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Apud René Bady, Introduction à l’étude de la littérature française, Editions de la Libraire de l’Université,
Friburgo, 1943, pág. 31.
a verdade que a literatura é também produto social, exprimindo condições de cada
civilização em que ocorre.” (CANDIDO, 2000, p. 18-19).
. O renomado crítico literário brasileiro continua sua perquirição sobre as relações entre
arte/literatura e sociedade, apontando a existência da tendência de se considerarem a arte
como um meio de engajamento social, moral e político de seu autor. Trata-se daquilo que
eu, Hélder, denomino “arte engajada”, isto é, com fins claramente panfletário: “A segunda
tendência é a de analisar o conteúdo social das obras, geralmente com base em motivos
de ordem moral ou política, redundando praticamente em afirmar ou deixar implícito que
a arte deve ter um conteúdo deste tipo, e que esta é a medida de seu valor.” (CANDIDO,
2000, p. 19). Nesse caso, o aspecto estético é solapado por questões sociais – uma “boa
arte” seria aquela que estivesse de acordo com determinados princípios morais e políticos.
Mais adiante, denomina-se essa obra como arte interessada, “no sentido próprio, e não
sectário, embora geralmente a função ideológica se torne mais clara nos casos de objetivo
político, religioso ou filosófico. Esta função é importante para o destino da obra e para a
sua apreciação crítica, mas de modo algum é o âmago do seu significado, como costuma
parecer à observação desprevenida.” (CANDIDO, 2000, p. 42). “O que interessa de fato
é a combinação da análise estrutural [poética] com a da função social” (CANDIDO, 2000,
p. 43)
. Candido não nega as características sociais da arte: “Para o sociólogo moderno, [...] a
arte é social nos dois sentidos: depende [mas não completamente] da ação de fatores do
meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os
indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou
reforçando neles o sentimento dos valores sociais” (CANDIDO, 2000, p. 19). Ele
enfatiza, porém, que os estudos sociológicos não devem ser considerados meio principal
para se explicar o fenômeno literário. Como bem elucida, “a sociologia não passa, neste
caso, de disciplina auxiliar; não pretende explicar o fenômeno literário ou artístico, mas
apenas esclarecer alguns de seus aspectos. Em relação a grande número de fatos dessa
natureza, a análise sociológica é ineficaz” (CANDIDO, 2000, p. 18)
- Candido repara que as diferentes regiões brasileiras apresentam produções literárias com
características singulares, exprimindo, assim, as “cores locais”, em que a literatura seria,
se não reflexão da realidade regional, sua representação. Trata-se da sociedade influindo
na produção literária. Não podemos negar, de fato, os influxos sociais sobre a literatura,
porém os afirmar como elementos determinantes do fazer literário é desconsiderar sua
arte, enquanto técnica consciente e estetizante do autor. Assenta o crítico brasileiro: “Se
não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura
brasileira manifestando-se de modo diferente nos diferentes Estados.” (CANDIDO, 2000,
p. 127). Essa diferença dá-se mais no pano de fundo, no conteúdo da literatura – visto que
o social influi essencialmente nesse aspecto – do que no plano estrutural.
. Candido, perquirindo as análises dos críticos românticos, aponta que Domingos José
Gonçalves de Magalhães defendia uma literatura interessada na constituição da
nacionalidade nacional: “No primeiro escrito [Discurso sobre a História da Literatura no
Brasil (1836)], Magalhães afirma alguns pontos importantes. A literatura é a expressão
de um povo, espelhando-se nela o que ele tem de mais alto e característico.” (CANDIDO,
1981, v. 2, p. 328). Candido aponta também as ideias de José Manuel Pereira de Silva,
que, embasado nos pressupostos de Madame de Stäel em De la Littérature, defende que
“a literatura é a expressão da sociedade e influi na sua vida espiritual; um país novo como
o Brasil, deve manifestar literatura própria, o que antes de mais nada depende de rejeitar
a imitação clássica para ouvir as inspirações locais. Para isto, aponta o Romantismo como
guia, sendo o primeiro a fazê-lo explicitamente entre nós.” (CANDIDO, 1981, v. 2, p.
