, por exemplo, “relatar”, que aponta para gêneros organizados linguisticamente
em torno de uma tipologia textual narrativa;

3. As capacidades de linguagem dominantes, por exemplo, a “representação, pelo discurso, de experiên-


cias vividas, situadas no tempo”.

Esses três aspectos, intimamente inter-relacionados, apontam para gêneros específicos a serem ensinados
em determinados momentos da formação escolar dos alunos. No caso exemplificado, os gêneros cor-
respondentes sugeridos incluem relato de experiência, testemunho, diário pessoal e reportagem, entre
outros.

Uma questão importante é que o critério de agrupamento são as modalidades retóricas que correspondem
aos tipos textuais ou sequências tipológicas contidas no interior dos gêneros. Em outras palavras, significa
uma decisão metodológica de ensinar sobre textos por meio de gêneros e não de tipos textuais, como se
fazia tradicionalmente. Vejamos o quadro completo com a sugestão de alguns gêneros que poderiam ser
trabalhados em cada uma das cinco subdivisões:

Domínios sociais de Comunicação Exemplos de Gêneros Escritos e Orais


Aspectos tipológicos
Capacidades de linguagem dominantes

Cultura literária ficcional Conto maravilhoso/ Conto de fadas/ Fábula/


Narrar Lenda/ Narrativa de aventura/ Narrativa de
Mimese da ação através da criação da intriga ficção científica/ Narrativa enigma/ Narrativa
no domínio verossímil mítica/ Sketch ou história engraçada/ Biografia
romanceada/ Novela fantástica/ Conto/ Crôni-
ca Literária/ Adivinha/ Piada

Documentação e memorização das ações hu- Relato de experiência vivida/ Relato de uma
manas viagem/ Diário ìntimo/ Testemunho/ Anedo-
Relatar ta ou caso/ Autobiografia/ Curriculum vitae/
Representação pelo discurso de experiências Notícia/ Reportagem/ Crônica social/ Crônica
vividas, situadas no tempo esportiva/ História/ Relato histórico/ Ensaio ou
perfil biográfico/ Biografia

Discussão de problemas sociais controversos Textos de opinião/ Diálogo argumentativo/


Argumentar Carta de Leitor/ Carta de reclamação/ Carta
Sustentação, refurtação e negociação de toma- de solicitação/ Deliberação informal/ Deba-
da de posição te regrado/ Assembléia/ Discurso de defesa
(Advocacia)/ Discurso de acusação (Advocacia)/
Resenha crítica/ Artigos de opinião ou assina-
dos/ Editorial/ Ensaio
50 Capítulo 4

Domínios sociais de Comunicação Exemplos de Gêneros Escritos e Orais


Aspectos tipológicos
Capacidades de linguaguem dominantes

Transmissão e construção de saberes Texto expositivo (em livro didático)/ Exposição


Expor oral/ Seminário/ Conferência/ Comunicação
Apresentação textual de diferentes formas dos oral/ Palestra/ Entrevista de especialista/ Ver-
saberes bete/ Artigo enciclopédico/ Texto explicativo/
Tomada de notas/ Resumo de textos expositivos
e explicativos/ Resenha/ Relatório científico/
Relatório oral de experiência

Intruções e prescrições Instruções de montagem/ Receita/ Regulamen-


Descrever Ações to/ Regras de jogo/ Instruções de uso/ Coman-
Regulação mútua de comportamento dos diversos/ Textos prescritivos

Figura 4: Agrupamento de gêneros


Fonte: Schneuwly e Dolz (2004)

