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[A responsabilidade de Tomás]
Pequena sala reservada de uma escola. Tomás está sozinho, sentado atrás de uma mo
desta escrivaninha, absorto, completamente imóvel, tenso. Um minuto depois, Michel
aparece à porta e pára. Tem uma expressão severa, de tristeza e raiva contidas.
- Com licença.
Tomás não responde, apenas olha Michel. Michel se aproxima retirando um papel d
o bolso. Entrega a Tomás. É uma carta escrita dos dois lados da folha, mas Tomás passa
os olhos por ela, lendo-a inteira, muito rapidamente. Devolve o papel a Michel
e diz:
- Não se trata disso. Evidentemente não se trata disso.
- O senhor sabe que... nada mais pode ser feito.
- Nada pode ser feito... nunca. Essa é que é a verdade.
- Podemos fazer muitas coisas. Trabalhar. Trabalhar sério. Criar uma família. O
senhor não tem uma família...
- A única coisa que está em questão aqui é: o que o senhor quer de mim?
- Essa insolência com certeza eu não quero.
- Eu lamento, senhor Michel. Eu gosto do Martinho. Eu... gostava. Mas essa
carta... evidentemente não se trata disso. Pelo amor... por favor, senhor Michel.
Entenda, não é nada disso.
Michel mostra uma ironia triste sobre a expressão severa.
- Pelo amor de quê, senhor Tomás? Pelo amor de Deus?
- O senhor sabe que é uma força de expressão. Uma forte força.
- É vergonhoso acreditar em Deus?
- Se eu acreditasse, talvez soubesse responder.
- E os outros? Devem se envergonhar?
- Ninguém deve ter vergonha do que é ou do que pensa.
- O senhor não ensina isso na sala de aula...
- Claro que não. Ensino matemática.
Michel lhe estende o papel:
- Isto é matemática?
- Não... é... estranho... imprevisível.
- Talvez imprevisível... mas as coisas imprevisíveis também têm alguma causa.
- Senhor Michel... A causa da morte do seu filho foi... o suicídio. Ele matou
a si mesmo.
- Um menino de onze anos, senhor Tomás?... um menino de onze anos?...
- Eu estou só falando de... um fato.
Michel se esforça para não alterar a voz:
- Do fato eu já estou exausto... exausto... eu quero a explicação para isto!
- Isso já é a própria explicação, senhor Michel. O garoto fez confusão com as idéias.
o acontece com os jovens e... passa quando crescem.
- Eu não vim aqui humilhar o senhor... tampouco ser humilhado...
- Então ainda me resta saber o que veio fazer...
- Ter uma explicação...
- Me dar uma lição de moral...
- O senhor é sempre insolente?
- O sofrimento não confere superioridade a ninguém.
- Eu não me vejo como superior em nada...
- Então precisamos encerrar esta situação...
- Certamente é o senhor que está se sentindo mal por ter sido responsável por...
- Impossível, não sou responsável por isso, absolutamente. Sou professor há oito an
os, já tive milhares de alunos e nenhum deles se matou, que eu tenha sabido.
- O senhor sempre "provou" que Deus não existe, em suas aulas?
- Eu nem tenho realmente como provar uma coisa dessas...
Michel olha o papel que tem em mãos:
- O raciocínio me parece claro... embora absurdo.
- Se meu raciocínio é absurdo, não posso ser responsabilizado pelo que o Martinho
fez.
- As crianças são muito crédulas...
- As outras estão vivas.
- Martinho era um belo garoto cristão, como toda a família...
- As crianças são muito crédulas...
- O senhor não sabe o que é o sentimento cristão.
- Certamente não sei.
- Nós vivemos um tempo horrível...
- Senhor Michel, eu não vou me arrepender de apresentar meu pensamento para o
s alunos e para todas as pessoas. Eu ajo normalmente, faço o que tenho que fazer. É
disso que se trata. Aceite minhas condolências... meus pêsames... é tudo o que posso f
azer. Fiquei triste com a notícia.
- Não me basta sua tristeza.
- Meu arrependimento o senhor não terá.
- O senhor não acha que isso é um sinal?... Pense bem... se o senhor não tivesse
tido a infeliz idéia de tentar desiludir a crença sincera de quarenta crianças... isso
não teria acontecido... se o senhor tivesse se concentrado na matemática... sem int
erferir no coração dos meninos...
- O sentimento religioso nem sempre causa o bem. Visite o Oriente Médio ou um
a biblioteca.
- O senhor toda noite deve rezar a oração do niilista... "Creio no nada, todo-p
oderoso, criador do universo, e em seu filho, a matéria, que foi gerada pelo poder
do acaso. Do nada vim, ao nada voltarei, para todo o sempre, amém".
- Senhor Michel... temos um mundo determinista, quer o senhor goste quer não.
Um milhão de forças concorrem para cada coisa que acontece. Às vezes, certas forças par
ecem ser mais importantes. Mas o Big Bang já predispôs todos os acontecimentos... in
clusive os que ainda estão por vir... o Big Bang foi o único movimento livre que já oc
orreu... como uma primeira tacada de bilhar... na disposição das bolas, na força, no e
feito e na direção que se dá à tacada já está embutido o destino de cada uma das bolas. É d
o que se trata.
- As pessoas tomam suas atitudes por consciência, senhor Tomás. Qual é o taco de
bilhar que empurra essa consciência?
- Está bem... o senhor tem toda a razão. O Big Bang não predispôs todos os aconteci
mentos... eu devo ter sonhado isso... na verdade, os atos são gerados espontaneame
nte pelo milagre que é a consciência de cada pessoa. Bem, nesse caso foi a consciência
do Martinho que tomou a decisão, não a minha. Se o Big Bang não predispôs tudo desde o
início, os acontecimentos são imotivados. E eu sou tão responsável pelo que aconteceu qu
anto o meu pai foi responsável pela morte de Getúlio Vargas porque... enviou a ele u
m pedido de bicicleta.
- O senhor pode não querer se arrepender... mas essa sua matemática obscena não v
ai diminuir a minha dor.
- Dois mais dois somam quatro. A quem isso doa só cabem o choro e o ranger de
dentes.
- A vida, senhor Tomás, faz todo o sentido. É só o niilismo que, por muita ironia
, leva a nada.
Michel vai embora. Tomás permanece, imóvel, a expressão fechada, tenso, completam
ente absorto em seus pensamentos.
[Carta]