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1. INTRODUÇÃO
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Cassirer sobre a sua obra e, ao mesmo tempo, problematiza:
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pretendido uma “matemática da política” cuja tarefa seria a de demonstrar que as normas
da vida social poderiam ser justificadas como o mesmo grau de rigor e objetividade
encontrada em qualquer proposição matemática (FAVUZZI, p.192-193, 2017).
Entretanto, a razão matemática, que opera a partir de relações formais e quantitativas,
parece ter se desenvolvido muito mais quando atua simbolicamente sobre a natureza do
que quando opera sobre o mundo político, na esfera da cultura.
No intuito de determinar melhor as mediações que compõem nosso problema de
pesquisa, fazem-se necessárias algumas observações gerais sobre o programa teórico de
Cassirer o qual se apresentou de forma mais acabada no final da década de 1920 com a
publicação dos três volumes de sua Filosofia das Formas Simbólicas. Por se tratar de um
pensador sistemático, é importante situarmos nossa questão de pesquisa no todo de sua
filosofia, evitando o risco de propor um percurso expositivo desviado e sem relação
orgânica com o programa de Cassirer. Pois bem, como é de se esperar de um pensador
cujas pretensões são sistemáticas, Cassirer propõe um novo ponto de Arquimedes para a
filosofia, qual seja: a noção de símbolo. Em seu entender, o homem é um animal
fundamentalmente simbólico, sendo este o traço distintivo que marca sua antropologia.
Diferentemente dos demais animais, somente ao homem é possível a expressão simbólica
de seu meio, sendo justamente mediante o simbolismo, função apriorística básica sobre a
qual se funda a subjetividade, que se pode demarcar o âmbito da experiência possível. A
razão humana, portanto, opera sempre simbolicamente, não sendo possível
conhecer/constituir o mundo fora do simbolismo (BRAGA, p. 47, 2012).
Ainda seguindo a orientação de Kant, mas consciente dos limites de seu mestre,
Cassirer defende que a crítica da razão deve se tornar uma crítica da cultura, a diferença
central entre a segunda e a primeira está no que ambas assumem como sendo os limites
da experiência, da esfera dos fenômenos. Enquanto para Kant a realidade fenomênica
estaria circunscrita à natureza, para Cassirer a experiência objetiva deveria ser alargada
na medida em que se reconhece que a razão se manifesta de diversos modos, constituindo
assim uma noção de objetividade relativa a cada uma das formas simbólicas. Ao Espírito
é possível construir versões objetivas daquilo que se concebe como realidade à luz de
uma experiência que é sempre relativa aos diferentes modos de simbolizar. Por isso, a
função simbólica vem se mostrando, historicamente, capaz de engendrar realidades
múltiplas, sobre aspectos diversos do real (CASSIRER, 2001, p.22).
Nesses termos, Cassirer desdobra a racionalidade moderna sobre dois aspectos:
em primeiro lugar, retira do conhecimento científico (forma simbólica particular) a
exclusividade da experiência objetiva; em segundo lugar, fornece uma solução epistêmica
para o problema “unidade-pluralidade do conhecimento”, pois, diante da necessidade e
do apriorismo da função simbólica originária, reconhece a liberdade da razão em poder
operar objetivamente nas formas da linguagem, do mito, da religião, da ciência e da arte,
por exemplo (CASSIRER, 2001, p.39).
A função simbólica seria o fundamento formal e ideal a partir do qual se explica
a origem das manifestações objetivas que compõem a totalidade da cultura. A consciência
subjetiva constrói simbolicamente o mundo, criando este mesmo mundo em diferentes
estruturas racionais. Não seria estranho a Cassirer, considerando algumas passagens de
suas obras, se afirmássemos que o processo de constituição da consciência, e do mundo
por ela criado, deu-se mediante estágios de desenvolvimento, entretanto, as formas
simbólicas que correspondem a esses estágios, contrário ao que pode parecer e ao que
sugere Thomas Kuhn, não se relacionam de forma linear e cumulativa, mantendo assim
uma espécie de simetria epistêmica entre as diferentes formas simbólicas, sejam elas as
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ciências naturais ou as ciências da cultura.
Quando a consciência passa de sua forma mítica a sua forma científica não
significa dizer que a ciência superou o mito. Ou, quando a ciência matematizada apresenta
relações racionais que extrapolam o limite da linguagem ordinária, não estaríamos
autorizados a concluir que o formalismo matemático superou a linguagem comum. O
simbolismo de Cassirer atua no humano como uma energia vital que se radia em muitas
direções que, em determinados momentos da história, amadurecem em formas racionais
constituídas e não excludentes, apesar de diversas. Assim, seria possível defender que não
há, em Cassirer, uma hierarquização das formas simbólicas, ou seja, o conhecimento
sobre a natureza não procede em um regime epistêmico privilegiado, por ser
matematizado, frente ao conhecimento dos objetos culturais. A tarefa teórica que ele nos
coloca parece não privilegiar uma forma simbólica supostamente mais avançada em
detrimento de uma menos desenvolvida (CASSIRER, p.34, 2011) e (CASSIRER, 2001,
p.64).