332)
. “Dentre os muitos fatores que ajudam a explicar o que estamos chamando de sequestro
do Gótico no Brasil, sobressai a perspectiva assumida pela crítica de que a literatura gótica
possuiria temas e ambientações estranhos à cultura e ao território brasileiro – e, por
conseguinte, seu influxo sobre a literatura nacional seria, quando muito, contingencial. A
crítica literária da primeira metade do XIX contribuiu de modo decisivo para esse
entendimento, baseando-se na crença de haver uma necessária relação entre a literatura,
a geografia do país e o temperamento de um povo. Conferiu-se, desse modo, à “cor local”
a condição de critério essencial para a valoração estética da literatura brasileira2.
À defesa intransigente da presença de elementos típicos e regionais em nossa literatura
somava-se uma concepção estreita do que caracterizaria as nações meridionais. Na
expectativa de arte modulada por tal perspectiva crítica, ecoava a distinção proposta por
Madame de Stäel (1800):
Os poetas do meio-dia combinam sem parar a imagem do frescor, dos bosques frondosos,
dos límpidos riachos com todos os sentimentos da vida. Nem os prazeres do coração eles
evocam sem com eles combinar a ideia de sombra benfazeja, que deve protegê-los dos
ardores impetuosos do sol. Aquela natureza tão vívida que os rodeia desperta neles mais
ações que pensamentos. (...) Os povos do norte se ocupam menos com os prazeres do que
com a dor, e sua imaginação por isso é mais fecunda. O espetáculo da natureza age
fortemente sobre eles; ela age como se mostra naqueles climas, sempre sombria e
nebulosa. Sem dúvida, as diversas circunstâncias da vida podem modificar essa
disposição para a melancolia; mas ela detém com exclusividade a marca do espírito
nacional. (STÄEL, 2011, p. 82)” (FRANÇA)
2
Vale lembrar que, curiosamente, a cor local nunca foi um obstáculo para o florescimento do gótico na
Europa. As narrativas de Walpole, Radcliffe, Reeve, Lewis, Maturin, entre tantos outros escritores do gótico
setecentista inglês, desenrolavam-se fora da Inglaterra.
literatura, entendida como privilegiada parcela da cultura, funcionaria à maneira de um
espelho em que o espírito nacional poderia mirar-se e reconhecer-se.
Nos países americanos, a difusão dessa concepção coincidiu com os cortes dos vínculos
políticos com as potências colonialistas europeias, tendo então despontado, entre os
empreendimentos de afirmação e consolidação das nações emergentes, a urgência de se
desenvolverem literaturas nacionais específicas, aptas a integrarem, em posição especial
de destaque, o vasto canteiro de obras das nacionalidades em construção. Essas literaturas
surgem, pois, como instituições inseridas no projeto de independência nacional; se a
nação existe ou pretende existir, é necessário que disponha de uma literatura própria, cuja
história, concebida como narrativa de sua fundação e destino, se concretize em livros e
como disciplina inscrita no currículo escolar.” (SOUZA, 2007, p. 13)
. Antonio Candido defende que a literatura brasileira apresentou, em seus alicerces, forte
tendência de contribuir à constituição de uma identidade nacional, algo que se espraiou
de forma predominante na crítica e historiografia literária mesmo após o término das
efervescências ocasionadas pela Independência: “Depois da Independência o pendor se
acentuou, levando a considerar a atividade literária como parte do esforço de construção
do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a
diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los.” (CANDIDO, 1981,
v.1, p. 26) Tratar-se-ia, assim, de uma literatura empenhada na construção do nacional
mesmo que prejudicasse a estética da produção literária: “Esta disposição de espírito [...]