Nessa proposta de progressão curricular, combi- flexível para cada ciclo. A ideia é também que a
nando sequências didáticas e gêneros, temos, por- aprendizagem precoce garante o domínio ao lon-
tanto, o agrupamento de gêneros baseados em nar- go do tempo, uma vez que os mesmos textos são
ração, exposição, argumentação, instrução e relato. produzidos mais de uma vez ao longo dos ciclos.
Podemos notar também que os grupos são orga- Apesar do procedimento em espiral, cada gênero
nizados pelas semelhanças tipológicas e pelas situ- é abordado em níveis diversos de exigência, evitan-
ações de produção dos gêneros. O procedimento do-se a mera repetição.
tem um enorme potencial de facilitar a escolha de
gêneros adequados para cada série ou nível de en-
sino e possibilita uma progressão em espiral para 3. Por uma Pedagogia da
seu ensino. Outra vantagem é a criação de eixos
no ensino de gêneros: torna-se possível escolher os
Variação Linguística
gêneros mais adequados, dentro de cada subgrupo,
para as diversas séries de ensino, retomando-se o 3.1. Os PCN e o Lugar da Diversidade
estudo a cada ano e assim ampliando as capacida- Linguística no Ensino
des dos alunos.
Entre os diversos ramos da linguística contempo-
Isso significa que, nessa progressão articulada em rânea, a sociolinguística tem se destacado por ofe-
torno de um grupo de gêneros, que por sua vez recer uma concepção de língua que alcançou certa
estão inseridos numa ou mais modalidades discur- visibilidade na mídia e em outros fóruns de debate,
sivas (oral ou escrita) ou em tipos textuais básicos particularmente por se opor, com muita clareza, à
predominantes, a progressão se dá em espiral: cada noção tradicional de uma língua “admiravelmente
gênero é dominado em vários níveis e volta a ser unificada” de norte a sul do país, como se as pes-
estudado de forma mais profunda, acompanhan- soas falassem e escrevessem da mesma forma, nas
do o desenvolvimento da capacidade cognitiva dos diversas regiões, sem variações relativas também à
estudantes. faixa etária, ao nível de escolarização, à situação de
comunicação e outras.
Em síntese, o que os autores propõem é a organiza-
ção de uma progressão temporal do ensino, cons- No contexto brasileiro, coube à sociolinguística
truída sobre a base de um agrupamento de gêneros mostrar que a língua portuguesa, apesar de ser o
e considerando-se os diferentes níveis de operações idioma nacional, falado, escrito e compreendido
da linguagem, em que os gêneros são tratados de em todo o país, não é nem poderia ser isento de
acordo com o ciclo de ensino, sendo sua escolha variação, obedecendo a um pretenso padrão váli-
Capítulo 4 51

do para todas as situações. O português brasileiro, mento das competências gramatical e interacional
como todas as línguas existentes, é uma entidade pressupõe que “a partir da observação da variação
complexa e sujeita à variação em múltiplos contex- linguística”, os professores compreendam os valo-
tos de uso. Esse fato, longe de ser algo negativo, faz res sociais nela implicados e, consequentemente,
parte da riqueza da língua, capaz de se adaptar às estejam prontos para ajudar a superar “o precon-
múltiplas demandas de seus usuários nas diversas ceito contra os falares populares em oposição às
