uma fenomenologia da vida. Curitiba: EdUFPR, 2012. 246p.
De uma fenomenologia a caminho da vida:
Renaud Barbaras ROBERTO S. KAHLMEYER-MERTENS*
Paul Ricoeur certa vez afirmou ser a original, tal
história da fenomenologia, em seu intento se sentido amplo, o relato de suas realiza “heresias”. O filósofo não deixa de ter resgatando razão em seu diagnóstico, afinal, depois intuições fenomenológicas presentes em de Husserl, a fenomenologia aberta por pensadores anteriores a Merleau-Ponty. É este dá vez ora a reparos, ora a preciso destacar, entretanto, que as radicalizações daquela posição inicial. apropriações desse exercício de pensar Tal avaliação, longe de ser denúncia de servem ao propósito do projeto filosófico adulterações à fenomenologia, parte da de uma “fenomenologia da vida”, este verificação de que esse modo de pensar caracterizado em seu Investigações se opera por meio de contínuas revisões. fenomenológicas. No Brasil, não faz muito tempo, 143 A caracterização da fenomenologia da publicou-se mais um significativo vida, no espaço restrito dessa resenha capítulo deste “work in progress”: o livro informativa da edição, se limitará à breve Investigações fenomenológicas, de notícia de que tal projeto constitui uma Renaud Barbaras. radicalização do gesto fenomenológico Escrito originalmente em português, o clássico da redução do fenômeno ao livro é compilação de ensaios campo fenomenal primordial que a anteriormente publicados em diferentes consciência inaugura. A mencionada periódicos de nosso país e divulga intensificação, no entanto, consistiria momentos de um trabalho autoral menos no retorno do fenômeno ao terreno subsidiado por obras mais sistemáticas. de um ego transcendental à maneira de No entanto, é possível ver nesses que a Husserl (na qual vestígios de uma lida que o professor Barbaras tem com a subjetividade metafísica ainda poderiam filosofia merleau-pontyana não é apenas ser identificados), quanto também menos a de um intérprete ou de um especialista. na recondução à “carne” do mundo à Fica evidente que o trato com o Merleau-Ponty (esta, para Barbaras, pensamento do filósofo de Rochefort- ainda eivada de um último resíduo de sur-Mer é tentativa de pensar a partir idealismo): é na própria experiência da dele. vida que se situa o solo mais originário à Fazer fenomenologia desde Merleau- fenomenalidade. Fica claro que a uma Ponty não significa ocupar-se apenas dos fenomenologia da vida cabe pensar o temas afetos a este dando-lhes fenômeno ultrapassando o domínio da desenvolvimentos. No esforço de consciência (ergo uma fenomenologia Barbaras por cunhar síntese filosófica “a-subjetiva”), para atingir definitivamente às coisas elas mesmas. estilo fluído e linguagem clara, Barbaras trabalha questões realmente caras àquele Embora falar em uma fenomenologia da fenomenólogo. Em “O corpo da vida nos evoque, a princípio, o projeto de liberdade” (p.47-59), o autor sustenta a Michel Henry, Barbaras renuncia a este tese de que a liberdade, tal como em sua síntese original. O caminho de fenomenologicamente pensada, não edificação adotado por nosso autor ainda prescinde da “ancoragem” existencial tem a tônica da filosofia de Merleau- que a corporeidade fornece. Em “O Ponty e é seguindo as muitas indicações invisível da visão” (p. 45-75), o Merleau- programáticas deixadas por este em notas Ponty tardio é tratado de modo a ressaltar, de trabalho que o autor labora. Num uma vez mais, o caráter paradoxal do ver retorno a Husserl e a outros que povoam pré-reflexivo. Dentre os ensaios as páginas de Investigações consagrados ao autor de Fenomenologia fenomenológicas, uma mostra dessas da percepção ressaltemos: “Os três apropriações é o que temos desde a sentidos da carne: uma crítica à ontologia primeira seção do livro. de Merleau-Ponty” (p. 77-91). Neste, Intitulada “Metafísica da vida”, a parte I Barbaras aborda o conceito de “carne” começa com o texto “A alma e o cérebro” explorando sentidos que apenas estariam (p. 13-25). Dedicado à interpretação de apontados na obra daquele Henri Bergson, a leitura desse nos faz fenomenólogo. Entre os textos dessa especular sobre como o vitalismo seção, certamente o enfocado é o de saldo bergsoniano contribuiria com o quesito mais consistente, pois seu autor consegue “vida” dessa fenomenologia dele depreender elementos que indiciam (adicionalmente, o texto nos dá o alento um estatuto ontológico para carne, o que de examinar os conceitos do título sem viabilizaria, por sua vez, o projeto de uma 144 compartilhar do positivismo ontologia fenomenológica dessa neurocientífico que é cada vez mais “contextura” do mundo. tendência na atual cena filosófica). A