exprime certa encarnação do espírito nacional, redundando muitas vezes nos escritores
em prejuízo e desnorteio, sob o aspecto estético.” (CANDIDO, 1981, v. 1, p. 26)
. “As obras literárias não tinham para ele [Sílvio Romero] um significado estético. Não
eram monumentos literários, porém documentos, através dos quais ele estudava e
interpretava a sociedade e o homem brasileiros.” (COUTINHO, 2004, p. 42)
“predomínio de uma concepção sociológica da literatura, que via como um fenômeno
produto da sociedade e da natureza, por elas explicado e interpretado; sua concepção é
antes de história da cultura tal como se traduz pelas obras literárias, tomando estas mais
como documentos ou expressões da sociedade.” (COUTINHO, 2004, p. 38); “A arte não
passava de um ‘produto’ das forças extra-artísticas, daí que sua crítica ficou o modelo de
interpretação sociológica, dele partindo uma influência que se estendeu até quase metade
do século XX, na crítica e história literárias.” (COUTINHO, 2004, p. 43)
- “Este realismo, que foi virtude e obedeceu ao programa nacionalista, foi também fator
de limitação, visto como a objetividade amarrou o escritor à representação de um
meio pouco estimulante.” (CANDIDO, 1981, v. 2, p. 117. Grifos meus)
- Candido, apesar de afirmar que o Romantismo brasileiro foi guiado por um movimento
nacionalista e realista, revela que a imaginação e a subjetividade românticas eram
comuns. Ou seja, havia manifestações despreocupadas com a representação do real:
“Levados à descrição da realidade pelo programa nacionalista, os escritores [...] eram
contudo demasiado românticos para elaborar um estilo e uma composição adequados [ao
intuito estritamente nacionalista e à crítica realista]. A cada momento, a tendência
idealista rompe as junturas das frases, na articulação dos episódios, na configuração dos
personagens, abrindo frinchas na objetividade da observação e restabelecendo certas
tendências profundas da escola para o fantástico, o desmesurado, o incoerente, na
linguagem e na concepção.” (CANDIDO, 1981, v. 2, p. 115)
. O Brasil, tal qual os demais países da América Hispânica, possui “uma intelectualidade
que vê com desconfiança uma literatura que não se vincule ao real ou ao nacional através
do mero retrato.”
. Em uma frase anedótica, Antonio Candido resume a obsessão dos românticos pelo
nacional nas artes: “Ser bom, literariamente, significava ser brasileiro; ser brasileiro
significava incluir nas obras o que havia de específico do país” (CANDIDO, 2000, p.
154). Eis o julgamento que parece, em geral, guiar a crítica e a historiografia literárias
brasileiras.
“Nacionalismo, na literatura brasileira, constitui basicamente [...] em escrever sobre
coisas locais; no romance, a consequência imediata e salutar foi a descrição de lugares,
cenas, fatos, costumes do Brasil.” (CANDIDO, 1981, v. 2, p. 112)
. Haroldo de Campos, em seu já clássico O sequestro do Barroco na Formação da
literatura brasileira, faz a concepção estrutural da literatura por Candido emparelhar-se
com o estudo das funções da linguagem por Roman Jakobson. Candido articula a
literatura em um sistema triádico, composto pelos (i) escritores mais ou menos
conscientes de seu papel (produção), pelo (ii) conjunto de determinados públicos leitores
(recepção) e pelo (iii) compartilhamento de estilo, de um mecanismo transmissor que
possibilita o diálogo entre os diferentes produtores (transmissão). Jakobson, em seu
estudo das funções da linguagem, analisa os elementos participantes no ato de
comunicação e, a depender da ênfase que a linguagem dá a esses elementos, temos as
distintas funções da linguagem: função emotiva (remetente), função conativa
(destinatário), função fática (canal), função metalinguística (código), função referencial
(referente/contexto), função poética (mensagem) (cf. CAMPOS, 2011, p. 29-30).
Discorre Campos (2011, p. 31): “Nota-se que, na Formação (I, 23), entre os três
elementos que se conjugam no modelo, a MENSAGEM (o texto, a informação estética,
a obra) não é posta em relevo; antes, a ela se alude metonimicamente, pois a ênfase é dada
ao MECANISMO TRANSMISSOR, ao veículo da transmissão, e não propriamente à
TRANSMISSÃO em si mesma, à MENSAGEM TRANSMITIDA, à sua materialidade
enquanto TEXTO.” Nessa esteira, Campos (2001, p. 35) conclui que “O modelo
semiológico, articulado por Antonio Candido para descrever a formação da literatura
brasileira, privilegia as funções EMOTIVA e REFERENCIAL, acopladas na função
COMUNICATIVO-EXPRESSIVA de exteriorização de ‘veleidades mais profundas do
indivíduo’ e de ‘interpretações das diferentes esferas da realidade’.” Em outras palavras,
Campos afirma que Candido, em sua análise literária, privilegia os estudos referentes às
relações entre os autores e suas obras e entre estas e a realidade em que foram escritas.
