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Travessias: implicações, transformações e as migrações

no e do norte de Minas Gerais

Leonardo Giovane Moreira Gonçalves

PAULA. Andréa Maria Narciso Rocha de. do sertão, viver nele: as migrações
Sair do sertão, viver nele: as migrações sertanejas”, de Andréa Maria Narciso Rocha
sertanejas. Travessia: revista do migrante,
n.72, jan-jun, p. 55-72, 2013. de Paula.
O título do artigo, assim como a

Pesquisadores dos processos identificação das sessões subsequentes, faz

migratórios apontam que as migrações devem referência a obra de João Guimarães Rosa,

ser entendidas como um fenômeno complexo, “Grande sertão: veredas”. Em sua tese de

multidimensional e multifacetado, conforme doutorado, a autora explica o uso da obra

apontam Magalhães (2015), Menezes e literária, também como material de pesquisa,

Hallewell (2004), entre outros. Não se pode pela densa descrição geográfica das cenas,

compreender as migrações somente pelas cenários e personagens sertanejos

questões político-econômicas, mesmo que desenvolvida por Guimarães, que gera uma

essas sejam relevantes, faz-se necessário geopoética (PAULA, 2009, p.32).

entender a subjetividade dos que migram, Andréa é professora do Departamento


porque decidem ir ou ficar e quais relações de Política e Ciências Sociais (DPCS) da
com o coletivo são determinantes nesse Universidade Estadual de Montes Claros
processo. (UNIMONTES- MG). Mestre e doutora em

Quando esses estudiosos entendem o Geografia, a professora atua nos campos da

processo migratório enquanto fato social total Geografia Cultural, Sociologia e

(SAYAD, 1998), que modifica as pessoas e os Antropologia Rural, tendo como principais

lugares em dado momento, considerando sua temas: comunidades tradicionais ribeirinhas,

extensão síncrona e diacrônica, é possível migrações campo-cidade e sertões roseanos.

identificar a complexidade dessas teias, suas A autora possui uma extensa e consistente

relações e singularidades que se desdobram produção acadêmica, fruto de seus projetos de

em diversas dimensões, demandando pesquisa, que abordam os processos

investigações de um campo interdisciplinar. migratórios, os migrantes, suas redes e seus

Tais particularidades são perceptíveis ao leitor desdobramentos na produção socioespacial do

e ancoram as argumentações do artigo “Sair norte mineiro.

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O artigo publicado na Revista Travessia século XXI, as migrações intrarregionais no
em 2013, destinado a pesquisadores dos norte mineiro.
processos migratórios, em especial aos Ademais, uma das características
interessados nas migrações do e no “Nordeste distintivas do artigo é a escolha da autora em
expandido ” (considerando também o norte de
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caracterizar as implicações do período de
Minas Gerais) para o Sudeste, é um recorte de trânsito dos migrantes, ou seja, o artigo além
sua tese de doutorado da autora, publicada em de abordar os impactos do processo
2009, intitulada: “Travessias: movimentos migratório nos locais de origem e destino,
migratórios em comunidades rurais no Sertão dedica-se a entender e detalhar as
do Norte de Minas Gerais”. A tese parte do transformações que o fluxo migratório
objetivo de analisar e compreender, por meio ocasionou nas cidades que os migrantes
do processo migratório, a formação da passaram rumo ao Sudeste. Para isso, a autora
identidade rural e as estratégias de reprodução aborda os meios de transportes utilizados,
camponesa dos migrantes que retornaram, bem como sua modificação ao longo dos anos,
mas também dos que ficaram em seu local de as condições da viagem, as etapas até a
origem (PAULA, 2009). chegada a São Paulo, a triagem, as migrações
Em oposição a esses objetivos centrais, de retorno e as alterações na paisagem das
o artigo traz ao leitor cronologicamente as cidades da rota da migração, em especial
características, o contexto, desafios, Pirapora e Montes Claros, em Minas Gerais.
subjetividades e transformações das Mesmo sem divisões claras, é possível
migrações do e no norte de Minas Gerais. observar que o artigo se divide em duas partes.
Traçando um panorama histórico desde as Na primeira, a narrativa propicia o
últimas décadas do século XIX à primeira entendimento dos caminhos trilhados pelos
década do século XXI, a autora, por meio do migrantes até a chegada ao Sudeste - e suas
uso de relatos orais, fonte documental, adversidades-, a formação das cidades e os
estatística e bibliográfica, favorece o motivos de migrar. Já na segunda parte, a
entendimento dos fatores que induziram a narrativa preocupa-se em evidenciar as
migração para a região Sudeste, mencionando migrações na primeira década do século XXI,
a seca, a concentração de terras, o incentivo as migrações interestaduais e o fortalecimento
do Estado e também o entendimento de como das migrações intrarregionais, além de
se caracterizavam, na primeira década do