parte III chama-se “A fenomenologia “Introdução à filosofia de Raymond de Jan Patočka”. Nela presenciamos Ruyer” (p. 27-43) é outra feliz surpresa outro importante contributo do livro à que o livro reserva. Ruyer, conhecido no fenomenologia: o resgate do mencionado Brasil apenas nos círculos mais fenomenólogo tcheco que fora assistente especializados em filosofia francesa, foi, de Husserl. Patočka, que até aqui serviu por mais de uma vez, objeto dos cursos de interlocutor para nosso autor em de Barbaras. O ensaio sobre esse nos leva alguns textos, passa a ser protagonista a elucubrar sobre o quanto tal pensador nos dois escritos desta seção. No não adiantaria temas e questões que primeiro, que dá título a esta parte (p. 95- povoariam o universo merleau-pontyano. 123), Barbaras caracteriza o tcheco como A interpretação de Barbaras constitui aquele que mantém “uma forma superior leitura próxima à linha argumentativa de fidelidade ao próprio Husserl, oferecida pelo próprio Ruyer em seu livro constituindo uma fenomenologia La conscience et le corps (1937); assim, adequada à sua inspiração fundamental”. conceitos como os de “campo (p.95). Manter-se fiel à fenomenologia, fenomenal” e “corpo” podem ser vistos, no presente contexto, denota guardar ali, em uma primeira tentativa de rigorosa atenção aos aspectos legais deste radicalização fenomenológica. modo de pensar; isso significa, por “A fenomenologia de Merleau-Ponty” é exemplo, levar a sério a assim chamada o título da parte II do livro. Com um épochè fenomenológica. Barbaras nos mostra o quanto Patočka preza esta regra anunciada nesses títulos, contudo, não fundamental da fenomenologia deve fazer o leitor esperar por um indicando, inclusive, o ponto em que discurso sobre o belo nas artes, levando- Husserl teria se distanciado dele. Bem se em conta o papel caro que o sensível como Heidegger, Patočka insinua que a desempenha no âmbito de uma suspensão fenomenológica da épochè fenomenologia da vida, seria como uma não é levada às últimas consequências “estesiologia” que os textos desta parte por Husserl e que o suposto achado de um deveriam ser lidos. terreno transcendental originário Em sua sexta e última parte, ainda que explorado na filosofia de Ideias I, sob o título de “Conclusão”, se estampa resultaria de um deslize metódico do um escrito que não apresenta iniciador da fenomenologia. retrospectiva dos pontos anteriores, nem O título da quarta parte do livro segue o informa resultados teóricos, tampouco nome do projeto filosófico de Barbaras. arrola saldos de investigações. “Fenomenologia da vida” é formada de Encerrando o livro, “A presença do três textos: “Percepção e movimento: o Filósofo” (p. 233-245) é capítulo desejo como condição de possibilidade dedicado à memória de Bento Prado da experiência” (p.149-161); “Vida e Junior. Nesse, Barbaras registra um consciência” (p. 163-177) e “A protesto de admiração e amizade ao Fenomenologia da vida e o problema da professor brasileiro; ressalta sua intencionalidade” (p.179-193). No importância para a recepção da filosofia primeiro, tal fenomenologia é francesa em nosso país e, mesmo, apresentada como aquela que se ocupa problematiza o que seria filosofia na com um mundo pré-reflexivo. A ideia de compreensão do enfocado. Generoso 145 um retorno aos fenômenos está vigente testemunho em reconhecimento a obra do ali, especialmente quando se trata de brasileiro, o texto do francês mais do que retornar a um mundo deslindado pelo apresentar o filósofo é retrato de uma sensível. A proposição do sensível, afinidade eletiva. enquanto modo mais primordial da Publicado pela Editora da Universidade percepção, – analisado de maneira Federal do Paraná – UFPR, Investigações arrojada sob a terminologia e fenomenológicas, pelo alto nível de sua conceptualidade próprias ao “desejo” –, matéria e evidente perícia de seu autor, é talvez seja um dos mais significativos título enfaticamente recomendado ao acréscimos barbararianos, o que faz com público de filosofia interessado nos que este mereça destaque sobre os outros desenvolvimentos mais atuais da textos dessa divisão. pesquisa fenomenológica no Brasil e em A seção V, “Estética”, conta também com França. dois capítulos: “Sentir e fazer: a fenomenologia e a unidade da estética” (p. 197-212) e “Fenomenologia e Recebido em 2015-06-10 Publicado em 2015-09-13 literatura: a não-filosofia de Fernando _______________________________________ Pessoa” (p. 213-229). A estética
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ); professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do * ROBERTO S. KAHLMEYER- Paraná (UNIOESTE). MERTENS é Doutor em Filosofia pela