- Candido demonstra o julgamento de que Álvares de Azevedo teria sido um caso singular
em nossa literatura. “Dentro dos critérios do nacionalismo estético3, imperantes em
nosso Romantismo, julgou-se o valor dos poetas pela presença ou ausência, na sua obra,
do pitoresco nacional, mormente indígena. Álvares de Azevedo, embora admirado, era
tido por muitos como pouco, ou não-brasileiro, poeticamente. ‘Manuel Álvares de
Azevedo pouco e muito pouco tem de brasileiro: apontaremos só a Canção do sertanejo’,
escrevem dois estudantes4. “As suas poesias, embelezadas nos [140] perfumes da escola
byroniana’ – diz outro – ‘não foram inspiradas ao fogo dos nossos lares. As harmonias
do nosso céu, os perfumes de nossa terra não ofereciam àquela alma ardente, senão um
3
Negrito meu. Interessante notar que Candido revela uma estética do nacional. Na literatura brasileira, o
nacional, devido à grande importância a ele dispensada, configura-se quase como uma questão estrutural,
formal. O nacional deixa o pano de fundo, o plano do conteúdo e passa a incorpora-se na estrutura poética
das obras. Evidencia-se, pois, a obsessão da literatura brasileira pelo nacional – compreensível durante a
fase romântica, haja vista a valorização do nacional como forma de fundar características singulares da
nação, que, havia pouco, se tornara independente. O culto ao nacional e, de certa forma, às “cores locais”
espraiou-se para além do Romantismo, contaminando toda a historiografia e a crítica literária brasileira.
Aquelas produções que não versem diretamente sobre questões socioculturais, geoculturais, sociopolíticas,
socioeconômicas do Brasil são, geralmente, rechaçadas.
4
M. Nascimento Fonseca Galvão e L. R. Peres Moreno, “Parecer”, Revista do Ensaio Filosófico Paulistano,
7ª série, nº 2, p. 19.
espetáculo quase sem vida; eram maravilhas por assim dizer murchas, ante as quais o
poeta não se inclinava’5”.
. Vasconcelos (2012, p. 277) relaciona Noite na Taverna com a obra de Matthew Lewis
devido à exploração de eventos transgressores e violentos: “Foi nessa vertente demoníaca
do gótico [lewiseano] que embarcou Álvares de Azevedo, o que permite situar Noite na
Taverna ‘como herdeira bastarda do gótico inglês e das obras sombrias de Hoffman e dos
frenéticos franceses, com pitadas de Sade e dos melodramas, além, é claro, da ligação
com Byron e de seu herói com os vilões góticos’ (OLIVEIRA, 162-163)6”.
. “Os elementos góticos de sua obra foram identificados como tendo por causa sua
personalidade melancólica, e, como consequência, sua alienação dos temas pungentes da
realidade nacional.” (FRANÇA)
5
A. Correia de Oliveira, “Fragmento de um escrito – III – A Poesia”, Revista do Instituto Científico, 2ª
série, nº 2, p. 41, 1863.
6
OLIVEIRA, Jefferson Donizetti de. Um sussurro nas trevas: uma revisão da recepção crítica e literária
de Noite na taverna de Álvares de Azevedo. 2010. 187 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira)
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
- UM POVO POUCO IMAGINATIVO
. Lúcia Miguel Pereira afirma que a literatura brasileira, mais especificamente, a prosa de
ficção, é guiada mais pela observação e pela documentação do que pela imaginação e
fabulação, em que o real é, mais ou menos, poetizado, envolto por “doçura”: “o romance
[...] provém mais da observação do que da imaginação, como acontece entre nós. A julgar
pela nossa literatura, somos um povo pouco imaginativo, e ainda [25] menos dado a
abstrações. A narrativa que assenta na realidade nos interessa mais do que a fabulação
completa, e muito mais do que as ideias puras; não na realidade seca e fria, mas aquecida
pelo calor humano e como que umedecida pela sensibilidade que, esta sim, não nos falta,
e, ao contrário, parece envolver todas as coisas de uma doçura talvez um pouco mole,
mas poderosa e autêntica. [...] a regra sempre foi a sujeição a fatos possíveis, a evocação
mais ou menos poetizada, mais ou menos romanceada, de casos pondo em relevo os usos
e os hábitos. Os nossos próprios românticos se fizeram intérpretes do meio em que
