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Edição Nº 3 - janeiro de 2004

A esquecida vila da língua tupi


Por Jorge Caldeira

Nas ruas da pequena vila de São Paulo, desde a fundação até o século XVIII, a maioria das
pessoas falava na língua geral tupi. Num tempo em que o comportamento português, nas
palavras do primeiro historiador da terra brasílica, Frei Vicente de Salvador, era o de arranhar o
litoral feito caranguejos, estes habitantes andavam na direção contrária: em 1700 a área da vila
vinha a ser um sertão que ia do Rio Grande do Sul a Minas Gerais, no sentido norte-sul, e da
Serra do Espinhaço ao Mato Grosso, no leste-oeste.

A relação com os índios se dava sentido à existência da pequena vila e a seu imenso sertão,
incomodava até mesmo portugueses como Jorge Macedo. Depois de uma estada em São
Paulo em 1679, escreveu ao rei: são gente inútil para o serviço de Sua Alteza e mui danosa
por inquietadores e perturbadores de toda disciplina. Esta fama de pouco obedientes já havia
ultrapassado fronteiras há muito tempo. Em 1639, o rei Felipe IV, da Espanha, lançou uma
cédula condenando bandeirantes passados e futuros à pena da perda dos bens e das vidas,
devendo ser enquadrados em tribunal da Inquisição.

A carga moral negativa de indisciplina, selvageria e heresia, marcou o adjetivo paulista desde
seu surgimento, no início do século XVII. Neste momento, é bom lembrar, havia a capitania de
São Vicente, e o adjetivo se aplicava apenas aos moradores da vila planaltina.

Obviamente os paulistas não se viam nem como selvagens, muito menos como hereges. Mas
eram quase todos analfabetos, de modo que suas opiniões a respeito de si mesmos, nas raras
ocasiões em que chegaram a ser escritas, contaram muito menos que aquelas de seus
detratores para formar uma imagem.

Só no século XX, quando a cidade enriqueceu, surgiu a versão que concentrava bons valores
morais nos antepassados bandeirantes, transformados em heróis fundadores do Brasil. Mas a
onda durou pouco: já nos anos 30, os paulistas começaram a ser enquadrados como invasores
brancos e escravizadores de índios. A diferença entre a versão coeva negativa e esta, até hoje
considerada politicamente correta, é que os tais invasores são pensados como europeus,
enquanto no século XVII eram condenados por serem mestiços, mamelucos. Há assim um
embranquecimento dos bandeirantes.

Este fator de correção política do passado é complementado por outro, de origem


antropológica. Enquanto o movimento negro contabiliza descendentes mestiços como
pertencentes ao grupo, os descendentes mistos de indígenas são vistos por historiadores e
antropólogos como pertencentes a outras etnias.

Disto tudo resulta que o século e meio onde São Paulo foi uma vila de língua tupi esteja
praticamente apagado da memória de seus habitantes no momento em que a cidade completa
seus 450 anos.

Jorge Caldeira é jornalista e historiador. Autor, entre outros, de Noel Rosa, de Costas para o
Mar (1981), Mauá, Empresário do Império (1995) e A Nação Mercantilista (1999).

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