1Termo observado em MAGALHAES, V. B. A história oral


nos estudos das migrações do nordeste para o sudeste: relato
de pesquisa. Cadernos CERU, serie2, v. 30, n.1 2019.
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discutir os conflitos de sair do sertão, retornar consolidação do latifúndio, destruição da
ou ficar. vegetação nativa, mecanização do campo e
Na primeira parte, tendo por subtítulo outros.
“Sair do sertão, viver nele: as migrações Ainda nesta primeira parte, em
sertanejas”, a autora traz um trecho da “Caminho de águas: a estrada líquida”,
entrevista realizada com Valter Ney Ferreira, Andréa vai traçar o perfil dos “flagelados da
de Santa Fé de Minas (MG). Valter conta que seca”, aqueles migrantes que, nas últimas
após se casar e ter seus filhos, teve que migrar décadas do século XIX e primeira metade do
para diversas cidades de Minas Gerais em século XX, fugiram pelo rio São Francisco por
busca de melhores oportunidades de emprego conta das poucas oportunidades de trabalho e
e renda. Com o insucesso da migração para a a devastação dos períodos de estiagem,
cidade, após sofrer humilhações, passar fome encontrando na migração, conforme aponta
e frio, Valter retorna para o campo, consegue Menezes (2012), uma estratégia de
emprego no plantio de eucalipto, educa os reprodução familiar. As viagens que
filhos e retira o suficiente para sobreviver. conduziam os migrantes eram precárias,
Apesar das dificuldades do campo e a “homens e mulheres rurais viajavam
exploração da cidade, o camponês afirma: “na amontoados e dormiam em redes e esteiras ao
roça, é só Deus mandar chuva que a vida lado das cargas” (p.57).
melhora” (p. 56). As viagens de Juazeiro (BA) até
A escolha da autora por utilizar esta Pirapora (MG) duravam 15 dias, mas o
entrevista como abertura do artigo, assim destino era as cidades no Sudeste. Ao chegar
como o próprio título do artigo, deixa a em Pirapora, os migrantes esperavam para
entender que o texto abordaria estritamente as embarcar no trem do sertão até Belo Horizonte
motivações e as migrações intrarregionais no e de lá seguir para cidades dos estados de São
norte de Minas Gerais e, especificamente, os Paulo ou Rio de Janeiro. No entanto, por falta
casos de retorno ao campo, assunto este de recursos e condições de saúde, muitos deles
tratado em sua tese de doutorado. No entanto, acabavam se instalando nas cidades
logo após a entrevista, Andréa salienta como ribeirinhas da estrada líquida.
as migrações auxiliaram no processo de Outro fato relevante apontado por
povoamento da região e caracteriza os fatores Andréa, são as transformações que a paisagem
fundamentais que impulsionaram o ir e vir e o ribeirinha vivenciou neste período. Além dos
envio de populações rurais para grandes e migrantes que decidiam ficar, havia em
médias cidades do país, como exemplo cita a Pirapora um posto de triagem do governo do
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Estado de São Paulo que selecionava aqueles cidade e nos municípios vizinhos à espera da
que poderiam embarcar no trem do sertão, triagem.
cabendo aos que não eram selecionados, se A autora fecha a sessão evidenciando a
juntar ao contingente de “desclassificados” modificação ocorrida no modus operandi de
nas cidades do entorno. migrar. Após 1943, quando chega ao fim o
Em “Caminho de terra e de ferro: o aliciamento de migrantes pelo Estado, outras
trem do sertão” a autora continua a apresentar formas de ir a São Paulo são implementadas,
as etapas para chegar nas lavouras de São principalmente com a formação das redes
Paulo. Ao desembarcar em Pirapora e passar particulares de migração. Em 1949, a
pela triagem, que exigia boa condição física e construção da rodovia Rio-Bahia, sendo
mental, quase impossível após uma longa pavimentada em 1968, também transformaria
viagem insalubre de 15 dias pelo São o modo como os migrantes iriam à capital
Francisco, os migrantes tinham que embarcar paulista, antes de trem, agora em caminhões
em um trem que os levaria até o município de “paus de arara” e ônibus clandestinos, fato que
Corinto (MG) e fazer uma baldeação até Belo não tornou a viagem mais confortável e