viveram [...] sendo que nem mesmo José de Alencar desdenhou da observação; os temas
filosóficos ou fantásticos só se refletiram na novela de um poeta, na Noite na Taverna de
Álvares de Azevedo. Não possuirmos raríssimos livros de aventuras nem termos novelas
policiais é sintomático.” (PEREIRA, 1988, p. 24-25)
“A haver, com efeito, uma constante na nossa literatura, será a da predominância da
observação; pouco inclinados às abstrações, os nossos escritores, ainda os românticos,
lidaram de preferência, mais ou menos fielmente, mais ou menos livremente com a
realidade. O seu poder criador precisou sempre, como célula-máter, das sugestões do
meio.” (PEREIRA, 1988, p. 175)
. “As três tendências que surgiram na nossa ficção em fins do século passado [XIX] – a
da análise psicológica, com Machado de Assis, a naturalista, com Aluísio Azevedo, a
regionalista, com Afonso Arinos e Valdomiro Silveira – convergem afinal, apesar de suas
dessemelhanças, para uma posição realista que, se nem sempre foi conseguida, representa
um ideal comum” (PEREIRA, 1988, p. 28)
. Meio rural
. O Tronco do Ipê: narrativa em retrospecto situada entre 1850 e 1857 na Fazenda Nossa
Senhora do Boqueirão já arruinada e abandonada. História de usurpação envolvendo as
famílias de Joaquim de Freitas, o Barão de Espera, e de José Figueira, herdeiro presuntivo
das terras. Seus filhos, respectivamente Alice e Mário, se envolvem em uma história de
amor e mistério. “Como estamos no interior do Brasil, distantes das modernidades a que
certamente tinham acesso os habitantes da capital do Império, há espaço para as crendices
e superstições locais, que o narrador logo se apressa em referir. Uma fazenda mal-
assombrada, histórias de almas de outro mundo, um bruxo pactário (pai Benedito),
feitiçaria, poderes sobrenaturais, vozes, aparições, uma legião de fantasmas são todos eles
elementos que irão compor o enredo, para serem, um a um, desmistificados pela razão.
São, entretanto, sistematicamente convocados para criar o clima de mistério e pavor que
ronda o mistério da morte de José Figueira do Boqueirão.” (VASCONCELOS, 2012, p.
282)
. Til: “Em outra fazenda, a das Palmas [...], a trama amorosa reúne os gêmeos Afonso e
Linda, filhos do proprietário rural Luís Galvão, e Miguel e Berta, os irmãos de criação
pobres que lhes servem de contraponto. Emoldurado pela atmosfera doméstica e plácida
que abre e fecha o romance, o miolo do entrecho encena uma série quase inverossímil de
eventos funestos e violentos, que incluem um incêndio, corpos calcinados, um ataque de
uma vara de porcos bravios, perseguições e tramoias. Tudo é excessivo nesse romance,
com suas personagens presas de ódios implacáveis, de terrores supersticiosos e
alucinações, e extravagâncias de toda espécie. Embora se queira fazer crer ao leitor que
se trata de um lugar mal-assombrado, não há nada de sobrenatural na Fazenda das Palmas.
Se ali rondam fantasmas, são os fantasmas do passado, que movem as ações dos homens
do presente.” (VASCONCELOS, 2012, p. 283)
. MEIO RURAL COMO LOCAL ONDE REINA A SUPERSTIÇÃO: “[O Tronco do Ipê
e Til] São romances que, exatamente por se situarem no interior do país, em zonas mais
atrasadas em relação à capital, abrigam personagens talvez mais suscetíveis às
superstições, às crendices, às lendas. Distantes do mundo da corte, com suas regras de
etiquetas, seus padrões de sociabilidade e comportamentos prescritos, as regiões
retratadas em O Tronco do Ipê e Til apresentam sua quota de selvageria e rusticidade,
abrindo espaço para a representação menos controlada das relações de violência que
pautaram os modos de vida no Brasil oitocentista. Alencar, desse modo, nos põe diante
da inversão completa do cavalheirismo medieval, por exemplo, de Peri e de Estácio [...],
assim como aciona todo o arsenal da tópica gótica – a revelação postergada de um
mistério narrativo central, a evocação do temor provocado por ameaças de violência ou
aprisionamento, o uso do sinistro, o diferimento da ação – para trazer à tona a dimensão
demoníaca e infernal da formação da sociedade brasileira.” (VASCONCELOS, 2012, p.