situações da vida. formas dos grupos socialmente favorecidos”. Perce-
bemos, assim, que é dever do professor “aplicar os
Como falantes proficientes de nossa língua, exe- conhecimentos relativos à variação linguística e às
cutamos, de formas bastante diferentes, uma ação diferenças entre oralidade e escrita na produção de
trivial como pedir um copo d’água, dependendo textos” (PCN+EM, p. 82). Como você pode perce-
apenas de a quem estamos pedindo. Por exemplo, ber, os PCN dão uma grande ênfase à questão da
uma coisa é pedir água ao nosso irmão mais novo; variação linguística, sem a qual o ensino de língua
outra coisa, muito diferente, é pedir a mesma coi- portuguesa tem sido incompleto e não tem contri-
sa a uma pessoa totalmente desconhecida, numa buído para a igualdade social.
terra desconhecida. A ação é a mesma, mas as es-
tratégias linguísticas e discursivas mudam. Em ter- Fundamental e grande, devido à aplicação da lin-
mos muito simples: tudo indica que não usaremos guística ao ensino, é o reconhecimento de que “em
a mesma frase nem a mesma entonação de voz em nosso país convive uma enorme variedade linguís-
ambos os casos, embora o sentido do que falamos tica, determinada por regiões, idades, lugares so-
seja o mesmo. ciais, entre outros”. Consequentemente, os alunos
não podem ser expostos apenas ao ensino da gra-
Sobre essa questão, os PCN também se posicio- mática e a suas regras e a exercícios que enfatizam
nam com muita clareza. De acordo com Marcuschi as noções de certo e errado, pois estas, segundo
(2008), os PCN acertadamente adotam uma postu- os PCN, “tão típicas da abordagem normativa ou
ra crítica em relação ao preconceito socialmente ar- prescritiva, cederiam espaço para as noções de ade-
raigado, que defende a identificação da fala de uma quação ou inadequação em virtude das situações
dada região como a língua “certa”. Corretamente, comunicativas de que o falante participa”.
os PCN reconhecem que nenhuma região detém
uma fala “mais correta” ou “mais bonita”, apesar Esse é, portanto, o tipo de ensino para o qual o
das noções folclóricas que existem nesse assunto. professor de língua portuguesa deve estar prepara-
Por exemplo, como lembra Bagno (2000), um mito do, pois “é papel da escola lidar, de forma produ-
comum é aquele que considera o português falado tiva, com a variedade linguística de sua clientela,
no Maranhão “o mais correto do Brasil”. sem perder de vista a valorização da variante lin-
guística que cada aluno traz consigo para a escola e
Assim, os PCN+EM ressaltam a grande importân- a importância de se oferecer a esse aluno o acesso
cia do tema da variação linguística no ensino de à norma padrão” (PCN+EM, p. 82).
língua portuguesa. Falando do desenvolvimento
de competências no aluno, o documento afirma É certo que há muitos desafios a superar nessa apli-
que cação da sociolinguística, por meio do conceito de
variação, ao ensino. Logo surgem as dificuldades.
“entre os procedimentos relativos ao desenvolvimento da Uma delas, apontada por Marcuschi (2008), é que
competência gramatical, convém ressaltar aqueles que di- os PCNs não têm uma resposta clara para o profes-
zem respeito à variação linguística” (p. 82, itálicos meus). sor que se pergunta:

Não fazer isso, no ensino de língua portuguesa, é “Então o que faço com o meu aluno que
negar aos alunos um conhecimento mais exato e diz ‘nós vai’?”
realista de sua língua além de contribuir para des-
valorizar as variedades mais populares de fala e es- A conclusão, evidentemente equivocada, a que
crita em português, que serão esquecidas em favor muitos chegam é que agora “vale tudo” no ensino
da “norma culta”. de língua portuguesa. “Não vamos mais corrigir
nossos alunos, pois o que importa é que ele consi-
A propósito disso, segundo os PCN, o desenvolvi- ga se comunicar.” Apesar de muito comum, essa é
52 Capítulo 4

uma péssima forma de entender a linguística. Na de uso, uma dentre as várias disponíveis na língua
verdade, é uma distorção da linguística, que nunca portuguesa, cujo prestígio não deriva de alguma
afirmou nem defendeu tais coisas. qualidade intrínseca, como se o falar culto urbano
fosse superior ao falar matuto, não escolarizado,
Novamente, a concepção da linguística está muito por exemplo, mas de fatores sociais, políticos e eco-
bem expressa nos PCN, quando lembram: nômicos, entre outros. O domínio dessa variedade
culta deve ser cultivado como um direito dos alu-
“Não é porque a escola deva acolher as variedades linguísti- nos, direito de aprender “uma prática necessária à
cas de seus estudantes, para posteriormente realizar ativida- ocupação dos postos de prestígio, uma ferramenta
des de linguagem em torno delas, que o professor deva se capaz de concorrer para a ascensão a lugares de
eximir de conhecer muito bem o padrão culto da língua e
maior visibilidade e mérito social” (OLIVEIRA e
as bases da gramática normativa” (PCN+EM, p. 86).
WILSON, 2008, p. 238).
Quer dizer, a questão não é excluir a norma culta Numa pedagogia da variação linguística, as formas
do ensino de língua portuguesa, mas lhe negar o de expressão trazidas para a escola pelos alunos,
privilégio de ser a única digna de atenção por parte ainda que contrariem o padrão culto, não serão
de professores e alunos: “A norma culta, conside- objeto de discriminação, mas servirão como ponto
rada com uma das variedades de maior prestígio de partida para o trabalho do professor. As formas
quando se trata de avaliar a competência interativa linguísticas específicas dos alunos das classes po-
dos usuários de uma língua, deve ter lugar garanti- pulares, por exemplo, à luz da ciência linguística,
do na escola, mas não pode ser a única privilegiada não deverão ser vistas como menos eficientes ou
no processo de conhecimento linguístico propor- linguisticamente inferiores. Devem ser encaradas
cionado ao aluno” (p. 76). apenas como diferentes, mas igualmente integran-
tes do patrimônio vivo da língua portuguesa.
Os PCN, portanto, concluem pela necessidade
de aplicar os conhecimentos e as contribuições Apesar dos avanços em reconhecer e utilizar a
da sociolinguística ao ensino: “O conhecimento noção de variação linguística no ensino de língua
de alguns conceitos de sociolinguística é essencial portuguesa, alguns problemas são recorrentes. Pri-
para que nossos alunos não criem ou alimentem meiro, em geral, a tendência dos manuais didáti-
preconceitos em relação aos falares diversos que cos e, consequentemente, dos professores é a de
compõem o espectro do português utilizado no eleger como exemplo para a variação linguística a
Brasil” (p. 27). fala de pessoas analfabetas, oriundas do meio rural
e, frequentemente, da região Nordeste do Brasil.
3.2. Uma Pedagogia da Variação Então, fica parecendo que só a fala (e não a escrita)
Linguística de analfabetos, caipiras ou matutos e nordestinos
é que varia. Marcos Bagno (2007) chama a aten-
“Por uma pedagogia da variação linguística.” Essa ção para isso, ao denunciar que os exercícios com
tem sido a reivindicação de diversos estudiosos da variação, nos livros didáticos, destacam sempre
linguística contemporânea no Brasil, conforme re- exemplos do personagem Chico Bento (caipira),
fletida nos PCN, como vimos acima. do poeta cearense Patativa do Assaré (nordestino
e semianalfabeto) e do cantor e compositor Adoni-
O que deveria ser incluído em tal pedagogia? ran Barbosa (que usou uma linguagem de “analfa-
beto paulistano” em suas composições).
Conforme Oliveira e Wilson (2008),
O segundo problema é o tipo de atividade didática
“a observação e análise de distintos usos linguísticos – que se propõe para trabalhar variação linguística.
como as gírias, os jargões profissionais, as marcas dialetais
Conforme Bagno (2007), a maioria das atividades
das diversas regiões brasileiras, entre outras manifestações
solicita que os alunos “passem para a norma cul-
– relacionando esses usos com os fatores sociais que cer-
ta” o conteúdo que apresenta variação linguística.
cam os grupos que assim se expressam” (p. 238).
Com isso, a ideia que se transmite é a de que a va-
riação linguística é algo inferior e errado, que pre-
Numa pedagogia da variação linguística, a norma
cisa ser corrigido, reescrito na norma culta. Essa
culta passa a ser vista como mais uma variedade
forma de ensinar a variação contraria, no seu âma-
Capítulo 4 53

go, o propósito mesmo de se incluir tal conteúdo


no ensino escolar. Parece que, nessa temática, mui-
to progresso ainda precisa ser feito até chegarmos SAIBA MAIS!
a uma situação adequada e a um padrão de ensino neste
nto do que você viu
satisfatório. Para o aprofundame en tar -lh e alg um as
apres
capítulo, gostaria de De sta co , ne sta se-
tur a.
boas sugestões de lei mas
essíveis na Internet,
ção, textos que são ac po ssí ve l, us ar
medida do
convido você a, na tad os pe las refe-
rep res en
também os subsídios
cia s list ad as ao fin al deste capítulo.
rên

