Você está na página 1de 27

Está pronto o seu romance personalizado.

Da forma como ele foi elaborado por es


te aplicativo, talvez você venha a ser a única pessoa a passar os olhos por ele. Vo
cê optou por romance policial, sem situações de sexo e sem misticismo, em que predomin
e a reflexão e que seja farto nas descrições. Pediu um texto sem recursos metalingüísticos
, em que o conteúdo seja mais sugerido, em que não haja experimentalismo e que tenha
um vocabulário clássico. Além disso, também de acordo com as suas solicitações, o texto fo
estruturado com frases mais longas, sem o emprego de neologismo, com contextual
ização histórica e baseado no enredo de final infeliz.
Boa leitura!
As Portas
ficção optável
texto e programação de Paulo Santoro
romance personalizado para Henry McGovern
29/7/2008
I
Abriu a porta do automóvel miúdo, que era um modelo econômico, mas eficiente para
ele. A caixa de bombons no porta-luvas já estava mesmo vazia. Lançou a valise no ba
nco traseiro, afundando o estofamento, e regressou à estreita marquise para tranca
r o portãozinho. Deixava, mais uma vez, a sua tranqüila residência. Quando se esparram
ou no assento forrado de bolinhas de madeira, suspirou. Deu a partida com um tra
nco, depois deslizou. Quando parte em busca de um alvo, todo homem sente uma espéc
ie de alienação, deixando de existir como indivíduo e colocando-se em função de um objetiv
o amplo, relativamente longínquo.
Nem bem se deslocou três quadras e um arrepio pairou sobre ele. Uma esquina,
certamente - ou talvez uma pessoa, um transeunte -, evocara nele algum sentiment
o. Frenou com delicadeza, ponderando a desistência, mas voltou a acelerar. Impossíve
l evitar agora. Ele não passava de um escravo dos acontecimentos.
Portela era um investigador feliz, como nenhum outro poderia ser. Era feliz
porque era simples e cumpria suas funções sem se queixar. Os salários oscilavam, os r
iscos eram permanentes, os sustos freqüentes, mas Portela tinha a seu lado o bom c
ompanheiro Marquinhos, aliás um colega de infância, que era uma espécie de batedor ava
nçado nas investigações e havia acabado de chamá-lo para uma ocorrência. Em tais momentos
imaginava a morte.
Mas havia algo que o fazia avançar: o chocolate, guloseima e talismã. Na verdad
e, outro grilhão, Portela sabia bem. Saltou diante da doçaria usual, que era uma cas
a simples, atacadista, onde Portela comprava muitos doces, com freqüência. Velho, an
tigo grilhão. Arrebanhou as últimas moedas da niqueleira para pagar por uma barra de
tamanho médio, enquanto um rádio bem alto difundia uma notícia especial.
"Não param de chegar pessoas do mundo inteiro para apreciar os restos do muro
de Berlim, de execrável memória para os alemães e para todo o planeta. Pedaços de concr
eto e tijolo ainda servem como lembrança histórica para esses extasiados visitantes,
que reconhecem que estão presenciando festejos memoráveis."
Um tanto severo, Portela não se rejubilava com a queda do muro, já que mal comp
reendia os efeitos que aquele evento estupendo poderia ter em sua própria vida. Ti
nha apenas uma noção de que se tratava da grande festa da liberdade, e, assim mesmo,
sem ter certeza de se as pessoas realmente mudariam tanto...
Um muro. Não seria apenas um muro? Mais um judas a ser malhado, nessa ânsia de
corporificar externamente os vícios que se encontram dentro de nós?
Portela levantou-se. Saiu da loja sem ouvir o restante da notícia e dirigiu-s
e a seu carro - que, aliás, sempre fora seu. A cidade de São Paulo nunca havia estad
o dividida entre comunistas e capitalistas e Portela não se engajara nenhuma vez a
facções políticas. Detestava o comunismo real e antidemocrático da União Soviética, embora
nada lhe garantisse que o capital fosse mais do que um mal necessário...
Bem estacionado, em vez de dar a partida logo, estudou o guia, enquanto mas
tigava. Sem esses papéis, essas trilhas, estamos perdidos no mundo. Essas ordens d
e pensamento. E se um homem estiver perdido a ponto de não saber se precisa de um
atlas ou de um livro de filosofia? Um sextante não nos extirpa o medo da morte, en
quanto o elucubrativo Kant tampouco saberia nos conduzir às ilhas Vanuatu. Mas Por
tela só precisava se concentrar na afluência de um punhado de avenidas. Para chegar à
casa de Roberto em pouco tempo, teria de perpassar diversas conversões ignotas. Co
sturou as ruas com o olhar. Um esquadrinhador, era o que pensava de si mesmo. De
áreas. De espaços. Quiçá de almas? Tinha uma predileção pelo raciocínio geométrico, enfim.
o tateando território desconhecido, em sua imaginação já estava no local.
No momento em que Portela iniciava o movimento para acionar a ignição, foi deti
do pela visão de uma moça muito branca, que surgiu da esquina logo adiante, atravess
ou rapidamente o asfalto e desapareceu na esquina ao lado. Quem seria? Melhor a
pergunta: como seria? Um homem de barba espessa, que certamente também a vira, des
locou-se de imediato até a segunda esquina e chamou: "Estela!", depois do quê desapa
receu também ele por ali. O que, afinal, significa "ver"? Consideramos prodigioso
divisar um perfil espectral, embora, no que se refere a um indivíduo cego, fosse n
a verdade prodigioso que ele enxergasse um corpo natural. "Você está tendo uma aluci
nação", uma pessoa muito escrupulosa diria a esse cego. "Esse corpo natural que você e
stá enxergando não existe!", alertaria, apressadamente, a voz do próprio corpo natural
.
Portela desceu do carro e, em passo estugado, galgou os poucos metros até a e
squina, de onde esticou o olhar pela calçada por onde a moça branca e o barbudo havi
am descido. Era um quarteirão de lojas, sobretudo vidraçarias, pelo qual três adolesce
ntes subiam, vagarosos e calados, enquanto uma mulher bem velha fitava uma vitri
na e um senhor magro e grisalho saía de uma loja, com dois pacotes. Eram as únicas p
essoas que Portela podia ver ali.
Ele regressou ao automóvel, absorto em perplexidade. A brancura da mulher cru
zou-lhe novamente o olhar, uma reminiscência viva, como o grito de "Estela", que a
inda ecoava. Difícil afastar esse som tão forte. "Estela", balbuciou, sustentando a
porta do veículo.
Repentinamente despertou e, nem bem se viu acomodado no assento, partiu com
arranque violento. É sempre preciso chacoalhar o pote e ver a cor dos pós que se mi
sturam. Inconformado, não pôde entrar pela descida, então continuou até o cruzamento seg
uinte e fez a curva com rapidez. De forma até imprudente, mas não sem alguma perícia,
pôs-se a circular pelos quarteirões adjacentes, acelerando, freando, sacudindo a ala
vanca - e sem tirar os olhos das calçadas. Mas via apenas o cenário de fim de tarde:
colegiais deixando a escola, funcionários com uniformes ou gravatas após o expedien
te, gente de todo tipo entrando e saindo de lanchonetes e mercados. Pessoas aleg
res, outras intranqüilas, outras ligeiras, nitidamente azafamadas, ninguém, enfim, q
ue fizesse com perfeição o perfil de personagem de sonho. O cotidiano - como de hábito
- impregna de um ranço mesquinho as nossas ações. Vivemos o presente como um acessório
do futuro e um rascunho não emendado do passado, jamais como um instante do eterno
.
Portela encostou o carro e respirou fundo, pois não era um indivíduo dado a vis
lumbrar espectros e então persegui-los como um alucinado. Era, antes de tudo, um cét
ico, um homem a quem as ilusões já não comoviam. Mal confiava nas utopias fervilhantes
de sua época. Na verdade, nunca é simples ser um descrente, já que a vida corriqueira
- essa dos suores, dos ciscos, das entregas sexuais e das bolas na trave - exig
e sempre uma boa dose de crédito nas relações entre as pessoas, ainda que a juros módico
s. Aturdido com o próprio desatino, Portela engoliu outra fileira de blocos de cho
colate. Deu a partida novamente.
Escapou com habilidade das vias congestionadas. As ruas abarrotadas de veícul
os iam ficando para trás, enquanto Portela acelerava por caminhos paralelos. Chego
u em poucos minutos ao endereço marcado, estacionou em uma lacuna folgada e desceu
, quando uma voz familiar o saudou. Dessas que reatam ao mundo o sujeito mais re
barbativo. Marquinhos descia a escada de entrada do casarão, um cigarro moído depend
urado do canto da boca. Portela apontou-o:
- Isso vai matá-lo.
- Isto ou uma bala no coração nesta cidade insana. Façam suas apostas.
Portela estendeu a mão ao companheiro, que a tomou com firmeza. Um mistério não d
eslindado sobre a amizade é que não existem duas iguais, uma vez que, afinal, as própr
ias pessoas são diferentes e, como peças que se encaixam, não podem se ajustar umas às o
utras da mesma forma. (Apesar da imagem, seria grosseiro estender a analogia às re
lações amorosas.) Portela e Marquinhos não eram amigos "à maneira de" amizade alguma, ma
s sim amigos como poderiam ser: à maneira de entre eles mesmos. Assim, à sua maneira
, demoraram-se no aperto de mão. Entreolharam-se por um instante.
Marquinhos era um indivíduo atarracado, de feições e temperamento juvenis, cujos
olhos mirrados eram ativos e exibiam faiscantes a movimentação de seu cérebro. Da pont
a de seus lábios, contudo, pendia uma nota triste. A cabeleira comportada empresta
va-lhe uma severidade destoante. Era, enfim, uma figura aparentemente desagradável
, que causava uma certa perturbação em quem o olhasse - mas apenas para quem não o con
hecia a fundo.
- É aqui mesmo?
- Sim, é aqui.
Transpuseram os dezesseis degraus largos da escadaria até o vestíbulo florido,
pelo qual logo se percebia uma casa imponente, rica. Através da porta apenas encos
tada, entreouvia-se um burburinho.
Ingressaram num salão muito iluminado e amplo, mas com um calor aconchegante.
Adiante, algumas pessoas conversavam, enquanto à entrada um homem esguio parecia
aguardá-los. Marquinhos apresentou Roberto a Portela.
Roberto exibia uma compleição asmática e nervosa. Seus cabelos curtos e negros, u
m tanto ensebados, davam-lhe uma sofisticação artificial, enquanto a garganta saltav
a-lhe e seu olhar era inseguro e distante.
- Só ouço elogios a sua pessoa - Roberto anunciou, ao oferecer-lhe a mão.
- Se for ao médico, talvez você melhore.
Roberto não sorriu. Apontou o caminho aos dois homens e acompanhou-os até a sal
a contígua.
Havia um bufê entalhado em madeira maciça e uma mesa com superfície de vidro, ent
re os quais havia um corpo inerte e já recoberto. Portela se aproximou em silêncio e
, quando Marquinhos antecipou-se para soerguer o plástico negro, os olhos de Rober
to ganharam um vermelho úmido. Ele deu as costas para o cenário devastador.
Portela viu uma mulher alva e bonita, cujo rosto expressava um resquício de d
or e cujas pernas nuas exalavam suavidade. Vestia uma camiseta parda simples, co
mpletamente ensangüentada, e da faca cravada em seu coração só se via a empunhadura.
Uma análise pressurosa da postura de um investigador traquejado como Portela
diante da morte violenta poderia concluir que ele teria desenvolvido uma insensi
bilidade com o passar dos anos, um "calo" espiritual. Porém isso nunca é verdade, po
is a sensibilidade humana não se extingue, ela apenas fica adormecida em alguns ca
sos. No de Portela, por razões práticas, já que, para ele, era necessário fingir para si
próprio que aquele acontecimento era, basicamente, irrelevante e casual, até necessár
io na ordem das coisas. O que seria de seu metabolismo se ele se deixasse impres
sionar com cada poça de sangue, com cada buraco de bala, com cada rasgo fundo perf
urado à faca em um corpo inerte?
Portela, impediu que Marquinhos ocultasse o corpo e deu a volta na mesa, ol
hando a posição das cadeiras. Encarou o companheiro:
- Esta sala foi arrumada?
Marquinhos olhou Roberto, conduzindo-lhe a pergunta, mas o dono da casa per
manecia com os olhos fechados.
- Não houve luta - abreviou Marquinhos.
- Nesse caso, então, houve o quê?
- Ela pode ter sido surpreendida por uma pessoa conhecida. Alguém que estives
se a seu lado, com seu consentimento. Um movimento rápido, à traição.