285)
. Vasconcelos indica que José de Alencar teve contato com a literatura gótica,
essencialmente quando se formava como leitor. As bases do romance brasileiro dialogam,
pois, com a literatura gótica: “Estimulado por suas leituras de juventude, esse fundador
do romance brasileiro valeu-se de modelos estrangeiros para criar uma obra de
prospecção dessa identidade, tendo se tornado conhecido seu testemunho de que Amanda
e Oscar e Saint-Clair das Ilhas7 haviam lhe deixado marcas e de que um dos moldes para
o romance que o teriam inspirado era ‘merencório, cheio de mistérios e pavores’8
(Alencar, ‘Como e Porque Sou Romancista’ 136). Se as sugestões do romance gótico não
se tornaram um veio fecundo ou predominante em sua produção, nem por isso é
impossível encontrar rastros de sua presença na obra madura do romancista, como é o
caso de seus romances ditos regionalistas.” (VASCONCELOS, 2012, p. 272)
7
Amanda e Oscar, ou história da família de Dunreath, de Regina Maria Roche (The Children of the Abbey.
London: William Lane, 1796); Saint-Clair das Ilhas, ou os desterrados na ilha de Barra, de Elizabeth
Helme (Saint-Clair of the Isles; or, The Outlaws of Barra. A Scottish Tradition. London: Longman and
Rees, 1803).
8
Eis o trecho: “Um merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o recebera das novelas que tinha lido,
Nele a cena começava nas ruínas de um castelo, amortalhadas pelo baço clarão da lua; ou nalguma capela
gótica frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa.”
. A pesquisadora constata uma considerável CIRCULAÇÃO de obras góticas na imprensa
e nos livreiros e livrarias da corte brasileira no início do século XIX. Ou seja, o Gótico
Setecentista chegou às terras brasileiras materialmente, sendo consumido com certa
avidez, haja vista a considerável divulgação e circulação: “Se pelo menos desde a década
de 1820 os romances ingleses começaram a frequentar com irrefutável assiduidade as
páginas do Jornal do Comércio e do Diário do Rio de Janeiro, em anúncios de livreiros
e livrarias que passavam a se estabelecer cada vez em maior número na capital do Império
do Brasil, não escapam ao olhar mais atento a profusão de títulos e a disponibilidade,
entre eles, dos romances góticos responsáveis pela grande popularidade de seus autores
do outro lado do Atlântico havia apenas alguns anos. É nesses jornais que encontramos
as primeiras referências à presença, na cidade, das obras de fundadores do gênero, como
Ann Radcliffe (Diário do Rio de Janeiro, 1825) e, possivelmente, Matthew Lewis (Jornal
do Comércio, 1828), ou de Amanda e Oscar (Diário do Rio de Janeiro, 1824) e Saint-
Clair das Ilhas (Diário do Rio de Janeiro, 1825), os romances que fariam as delícias do
jovem Alencar. A permanência desses nomes e títulos nos anúncios de periódicos, assim
como nos catálogos das bibliotecas e gabinetes de leitura que também passaram a fazer
parte da paisagem e dos equipamentos culturais do Rio de Janeiro, permite supor a
existência de um público leitor para esses romances e um interesse duradouro pelas
aventuras e atribulações de personagens envolvidas em tramas de mistério, suspense,
vingança, poder despótico, tirania e horror.” (VASCONCELOS, 2012, p. 275)
. Mesmo um autor “solar” como Alencar tem seus débitos às estratégias narrativas típicas
da poética gótica: “a obra preponderantemente luminosa e solar do autor de Iracema se
tinge de sombras de quando em quando e incorpora algumas convenções góticas.”
(VASCONCELOS, 2012, p. 279)
- A GERAÇÃO MATERIALISTA
. Como o zeitgeist da segunda metade do século XIX era marcado pelo materialismo, a
literatura ecoou a tendência ao material e ao real, em que a logicidade científica seria
pungente: “Essa era do materialismo (1870-1900) foi uma continuação do iluminismo e
do enciclopedismo do século XVIII e da Revolução, acreditou no ‘progresso’ indefinido
e ascensional e no desenvolvimento constante da civilização mecânica e industrial. [...] A
ciência, o espírito de observação e de rigor forneciam os padrões do pensamento e do
estilo de vida, porquanto se julgava que todos os fenômenos eram explicáveis em termos
de matéria e energia, e eram governados por leis matemáticas e mecânicas.”
