Você está na página 1de 2

Filosofia e Cosmovisão

Por Sergio Resende – IFRJ

O termo “cosmovisão” indica a visão de mundo de uma determinada civilização ou indivíduo.


Mais especificamente, ele indica a imagem mental que uma determinada civilização ou indivíduo
possui do cosmos, quer dizer, da ordem universal. A palavra “cosmos” significa ordem, e é usada em
filosofia para indicar a ordem inteligível do universo, quer dizer, sua lógica interna compreensível
pelo pensamento. A palavra “visão” indica aqui e visão mental ou imaginária.

Quando observamos a natureza ou o universo, vemos que, embora as coisas não sejam
completamente previsíveis, elas expressam algum tipo de ordem. Por exemplo, do ponto de vista do
tempo vemos que um dia sempre vem após o outro, nunca retrocedendo. Do ponto de vista do
espaço, ou uma coisa está ao lado de outra, ou à sua frente, ou atrás, ou acima, ou abaixo, nunca no
mesmo lugar. Do ponto de vista qualitativo vemos, por exemplo, que as estações do ano expressam
qualidades determinadas que se seguem umas às outras de forma ordenada, fornecendo as bases
para a criação do nosso calendário que, por sua vez, nos ajudará a ordenar os nossos dias de trabalho
e descanso. Ainda, o movimento do Sol em torno da terra leva, do oriente para o ocidente, cerca de
24 horas, e, do ocidente para o oriente, cerca de 360 dias (do ponto de vista de quem está na terra),
assim como a mudança de fases da lua leva cerca de 29 dias, e assim por diante. Isso sem levar em
conta ordens mais elementares que acontecem na natureza, como o fato de que uma goiabeira
nunca produz manga, ou que um casal de gatos nunca gera um chimpanzé. Se observarmos com mais
cuidado, podemos perceber que todas essas pequenas ordens da natureza estão inter-relacionadas,
umas sempre dependendo das outras. Por exemplo, a ordem do nosso organismo físico depende do
ciclo das plantas, que, por sua vez, depende do ciclo do Sol e das estações. Cada uma dessas ordens
era chamada pelos gregos de logos. Assim, há um logos para cada espécie de planta, para cada
espécie de animal, para cada astro, para cada mineral, etc. E como todos esses logos estão
interligados, parece haver um grande Logos Universal, como dizia Heráclito de Éfeso. A esse Logos
Universal os filósofos chamam, sob certo aspecto, Cosmos, e nós chamamos de Universo (a Unidade
do Diverso).

Não é difícil perceber que esse Cosmos ou Universo não é absolutamente visível. Sabemos, por
exemplo, que só vemos as partes externas dos corpos, uma face da lua, um número limitado de
estrelas, e apenas um pequeno raio do ambiente em torno. Ainda que percorrêssemos a terra
durante toda a nossa vida, não seríamos capazes de ter uma visão completa do Cosmos, pois nossa
visão sempre se encontra limitada por um fundo a partir do qual não vemos mais nada (que nós
chamamos de horizonte). Além disso, é preciso levar em conta outros aspectos do universo que não
são materiais, como por exemplo, os sentimentos, as emoções, os pensamentos, as energias sutis,
tais como a energia psíquica, a energia elétrica e as diversas forças estudadas pela física, pela
alquimia e pela magia. Mais ainda: em todas as civilizações existentes os grandes sábios nos contam
a respeito de seres imateriais, mas que existem na forma de inteligências puras, sutis, tais como os
deuses, os anjos, os demônios e o próprio Deus, que seria a inteligência regente do Cosmos. Como
podemos notar, somente uma pequena parte do universo nos chega pelos cinco sentidos: vemos
algumas coisas e cores, sentimos alguns cheiros e perfumes, ouvimos um certo número de sons,
provamos alguns sabores e tocamos algumas texturas. Mas é só isso: a nossa experiência sensível
nos dá acesso a um pequeno fragmento do Cosmos. Mas, no entanto, a nossa Inteligência está mais
ou menos convencida de que o universo é muito maior do que aquilo que dele podemos
experimentar. Na verdade, se pensarmos com calma, ela nos diz intuitivamente que ele é, a princípio,
indefinido ou ilimitado.