- Quem é ela? - indagou, dirigindo-se a Roberto, mas o anfitrião continuou cala
do e cego. Depois que Portela fez um gesto para que Marquinhos recobrisse o corp
o da vítima, Roberto abriu os olhos e falou:
- Ela é Estela, minha esposa.
Os lábios de Portela tremeram. Ele continuou:
- Sua esposa estava sozinha?
Roberto contou-lhe que ele havia viajado para Botucatu na noite anterior, o
nde pousara na casa de familiares. Houve um almoço e ele voltou para São Paulo, enco
ntrando Estela, que havia ficado sozinha, da forma como estava agora.
Enquanto Portela continuava a observar a sala, Roberto pediu-lhes licença e s
e retirou do recinto. O investigador perguntou ao companheiro:
- Você falou com o pessoal que está aí fora?
Marquinhos aquiesceu, informando que já possuía dados relevantes. Apesar de ric
a, Estela era uma pessoa simples, muito amada pelos familiares, e vivia com Robe
rto uma espécie de sonho. Certamente era um casal feliz.
- Você tem a lista dos familiares?
Marquinhos passou-lhe um papel:
- Estavam todos eles no almoço em Botucatu.
- Todos eles, Marquinhos?
- Todos.
- Que tipo de cilada é esta?
- Existe um modo de verificar se estavam todos realmente lá, como dizem. Aqui
está o endereço do doutor Carmo. Eu o conheci quando estava na Academia de Polícia. A
cabei de descobrir que ele também tem parentesco com a família. Não pôde vir aqui, pois
está de repouso. Mas já verifiquei que o médico lhe permitiu visitas esporádicas.
Portela apanhou as anotações e perguntou pela imprensa. Marquinhos havia prote
lado como pudera a divulgação do crime, mas as equipes de reportagem já deveriam estar
se deslocando para o casarão. Como de hábito, iriam se comportar de maneira detestáve
l.
- Virá muita gente. Assassinato de ricos é assim.
- E o que é que eles verão, Marquinhos? Uma mulher bonita e rica, assassinada à t
raição, sem motivo aparente. Por que é preciso que exista gente má neste mundo?
Marquinhos arriscou mencionar seus proventos.
- Se não ocorressem crimes jamais, eu com muita satisfação arrumaria outra coisa
para fazer na vida - respondeu Portela, e saiu da sala.
II
Portela saiu do casarão, guardando no bolso o endereço do doutor Carmo. A porta
do carro rangeu e ele entrou, mas não acionou a partida de imediato. Refletiu, en
carando a si próprio no espelho retrovisor, como se exigisse daquele outro uma def
inição. O que fazer? O que pensar de Estela e aquilo tudo? Examinou as horas.
Repentinamente, agiu para deslocar o automóvel. Por mais que sejam refletidas
, certas decisões parecem precipitar-se. Tudo fazemos para organizar meditações apoiad
os exclusivamente pelo pensamento racional, afinal somos levados a crer que a ra
zão é algo externo a nós, uma espécie de lousa virtual em que nossa rebordosa interior r
epentinamente ganha traços geométricos, quando toda uma clareza inesperada se reflet
e materialmente, num espaço que já não é mais subjetivo. Porém um impulso menos cartesiano
pode derrubar lousas e clarezas, atropelar geometrias, e logo uma ação de menor emb
asamento filosófico toma existência.
Há, contudo, o caminho. Um semáforo se retarda, ou transeuntes sorumbáticos produ
zem emoções inesperadas, ou ainda um besouro gordo e negro espatifa-se no pára-brisa.
Novas cogitações se fazem necessárias para um homem calado e só, independentemente de su
as presumíveis urgências.
A sede e a dúvida renascida atracaram prenderam ao meio-fio o automóvel de Port
ela, que saltou. Era preciso tomar alguma coisa. Examinou um bar em que já chegara
a entrar anos antes, uma daquelas bodegas velhas que as pessoas, com boa vontad
e ou mesmo sem ela, chegam a chamar de "tradicionais". É um mistério a reputação que cer
tos estabelecimentos caducos mantêm. O passado sustenta sua existência, e as próprias
moscas mais graúdas tornam-se mestres-salas do lixo "pitoresco".
- É noite, já - ciciou consigo. - Já é muito tarde hoje.
À sombra acentuada de uma paineira, Portela viu-se abordado por um homem de g
ravata, um sujeito magro, com a barba por fazer e uma meia careca bastante desal
inhada. Um pedinte, certamente, pois Portela os conhecia pela aparência ao mesmo t
empo digna e desleixada. Contavam histórias terríveis, dignas dos piores sucessos, e
depois pediam comida, mas só a aceitavam em dinheiro.
- Estou com um problema. Fui assaltado hoje à tarde e não tenho como voltar par
a minha cidade.
Portela escutou mais algumas queixas. Eram sóbrias e verossímeis, porém não necessa
riamente reais. Impressionava-se com o número de pessoas que se afastam enormement
e de casa para serem roubadas e não terem nem um parente, nem um conhecido para da
r uma ajuda, ninguém que aceitasse nem sequer uma chamada telefônica a cobrar. Como
Portela viu que ninguém os notava ali, sentiu-se estranhamente intimidado, mesmo s
endo da polícia, pois estava sozinho. Emitiu uma frase de compadecimento para ganh
ar tempo e assuntou com a imaginação o conteúdo de sua carteira. Talvez não tivesse nada
, mas devia haver algumas notas, e até mais do que seria razoável dar ao esquisito e
ngravatado, que eventualmente se sentiria seduzido. O homem era incisivo, mas se
m violência na voz.
- Eu vou dar a você algumas moedas.
- Você acha que tudo o que eu mereço são algumas moedas?
- Não. Você merece muito mais do que isso. Mas e se eu tiver apenas algumas moe
das?
- Muito obrigado. Não ficarei com suas moedas.
- Pois não.
Portela prosseguiu sem nova intervenção, até a frente quase imunda do bar.
Apoiou-se numa banqueta alta e incômoda. Difícil ajustar-se naquela tábua estreit
a. Esticou o dedo e reclamou um refrigerante, mas só foi atendido após a hesitação lassa
do garçom.
Arriscou solicitar um sanduíche, alguma coisa com ovos e, talvez, tomate, e e
sfregou o polegar no papel retirado do bolso. Depois de estudar o endereço do dout
or Carmo, chamou o atendente e estendeu-lhe a anotação:
- Não deve ficar longe daqui.
O moço desdenhou:
- O bairro é este. A rua eu não conheço.
Portela recolheu o papel de volta ao bolso.
Terminou o refrigerante com dilatado vagar. As pessoas realmente práticas - o
u açodadas - não entendem que alguém possa pedir uma bebida num balcão e ficar contempla
ndo o copo cheio, sem beber dele, durante minutos compridos. Pedem, saboream com
diligência, pagam e adeus. Apenas os que sabem desfrutar da ociosidade é que fazem
da bebida não um alimento trivial, mas um alicerce de sua presença em espaço público. As
sim, Portela se demorava um pouco. Saboreava pelo chiante som ambiente uma melod
ia muito antiga, que, apesar da sonoridade poluída, era limpa e harmoniosa. Algo s
obre praias, vozes e canções apaixonadas. Despertou da delícia com o chamado de notícia
extraordinária. "Num ano de tantos acontecimentos excepcionais no mundo todo, também
o Brasil vive uma etapa fundamental de sua história. Às vésperas de o povo escolher e
m definitivo, após trinta anos sem eleições diretas, o presidente da República, surge um
escândalo espetacular. O candidato do Partido dos Trabalhadores sofreu uma acusação l
igada a sua família no último programa da campanha de seu opositor. Ele não terá como se
defender nos poucos dias que restam antes de a população dirigir-se às urnas."
Portela concordou que havia agitação no mundo inteiro, e não seria diferente em s
eu país, mas ocupava-se pouco das eleições. Como não conversava sobre o assunto, ninguém s
abia em quem ele havia votado no turno inicial, até talvez nem ele mesmo se lembra
sse. Para quê? Era voltado demais para dentro de si próprio. Tinha a consciência - quiçá e
goísta - de que as pessoas de sua classe e seu modo de vida não pagavam tanto pela i
nsegurança política. E pouco acreditava na possibilidade de grandes transformações socia
is pelas vias institucionais regulamentares.
Pagou pela bebida inocente com um punhado de cédulas quase sem valor, pisou o
chão engordurado do bar e saiu.
Novamente no posto de seu automóvel, Portela suspirou e estremeceu. Fixou os
olhos numa esquina diante de si e observou-a cauteloso: vazia e silenciosa. Enri
jeceu o sobrolho durante alguns minutos, esperando o surgimento de Estela. Ela não
apareceu. Que baste o doutor Carmo!
Portela deu a partida e desviou-se do trajeto. Acelerou com determinação por qu
ilômetros e entrou numa viela vazia e estreita, mas bem iluminada. Encontrou uma v
izinhança de algumas posses, mas decadente, cujos muros, quase todos pichados, não t
inham podido ver novas tintas. Feios, mas econômicos. Portela parou o automóvel. Sal
tou diante de uma casa de porte médio, um sobrado de fachada curta e triste, e ape
rtou fundo o botão emperrado da campainha. Segundos depois ouviu um resmungo quase
inaudível:
- Alô, quem é?
Portela tentou falar perto das listas plásticas do aparelho:
- Luciano, abre aí.
A resposta demorou:
- Quem é?
- É Portela.
Agora a resposta foi pronta:
- Vai embora.
- Escuta aqui, Luciano...
- Vai embora, Portela!
O aparelhinho esganiçou e calou-se. Que homem casmurro! Portela arrimou-se no
muro, as feições endurecidas, o olhar pousado no infinito. Tentou reagir. Acionou n
ovamente a campainha e ficou esperando durante um minuto. Era inútil. Foi embora.
Retomou o caminho da residência do doutor Carmo. Era um bairro comercial dema
is, cinzento, sem árvores.
Surpreendentemente, porém, a rua do doutor Carmo tinha uma certa alegria, ado
rnada por enfeites tardios que, não recolhidos de comemorações decorridas, prestavam-l
he uma atmosfera festiva. A própria casa do doutor Carmo era colorida, o jardim vi
brante de luz. Era, enfim, provida daqueles elementos supérfluos que dão mais sentid
o à vida - pelo menos a quem realmente creia necessitar de algum.
Aí Portela foi recebido com dignidade, parecia até que já o aguardavam. Uma senho
ra simpática abriu-lhe a porta e tratou de pô-lo para dentro. Era uma velha cuja mov
imentação não fazia jus aos anos vividos.
Ficou dez minutos esperando sozinho, numa sala pequena e muito aconchegante
, até que a senhora ressurgisse e se sentasse numa cadeira estofada a seu lado:
- Carmo tem estado muito doente.
- Lamento, eu não gostaria de incomodar.
A mulher foi muito enfática:
- Ele quer conversar com você imediatamente. Só está terminando uma sopa e não gost
a de que o vejam comendo.
- Eu aguardo tranqüilamente. Posso mesmo voltar amanhã, se for preferível.
- Ele vai conversar com você daqui a poucos minutos.
Ela saiu da sala sem mais nenhuma cortesia. Velhinha esquisita. Boa pessoa,
provavelmente, porém agitada, como se a vetustez fosse máscara e pantomima de uma c
riança pequena. Enfim, dessas figuras imprevisíveis, que se fazem de sonsas, mas ocu
ltam uma larga ciência do entorno. Retornou rápida e repentinamente, empurrou-o esca
da acima e o fez entrar por uma porta que se encontrava semicerrada.
Havia uma cadeira esperando por Portela, posicionada estrategicamente no re
cinto aquecido: nem tão perto, nem tão longe do leito em que se estirava aquele home
m de profunda senilidade. Coberto por uma manta, ele mantinha um olhar fixo. A c
ompleição da velhice o deixava taciturno, e seus olhos emitiam um sabor de mansuetud
e dificilmente perceptível. Distraído ou incisivo, Portela adiantou-se e postou-se m
ais próximo dele, para fitar seus olhos inquisitivamente, mas o velho não se assusto
u com o atrevimento e manteve a doçura de todo enfermo.
- Eu não posso me sentar agora - balbuciou, a cabeça recostada num travesseiro,
o tórax levemente inclinado.
Portela acenou condescendente. Refletiu sem tirar o olhar do velho:
- Acho que é melhor eu ir direto ao assunto, para poupar a sua saúde.
- E poupar o tempo de nós dois - completou o doutor Carmo. Falava sem rapidez
, mas com desenvoltura e precisão. "Esperto", pensou Portela.
- O senhor deve saber que uma moça chamada Estela foi assassinada hoje.
O doutor Carmo apertou os olhos e suspirou:
- Eu lamento muito por isso. Profundamente.
- O senhor a conhece?
- Eu a conheci, mas falei com ela poucas vezes. Em situações comemorativas. Meu
filho casou-se com uma prima dela.