RESUMO • Para um texto ac


essível sobre as fun
ções
-
almente sobre lín a
da linguagem, especi co mu nic aç ão ,
nto de
gua como instrume pe ad /te ma 01 /
O propósito deste capítulo foi o de http://acd.ufrj.b r/~
veja:
apresentar a você um panorama das lingfuncoes.html.
contribuições da linguística para o en- Nova Escola, veja a
ma-
sino de língua portuguesa, em especial • No site da Revista gu ag em alt era mo
lin
no ensino fundamental e médio. Con- téria “Concepções de ista esc ola.
(http://rev
que e como ensinar nc ep -
forme vimos brevemente, três foram cao- de -te xto /co
abril.com.br/produ
as áreas selecionadas para a apre- coes-de-linguagem.sh
tm l).
sentação dessas contribuições. Primei-
o de
ramente, a contribuição fundamental dos PCN para o ensin
• Sobre a proposta sin o fun da me nta l,
en
da linguística diz respeito a possibilitar gêneros textuais no g/ me s-
ioeste.br/prpp
professores e alunos a uma concepção veja: http://www.un
/re vis tas /travessias/ed_004/
de língua e linguagem mais adequada trados/letras
pd fs/ G% EA ne ro s% 20
e que respeite uma diversidade de as- ar tig os /li ng ua ge m/
isti na.pdf.
pectos envolvidos no uso linguístico. Em Textuais%20-%20Cr
o site
segundo lugar, destacamos o ensino de linguística, consulte
• Sobre variação rco s Ba gno,
gêneros textuais como uma das formas do professor e pesquis
ad or Ma
ará textos int ere ssa n-
mais produtivas de se tratar o texto na em que você encontr gn o.
: http:/ /m arc os ba
escola e como uma firme contribuição tes e outros recursos
.
da disciplina chamada Linguística Textu- com.br/site2/index.htm
al. Por último, apresentamos o conceito
de variação linguística como a maior
contribuição da Sociolinguística para
o ensino de língua portuguesa. Com Atividades | Baseando-se em um ou mais
esses destaques, esperamos que você
livros didáticos de ensino fundamental ou mé-
perceba, cada vez mais, a grande im-
portância da Linguística para a sua for- dio, tente responder ao seguinte:
mação como professor.
1. Qual é ou quais são as concepções de lín-
gua e linguagem expressas na maneira como o
livro seleciona e organiza as atividades de leitu-
ra, escrita e análise linguística?

2. Até que ponto o livro didático escolhido por


você atende à diversidade de gêneros expressa
na proposta de Schneuwly e Dolz (veja quadro
neste capítulo)? Que gêneros são explorados
no livro didático?

3. O livro contempla o tema da variação di-


dática? Em caso positivo, como você avalia os
exercícios propostos?
54 Capítulo 4

REFERÊNCIAS Glossário
ALVES, Cibele Helena. A diferenciação de gê- Capítulo 1
neros e tipos textuais na escola. 2010. Mo-
nografia (Especialização em Ensino de Língua Cognitivismo – estudo científico da mente e dos proces-
Portuguesa) – Universidade de Pernambuco, sos e ações ligados ao conhecimento, incluindo atenção,
Garanhuns, 2010. percepção, pensamento, memória, raciocínio e lingua-
gem, entre outros.
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por aca-
Diacronia – na teoria saussuriana, designa uma aborda-
so: por uma pedagogia da variação linguística.
gem evolutiva e histórica dos fatos da língua, a qual Saus-
São Paulo: Parábola Editorial, 2007. sure não considera como sendo objetivo da linguística.

____________. Preconceito linguístico: o que é, Dicotomia – refere-se a uma forma de encarar a realida-
como se faz. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2000. de em termos de pares opostos, contrários entre si, tais
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se caracteriza pelo foco na forma linguística, na estrutu-
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros ra formal, na língua como código, independente de seus
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Parte II: Linguagens, Códigos e suas Tecnolo-
gias. Brasília: 2000. Disponível em: <http:// Funcionalismo – paradigma que privilegia a abordagem
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zado pela interação entre os sujeitos falantes e não, pelos
ntent&view=article&id=12598:publicacoes>
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Acesso em: 29 jul. 2010.
Gerativismo – teoria proposta por Noam Chomsky, carac-
KOCH, Ingedore G. V.; ELIAS, Vanda Maria. Ler terizada por uma visão da língua como realidade mental e
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lo: Contexto, 2006. pela qual, com um mínimo de estímulos, somos capazes
de gerar frases infinitas em nosso idioma materno.
MARCUSCHI, Luiz A. Produção textual, análise
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bola, 2008. nante no século XIX. Abordava a língua numa perspectiva
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ria. Linguística e ensino. In: MARTELOTTA, Má-
rio Eduardo (Org.). Manual de linguística. São Pragmática – área da linguística que enfatiza a relação
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linguístico e os participantes da situação de interação.
SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêne-
ros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Signo linguístico – unidade da língua composta, segundo
Mercado de Letras, 2004. Saussure, por duas faces que são o significado e o signifi-
cante (o conceito e o material linguístico que o define); apro-
ximadamente equivalente ao conceito popular de “palavra”.