A passagem do simbolismo da linguagem comum ao simbolismo matemático,
quando do desenvolvimento da ciência empírica, deu-se pelo fato de que a razão se viu
diante das insuficiências das conceituações linguísticas incapazes de expressar a
complexidade dos fenômenos. Na modernidade, à razão não era mais suficiente apenas
nomear e classificar os objetos da percepção sensível, era preciso agora se desdobrar
numa forma de simbolismo que engendrasse explicações mais abstratas e complexas
acerca dos fenômenos da natureza. Por isso, a matemática se apresenta como um modo
diferente de simbolizar que, em virtude de seu funcionamento próprio, pode expressar a
necessidade das leis naturais, alcançado assim um nível de racionalidade impossível à
linguagem. Do mesmo modo, o simbolismo mítico é incapaz de construir relações que
são básicas ao conhecimento científico, restando à razão, por conseguinte, a tarefa de se
desdobrar numa forma simbólica mais sofisticada sob certos aspectos. Considerando que
o meio de expressão das ciências da cultura é basicamente o simbolismo da linguagem
comum, a questão que se impõe é de saber o conhecimento sobre os objetos culturais já
se mostraria, de saída, deficitário frente ao conhecimento da natureza.
Apesar de, como vimos, Cassirer resguardar as especificidades dos modos de
simbolizar da razão, evitando um tratamento hierárquico entre eles e sugerindo certa
incomensurabilidade na comparação entre tais formas simbólicas, tendo em vista que
cada uma constrói sua zona particular de significação, em Ensaio sobre o homem, obra
de maturidade e na qual Cassirer resume seu pensamento, encontramos afirmações
aparentemente divergentes a esta ideia de incomensurabilidade das formas simbólicas, as
quais supomos serem aquelas que incomodaram Thomas Kuhn:
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diante das realidades expressas pela razão em suas formas mítica, linguística e histórica,
por exemplo? Assim como o conhecimento científico opera na direção da construção de
leis naturais, as ciências da cultura deveriam ensejar leis espirituais? Não poderíamos
dizer que a própria antropologia filosófica, defendida por Cassirer, o todo de seu
programa, já não seria uma ciência da cultura manifesta, na medida em que expressa a
unidade sintética, funcional e simbólica, de todas as formas de expressão da razão?
A questão que aqui se coloca é a de saber se há algum tipo de comensurabilidade
entre as diferentes formas simbólicas que, ao serem comparadas, justificar-se-ia a
primazia do conhecimento científico matematizado, tal qual Cassirer sugere em Ensaio
sobre o Homem. Se a ciência, por sua vez, atuaria como uma espécie de ideal simbólico
da razão em geral, servindo de modelo de valoração epistêmica às ciências da cultura e a
todas as demais formas simbólicas, contrariando assim, as expectativas de Thomas Kuhn.
Pois, ao que nos parece, Kuhn esperava que Cassirer explicasse o funcionamento das
ciências naturais sem postular nenhuma assimetria diante das ciências culturais.
Ao respondermos essas perguntas, teremos pistas importantes para a solução do
nosso problema de pesquisa. Caso Cassirer reconheça que o limite de sua filosofia está
apenas na explicitação das condições de possibilidade das formas simbólicas particulares,
dentre as quais estaria a ciência natural e a história, por exemplo, não havendo como
julgá-las com o intuito de apontar qual delas seria a mais ou menos desenvolvida em
termos evolutivos e cumulativos, neste caso, a matematização não poderia ser assumida
como procedimento modelo de valoração epistêmica das formas simbólicas. Por outro
lado, se se reconhece que somente à matemática foi possível aprofundar os conceitos em
termos funcionais, libertando a razão da percepção sensível e de compromissos
metafísicos, um tratamento teórico simétrico das formas simbólicas estaria
comprometido. Tentando resolver a questão, Donald Verene afirma:
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2. OBJETIVOS
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3. METODOLOGIA
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retornamos ao Ensaio sobre o Homem, visando especificamente entender o
funcionamento da forma simbólica história, em articulação com os seus cinco estudos
que compõem uma outra obra de maturidade, a saber, A Lógica das Ciências Culturais.
Aqui, esperamos encontrar os elementos que nos ajudarão a construir uma distinção
precisa entre Ciências Naturais e Ciências da Cultura. Partimos da suspeita que a
diferença capital entre ambas se assenta na compreensão da noção de percepção.
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https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-japones-pede-cancelamento-de-cursos-de-humanas-
em-universidades-17506865 (acesso em: 16/03/2020).
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Esta crise não é apenas teórica, mas também ética e cultural.
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Sob a influência de Natorp, Cassirer estende o escopo do método transcendental para a pluralidade das
ciências culturais, distanciando-se assim do neokantismo da Escola de Marbugo, mas, diferente do pri-
meiro, como pretendo mostrar, não assume o primado da física-matemática enquanto modelo ideal de ci-
ência. “Assim, apesar do pluralismo que Natorp introduz com sua nova perspectiva transcendental, o mo-
nismo hierárquico, próprio do cientificismo fisicalista neokantiano, segue mantendo o primado. Neste
ponto, Cassirer introduzirá uma modificação decisiva” (PORTA, 2011, p.52).
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tratamento sistemático que reúna as ciências naturais e as ciências culturais dentro de uma
concepção não fragmentada do conhecimento.
Assim, as principais contribuições do presente esforço de pesquisa giram em torno
da própria relação conceitual e metodológica que permeia esses dois grandes campos
científicos. Ao fim da pesquisa, será possível um exame mais acurado dos diversos
sentidos de objetividade que marcam as ciências, além de viabilizar a compreensão
histórica de formação de seus conceitos fundantes. Demonstraremos que o retorno aos
textos de Cassirer se justifica por sua atualidade e pertinência filosófica.
Nº 2020 2021
08 09 10 11 12 01 02 03 04 05 06 07
AT1 X X X X X X X X X X X X
AT2 X X X X X X X X X X X X
AT3 X X X X X
AT4 X X X X X X X
AT5 X X
AT6 X
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6. REFERÊNCIAS
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