Portela desviou o olhar e notou a velha, que, encostada no batente da porta
, encarava-o com olhos felinos. Supervisionava atentamente seu comportamento. Po
rtela sentiu que, a rigor, a presença dela ali era desnecessária, logo tinha uma função
subjacente. Ele só não podia imaginar qual seria.
- O senhor já trabalhou com a polícia, doutor Carmo. Tente ser direto: quem pod
e ter cometido essa atrocidade?
- Por que não o óbvio? Um bandido qualquer? Um famigerado assaltante?
- O óbvio nunca deve ser descartado. Mas sempre é preferível encará-lo com relutância
. Eu sou um investigador, doutor Carmo, e já me acostumei a não duvidar do absurdo.
Sabe quando perdemos o chaveiro? Procuramos por todas as frestas durante horas,
podemos examinar a mesma gaveta dezenas de vezes. Mas nunca abrimos a geladeira
para verificar se ele não estaria lá dentro. O problema é que, em minha profissão, já enco
ntrei muitas chaves na gaveta de carnes. Pois bem, eu preciso saber se haveria n
a família de Estela alguém que tivesse motivos para assassiná-la.
O doutor Carmo pensou um pouco. Enquanto fechava os olhos e tornava a abri-
los, figurando alguma maquinação, Portela não deixou de fitá-lo. O velho respondeu:
- Você não veio me fazer essa pergunta.
Portela aceitou temporariamente o ponto de vista do enfermo:
- Então que pergunta vim fazer-lhe?
O doutor Carmo teve de pensar mais um pouco. Uma extremidade de seus lábios d
espontou, mas o sorriso não passou de uma promessa. Diante de um ancião como ele, os
jovens defrontam o abismo do tempo, sentindo o peso incalculável da experiência.
- Que tal perguntar-me se eu sei onde estavam todos os familiares de Estela
quando ela foi assassinada?
- Por que eu lhe perguntaria isso se sei o que o senhor responderia?
- O que eu responderia?
- Que estavam todos em Botucatu. Num belo almoço familiar.
A fronte fidedigna do doutor Carmo iluminou-se:
- Um belo almoço familiar. Todos os almoços familiares são belos. Exceto na liter
atura, porque os escritores, me parece, não gostam de família. Nos livros, jantares
de família são sempre um horror de hipocrisia e insatisfação.
- Como o senhor sabe que estavam todos em Botucatu?
- Muito simples. Em geral, não se importariam muito comigo por lá, afinal o par
entesco não é tão estreito, mas algum imbecil julgou que eu estivesse com um pé na cova,
então resolveram ligar e, de lá, nem todas as ligações interurbanas podem ser feitas po
r discagem direta. Essas estatais telefônicas... você sabe. Quando minha esposa aten
deu, a telefonista anunciou a ligação de Botucatu, e então conversamos com diversas pe
ssoas.
- Inclusive o Roberto?
- Sim, ele foi, se não me engano, o segundo a falar. Bem, de qualquer forma,
está registrado na fita.
- Fita?
- Tenho um gravador que funciona automaticamente para registrar todas as co
nversações telefônicas. Para alguém que trabalhou na polícia... enfim, julguei isso import
ante. E de alguma forma acabou sendo.
- Espero não o importunar mais - disse Portela, preparando-se para deixar o q
uarto.
Ao aproximar-se da porta, viu estendido um dos braços da velha, com uma fita
cassete na mão.
III
Portela entrou no carro sentindo-se tão exausto que pensou na própria cama como
uma espécie de paraíso. Afinal, o sono é mais que um clímax do repouso, é uma curiosa eta
pa de vida, capaz de erguer ou derrubar um homem, conforme o estado de espírito co
m que ele acorde.
Poucos automóveis ainda deslizavam àquela hora. Apenas as largas vias expressas
tinham movimento considerável, pois uma megalópole nunca pára completamente, embora,
de algum modo, as grandes massas durmam. A agitação se resumia às portas de bares e re
staurantes, aqui e ali. Portela afundou o pé no acelerador e em alguns minutos est
ava em casa.
Numa prateleira de despensa, apanhou uma caixa de bombons e ajustou-se no s
ofá. Vivia numa residência fundamentalmente prática, com poucos cômodos, mas que eram es
paçosos o suficiente e muito próximos, de paredes brancas e nuas que não o desanimavam
. Para Portela, tudo o que bastava era a disposição satisfatória dos utensílios. Havia c
rescido num tempo em que ornatos de alvenaria e outros recamos eram luxos quase
estúpidos. Consumiu o chocolate, manso como um degustador, sabendo que aquilo era
uma droga que o entorpecia. Droga lícita, mas viciante. Era melhor que nada, melho
r que o tédio e também melhor que a ansiedade. Seus efeitos colaterais? No máximo a ob
esidade - que podia ser controlada com saladas de pepinos e caminhadas no parque
- e a possibilidade de indesejáveis efeitos intestinais ou gástricos - para os quai
s existiam pastilhas, chás e líquidos borbulhantes. Mas ele parecia tranqüilo como que
m já tem o sistema digestivo afeito ao pasto. Em vez de ligar a televisão, esticou o
braço até o chão e recolheu uma folha de jornal. Pôs-se a lê-la.
Como já encontrara outras vezes, viu uma extensa reportagem sobre a AIDS. Dev
orou-a, porque já vira vários amigos esvaírem-se assolados pelo flagelo. Para sua sati
sfação, um articulista condenava a expressão "grupos de risco", dizendo que ela infund
ia dolorosos preconceitos, o que Portela sabia que era uma grande verdade.
Portela recordava-se de que, poucos anos antes, era o câncer que inspirava te
rror, doença que, ainda terrível, já podia ser controlada em um número maior de casos. C
om a AIDS era diferente, pois a novidade clínica assombrava os cientistas, e ninguém
podia frear seu desenvolvimento avassalador no organismo. Uma verdadeira praga
dos tempos modernos não abdicaria de ser, ainda, um instigante desafio científico.
Pôs de lado o jornal. Fatos e idéias rodavam em sua mente, como a visão branca de
Estela, a própria existência de Estela, antes insuspeitada: a verdadeira Estela.
Portela ensaiou seu banho, despindo-se por completo. Buscou trajes em gavet
as e cabides, assuntou a corda esticada na área e acionou no rádio do quarto uma músic
a baixinha, antes de levar suas coisas ao banheiro, onde se olhou no espelho e d
eparou com uma figura surrada, quase infeliz. Cabelos desgrenhados, pele poluída,
olheiras marcadas. Os restos de um dia de existência. Como poderia eximir-se dos v
entos cheios de poeira de concreto da megalópole?
Não suportou tocar no registro do chuveiro. Abandonou o compartimento de banh
o, reuniu de novo suas roupas usadas, vestiu-as com sofreguidão, guardou nos bolso
s os últimos bombons da caixa aberta e saiu do apartamento.
Caminhou por dois quarteirões e, como sentiu um pouco de frio, voltou à garagem
do prédio e pôs-se novamente ao volante.
Rodou alucinadamente, vagueando como um bêbado, mas não por acaso pegou os rumo
s da estrada. Ainda pisava chão urbano quando divisou o letreiro: "Malícia".
Estacionou. O neon piscava o nome do estabelecimento, e sibilava, mas duas
letras mantinham-se apagadas. Portela pisou o tapete de pedregulhos do estaciona
mento apertado. Atravessou uma portinha e deu com uma ante-sala, de onde disting
uiu ao fundo uma canção melíflua. Foxtrote maçante! Um homem sonolento, atrás de um balcão,
reconheceu-o, mas não disse nada: vasculhou um painel de chaves coloridas enquanto
Portela apalpava a carteira. Algumas cédulas pousaram na fórmica engordurada, e o h
omem deu-lhe uma chave.
Portela subiu uma escadaria circular, cujos degraus metálicos rangeram, desej
ando ceder. Num corredor alongado, olhou o número da chave e dirigiu-se à porta apro
priada. Pôsteres esmaecidos, presos com fita adesiva, enfeitavam a passagem. Porte
la deteve-se diante da pequena porta. Abriu-a e entrou sem pressa.
Viu ali uma cadeira e um vidro imenso. Uma única fonte de luz, vermelha e mui
to fraca, brilhava num canto da sala, e Portela tentou acostumar seus olhos à penu
mbra. Sentou-se e, atrás da proteção translúcida, observou uma mulher surgir por outra p
orta e iniciar seu trabalho.
Portela levantou-se enquanto a mulher continuava em ação e escapuliu pela porta
, deixando-a sozinha. Como referir-se a uma profissão como aquela? Talvez fosse um
a dançarina: mas a arte das dançarinas está mais no movimento em si do que na sua fina
lidade. Talvez, então, uma atriz. Talvez uma prestidigitadora. Talvez uma salva-vi
das. No corredor, foi abalroado por dois adolescentes sorridentes, que se dirigi
am à escada com mais pressa. Portela ficou parado e, acostado à parede, levou os ded
os às têmporas para reequilibrar-se. Desceu e viu-se na mesma ante-sala. A vida era
intensa e rápida, efêmera, nesses lugares... Dirigiu-se ao homem do balcão:
- E a Fátima?
- A Fátima? - o homem hesitou. - Ela está com a doença.
- Você está brincando!
- Não, não estou.
Portela abaixou a cabeça, franziu a testa e falou:
- Eu quero usar o telefone.
- Ligação local segue essa tabela - o homem apontou um papel encardido fixado n
a parede.
Portela estudou a planilha durante alguns segundos e, sem reclamar, tomou o
gancho na mão e girou os discos numerados. Logo que uma voz rezingou no aparelho,
Portela acorreu:
- Luciano?
- Eu não acredito! - blaterou a voz.
- Luciano, por que você não me escuta?
- Nem se fosse meio-dia, Portela.
A ligação foi interrompida imediatamente, o que fez Portela emitir um resmungo
de animadversão. Vidas perdidas, e esse comportamento brutal! Jogou uma cédula no ba
lcão e saiu.
Portela, em vez de entrar no carro de uma vez, deteve-se na calçada e mirou o
céu negro. Brilhavam as poucas estrelas que as luzes e a poluição da cidade deixavam
entrever. Portela admirou-as um instante, enternecido, e em seguida despertou. C
omeu um bombom, sequioso como quem se embriaga.
Permaneceu vagueando em velocidade reduzida, por ruas estreitas e longínquas,
saboreando o enquadramento sensual do pára-brisa. Aos poucos, aproximava-se de um
lugar conhecido.
Estacionou o carro a cinco quarteirões da casa de Roberto e caminhou em direção a
ela, ruminando objeções. Prevalecia, entretanto, a força interior de mergulhar profun
damente naquela correnteza, e de tal modo, que teve de galgar uma ladeira íngreme,
e isso não o paralisou. Transpôs o aclive com lentidão, mas chegou à calçada da residência
Sob um poste de iluminação pública, Portela muniu-se de uma caneta e um bloco de
anotações. Escreveu, mas esteve mais tempo a olhar para o que rabiscara. De chofre,
decidiu-se, meteu tudo no bolso e investiu em direção à casa.
IV
Roberto recebeu Portela com uma discreta manifestação de surpresa:
- O senhor trabalha duro.
- Acredite ou não, eu apenas trato a mim mesmo com severidade para fazer aqui
lo que deve ser feito.
- Nada mais do que o que deve ser feito?
- Algo mais do que o que deve ser feito: quando necessário.
Portela adentrou a sala, com o consentimento do anfitrião, e notou que estava
tudo praticamente limpo. Ficou satisfeito por não ter trombado com jornalistas po
r ali, não porque os achasse importunos, mas porque lhe eram frívolos e obtusos.
- Por que a vítima não viajou para Botucatu?
- A vítima?
Portela fitou Roberto e emendou:
- Sua esposa.
A resposta foi calma:
- Ela não viajou porque planejava ser assassinada.
Portela correu os olhos em torno, com um olhar sereno que refletia a voz qu
e emitia:
- É claro, senhor Roberto, que o senhor deve estar cansado. Eu não estou menos,
embora não tenha dúvida de que hoje me seja impossível rivalizar com seu estado de co
moção. Assim mesmo, estou aqui, e infelizmente preciso afirmar-lhe que um investigad
or tem apreço diferenciado por pessoas que demonstram o maior empenho em colaborar
.
Roberto desenhou uma expressão de padecimento:
- Desculpe, senhor Portela, quero colaborar com todas as minhas forças e lame
nto pelo amargor. Eu tinha uma ligação muito forte com Estela, minha esposa, mais fo
rte do que costuma ocorrer com a maioria dos casais. Uma relação romântica. Meu Deus,
se ela tivesse sido atingida por um raio, eu estaria agora internado num hospita
l, em estado de choque. Se permaneço de pé, é porque não posso abdicar de minha razão e me
us sentidos até que esse assassino esteja pagando o que merece.