(COUTINHO, 2004a, p. 6)
“Repelindo qualquer explicação última, qualquer finalismo teológico ou metafísico, e
concentrado sobre o fatalismo científico, exaltou a ciência social ou sociologia como
rainha das ciências, dando-lhe como método e princípios os mesmos que caracterizavam
as ciências físicas. Os estudos sociológicos, dirigidos pelo positivismo, orientaram-se
para a coleta de fatos, sintetizando-os e formulando leis e tendências para explicar a
conduta e evolução da sociedade humana.” (COUTINHO, 2004a, p. 7)
“Para a crítica literária, esta ciência que impera será doravante a sociologia.”
(COUTINHO, 2004b, p. 21)
. REGIONALISMO NA FICÇÃO
. Desde o Romantismo, o regional vem sido bastante explorado por nossos autores, que
buscam retratar as características brasileiras. Dessa forma, nossa literatura volta-se para
o regional com o intuito de retratar a nacionalidade, o que se fez sentir também durante o
Realismo e o Naturalismo, que não mais exploravam o regional de forma saudosa e
escapista, mas de forma realística e científica: “Desde o Romantismo, com a valorização
do genius loci, um fato da maior significação foi a crescente importância do Brasil
9
STEWART, G. The Regional Approach to Literature. In: College English, April 1948.
regional. As influências geográficas, econômicas, folclóricas, tradicionais, que deixaram
traços marcantes e características distintivas na vida, costumes, temperamento,
linguagem, expressões artísticas, maneiras de ser e sentir, agir e trabalhar, fizeram-se
perceber na vida intelectual brasileira desde que a consciência nacional brotou para a
independência política e cultural. [...] Em José de Alencar, Gonçalves Dias, Bernardo
Guimarães, o regionalismo é uma forma de escape do presente para o passado, um
passado idealizado pelo sentimento e artificializado pela transposição de um desejo de
compensação e representação por assim dizer onírico. Essa modalidade de regionalismo
incorre numa contradição ao supervalorizar o pitoresco e a cor local do tipo, ao mesmo
tempo que procura encobri-lo, atribuindo-lhe qualidades, sentimentos, valores que não
lhe pertencem, mas à cultura que se lhe sobrepõe. [...]
[...] com o movimento de valorização, análise e interpretação da realidade brasileira, o
Realismo deu prosseguimento àquela marcha introspectiva proveniente do Romantismo,
mergulhando no magma nacional à procura da compreensão de seus valores e motivos de
vida e, ao mesmo tempo, buscando nele as fontes de nutrição e inspiração intelectual.
Desvestiu-se, porém, a mentalidade do país, sob o influxo realista, daquele saudosismo e
escapismo românticos, para considerar a existência contemporânea e o ambiente
vizinho.” (COUTINHO, 2004, p. 234)
“Graças ao senso da verdade do Realismo, a mentalidade literária brasileira perdeu o
sentimentalismo na consideração da regionalidade. E passou a compreender que o
regionalismo literário consiste, no dizer de Howard W. Odum10, em apresentar o espírito
humano, nos seus diversos aspectos, em correlação com o seu ambiente imediato, em
retratar o homem, a linguagem, a paisagem e as riquezas culturais de uma região
particular consideradas em relação às reações do indivíduo, herdeiro de certas
particularidades de raça e tradição. Foi com o Realismo que se tomou conhecimento de
que a cultura regional, conforme acentua B. A. Bodkin11, pode oferecer à literatura ‘um
assunto (a paisagem física e cultural, os costumes locais, lendas, mitos, tipos, linguagem,
etc.), uma técnica (modos de expressão nativos e populares, estilo, ritmo, imageria,
simbolismo), um ponto de vista (a ideia social de uma sociedade e os valores culturais
movidos pela tradição, que exerce o papel de libertadora e não confinante)’.”
(COUTINHO, 2004, p. 235)
10
ODUM, H. W.; MOORE, H. E. American regionalism. New York, 1938. / _____. Regionalism in
transition. Separate de Social Forces, 1942-1943.
11
BODKIN, B. A. Regionalism: cult or culture? In: English Journal, XXV, 3, march, 1936.
. PEREGRINO JÚNIOR E A AMAZÔNIA TERRÍFICA