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Fatuus Fatuum Invenit - um tolo encontra outro tolo

“o buraco do espelho está fechado


agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora”
(Arnaldo Antunes)

A bela foto acima não representa este local mesmo, da maneira como ele é
vivenciado pelos transeuntes dessa região. Trata-se do chamado marco zero de
São Paulo - ao fundo se vê a Catedral da Sé. Em condições normais, esse local é
habitado, transladado muitas vezes à deriva dos que não sabem para onde vão nem
de seus porquês. Há moradores de ruas às centenas, há distribuição de sopas e
outros alimentos aos necessitados, há espécies de novos Qoheleths (ou
Eclesiastes, ou Aquele-que-sabe) bradando frases bíblicas ou verdades pessoais
com intenções universalizantes, aspirantes a novos deuses, todos ali, entretanto,
comandados por um único sopro-deus que perpassa a Praça da Sé como num leve
Leviatã.

Essa foto representa o falo transcedental que, diariamente, mostra-se castrado,


como a presença de uma ausência, a afirmação de um negativo, sem-número de
vezes repetida por dia pelas atividades que pulsam até as bordas irreconhecíveis da
cidade. Sobra esse centro somente imaginário, como um vazio inútil, mas talvez
necessário para que os significantes imparáveis continuem a fluir, com seus desejos
pulsantes.

Sem mais explicações anteriores, exponho uma informação simples: em latim, a


expressão mais próxima do que hoje chamamos semblante era formada, segundo
alguns latinistas, por duas palavras vultum tuum. Sabemos que tuam era o pronome
possessivo masculino; tuum, o feminino. Vultum tuam, entretanto, não poderia ser
traduzido como semblante. Ou seja, no latim, este já tinha uma ligação ao feminino.

Hoje, semblante aparece nos dicionários como: rosto, expressão, aparência, ar,
aspecto, figura, fisionomia. Seu semantismo próximo ao do feminino se desfez para
abrir lugar a tudo aquilo que parece mas não é, ao contrário da essência, ao modo
do aparecer, ao ser como fenômeno. Abertura de derivações semânticas que não
seriam jamais inesperadas na civilização de Eva.

Agora, amarremos as pontas. Em uma exposição tão ampla de significados, quanto


ao número de artistas envolvidos, de espaços, de vazios cheios de um ar
amedrontador, uma atmosfera parecida com nossos vazios-solidão que respiramos
no isolamento do nosso lar e também lá, naquele centro de São Paulo, onde, por
menos gente que vague, a tensão se deflora e inflama o piso ao próximo passo,
todos envoltos no medo de que o vazio seja, a qualquer descuido, a presença do
outro, onde todo o particular, toda a posse, a pessoa, sempre e mesmo na noite
vazia, sente-se ameaçada. Há, entretanto, algo que mantém esse peso nos pés que
aprisiona e aproxima pessoas naquela cidade - assim nesta exposição,
Entretecidos.
Um centro vazio, um castramento mais ou menos percebido: não importa a
geografia, o centro se expõe - e é possível sentir o peso dos passos aumentar
conforme se o confronta, tentando lhe roubar o lugar, o seu locus, mesmo que na
borda, sempre-centro.

Dentre as obras expostas no Pavilhão Branco, Lisboa, durante a Exposição


Entretecidos, as paredes são parcamente cobertas por obras de artistas diversos.
Uma obra, entretanto, rouba o nosso lugar, e o esvazia. Trata-se de um espelho
retangular que se nos dá ao chão, como o único lugar proibido às nossas pegadas
interessadas no universo imaginário que se constrói nas paredes por todo o espaço
e, assim, reorganiza o nosso pensamento a respeito das imagens, deslocando-as
ao campo do simbólico, como se todas, metonimicamente conjugadas, quisessem
ocupar aquele centro: o espelho, voltado ao teto e impedindo nosso acesso àquele
solo cria uma espécie de coluna, que avançaria, simbolicamente, até o opaco
superior, se não fosse o caso do que é exposto em sua totalidade, cerca de um
metro acima do objeto reflexivo, uma forma ondulada, tecida em ondas, que recobre
quase totalmente e sem excessos o espelho. Dessa maneira, lembramos que é,
entre dois espelhos postos frente à frente, a nossa presença, o nosso ser fenomenal
que nos impossibilita a experiência do infinito.