Portela suspirou:
- Gostaria de saber por que sua esposa não viajou para Botucatu.
- Em razão dos negócios que ela tem. Tinha.
- Que negócios?
- Ela inventava brinquedos, mas, como toda sua família, sempre teve vocação para
a riqueza. Eu assumi o controle de alguns negócios, mas ela fazia questão de continu
ar criando e, principalmente, conduzindo pessoalmente a rede de lojas de brinque
dos.
- Que rede?
- A Casa Mágica dos Brinquedos.
Portela reconheceu a informação, depois de apanhar do bolso algumas anotações que M
arquinhos lhe transmitira e conferi-las diante de Roberto. A assessoria pessoal
torna fáceis todas as atividades, e também as torna ligeiras e higiênicas. Por que não u
tilizar as benesses de um subalterno eficiente, mediante salário módico?
- Ela tinha alguma atividade relacionada a esse negócio, hoje?
- Sim, tinha um encontro com um homem.
- Um homem?
- O gerente de uma das lojas - reparou, com outro tom.
- Ela tinha o hábito de se reunir com gerentes das lojas?
- Não era um hábito, mas, como eu disse, a disposição dela era de conduzir tudo pes
soalmente.
Portela diversificou o rumo da inquirição:
- Que horário o senhor retornou de Botucatu?
- Eu disse isso ao seu colega. Ele não lhe informou?
- Eu lamento, senhor Roberto, a polícia tem a péssima mania de fazer algumas pe
rguntas mais de uma vez. Reconhece o fato, mas nem por isso se corrige, e contin
ua exigindo as respostas.
- Pois bem. Disse a ele que saí de Botucatu por volta de duas da tarde.
- E chegou aqui às quatro e meia?
- Isso mesmo.
Portela continuou:
- Tenho aqui uma lista dos demais parentes que também estiveram em Botucatu e
retornaram depois a São Paulo. Ao que parece, fizeram isso cerca de uma hora ante
s do senhor.
- Foi o que aconteceu.
- Por que o senhor ficou mais tempo lá?
- Fiquei só conversando com pessoas conhecidas.
Portela olhou em seus papéis a lista de pessoas com quem Roberto havia ficado
conversando, e o número do telefone de cada uma delas.
- Por favor, senhor Roberto, anote para mim o endereço da loja em que trabalh
ava o gerente que o senhor mencionou.
Roberto cumpriu o pedido, entregando-lhe um papel:
- Ele se chama Milton.
V
Portela desceu a ladeira forçando uma passada mais contida, pois, perdido o e
quilíbrio, não teria forças para evitar espatifar-se. Estava tão exausto que o banco lar
go foi-lhe uma nuvem, onde flutuou um pouco antes de dar a partida. A sensação de alív
io é das poucas que supera o prazer da imaginação.
Foi direto para casa, considerando que seu dia estava terminado. O que mais
poderia fazer depois de tudo aquilo?
Novamente despido, demorou-se sob o chuveiro. A água quente caía sobre seu corp
o como uma amorosa carícia. A sensual delícia do toque.
Apesar do cansaço físico, julgou-se insone. Esticou-se no sofá da sala, sentindo
com prazer as ranhuras discretas do couro, e pousou a cabeça no braço volumoso do móve
l. Irresistivelmente, alcançou o auscultador telefônico e meteu-o no ouvido. Danem-s
e os ponteiros! De ponta-cabeça, discou um número familiar e esperou oito toques inf
initamente espaçados até que uma voz resmungou:
- Alô, Portela, fala.
- Como sabe que sou eu?
- As pessoas que gostam de mim de verdade não ligam nesse horário.
- Sem essa, Marquinhos. Virou menina-moça, agora. Não sabe nem varar uma noite
mais.
- Certo, vamos lá. Vou fazer de conta que estou muito contente e ouvir você. Di
ga.
- Preciso ter alguma coisa para dizer?
A conversação se interrompeu por alguns segundos:
- Você está aí, Marquinhos?
- Não, estou dando a volta ao mundo.
- Não fique chateado comigo pelo horário.
- Como você está, Portela?
- Estou tentando ficar calmo. Como sempre.
- A vida é essa, Portela. Veja o meu caso. Um poço de ansiedade. Às vezes, aquela
s palpitações. Você próprio já falou para eu procurar psicólogo. Não vou. Para que ter mais
eocupações? Ir toda semana pagar para um sujeito ficar me ouvindo dar o serviço? Isso
durante anos a fio? Nada feito. Quero paz, não um confidente. Aí vou ficar mais cismát
ico. E se o sujeito me delatar? Contar para mais alguém minhas fantasias devassas,
minhas inquietações pueris? Com um psicólogo em minha vida, perco o sono, um dos último
s bens que me restam.
Portela riu:
- Ainda bem que eu te liguei. Para quem você ia poder desfiar tudo isso?
- Eu até aceitaria tomar algum remédio - prosseguiu Marquinhos, indiferente. -
Muitos dizem que faz mal. Pois bem, o que é que faz pior? Eu não sei. Um remédio eu po
deria experimentar, porque é uma coisa química: você toma, acontecem as reações necessárias
e ninguém precisa ficar passando e repassando a limpo um milhão de idéias e cogitações. A
credito na química.
- Ótimo. E o que nós vamos fazer amanhã?
- Continuar vivendo.
- Amém. Talvez seja melhor deixar você dormir agora.
- Quem pode dormir depois de ser despertado desse jeito?
- Boa noite, Marquinhos.
- Boa noite, Portela. Ligue sempre.
Portela pousou o mecanismo no gancho e uma extensa tese acadêmica aportou em
seu cérebro. Com as histórias de Marquinhos, poderia redigir um Compêndio Avançado do On
anismo, ou um volume de Fábulas sobre a Ansiedade Moderna, ou ainda o espichado ro
mance "Por que assassinei meu pai, enquanto minha mãe, embora agradecida, prudente
mente fugiu". Faltava-lhe apenas a retórica, a ousadia e, é claro, o ócio interminável d
os artistas, mas ao menos pôde afagar-se alguns minutos com esses pensamentos genéri
cos. De tanto contemplar o teto, distraiu-se, e a luminária modesta como que se ap
agou em seu espírito, fazendo a clareza do ambiente dissolver-se aos seus olhos. O
forro acinzentado transformou-se numa tela de cinema, e os acontecimentos do di
a transitaram naquela área. Não poderiam vir em câmera lenta? Sim, poderiam. Suas pálpeb
ras morreram devagar, pousando docemente, com a suavidade de um pássaro cordial. A
dormeceu e, segundos depois, seu rosto não era mais plácido. A boca se contorceu enq
uanto seus olhos tremelicavam.
Acordou assustado, com as costas doendo, sem se recordar do que sonhara. Ne
m podia concluir se tinha vivido sensações agradáveis ou desagradáveis.
Levantou-se e dirigiu-se ao banheiro. Invadiu com firmeza aquele espaço priva
do e íntimo que, dentro do castelo, dentro do lar, é o derradeiro refúgio do homem. Não
apenas porque ele, sozinho, contemple o produto de suas entranhas, mas também porq
ue é onde se banha das impurezas, onde se fita no fundo dos olhos e vê que é menos do
que carne e mais do que paixão. Desincumbiu-se de suas últimas necessidades antes de
tomar o caminho definitivo da cama, onde deitou-se confortavelmente. Sua larga
cama de casal era seu mais simples capricho, como se, sobre ela, dormisse duplam
ente. A sóbria cabeceira de madeira amparava seu conforto. Ele começou a descansar.
Pensou no dia que teria pela frente e rapidamente dormiu de novo.
Algumas horas depois, mais uma vez seus olhos estremeceram. Revirou-se na c
ama e apertou o travesseiro, dando um longo suspiro.
Despertou com uma percepção amena do que sonhara, e sorriu, direcionando os olh
os ao relógio de cabeceira. Uma vez que o equipamento eletrônico, trivial, era como
sempre certeiro, Portela assustou-se. Era muito tarde.
Lançou-se fora da cama com um salto.
Entrou a banhar-se de novo, irrefletidamente. Enfiou uma roupa e, depois de
engolir chocolates na cozinha, desabalou escada abaixo.
Havia trânsito. Os carros se aglomeravam pelas alamedas, cheios de pressa, e
suas buzinas soavam com insistência, indiferentes às escolas e aos hospitais, enquan
to os ônibus circulavam quentes, apinhados de trabalhadores. Dantesco? Não, império do
cotidiano. Portela se afligiu por um instante. Uma contração torceu-lhe o estômago, m
as ele não demorou para chegar à Casa Mágica dos Brinquedos.
A pressa fora debalde. Executivos passeavam, garotos corriam, a azáfama da me
trópole estava instaurada - mas a loja ainda não descerrara as portas. Portela consu
ltou seu relógio, e viu que era mesmo cedo para crianças terem liberdade e para os a
dultos cederem ao desatino.
Instalou-se a uma mesa de calçada, em um estabelecimento simples, que fingia
sofisticação de café parisiense. Pediu ao atendente da lanchonete um sanduíche disso com
aquilo, mas o moço não falou nem anotou nada, só desapareceu e, três minutos depois, re
ssurgiu com um pacote de papel sobre um prato. O volume recendia a um delicioso
aroma de fritura gordurenta. Portela não tinha dúvida: comida era a melhor coisa que
existia, depois de Deus, sexo e a anestesia.
- Vai beber alguma coisa?
- Quem é que pode saber o futuro?
- Hein?
- Um suco de laranja.
Vista de fora, a Casa Mágica dos Brinquedos era estupefaciente. Uma criança peq
uena deveria cruzar aquela rua com o olhar arrebatado, porque os muros pintados,
a alegria da fachada, a extensão da calçada, tudo prometia um mundo de divertimento
em seu interior.
Portela vigiou, de seu posto, a entrada de pessoas pela portinhola. Depois
que o rapaz trouxe-lhe o suco, ele devorou tudo.
Ao terminar sua refeição, viu que um funcionário de macacão apareceu na calçada da lo
ja e, um a um, foi levantando seus portões. Logo se exibiram, além da entrada espaçosa
, vários metros de alegres vitrinas.
Agora a loja se mostrava ainda mais encantadora, pois, atrás dos vidros expos
tos, uma infinidade de brinquedos já se entrevia, todos bem dispostos para excitar
a cobiça infantil. Portela depôs algumas cédulas sobre a mesa e meneou os dedos para
o rapaz. Atravessou a rua.
A loja vazia era imensa. A limpeza da manhã era nítida, as mercadorias bem orga
nizadas nas infindáveis prateleiras. Horas mais tarde, com o bulício das crianças afoi
tas, a ordem seguramente seria outra. Portela avançou um pouco mais em seu interio
r. Nenhum funcionário o percebeu à porta. Uma mulher entrou, e Portela observou as p
essoas presentes.
- Bom dia - dirigiu-se a ele uma moça de uniforme.
- Bom dia - Portela respondeu, ainda inspecionando tudo com curiosidade.
- Posso ajudar de alguma maneira?
- Preciso falar com o gerente, o senhor Milton.
- Do que se trata?
- Trata-se de uma conversa que preciso ter com o gerente, o senhor Milton.
A moça sorriu amarelo e condescendeu. Afastou-se, enquanto Portela conservou-
se onde estava. Do fim do corredor, a funcionária ressurgiu, assomando em seguida
um homem meio calvo, que se aproximou sem pressa, sondando o perfil de Portela.
De perto, via-se possuir traços marcantes. Era um belo homem que principiava a per
der cabelos, embora sua juventude se mostrasse ainda sedutora.
Estendeu a mão a Portela com um sorriso profissional. Portela aceitou o gesto
.
- Preciso fazer-lhe perguntas sobre sua patroa.
- Ela foi assassinada ontem.
- Fique calmo, preciso de respostas que eu ainda não tenho.
- O senhor é da polícia?
Quando Portela confirmou, Milton perguntou-lhe se preferia conversar no esc
ritório.
- Detesto escritórios - respondeu Portela. - Gosto do mundo vivo, das pessoas
passeando e esbarrando na gente.
- Como posso ajudar?
- A loja abriu ontem?
- Sim, abriu normalmente.
- E o senhor esteve aqui?
- Estive.
- Durante todo o tempo?
- Ausentei-me durante cerca de uma hora à tarde. Tenho certeza - o gerente so
rriu - de que não é o suficiente para alguém se deslocar até Botucatu.
Portela franziu o sobrecenho, e uma pergunta chegou-lhe aos lábios, mas ventu
rosamente teve tempo de detê-la. Formulou uma alternativa:
- Aonde o senhor foi?
- Fui à casa de dona Estela, minha patroa.
- Que interessante!
- Evidentemente, ela não estava.
- Evidentemente?
- Evidentemente. Claro, apenas agora eu digo "evidentemente". Na hora, não en
tendi bem.