Sincronia - na teoria saussuriana, designa a abordagem


dos fatos da língua em um recorte horizontal, não evolu-
tivo, a qual Saussure considera como sendo objetivo da
linguística.
Capítulo 4 55

Capítulo 2 ponder e agir de maneira significativa e consequente em


situações recorrentes e, dessa forma, participar de sua re-
Sociointeracionismo – em linguística, trata-se de uma produção” (Bawarshi e Reiff, 2010). Essas formas de ação
abordagem aos fenômenos da língua do ponto de vis- se realizam por meio de textos escritos ou orais caracterís-
ta da interação social entre os sujeitos falantes. Por essa ticos, normalmente reconhecidos pelos interlocutores em
abordagem, os aspectos linguísticos não podem ser ana- situações culturalmente compartilhadas. Os gêneros são
lisados isoladamente, mas, no interior de uma concepção representados pelos textos que conhecemos por nomes
de língua como lugar de interação entre pessoas concre- bem definidos, como cartas, bilhetes, telefonemas e ser-
tas, sociais, em situações reais de comunicação. mões, entre outros.

Sociocognitivismo – segundo esta concepção, os proces- Interacionismo sociodiscursivo – abordagem teórica do


sos cognitivos envolvidos na produção da linguagem de- discurso, segundo a qual as ações humanas devem ser
vem ser encarados como processos sociais e não apenas tratadas em suas dimensões sociais e discursivas, conside-
como fenômenos individuais. rando-se a linguagem como a principal característica da
atividade social humana.
Mentalismo – em uma concepção linguística como o ge-
rativismo, o mentalismo se caracteriza como a ideia de Enunciação - corresponde ao processo pelo qual se colo-
que a linguagem se origina na mente, de forma indepen- ca a língua em funcionamento numa situação de discurso,
dente do contexto social de uso. dependente da atividade conjunta do locutor e do inter-
locutor (ou ouvinte). É o evento histórico correspondente
Modularidade – no cognitivismo, representa a noção de à atividade conjunta de ativação discursiva, realizada por
que a mente é um sistema dividido em diversos módulos aquele que fala, no momento em que fala, e por aquele
independentes, cada um responsável por uma função di- que ouve.
ferente. Na versão gerativista do conceito, a linguagem
estaria contida em um desses módulos da mente, e, ain- Linguística sistêmico-funcional (LSF) – abordagem lin-
da, cada aspecto do processamento da linguagem, como guística baseada na obra de Michael Halliday, segundo a
a sintaxe, por exemplo, se daria de forma isolada e inde- qual a estrutura linguística está inteiramente relacionada
pendente dos outros aspectos (morfologia, por exemplo). com a função social e o contexto de uso da linguagem.
Para a LSF, a linguagem se organiza de uma determinada
Inatismo – no gerativismo, designa a concepção de que a forma, numa cultura, em função dos propósitos sociais
capacidade de linguagem está registrada na herança bio- que desempenha naquele contexto.
lógica da espécie humana. A linguagem, portanto, é algo
que o indivíduo traz como potencial desde o seu nasci- Propósito comunicativo – na teoria de gêneros de John
mento, e sua aquisição independe de fatores contextuais. Swales, é o propósito a que um determinado gênero se
presta, sendo definido em relação com os objetivos comu-
Metáfora – tradicionalmente, designa uma forma de lin- nicativos compartilhados por uma comunidade discursiva.
guagem figurada, em que dois termos são, de alguma
forma, comparados, mas sem o uso de um conectivo tí- Comunidade discursiva – segundo Swales, as comuni-
pico das comparações. Na metáfora, um termo substitui dades discursivas são agrupamentos sociorretóricos, ca-
outro em vista de uma relação de semelhança entre os racterizados por objetivos comuns, gêneros específicos,
referentes que esses termos designam. Nos atuais estudos terminologia compartilhada, mecanismos de intercomuni-
da metáfora, ela é tida como indissociável de nossa lin- cação e uma massa crítica de membros preparados para
guagem em todos os níveis e não como uma característi- transmitir seus objetivos e propósitos comunicativos aos
ca da linguagem literária. novos membros.