1
Pois bem. Se o Cosmos é ilimitado e se nós só podemos captar, pelos sentidos, uma parte muito
pequena dessa imensidão, como seremos capazes de formular mentalmente uma imagem ordenada
do Cosmos? Como preencher esse vácuo entre o que nós vemos e ouvimos e aquilo que sabemos
existir como totalidade, como ilimitado? Como é possível ver o Cosmos como um Todo? A resposta
dada pelos principais filósofos é: pela imaginação. A imaginação é a faculdade humana que está
situada entre a sensibilidade e a intelectualidade, quer dizer, entre o que sentimos e o que pensamos
(ou inteligimos). Nós não pensamos com as coisas, mas com as imagens que abstraímos das coisas.
Essas imagens são a matéria da imaginação, e é a partir delas que o pensamento realiza sua atividade.
A imaginação é, então, como a ponte entre o que vemos e o que pensamos (ou percebemos com a
inteligência). É, portanto, com ela que podemos preencher o espaço existente entre o que vemos e
o que não vemos, entre o que sabemos com os olhos e o que intuímos com a inteligência. É por isso
que, em todas as civilizações e culturas, a imaginação sempre foi vista como uma capacidade mais
ou menos mágica de fundamental importância para a existência humana (lembremos aqui que
“imaginação” não quer dizer, absolutamente, conhecimento falso).

Assim fica mais claro o que é uma cosmovisão: é uma imagem mental que relaciona a parte
visível da realidade com sua dimensão invisível. Só a imaginação é capaz de sintetizar os dados
fragmentários dos sentidos em uma imagem (ou um símbolo) ordenada da realidade. Mas resta ainda
uma questão: porque é necessário ter uma visão de mundo? Sendo o homem um animal racional,
quer dizer, dotado de consciência e senso de ordem, ele naturalmente se coloca questões filosóficas
que são fundamentais para sua existência. “Quem sou eu?”, “o que é o mundo?”, “quem criou o
mundo?”, “de onde vim e pra onde vou?” são questões tipicamente humanas. Basta uma mirada
contemplativa sobre a imensidão do céu para que o homem se coloque essas questões: seu peito se
enche de admiração e ele, naturalmente, quer saber qual é o seu papel no Cosmos. Sem uma resposta
(ainda que fragmentária) a essa pergunta, o homem está condenado ao caos mental, à depressão e
à uma vida sem sentido. Portanto, é somente através de uma cosmovisão adequada que o homem
pode satisfazer sua sede de sabedoria e atribuir algum sentido à sua vida. É por meio de uma
cosmovisão que ele pode atribuir a si mesmo um papel no mundo. Não sendo um simples animal
(fechado em seus cinco sentidos), nem sendo um anjo (uma inteligência pura), o homem (animal
racional) só mantém sua integridade quando, utilizando a imaginação, ordena sua experiência em
uma visão de mundo adequada e mais ou menos completa.

Enfim, todos nós temos uma cosmovisão? De onde vem nossa cosmovisão? A resposta à
primeira pergunta é “sim”. Todo ser humano que nasce em uma civilização mais ou menos sadia
recebe dessa cultura uma cosmovisão mais ou menos suficiente. Não importa se ele é um índio, um
esquimó, judeu, muçulmano, cristão ou hindu. Todas as culturas oferecem aos seus indivíduos uma
cosmovisão que, repleta de imagens e símbolos, irá dotar o mundo de significado e sentido perante
sua consciência. Nesse caso, toda cosmovisão é uma espécie de tradição (do latim tradere, trazer,
passar a diante), trazida pela cultura e entregue às novas gerações através dos mitos, lendas e da
literatura em geral. Quanto à segunda pergunta, a resposta é: nossa cosmovisão é, de certo modo,
mista. Se, por um lado, ela foi fundada pela simbologia cristã (na qual está integrada a cosmovisão
da antiguidade clássica), por outro, ela possui algo da simbologia materialista moderna, que floresceu
em nossa civilização após o chamado Renascimento e, principalmente, após a Revolução Científica
do séc. XVI.

Na segunda parte deste texto veremos as especificidades de cada uma dessas cosmovisões.

Alguns textos fundamentais que formaram a cosmovisão ocidental são o livro Timeu, de Platão; a Bíblia Sagrada; a
Cidade de Deus, de Santo Agostinho; a Suma Teológica, de São Tomás de Aquino; e a Divina Comédia, de Dante
Alighieri. Do ponto de vista da cosmovisão moderna, entre as principais obras estão: Diálogo Sobre os Dois Maiores
Sistemas, de Galileu Galilei; Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton; A Ideologia Alemã, de Karl
Marx; e A Evolução das Espécies, de Charles Darwin.
2

Você também pode gostar