- Por quê?
- Porque tínhamos uma reunião aqui em São Paulo.
- Mas, afinal, senhor Milton, onde ela estava ontem, na hora em que o senho
r foi procurá-la?
- Em Botucatu.
- Quem lhe deu essa informação?
Milton retraiu-se e baixou os olhos, pensativo. Incomodado, admitiu:
- Ninguém. Eu tirei por conclusão.
- Entendo. Nesse caso, quais foram as premissas?
- Primeiro, recebi a informação de que ela havia sido assassinada, por meio de
um telefonema de um gerente de outra loja, que disse que não tinha mais informações, só
sabia que ela havia sido esfaqueada. Fiquei chocado com isso e, no primeiro mome
nto, passei a cogitar sobre se deveria fechar a loja. Em seguida, entreouvi em n
osso som ambiente, que reproduz uma rádio, a informação especial sobre um brutal assas
sinato de uma mulher muito rica, na cidade de Botucatu, onde sei que ela tem fam
iliares.
Portela lançou de imediato:
- Não havia mais ninguém na casa dela, quando o senhor foi até lá?
- Não. Bati na porta e ninguém apareceu. Eles não têm uma campainha, e sim uma aldr
ava, mas ela faz pouco barulho. Assim mesmo, há uma espécie de governanta sempre por
perto, porém ninguém atendeu.
- A que horas foi isso, mais ou menos?
- Depois de quatro horas. Cerca de quatro e meia, talvez.
- E o senhor não encontrou o senhor Roberto?
- Não... bem, na verdade eu o vi, mas ele não me viu.
- Como foi isso?
- Eu desci da entrada da casa, entrei no carro e saí. Na primeira esquina, cr
uzei com o carro dele. Quando percebi, de relance, que era ele, olhei dentro do
carro para ver se dona Estela estava também. Se estivesse, eu voltaria.
- E o senhor Roberto o viu?
- Creio que não.
- Muito obrigado, senhor Milton. Suas informações foram úteis.
VI
Portela conduziu seu automóvel por algumas vias conhecidas. Por que gostava t
anto de deambular vagabundo pelas ruas? O sabor simulado de uma liberdade perdid
a... O motor acelera para escapar da rotina obesa e arquejante... Entrou numa ga
ragem subterrânea e conseguiu uma vaga perto da porta. Saltou depressa e ingressou
no supermercado.
Centenas de carrinhos desfilavam nos corredores da loja monumental. Eis a p
antomima do mundo moderno, o copioso inventário da manufatura humana! Chorosas, cr
ianças imploravam por biscoitos e outras guloseimas, enquanto senhoras idosas disc
riminavam as mercadorias com escrúpulos minuciosos e homens gordos, vindos do inte
rior, passeavam de bermudas empurrando carrinhos abarrotados.
Portela caminhou com objetividade entre as prateleiras. Parou diante da pra
teleira de doces, com uma expressão circunspecta, e tomou às mãos uma barra de chocola
te. Em seguida, uma caixa de bombons, depois outra, e outra, até encher o carrinho
vagarosamente. Como poderia ser diferente? A indústria de homens dedicados havia
produzido aquela fartura variada de iguarias, portanto comprá-las não era um ato eco
nômico puro, mas sim o mecenato de um tipo sofisticado e visceral de arte.
O banco de trás de seu carro ficou repleto de chocolates que, inertes, balouçav
am ao sabor dos solavancos do veículo. Portela acelerava, indiferente a isso. Foi
flutuando pela cidade durante quase duas horas, reocupando as mãos vazias nos semáfo
ros vermelhos. O chocolate penetrava o seu sangue, inundava seu cérebro, lubrifica
va as sinapses. O luar podia agora tornar-se azul.
Desceu diante de um telefone público e pegou o fone com a mão esquerda. Com a mão
direita, apalpou o conteúdo interno do bolso da calça, onde encontrou moedas e outr
os berloques, mas não fichas telefônicas.
Praguejou e entrou no carro, para logo acionar a ignição com uma fúria decidida.
Já passara o efeito do cacau glicosado? Pôs-se a caminho.
Depois de muitos quilômetros, chegou a uma viela estreita que lhe era bem con
hecida e, evitando aproximar-se do sobrado no meio do quarteirão, estacionou sob u
ma ótima sombra. Esperou. Intrigante fenômeno humano: aprender a esperar. Como será a
vida desses pirralhos abobalhados que já ganharam a vida no berço? Que nunca aprende
ram a esperar? O amor, a reputação, a glória? Presente de Natal em julho, regalos sem
custo, árvores sem semente.
Um tempo depois, saiu de outra casa um moleque pequeno, carregando uma bola
. Inevitavelmente assombrou-se com o veículo pequeno mas vistoso de Portela e fico
u olhando, entre receoso e bisbilhoteiro.
Portela, incomodado, partiu e deu a volta no quarteirão, parando agora um pou
co mais distante do sobrado. O menino o percebeu, mas deu menos importância e se m
anteve chutando a bola solitariamente. Nem sempre há menos prazer no isolamento, p
elo menos para os misantropos empedernidos, que tiram do deserto o seu gás. Impens
avelmente, povoam-se dentro de si mesmos, enquanto, no meio da multidão, sufocam-s
e e, mais do que sozinhos, tornam-se dissipados. Mortos.
Depois de um tempo, apareceram outros garotos, pois o sol começava a castigar
menos, e eles, com pedras, armaram os gols. Sentiam-se confortáveis no meio de um
a rua praticamente sem trânsito. A bola rolou, e Portela torceu para o time sem ca
misa.
Como os chocolates estavam escasseando, Portela ligou o rádio do carro, o que
o distrairia de outra maneira.
"Notícias da Europa", estrilou o locutor. "Manifestações em Bucareste prenunciam
curta vida para o regime do ditador romeno Nicolae Ceausescu. A população quer a cab
eça do líder. Comentaristas europeus acreditam que a repressão policial dificilmente p
oderá deter a energia das pessoas que protestam com violência nas ruas da capital do
país."
"Se continuar assim", Portela pensou, "não sobrarão governos totalitários para o
próximo século."
"O que está ocorrendo no mundo", eram as palavras do analista político da rádio,
"é um verdadeiro efeito dominó. Não há cantinho do planeta que não perceba o momento histór
co de se engajar nas lutas pela libertação."
Portela desligou o rádio. Finalmente divisou Luciano, que saía calmamente de su
a casa e, sem ver o carro de Portela, começava a caminhar em direção oposta.
Portela deu a partida com suavidade e avançou pelos cinqüenta metros que o sepa
ravam de Luciano. Os meninos se afastaram do centro da rua, movimento que custou
um contra-ataque ao time de camisa. Em segundos, Portela abordou seu alvo. Quan
do Luciano percebeu, tentou fugir para casa, mas Portela foi rápido e o imobilizou
.
- Até de uma emboscada você é capaz, Portela?
- Eu quero falar com você.
- Como se eu não soubesse disso!
- Qual é o problema? - indagou Portela.
- Eu é que tenho de perguntar.
- Vamos entrar em sua casa.
- Eu não quero você dentro de minha casa.
Luciano era um indivíduo franzino e branquelo, que carregava costeletas bem a
paradas e parecia estar cultivando um cavanhaque. Seu corpo aparentemente frágil p
odia encher de misericórdia uma mentalidade condoída. Tinha um olhar irrequieto e ar
redio.
- Prefere ficar aqui? Dando espetáculo para todos os meninos da rua? - Portel
a apontou os jogadores de futebol. A partida estava, de fato, interrompida.
- Você tem quinze minutos para dizer o que quer e me deixar em paz.
Portela assentiu, porém não afrouxou o braço de Luciano. Caminharam em direção à casa
, transposta a porta, Portela aliviou. Luciano massageou o braço e introduziu Port
ela em sua pequena sala.
- Você está sozinho - observou.
- Eu sempre estou sozinho - Luciano respondeu.
A casa de Luciano mostrava uma decoração um tanto peculiar. O asseio era impecáve
l, os objetos de bom gosto, mas nada parecia combinar. Adereços metálicos modernos e
urbanos contrastavam com penduricalhos rústicos, de madeira viva, enquanto uma cr
istaleira muito antiga comportava um aparelho de som, com suas fitas e discos.
Portela sentou-se numa poltrona apertada, e o dono da casa acendeu um cigar
ro.
- Você ficou muito tempo na espreita?
Em vez de responder, Portela levantou um ombro, fez bico. O que poderia diz
er? Não era a espreita que interessava, mas sim o longo decurso de tempo em que se
sentia alijado do amigo.
- Agora não é mais seguro nem mesmo sair de casa. Eu devia ter sentido o cheiro
do chocolate.
- Eu não tenho mais comido chocolate.
- Não?
- Não.
- Eu posso jurar que senti o cheiro de chocolate em sua boca - afirmou. - M
as diga logo o que quer.
Portela refletiu:
- Eu quero só estar aqui, conversando com você.
Luciano meditou sobre o significado dessas palavras. Filosofia do cotidiano
. Tragou profundamente.
- Isso você já está fazendo.
- Então eu estou fazendo o que quero. Alguma objeção?
- Nenhuma. Serão quinze minutos. Quando o ponteiro grande chegar ao oito, aca
bou.
- Então serão treze minutos.
- Dois já se passaram. Não posso ficar a vida toda aqui para satisfazer sua von
tade.
Portela suspirou:
- Você não poderia me explicar a razão para toda essa hostilidade?
- Que hostilidade?
- Eu não sabia que as palavras tinham mudado de sentido. Deixe, então, eu refaz
er a pergunta. Por favor, me explique a razão para você estar me tratando com tanta
amabilidade, com tanta gentileza.
- Sempre tratei todos com a maior cortesia, inclusive você. Não sei por que está
estranhando.
Portela fixou o olhar num canto da parede e não disse nada durante um minuto.
Depois reiniciou:
- Eu não fiz nada de errado para você, Luciano. Não fiz nada de errado. Essa situ
ação é um tormento para mim. Não gosto de pôr a cabeça no travesseiro, a cada noite, sabend
da ojeriza que você sente por mim. Às vezes chego a pensar que devo ser algum tipo
estranho de monstro, que não enxerga a própria monstruosidade. Mas encaro o espelho
e só vejo inocência. O que eu fiz? Não correspondi às suas expectativas. Mas quem é que co
rresponde às nossas expectativas? Nem todo o mundo. A vida é assim: sucessos e frust
rações. No entanto, não sei por que não podemos nos dar bem.
Luciano tragou devagar, esforçando-se para parecer distante. Cogitava uma res
posta:
- Você não é um monstro e, no passado, nunca agiu como um. Agora, porém, está agindo.
- Eu? Agora? Agindo como um monstro? Como?
- O simples fato de procurar-me com insistência, e isso que você fez hoje, de p
raticamente me seqüestrar, são monstruosidades. Você deveria parar de agir assim.
- Por quê? Nós sempre fomos amigos, desde crianças bem pequenas, e continuo consi
derando você uma pessoa muito importante. Preciso de suas opiniões. Você não imagina o q
ue está acontecendo em minha vida neste momento. Conversar calmamente com um amigo
inteligente como você faria toda a diferença.
- E o Marquinhos?
- Pare de implicar com o Marquinhos! Ele é uma outra pessoa. Outra pessoa.
- Portela, você, ao que parece, mudou, mudou muito. Mas eu não mudei. Eu contin
uo precisando de você de uma maneira muito mais intensa. Sem isso, é detestável até mesm
o pensar em você.
Portela manteve-se um pouco calado e, em seguida, arriscou:
- Você precisa superar isso. Não pode ficar com esse sentimento.
- Eu não preciso superar nada e posso ficar com o sentimento que quiser - res
pondeu Luciano, na verdade sem ser agressivo.
Portela acompanhou o ponteiro grande avançar mais um pouco e explicou:
- Meu tempo está acabando. É uma pena, eu não gostaria de prescindir de sua amiza
de em virtude de um obstáculo no percurso. Mas vejo que precisarei aceitar isso.
Luciano não contestou o visitante. Descartou no cinzeiro o toco de cigarro. E
sperou.
- Antes de ir embora - continuou Portela -, quero deixar uma coisa com você.
Se não lhe fizer bem ficar com uma lembrança minha, não tem problema. Jogue fora.
Portela retirou um envelope pequeno do bolso e passou-o a Luciano, que esboço
u um movimento a contragosto. Tomou o envelope nas mãos e abriu-o, encontrando den
tro dele exclusivamente a fotografia em preto e branco de um homem nu.
Portela levantou-se e dirigiu-se à porta de saída. No caminho, notou que os olh
os de Luciano estavam vermelhos e úmidos.
- Portela!
O visitante deteve-se:
- O quê?
- Vai. Vai embora.