Conjunto de gêneros – na teoria de gêneros de Charles


Bazerman, o conjunto de gêneros é usado por uma de-
Capítulo 3 terminada comunidade para realizar as ações discursivas
típicas dessa comunidade.
Retórica – em sentido amplo, designa a arte de usar a lin-
guagem com vistas a persuadir ou influenciar. Em sentido Sistema de gêneros – designa uma quantidade de con-
restrito e tradicional, alude, ainda, ao emprego ornamen- juntos de gêneros que coordena as ações de múltiplos
tal ou eloquente da linguagem, quando se aproxima do grupos de pessoas dentro de um sistema de atividades. O
conceito de oratória. “A retórica é a técnica (ou a arte, sistema de gêneros envolve a interação dos usuários em
como preferem alguns) de convencer o interlocutor atra- diferentes níveis hierárquicos, por meio dos gêneros apro-
vés da oratória, ou outros meios de comunicação” (Wi- priados às diversas situações sociais de comunicação.
kipédia).
Sistema de atividades – um sistema de atividades media-
Gêneros textuais – “Modo tipificado de reconhecer, res-
56 Capítulo 1

das, interativas, compartilhadas, motivadas e, às vezes,


concorrentes. As interações discursivas dentro do sistema
de atividades são mantidas por meio de sistemas de gê-
neros, que são responsáveis por definir modos de agir dis-
cursivamente, nas diversas situações.

Funções da linguagem – segundo a proposta de Roman


Jakobson, as funções da linguagem são: função refe-
rencial, emotiva (ou expressiva), conativa (ou apelativa),
fática, metalinguística e poética. Cada uma delas se re-
laciona com um dos elementos presentes no processo de
comunicação, respectivamente: o referente (ou objeto), o
emissor, o receptor, o canal, o código e a mensagem.

Parâmetros Curriculares Nacionais – conjunto de diretri-


zes oficiais, emanadas do governo federal brasileiro, que
orienta o ensino nos níveis Fundamental e Médio.

Sequência didática – na tradição suíça de estudos de gê-


neros, refere-se a um conjunto de atividades interligadas e
planejadas para ensinar um gênero escrito ou oral etapa
por etapa. Hoje são utilizadas para qualquer disciplina e
para ensinar os mais diversos conteúdos.

Agrupamento de gêneros – na teoria de gêneros da Escola


de Genebra, trata-se de uma forma de selecionar gêneros
escritos ou orais específicos, distribuindo-os como objetos
de ensino pelas diversas séries da Educação Básica.

Tipo textual – designa a forma como um texto se organiza


do ponto de vista de aspectos linguísticos, como tempos
verbais característicos por exemplo. Os tipos textuais exis-
tem em número limitado e referem processos, como nar-
rativa, descrição, dissertação, exposição e injunção.

Variação linguística – refere-se ao fenômeno pelo qual


entendemos que a língua não é a mesma em todos os
lugares e tempos nem para todas as pessoas. A língua
varia, e essa variação é inerente a ela, não representa
uma anormalidade.

Variedade linguística – variedades são formas específicas


(dialetos sociais) como a língua se organiza, do ponto de
vista da variação. No português brasileiro, por exemplo,
uma variedade linguística integrante da língua seria a
variedade caipira típica do Sudeste. Cada variedade lin-
guística apresenta variantes específicas que determinam
suas diferenças em relação a outras variedades da língua.
O conjunto das variantes típicas das diversas variedades
linguísticas juntamente com estas representam a variação
numa determinada língua.

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