Horizonte (MG). salubre.
Andréa também elucida o impacto que A privatização da Estrada de Ferro
as políticas públicas da época e Central do Brasil, o incentivo automobilístico,
principalmente a chegada da Estrada de Ferro o Estatuto do Trabalhador Rural de 1965 e a
Central do Brasil (antigamente conhecida forte urbanização nas décadas de 1980 e 1990,
como E.F. Dom Pedro II), reverberam no alteraram não só o modo como as pessoas
modo de migrar. A estrada de ferro havia migram para o Sudeste, mas também o destino
chegado em Pirapora em 1910, no entanto, em e a decisão por migrar ou não. Após este
1926 a linha chega a Montes Claros (MG), período, Andréa aponta que as migrações
objetivando ligar Belo Horizonte a Salvador intrarregionais ganham destaque.
(BA), fazendo com que a linha de Montes Introduzindo o assunto da segunda
Claros fosse elevada a linha central, ligando a parte, a autora em “A continuidade das
Corinto. Com isso, a cidade de Montes Claros migrações no e do sertão”, ressalta que as
passa a ser o principal ponto de chegada e migrações continuam no século XXI, sempre
saída de trabalhadores migrantes do norte em busca de melhores condições de vida.
mineiro e sul baiano. Como aconteceu antes Entretanto, há uma alteração de como e para
em Pirapora, muitos dos migrantes ao onde migrar, tendo em vista que “os
chegarem a Montes Claros se alojavam na trabalhadores rurais em suas idas e vindas
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começam a fazer a opção de migrar dentro da ambulantes do mercado informal, assim,
própria região, migrando no sertão, entre constatou que 60% dos entrevistados afirmam
rural-rural e rural-urbano” (p.72). que voltariam a morar no campo,
Em “As migrações do sertão” ¸ por argumentando que a vida piorou na cidade e
meio de uma pesquisa documental e que o rural é um ambiente confortável. Os
apresentando dados estatísticos, Andréa dados qualitativos e quantitativos da pesquisa
destaca uma migração de retorno e uma são significativos ao evidenciar o desejo de
alteração no fluxo migratório ao utilizar a retornar, frente a narrativa exposta desde a
reportagem do Jornal Estado de Minas de década de 1930 que as melhores
2001, que aponta como principal destino de oportunidades estavam na cidade e
migração o município de Palmas (TO). principalmente no Sudeste.
Fazendo uso de reportagens, e de estudos da A cidade ainda acaba exprimindo um
Universidade Federal de Uberlândia, que imagético de possibilidades, seja de conseguir
trazem a realidade latifundiária do norte de um bom emprego, desenvolver ou “evoluir”
Minas, a exploração da força de trabalho e as pessoal e profissionalmente. Todavia, Andréa
condições de vida, a autora enfatiza que na disserta que os trabalhadores, tentam agora a
primeira década dos anos 2000 o processo vida em suas próprias regiões, pois “ficar indo
migratório ainda é uma realidade na região. e vindo não tem melhorado a situação das
No último tópico, “As migrações no famílias rurais, em um mundo cuja concepção
sertão”, antes das considerações finais do corrente trata o migrante cada vez mais como
artigo, Travessiando, a autora tipifica como “desterritorializado” e sem fronteiras” (p.67).
vem se observado o panorama migratório Dentre outros pontos relevantes do
dentro do sertão. Há ainda as migrações artigo, destaca-se o uso assertivo de fontes
sazonais, do campo para o campo, em pela autora que mescla entrevistas,
propriedades rurais próximas, buscando bibliografias, dados documentais e
incrementar a renda, mas também há o estatísticos. Pela leitura do texto é possível
deslocamento para as cidades da região, que entender os motivos de migrar, a
são geralmente migrações permanentes, pois subjetividade dessas escolhas, implicações e
envolvem o deslocamento do núcleo familiar. transformações nos sujeitos e cenários, mas
Andréa sublinha uma pesquisa de pela exposição de dados quantitativos é
campo realizada em 2003, com migrantes que possível também aferir de forma ampla, o
deslocavam do meio rural para a cidade de impacto e a magnitude das migrações ao longo
Montes Claros e com migrantes rurais do tempo. Andréa traz dados relevantes sobre