Portela acenou com a cabeça e retirou-se, deixando Luciano, estático e de pé, con
templando a fotografia. Uma porta para o passado? Um espelho? Uma esperança?
Na rua, os meninos pararam de novo o futebol e viram Portela entrar no carr
o e sair em disparada.
Ele deglutiu o derradeiro pedaço de chocolate e tentou organizar o pensamento
. Desanuviou o semblante e seguiu caminho, sentindo que agora podia pensar. Sabi
a que não havia sido cruel. No máximo, irônico, e de uma ironia suave, cheia de flores
e carinhos.
Em pouco tempo, estacionava seu carro diante da casa de Roberto.
VII
- Por onde andou, Portela? - era a voz de Marquinhos.
- Primeiro, fiz um interrogatório. Depois, fui ao oráculo.
- E o que o oráculo disse que o destino nos reserva?
- Os oráculos não trabalham dessa maneira, Marquinhos, não seja tolo. O que você es
tá fazendo aqui fora?
- Vim fumar um pouco, está havendo um velório lá dentro.
Portela preocupou-se:
- Você não conseguiu uma necropsia adequada?
- Portela, essa gente é rica. Fazem velório em casa e querem que tudo seja rápido
e pouco traumático para a família. Com algum empenho, conseguem.
- Mas e os resultados?
- Os legistas examinaram e só disseram o que a gente já sabe. Uma perfuração no cor
ação. De resto, foi tudo muito rápido.
Portela olhou a porta entreaberta da imensa casa, e escutou o burburinho.
- Dá para mexer alguma coisa lá dentro?
- Claro, Portela. Mas eu já olhei o que era para olhar.
- Ah, já?
- Já.
- O escritório do Roberto?
- O escritório do Roberto? Para quê?
Portela foi subindo os degraus:
- Você não aprende, Marquinhos. Você não aprende.
O investigador passeou discretamente pela sala, mas sem se anunciar nem se
deixar perceber por Roberto. Milton estava presente. Marquinhos dirigiu-se a ele
s para fazer algumas observações sobre as diligências de Portela, enquanto, com isso,
seu chefe alcançou as partes internas da residência.
No escritório de Roberto, conseguiu compulsar alguns documentos. Experiente,
não se perdeu nas escrivaninhas pomposas, nos fichários altos, nas estantes densas d
e livros e pastas. No moderno mundo burocrático, o homem é a soma de seus papéis. Meti
culoso, Portela conseguia não se perder naquela imensidão. Examinou cartas e fotogra
fias, com tempo para esquadrinhar um bom número de gavetas, mas o toque de aviso d
e Marquinhos o fez retirar-se.
De volta à sala, comentou ao colega:
- Preciso falar com Roberto. Espero que ele esteja em condições.
- Parece-me que está, e muito interessado em resolver depressa esse assunto.
- Vamos ver até quando.
Marquinhos foi até Roberto e, depois de insistir durante cerca de um minuto,
finalmente o viúvo consentiu. Pediu licença aos convivas e saiu da sala. Marquinhos
o conduziu até a varanda, onde Portela já o esperava.
- Podemos conversar aqui por um minuto ou dois?
- Na verdade, senhor Portela, eu não me oponho. Mas serão um minuto, ou dois, a
menos com minha esposa.
- Serei breve. Só gostaria de saber por que o senhor não falou nada, nem a mim
nem ao meu ajudante, sobre uma pessoa chamada Camila.
Roberto cerrou o semblante, calando-se, e tirou os olhos de Portela.
- O que o senhor sabe sobre a Camila?
- O senhor tem certeza de que minha obrigação é responder a isso?
- Não, o senhor não tem obrigação de responder, mas eu também não tenho. Não quero que
a se comprometa.
- Isso quer dizer que ela está envolvida no assassinato?
- O senhor sabe que eu não disse isso.
- Acho melhor que ela própria diga o que pensa sobre essa história.
Roberto ponderou e, em seguida, aquiesceu.
- Marquinhos - ordenou Portela -, pegue os dados da moça com ele. Eu vou inte
rrogá-la.
VIII
Amanhecia um novo dia, ensolarado, daquelas luzes que estimulam o espírito. P
or que as trevas confrangem a alma, enquanto a iluminação a alça aos céus? Em sua minúscul
a cozinha de apartamento moderno, Portela preparava um bom café.
Tomou-o na sala, vislumbrando pela janela o firmamento luzidio. Entrava uma
brisa contínua, um vento de decisões que parecia bafejá-lo. As opções que temos são muitas
vezes como leves móbiles flutuando numa região de nossos cérebros, até que uma aragem as
desloque e o brilho do sol possa ressaltar uma única.
Ergueu-se resoluto, ajuntou os apetrechos para um banho e, mesmo sozinho em
casa, trancou-se por dentro do banheiro.
A bela chuveirada o despertou mais que o café, tanto que sentiu o corpo revig
orado. O peito parecia comportar mais oxigênio, a cabeça estava fresca, viva, e Port
ela sentiu seus músculos vibrantes. Se o corpo e o espírito são dissociados, são substânci
as distintas, como se explica que o bem-estar do primeiro possa ter um efeito tão
positivo no segundo? Portela não desenvolveu esse pensamento. Vestiu-se com diligênc
ia, mas sem pressa, ajeitou a aparência e saiu.
Dirigiu por não muitas quadras e estacionou. Saltou do automóvel e viu-se diant
e da loja de doces costumeira, que, como sempre, exalava um aroma provocativo de
café. Portela aspirou-o profundamente, mas resistiu ao movimento. Recusou-se a en
trar, entendendo que agira por automatismo, e, envergonhado, não retornou ao veículo
. Pôs-se a caminhar. Era hora de o gordo sacolejar na calçada! Avançou por algumas qua
dras, sem se deixar nublar.
Foi dar, afinal, diante de uma imensa e histórica igreja da cidade. Havia mui
to tempo que suas paredes externas pediam uma nova pintura, mas os vitrais que s
e entreviam, sempre limpos, prometiam um espetáculo de luzes em seu interior. Port
ela contemplou o campanário elevado, distraidamente. Edifício do tempo de uma arquit
etura espiritual... De chofre, para sua surpresa, ocorreu-lhe entrar e, após cogit
ar na hipótese, ingressou.
Pasmou-se com a suntuosidade do recinto, em que tudo parecia novo, o altar
luxuoso, os panos, a pintura esmerada das paredes e da abóbada. Portela sentiu-se
envolvido por aquele ambiente. Total harmonia entre forma e conteúdo. Recordou-se
do tempo que ficara sem freqüentar esses templos de paz, até teimou em calcular os a
nos: quase vinte.
Não ocorria nenhum tipo de cerimônia ou ritual, havia apenas algumas pessoas aj
oelhadas. Um pequeno homem calvo e barrigudo, de olhos fechados, duas senhoras e
ncarquilhadas, apalpando rosários, uma mulher mais ou menos jovem, encarando fixam
ente o altar, e uma criança ao lado dela, arremedando as atitudes da mãe. Eram pesso
as de muita fé. Diferentes dele.
Portela tentou lembrar-se de como havia perdido a crença. Crença se perde, quan
do efetivamente a temos? Ele julgava que a tivera, e que, no correr do mundo, ac
abara perdendo, mas por quê? Reconheceu que não saberia justificar, e havia muito te
mpo que o assunto até mesmo já tinha perdido o sentido para ele.
Pensou em ajoelhar-se, mas entendeu que se sentiria ridículo. Pensou em orar
de pé, mas também se sentiria ridículo. Nessas conjecturas, nem sequer penetrou de fat
o no salão, mantendo-se todo o tempo bem próximo da porta de entrada. Como quem apen
as tateia uma novidade aparentemente ameaçadora.
De onde estava, percebeu no altar uma graciosa imagem, uma figura em tamanh
o natural, de vestes brancas, puras. Era um santo em belíssima atitude de doçura, qu
e parecia enxergar Portela, parecia devassar sua alma, e pregar-lhe: "ore".
Portela recusou a mensagem. Pensando bem, o que mais pensaria ter ouvido de
um santo? "Roube"? "Blasfeme"? "Mate"? Sorriu consigo mesmo e, preparando-se pa
ra sair, contemplou novamente toda a vastidão do templo. Arriscou uma nova olhada
para o santo.
Saiu, sentindo-se bem, e retornou ao carro, ainda sem pressa. Não comprou cho
colates. Entrou no carro e, em vez de dar a partida, mexeu no porta-luvas para p
egar um caderno e uma caneta. O papel dá ao homem a oportunidade de organizar as i
déias. O melhor orador de improviso também saberia incrementar seu discurso, diante
desse mediador fabuloso que é o rascunho. Portela chegou a pensar, naquele instant
e, que havia demorado demais para lançar mão do artifício. Pôs-se a redigir:
"Caríssimo Luciano. Escrevo para que não recuse me ouvir. Sei que uma carta você
lerá. Tenho esperança de que você não tenha se ofendido com o presente que lhe dei. Se a
comoção é uma emoção que lhe desagrada, entenda que não o quis comover, pois jamais exerce
ia voluntariamente a menor ação negativa sobre a sua pessoa. Em minha opinião, nós podem
os ser ótimos amigos, como sempre havíamos sido. Para isso, basta que firmemos um ac
ordo. Eu não o procuro com tanta insistência, e você não recusa mais a minha presença. Por
que preciso de sua amizade? Porque admiro suas idéias, seu modo de vida simples.
E tenho certeza de que outras pessoas também admirarão, e você conseguirá um bom relacio
namento. Quanto a mim, você sabe: não sinto mais da mesma forma. Aquela época foi muit
o confusa em minha cabeça. Na sua também, com certeza. Para mim, porém, tudo se ajeito
u de um modo que talvez não lhe agrade. Mas o que posso fazer?"
Portela interrompeu o movimento febril e releu a carta. A organização fria das
idéias também falha. Falou em voz alta:
- Impossível - e amassou o papel.
Deu a partida e resolveu começar o seu dia de atividades.
IX
Chegou ao endereço da moça chamada Camila. Depois de tocar a campainha, uma sen
hora de óculos enormes abriu a porta na varanda. Tinha o rosto comprido das velhas
austeras, um queixo pontudo, cãs incipientes. Olhou Portela com uma expressão sever
a e desconfiada, e ele se identificou prontamente, com firmeza, fazendo-a declin
ar o pescoço, preocupada, e assumir uma feição mais frágil. Perguntou-lhe se se importav
a de aguardar um pouco.
- Não, não me importo, adoro tomar sol.
Apesar da resposta, a mulher desapareceu sem convidá-lo, e, alguns minutos de
pois, a espera tornou-se pouco suportável. A testa dele ardia, vermelha, atrás de gr
ossos pingos de suor. Investigador de polícia também é gente! Portela ia acionar o sin
al de campainha novamente, mas uma bela moça surgiu, apresentando-se como Camila.
Ela tinha uma beleza peculiar. De pele muito alva, sustentava uma comportad
a cabeleira negra. Seus lábios eram discretos e sedutores. Abria-os pouco ao falar
, simulando acanhamento. Portela conhecia pessoas assim, ou pelo menos era o que
ele pensava.
- Bom dia, senhorita Camila. Eu preciso de informações sobre um assassinato que
ocorreu há dois dias.
- Nem imagino o que eu possa dizer ao senhor.
- Não se preocupe em me ajudar. Apenas ouça algumas perguntas e dê as respostas p
ertinentes.
- Eu nunca minto.
- Ótimo. Isso poupa tempo, porque eu nunca acredito em mentiras. Para começar,
a senhorita poderia me dizer se sabe de que assassinato estou falando.
Camila meditou por uns instantes, mas não tanto que parecesse hesitar:
- Sei. A dona Estela.
- Sim... você sabe porque Roberto avisou-lhe que eu viria, certo?
- Isso mesmo.
- Muito bem, senhorita Camila. A senhorita imagina quem poderia ter atirado
em dona Estela?
Ela não conseguiu conter o sorriso. Olhou os olhos do investigador:
- Atirado?
- A senhorita vê alguma graça nisso?
Camila manteve o sorriso, apenas suavizando-o:
- Não, eu nem imagino quem possa ter "atirado" em dona Estela.
- Estela sabia sobre vocês dois?
O semblante de Camila congestionou-se, o que ela procurou disfarçar. Responde
u depressa:
- Sabia sobre o quê?
- Sobre o relacionamento entre você e Roberto.
- Que relacionamento?
- Havia um relacionamento amoroso entre vocês dois.
- Alguém mentiu ao senhor. Inventou essa história.
- Não, a senhorita é que está mentindo agora, dizendo que não há o relacionamento. Eu
sei que há, e não estou nem um pouco preocupado em provar isso. Quero apenas conhec
er as conseqüências.
Camila calou-se.
- Diga-me, portanto, se Estela sabia ou não.