Um centro está reconhecido, assim como o marco zero paulistano, figuras, ou


melhor, imagens podem ser vistas, mas a partir do momento em que se instaura
esse centro, e ele não dá demonstrações de unidade, de virilidade, tal como
esperávamos, cumprindo uma função fálica castrada por mãos tecelãs. Todo o
entorno pode passar a ser visto como uma rede, significantes puros, que não
existem como significação para ninguém, mas que significam, sim, uns para os
outros, todos tentando achar sua vez de ocupar aquele centro, o lugar do objeto, o
vazio do castrado.

Esse centro não é, devemos lembrar de seus aspectos, qualquer centro. Trata-se de
um centro velado. Talvez Lacan possa nos ajudar neste ponto: esse ponto central,
esse furo que cria as bordas de toda a exposição, é velado. O psicanalista francês
dizia que o lugar do psicanalista é o lugar desse centro, o lugar do pequeno outro.
Como ocupar esse lugar, de qual maneira? Freud dizia que a melhor maneira de
encontrar o sentido na rede significante (usando a expressão de Lacan) - visto que o
imaginário, o imagético que ocupa as paredes, foi subtraído pela centralidade da
perda especular, o espelho “entretecido” - seria “se entregar à sua própria atividade
mental inconsciente, quando evita, tanto quanto possível, refletir e elaborar as
expectativas conscientes, quando não pretende (...) fixar nada em particular em sua
memória e, dessa maneira, capta o inconsciente com seu próprio inconsciente”. A
atividade inconsciente será para nós, seguindo Lacan, a atividade dos símbolos, do
nível simbólico ao qual as obras expostas nas paredes foram submetidas, em um
movimento que parece querer se dinamizar metonimicamente.

Voltamos, agora, à forma como a palavra semblante era apresentada no latim.


Lacan chama esse estado descrito como o ideal para o analista ocupar, ele é o do
feminino.. A posição feminina caracteriza-se pela maneira de esconder: aquele
objeto que se tece, velando a possibilidade especular para o ser desejante que anda
pelo espaço alcançar o Real. É um velar que traz a maneira feminina de manejar o
véu, não tanto para desaparecer aos olhos do outro, mas num gesto de se cobrir
para si mesma, um gesto tão espontâneo que parece prolongar o corpo. Virar-se
para si mesmo, e não para o outro. Essa maneira é a que recobre o gozo na
exposição. E nós?

Com esse esconder, abre-se o espaço à surpresa, o susto ou acontecimento do


sintoma e o centro, o furo que traz fluidez aos significantes, dissolvem-se as
tentativas de interpretação como leitura de signos - a saber, significado
imediatamente ligado a um significante. Presos nessa rede significantes em que
eles brincam de ocupar alternadamente o lugar do Um, será que podemos falar em
um processo de cura nosso? O que seria a cura? Voltamos a Lacan. Devemos
ultrapassar o significante, parte do sistema Simbólico, chegando àquilo que a ele
não se subordina, o seu opaco. Fora dos símbolos, somos aquilo que não pode ser
coberto pelo conceito, pela simbolização. Somos aqueles sentimentos da
quarentena, entretecidos, janelas opacas, quartos opacos. A opacidade das obras
é-nos proporcionada pelo trabalho do curador, que aponta o opaco, que cobre
aquilo que não tem simbolização. Ele nos põe a cura, como que a desenhada pelas
obras.

Roupas imaginárias e brincantes, que usamos dentro de casa como quem brinca
carnaval nas ruas durante o período pandêmico, a cama sempre desarrumada e a
tevê conectada diretamente ao sem sentido, marcas das tradições de nossas
origens, que se aveludam em nossa memória assim como um aconchegante casaco
que tenta dizer que tudo não é tão mau, detentores imaginários de nossos
momentos de raiva, que apaziguam nosso gesto no macio, janelas que nos
guardam e nos prometem futuros em diferentes cores, ou até:

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