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a quantidade de migrantes que o norte de aplicando-as em outros grupos de migrantes,
Minas Gerais exportou a São Paulo, considerando diversos períodos de tempo e
porcentagem do fluxo de migrantes na estrada também o contexto atual. Por isso, o artigo é
Rio-Bahia e na estrada líquida, além de outros relevante para compreender as travessias, suas
indicadores que permitem a leitura desse implicações, transformações e as migrações
fenômeno pela ótica do fato social total. no e do norte de Minas Gerais até a primeira
O artigo aborda de forma sucinta o década do século XXI.
panorama do migrante já no destino, em São
Paulo, mesmo que discorra sobre a REFERÊNCIAS
marginalização dessa mão de obra nos últimos
MAGALHÃES, V. B. Nordestinos na Zona
anos do século XX. Contudo, ao tratar das Leste de São Paulo: subjetividade e redes de
migrações nas travessias, a autora evidencia a migrantes. Travessia: revista do migrante, n.
76, jan-jun, p.99-112, 2015.
relevância do artigo para o entendimento do
MENEZES, M. A. de. Família, juventude e
processo migratório fenômeno complexo,
migrações. Revista Anthropológicas, ano 16,
multidimensional e multifacetado, neste caso v. 23, n.1, p. 114-136, 2012.
abordando o período de trânsito e as novas MENEZES, M. A. de; HALLEWELL, L.
formas e destinos de migrar, já no início do Migration patterns of Paraiba peasants. Latin
American Perspectives, v. 31, n. 2, p. 112-
século XXI, mas sem se esquecer os agentes 134, mar, 2004.
responsáveis e implicantes nesse processo. PAULA. A. M. N. R. de. Sair do sertão, viver
Além dessas relevantes contribuições, o nele: as migrações sertanejas. Travessia:
revista do migrante, n.72, jan-jun, p. 55-72,
artigo também contribui para o entendimento
2013.
do perfil do migrante em 2003, que gostaria
PAULA. A. M. N. R. de. Travessias:
de retornar ao campo. Tal perspectiva, movimentos migratórios em comunidades
adicionada as migrações intrarregionais, a rurais no Sertão do Norte de Minas Gerais.
2009. 350 f. Tese (Doutorado em Geografia),
caracterização do migrante e as Instituto de Geografia, Universidade Federal
transformações dos territórios pelas de Uberlândia, Uberlândia, 2009.
migrações, destoa do adensado contingente de SAYAD, A. A imigração ou os paradoxos
da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.
pesquisas sobre migrações que somente se
debruçam nos temas Nordeste e Sudeste.
Sendo o artigo de Andréa um recorte de
sua pesquisa em 2013, entende-se que estudos
futuros poderiam se basear em sua
metodologia e análises, aprimorando e

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