Camila refletiu profundamente e disse:
- Por que estou sendo interrogada? Sou suspeita? É isso? Sou suspeita de um a
ssassinato como aquele?
- Eu não queria admitir isso, senhorita Camila, mas... até eu mesmo sou suspeit
o. Estou morrendo de medo de mim. Eu vou perguntar pela última vez se ela sabia ou
não do relacionamento entre vocês. Se a senhorita não responder, dou-me o direito de
considerar como resposta aquilo que eu preferir.
- Eu posso responder sem nenhum problema - Camila observou. - Mas pense bem
: qual será o valor da minha resposta? Será que eu posso ter certeza sobre o que as
outras pessoas sabem ou deixam de saber? Pergunte a todas as pessoas próximas se e
las julgavam saber de um suposto envolvimento meu com Roberto. Se for uma verdad
e, algumas poderão saber, mas muitas não saberão. Se for mentira, ainda assim algumas
poderão dizer que "sabiam". Os boatos não são assim? E as calúnias? É por isso que não tem
uita validade aquilo que eu achar sobre o que os outros sabem ou pensam que sabe
m.
- A argúcia não coaduna com seu perfil meigo, senhorita. De todo modo, isto não é u
m debate filosófico nem uma pesquisa científica. Minha função é descobrir a verdade usando
não só as afirmações verdadeiras e "válidas", mas também as falsas e mentirosas. Neste mom
nto, basta-me saber a sua opinião sobre o que Estela sabia. Se mentir para mim, ou
apenas enganar-se, é a mim que cabe descobrir isso. Responda agora, e numa outra
ocasião eu lhe ensino a ser elusiva com um investigador de uma maneira mais eficie
nte.
Camila refletiu e falou:
- Ela não poderia saber. Porque não é verdade.
X
Enegrecido, o céu começou a cobrir-se de pontos brancos. A noite chegava. Como
o calor arrefecia, o clima começava a se tornar passável, à franca brisa.
Portela acostou seu carro e entrou num café, onde costumava folhear jornais e
revistas. As pessoas acotovelavam-se naquele espaço curto, trocando, no fim do di
a, as últimas confidências e as últimas promessas. Sozinho, Portela apenas procurou en
golir alguma coisa. Depois de pedir um pão recheado e um expresso, apoiou-se no ba
lcão.
Abriu um jornal e, interessado nos acontecimentos e sua repercussão, vasculho
u notícias, rastreou artigos. De súbito, seu coração saltou à boca. Sua respiração foi susp
a, seus olhos atônitos congelaram-se.
Ele já conhecia aquela imagem, pois a vira pela televisão alguns meses antes. O
s próprios jornais impressos não a poderiam ter desprezado, e aquele em suas mãos apen
as reeditava a fotografia histórica, recuperando-a para novamente tocar a sensibil
idade humana.
Uma praça. Em fila, vários enfatuados tanques de guerra. Diante do primeiro del
es, um único menino. Um jovem. Um homem.
Um herói que ousava bloquear a marcha inexorável da repressão, um herói que, sozinh
o, disse "Cada um de nós é um ser humano!" àquelas máquinas dispostas a triturar massas
anônimas.
Portela voltou a si e sorriu, pois sabia que aquela imagem não era um mero in
stantâneo da realidade. Era um espetáculo eterno.
Fechou o jornal, regalado. Terminou o café e engoliu o pão apetitoso. O abdome
curvo agradeceu pela dádiva. Portela sentiu-se confortavelmente alimentado. Pousou
algumas cédulas no balcão e saiu.
Ao entrar no carro, suspirou profundamente e defrontou-se no retrovisor, on
de viu uma face cansada, mas resistente a toda forma de pessimismo. Pronunciou e
m voz alta:
- É a última vez.
Acelerou. Seguiu o caminho sinuoso e exaustivo, e logo depois estaria encos
tando diante da casa de Luciano. Seria mesmo a última vez? É erro do homem duvidar d
a força que tem sobre ele o "estado de espírito". Nossa pior dor nunca é aquela que oc
orreu há cinco anos, mas sim aquela que está ocorrendo exatamente agora. E é agora que
ela precisa ser sanada, independentemente de nossas promessas pretéritas.
Antes de chegar a tocar a campainha, entreviu a porta metálica destrancada e
resolveu empurrá-la. Por felicidade, ela não rangeu, e Portela esgueirou-se para o q
uintal da casa.
Viu que a janela da sala estava aberta. Quando percebeu vir dali um ruído sur
do, ficou receoso. Moveu-se nas pontas dos pés para, sorrateiramente, averiguar o
interior da sala.
Não eram ladrões. Luciano jazia nu sobre o sofá, e havia com ele outra pessoa. Po
rtela fixou os olhos no estranho e só se satisfez quando teve certeza de que era u
ma mulher.
Sentou-se no chão e acomodou-se. Encostado no muro, sentia sua cabeça girar, ma
s deixou-se assim por pelo menos um minuto. Resolveu voltar a apreciar mais um p
ouco do espetáculo.
Com muito silêncio e discrição, Portela ergueu-se, deslizou suavemente até a porta
e saiu. No chão do carro, encontrou um papel engrouvinhado. Desamassou-o e, no fin
al do texto, rabiscou mais umas palavras: "Será que as coisas se ajeitaram para vo
cê também de uma maneira inesperada?". Releu tudo e, depois de concordar, tentou ali
sar a folha. Não ficou de todo contente, mas dobrou o papel, saiu do carro e entro
u de novo na casa. Por baixo da porta da sala, passou sua mensagem.
Foi embora depressa, ao som dos gemidos que vinham de dentro.
XI
Treze dias se passaram. Era fim de tarde quando Roberto foi chamado a receb
er Portela.
- Obrigado por conversar comigo mais uma vez - lançou Portela, sentando-se on
de lhe fora designado.
- Eu que agradeço pelo seu empenho - Roberto respondeu.
- Nós já sabemos quem matou sua esposa.
- É mesmo? - ele denotou uma surpresa moderada.
- Infelizmente, isso não quer dizer que vamos poder prendê-lo.
- Por quê? Ele fugiu?
- Não, não fugiu. Pelo que sei, ele está neste momento em sua própria casa.
Roberto assumiu uma tonalidade mais firme:
- E onde ele mora?
- Ele mora na cidade de Botucatu.
- Meu Deus! - Roberto fez uma pausa. Prosseguiu: - E por que talvez vocês não p
ossam prendê-lo?
- Senhor Roberto, tive em minhas mãos um caso sui generis, pois consegui cheg
ar a uma certeza de tudo o que aconteceu, porém os dados de que disponho não são sufic
ientemente concretos para serem analisados em juízo.
Portela intrigou-se:
- Por quê?
- Aquele homem, senhor Roberto, o homem que matou sua esposa, praticou um c
rime... quase perfeito. Uma investigação simples e relativamente rápida fez com que tu
do se elucidasse em minha mente. Mas o que é a minha mente? Não é um tribunal. Na melh
or hipótese, um tribunal pessoal. Eu sei quem matou Estela, mas só daqui a pouco pod
erei prender essa pessoa.
- Daqui a pouco? Em Botucatu?
Portela sorriu:
- Perdão, senhor Roberto, sou uma pessoa muito egocêntrica! Eu não o prenderei, m
as os policiais que enviei farão isso. Se encontrarem a prova.
- Que prova?
- A única prova possível de que Renato Coelho assassinou sua esposa Estela.
Roberto não falou nada. Portela observou-o e disse:
- O senhor não conhece ninguém com esse nome, em Botucatu?
Roberto não pôde fixar os olhos, apenas suspirou fortemente:
- Estou ansioso procurando lembrar-me. Mas sinto-me um pouco tonto, como se
eu tivesse tentado me acostumar à falsa idéia de que Estela sucumbiu a um acidente
funesto, não à ação voluntária de um homem. Mas então o senhor chega com um nome real, e pa
sa a parecer-me odioso que alguém tenha realmente cometido aquele ato.
- Alguém cometeu, e seu nome é Renato Coelho. Em alguns minutos Marquinhos cheg
ará aqui com a informação sobre a prova.
Roberto abaixou a cabeça:
- Não estou me sentindo bem. O senhor me dá licença para descansar um pouco?
Marquinhos surgia neste exato instante pela porta da frente:
- Portela, podemos conversar um minuto?
Portela levantou-se e caminhou até a porta, deixando Roberto sentado, os dedo
s nas têmporas. Marquinhos conduziu o colega para fora da residência.
- E então?
- Infelizmente, nada foi encontrado.
- Nada?
- Nada.
Portela suspirou, calado, e entrou novamente para dirigir-se a Roberto:
- Descanse, senhor Roberto. O senhor merece.
XII
Portela e Marquinhos seguiram no mesmo automóvel para a delegacia.
- Agora, por favor, diga-me claramente como descobriu tudo - pediu Marquinh
os.
- Roberto queria ficar com todo o dinheiro da esposa e casar-se com Camila.
Mas efetivamente estava em Botucatu na hora do crime - executando outro assassi
nato: o de uma senhora chamada Luísa Coelho. Enquanto isso, o assassino de Estela,
Renato Coelho, fazia a sua parte aqui em São Paulo. Quem me chamou a atenção para ess
e fato, involuntariamente, foi o gerente Milton. Mas era preciso descobrir a con
exão entre esses assassinatos para desfazer o álibi que os dois engendraram. Primeir
o problema: o assassinato de Estela, cometido à queima-roupa, da forma como foi fe
ito, sem luta, só nos levava a uma conclusão: uma pessoa que fosse conhecida de Este
la. Pois bem: eu o vi numa foto de formatura dela. Provavelmente ela o recebeu c
omo a visita inesperada de um velho colega. Quanto a Camila, amante de Roberto,
Estela não a conhecia.
- Como você descobriu que Camila e Roberto eram amantes?
- Eu não descobri. Incrivelmente também não há nada que comprove isso, pois nenhum
dos dois confirmou, e ninguém sabe de coisa alguma. Mas Roberto escreveu o nome de
la num papel que foi para o lixo, desses que rabiscamos quando falamos ao telefo
ne. Segundo problema: como associar os dois crimes? Para nossa ventura, o invest
igador da polícia de Botucatu conseguiu um depoimento sobre um telegrama que Renat
o Coelho teria recebido de Roberto. Mas ainda seria necessário fazer uma busca e l
ocalizar esse telegrama, mas ele não foi localizado, o que nos impede de realizar
um indiciamento.
- Então você acha que eles nunca serão presos? - indagou Marquinhos.
- Acho que nunca.
- Você se sente muito frustrado?
- Sim, sinto-me. Teria sido melhor não ter nenhuma idéia de tudo o que acontece
u.
- Mas você é um gênio. Acabaria descobrindo mesmo.
- Descobri? Apenas montei bem uma história. Quem garante que ela seja verdade
ira?
- O telegrama que foi procurado.
- E que não apareceu. O gênio enrola o rabo, volta para casa...
- ... e se entope de chocolates.
- Aceita uns bombons com rum?
[fim]

[apêndice completamente desnecessário]

'tudo o que não é literatura me aborrece'


[franz kafka]

[A responsabilidade de Tomás]

Pequena sala reservada de uma escola. Tomás está sozinho, sentado atrás de uma mo
desta escrivaninha, absorto, completamente imóvel, tenso. Um minuto depois, Michel
aparece à porta e pára. Tem uma expressão severa, de tristeza e raiva contidas.
- Com licença.
Tomás não responde, apenas olha Michel. Michel se aproxima retirando um papel d
o bolso. Entrega a Tomás. É uma carta escrita dos dois lados da folha, mas Tomás passa
os olhos por ela, lendo-a inteira, muito rapidamente. Devolve o papel a Michel
e diz:
- Não se trata disso. Evidentemente não se trata disso.
- O senhor sabe que... nada mais pode ser feito.
- Nada pode ser feito... nunca. Essa é que é a verdade.
- Podemos fazer muitas coisas. Trabalhar. Trabalhar sério. Criar uma família. O
senhor não tem uma família...
- A única coisa que está em questão aqui é: o que o senhor quer de mim?
- Essa insolência com certeza eu não quero.
- Eu lamento, senhor Michel. Eu gosto do Martinho. Eu... gostava. Mas essa
carta... evidentemente não se trata disso. Pelo amor... por favor, senhor Michel.
Entenda, não é nada disso.
Michel mostra uma ironia triste sobre a expressão severa.
- Pelo amor de quê, senhor Tomás? Pelo amor de Deus?
- O senhor sabe que é uma força de expressão. Uma forte força.
- É vergonhoso acreditar em Deus?
- Se eu acreditasse, talvez soubesse responder.
- E os outros? Devem se envergonhar?
- Ninguém deve ter vergonha do que é ou do que pensa.
- O senhor não ensina isso na sala de aula...
- Claro que não. Ensino matemática.
Michel lhe estende o papel:
- Isto é matemática?
- Não... é... estranho... imprevisível.
- Talvez imprevisível... mas as coisas imprevisíveis também têm alguma causa.
- Senhor Michel... A causa da morte do seu filho foi... o suicídio. Ele matou
a si mesmo.
- Um menino de onze anos, senhor Tomás?... um menino de onze anos?...
- Eu estou só falando de... um fato.
Michel se esforça para não alterar a voz:
- Do fato eu já estou exausto... exausto... eu quero a explicação para isto!
- Isso já é a própria explicação, senhor Michel. O garoto fez confusão com as idéias.
o acontece com os jovens e... passa quando crescem.
- Eu não vim aqui humilhar o senhor... tampouco ser humilhado...
- Então ainda me resta saber o que veio fazer...
- Ter uma explicação...
- Me dar uma lição de moral...
- O senhor é sempre insolente?
- O sofrimento não confere superioridade a ninguém.
- Eu não me vejo como superior em nada...
- Então precisamos encerrar esta situação...
- Certamente é o senhor que está se sentindo mal por ter sido responsável por...
- Impossível, não sou responsável por isso, absolutamente. Sou professor há oito an
os, já tive milhares de alunos e nenhum deles se matou, que eu tenha sabido.
- O senhor sempre "provou" que Deus não existe, em suas aulas?
- Eu nem tenho realmente como provar uma coisa dessas...
Michel olha o papel que tem em mãos:
- O raciocínio me parece claro... embora absurdo.
- Se meu raciocínio é absurdo, não posso ser responsabilizado pelo que o Martinho
fez.
- As crianças são muito crédulas...
- As outras estão vivas.
- Martinho era um belo garoto cristão, como toda a família...
- As crianças são muito crédulas...
- O senhor não sabe o que é o sentimento cristão.
- Certamente não sei.
- Nós vivemos um tempo horrível...
- Senhor Michel, eu não vou me arrepender de apresentar meu pensamento para o
s alunos e para todas as pessoas. Eu ajo normalmente, faço o que tenho que fazer. É
disso que se trata. Aceite minhas condolências... meus pêsames... é tudo o que posso f
azer. Fiquei triste com a notícia.
- Não me basta sua tristeza.
- Meu arrependimento o senhor não terá.
- O senhor não acha que isso é um sinal?... Pense bem... se o senhor não tivesse
tido a infeliz idéia de tentar desiludir a crença sincera de quarenta crianças... isso
não teria acontecido... se o senhor tivesse se concentrado na matemática... sem int
erferir no coração dos meninos...
- O sentimento religioso nem sempre causa o bem. Visite o Oriente Médio ou um
a biblioteca.
- O senhor toda noite deve rezar a oração do niilista... "Creio no nada, todo-p
oderoso, criador do universo, e em seu filho, a matéria, que foi gerada pelo poder
do acaso. Do nada vim, ao nada voltarei, para todo o sempre, amém".
- Senhor Michel... temos um mundo determinista, quer o senhor goste quer não.
Um milhão de forças concorrem para cada coisa que acontece. Às vezes, certas forças par
ecem ser mais importantes. Mas o Big Bang já predispôs todos os acontecimentos... in
clusive os que ainda estão por vir... o Big Bang foi o único movimento livre que já oc
orreu... como uma primeira tacada de bilhar... na disposição das bolas, na força, no e
feito e na direção que se dá à tacada já está embutido o destino de cada uma das bolas. É d
o que se trata.
- As pessoas tomam suas atitudes por consciência, senhor Tomás. Qual é o taco de
bilhar que empurra essa consciência?
- Está bem... o senhor tem toda a razão. O Big Bang não predispôs todos os aconteci
mentos... eu devo ter sonhado isso... na verdade, os atos são gerados espontaneame
nte pelo milagre que é a consciência de cada pessoa. Bem, nesse caso foi a consciência
do Martinho que tomou a decisão, não a minha. Se o Big Bang não predispôs tudo desde o
início, os acontecimentos são imotivados. E eu sou tão responsável pelo que aconteceu qu
anto o meu pai foi responsável pela morte de Getúlio Vargas porque... enviou a ele u
m pedido de bicicleta.
- O senhor pode não querer se arrepender... mas essa sua matemática obscena não v
ai diminuir a minha dor.
- Dois mais dois somam quatro. A quem isso doa só cabem o choro e o ranger de
dentes.
- A vida, senhor Tomás, faz todo o sentido. É só o niilismo que, por muita ironia
, leva a nada.
Michel vai embora. Tomás permanece, imóvel, a expressão fechada, tenso, completam
ente absorto em seus pensamentos.

[Carta]

Meu pai morreu.


Não chorei de imediato. A ciência larga do meu instinto fazia-me preservar as lág
rimas para o espetáculo massacrante do féretro.
Eu havia acabado de escrever uma carta para quem morria numa cidade distant
e. Sobre a mesa, jazia agora uma folha inútil, as palavras prostradas. Tomei-a na
mão e não reconheci suas histórias - não poderia tê-las vivido naquele papel antigo e naqu
ela tinta morta. A abrupta ausência de meu pai fundava-se como uma condição eterna, fa
zendo de mim um ser irreal, um ser imaginário cujas tramas repousavam naquela folh
a como hipóteses vazias.
A barba rala e insegura que espetava meu rosto moveu-me para enfrentar o es
pelho e recompor minha imagem.
O homem que mimetizava meus gestos atrás do vidro sentenciou: teu pai morreu.
E eu, ciente de que na verdade o pai dele é que expirara, calei-me para não o devas
tar e tranqüilizei-o apalpando as formas de meu rosto, dizendo: olha, pelo menos t
eu pai está vivo. Crês que não é dele este queixo? Talvez mais alongado? Descansa, amigo
, o queixo é o mesmo. Não são como as dele essas sobrancelhas bem articuladas? Essa pe
le um tanto rude? Esses cabelos escassos e bem finos?
Noto que sou meu pai. Acabei de escrever uma carta para mim mesmo, e ela es
tá em minha mão. Estou vivo e, enquanto isso, como numa conduta imponderada, espicaço
pessoas de uma cidade distante, que pensam que me velam - e me julgam definitiva
mente perdido para o Universo.
Visto então uma máscara forte, diferente do que sou e de tudo o que já fui, para
viajar incógnito e não ser descoberto no caminho sereno de meu próprio enterro. Com es
se disfarce extraordinário, olho-me ao espelho e, não me reconhecendo, tampouco reco
nheço meu pai, e assim encanto-me com uma imagem que eu, embora nunca tendo sido,
poderia muito facilmente desejar ser.
Flagro-me atônito ampliando o discurso ambíguo da carta. Escrevo-me a meu pai p
ara relatar como andei no caminho que me levaria da residência habitual à morada dis
creta dos mortos.
Embarco no ônibus prestes a uma viagem longa, carregando no bolso, já pronta, a
carta que ora leio diante do espelho. Sento-me e, em seguida, recebo a companhi
a de uma mulher agradável, que solicita minha licença com um sorriso e acomoda-se a
meu lado. Eu nunca a vi antes. Ela não tem relação alguma com minha vida, meus costume
s, meu passado - e impõe-se a idéia de que também eu nada terei com o passado dela. No
entanto seguiremos juntos pela estrada, trocando habilmente nossas experiências:
as confissões serão sensatas, os arroubos calculados, as simpatias legítimas e sincera
s. Condoída pelo que me impulsionou à caminhada, ela saberá encontrar um lenço macio par
a meu espírito e uma palavra de conforto para minhas lágrimas. Se eu repousar minha
cabeça sobre seu ombro, será por doçura, não depravação. Porque, antes de tudo, nós nos res
tamos, como pessoas que caminham juntas e se sentem movidas por uma ética, uma ética
curiosa, dessas éticas cuja origem nos assombra, pois tocaram nossa alma certo di
a de forma insuspeitada, endurecendo nossos gestos e flexibilizando nosso pensam
ento, apoderando-se de nossas buscas e de nossas veleidades, tornando-nos, até mes
mo contra nossa vontade, pessoas honestas e civilizadas. Num momento, percebemos
que nos estreitamos. Entendemos ambos que a viagem, de início a nos parecer longa
e árdua, transformou-se numa jornada ligeira. Não explicitamos nosso desgosto por i
sso, até mesmo chegamos a crer, com absoluta inocência, que vamos todos num ônibus ete
rno, sem privações, fatalidades, ruínas - sem um destino terminal inadiável. Vamos num ôni
bus essencial, incontingente. Mas sabemos, sem admiti-lo verbal ou mesmo intimam
ente, que num instante perceberemos as últimas manobras do veículo. Longe da velocid
ade a gás aberto que atingiu na estrada, suas curvas agora lentas serão sinais, seus
roncos sofridos serão avisos, suas hesitações serão, para nós, pequenas convicções. Então
companheira de viagem tentará, exasperada, tomar de mim a carta derradeira. Eu me
manterei tranqüilo como agora diante do espelho, e direi a ela:
- Desço aqui porque meu pai morreu. Não chorei de imediato, mas tenho para ele
esta carta. Como essas palavras morreram, precisam ser enterradas com ele. Porqu
e essas palavras mentiram para mim. Elas me disseram: teu pai está vivo, conta-lhe
a história dos teus dias, a história que nós, palavras, podemos contar e contamos. Ma
s meu pai, na verdade, está morto, e eu, espúrio e vadio, recuso-me a ver-me como el
e. É por isso que me olho ao espelho e vejo-me tão diferente dele que entendo ser pr
eciso evitar a degradação de afrontar seu ataúde com esse semblante desfigurado. Visto
então uma máscara que, diferente de tudo o que penso ter sido, é o que me faz reconhe
cer o meu pai em mim. Entro num ônibus cujo percurso é a eternidade. Nele conheço minh
a esposa e seu carinho, meus filhos, meus amigos e todos os homens da Terra. O ôni
bus parte e chega ao seu destino simultaneamente, então urge que eu desça e reveja,
mais velhas na cidade, as árvores que conheci, as árvores que não conheci e as árvores q
ue, assim como meu pai, deixaram de existir na cidade em que nasci e à qual volto
para me ver morrer como meu pai. Encontro todos a chorar, enquanto eu, infinitam
ente triste, oculto meu sorriso sob a máscara que forjei, na qual ninguém é capaz de r
econhecer o desenho de meu próprio rosto. Apenas meu pai, repousado no esquife, pe
de que eu me aproxime e requisita a carta que eu não poderia ter escrito. Ele sorr
i e me diz:
- Folgo em ver sua imagem, pois tão semelhante ela é à minha, que sinto que, embo
ra morto, estou vivo. Receava que você pudesse ter se tornado tão diferente de mim q
ue decidisse disfarçar-se do que não é mais, apenas para alegrar minha esperança. Assim
mesmo, porém, eu estaria vivo, senão na sua imagem real, então na imagem imaginada, po
is ela acaba por se tornar real. Também você surgiu quando eu me olhei no espelho e
não me reconheci, e então criei a máscara que um dia você julgaria real e rejeitaria. Eu
próprio, quando cheguei ao enterro de meu pai, vi nele a imagem do que você desejar
ia ser. Quis dele a carta que agora você também me nega, mas ele estava morto. Conte
mplei-o tentando ler em sua alma as palavras que deveria ter me escrito e não pôde.
Seus olhos estavam fechados. Suas narinas, recheadas com um algodão amarelado. Com
o aquele homem poderia escrever uma só linha? Sem o rubor do sangue na fronte, sem
o calor emanando, sem um olhar no navio do horizonte? Sem o equilíbrio do papel e
a tinta da vontade, sem as rusgas odiosas abafando o peito? Sem toda a desilusão
e toda a fé? Ele estava desprovido de cartas e de beijos, de fúrias e de prantos. Não
tinha momentos nem cansaços, não tinha nobreza nem futilidade, não respirava o vento n
em ouvia as flores. Naquele instante, era minha a obrigação de lançar mão da folha que e
ternizaria um momento, ou que transporia a eternidade para um flagrante. Comecei
a escrever em seu nome a história que ele teria escrito a mim, aventurando-me num
território que eu não podia reconhecer. Assim mesmo, o papel dilatado se deslinda e
m minha mão, a máscara inútil já pendurada no meu ombro. Morto e inofensivo, meu pai está
sepultado, e só me resta entrar no ônibus que me levará de volta a essa chusma de prédio
s adormecidos. Difícil reencontrar meu lugar. Difícil. Mas tenho, sim, uma residência,
cheia de espelhos, cortadores de barba e escrivaninhas com papéis de carta. Tenho
, sim, uma multidão de palavras mortas sobre a mesa. Tenho, sim, um telefone, que
me desperta e que me chora: teu pai morreu.
E eu havia apenas acabado de escrever esta carta.

Você também pode gostar