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Os ruídos encontrados na construção

ARTIGO ARTICLE
de um modelo democrático e participativo de gestão hospitalar

Obstacles found in the construction


of a democratic and participatory hospital management model

Andrea Bernardes 1
Luis Carlos de Oliveira Cecílio 2
Janete R. S. Nakao 3
Yolanda D. Martinez Évora 3

Abstract A path leading to management moder- Resumo Um caminho para a modernização ge-
nization is based on an approach stressing dialog rencial tem se pautado na perspectiva mais dialó-
and discussions of the construction of a healthca- gica em torno da construção de um projeto de qua-
re enhancement project whose main characteris- lificação da assistência que tem como característi-
tic is its emphasis on joint management concepts ca importante a ênfase na gestão colegiada em to-
at all levels. This paper assesses almost ten years of dos os níveis, a partir do conceito de co-gestão. O
management by committee in a public hospital estudo visa avaliar quase dez anos de adoção do
in Rio de Janeiro State, Brazil, seeking impacts modelo colegiado de gestão em um hospital público
on its micro-policies. The intention is to identify do estado do Rio de Janeiro, buscando caracterizar
and analyze how the nursing staff experienced se houve algum impacto na sua micropolítica. O
the implantation of this management model in objetivo da pesquisa é identificar e analisar como
the hospital. Empirical matters were analyzed at a equipe de enfermagem viveu a implantação do
two levels: initially the comments of the players modelo de gestão colegiada neste hospital. O mate-
were grouped into themes, followed by cross-the- rial empírico recebeu dois níveis de tratamento
me readings that analyzed the concept of “noise”. analítico. Primeiramente, foi feito um agrupamen-
The remarks made by the respondents indicated to das falas dos atores em blocos temáticos. Já o
that this “noise” functions within the organiza- segundo nível analítico foi feito através de uma
tion, demonstrating that the selected management leitura transversalizada dos temas anteriores, ten-
process and the manner in which it was conduc- do como condutor da leitura o conceito de “ruído”.
ted are not sufficient to penetrate and intervene Notamos pelas falas dos entrevistados que estes “ruí-
in institutional micro-policies, leaving gaps be- dos” operam no interior da organização, demons-
tween the proposals set forth by this management trando que o processo gerencial adotado, da forma
1
Departamento de
model and the real situation of the workers. como vem sendo conduzido, é insuficiente para
Enfermagem, Centro
Universitário Barão de Key words Joint management, Democratic and conseguir adentrar e intervir sobre a micropolíti-
Mauá. Rua Ramos de participatory management, Management by com- ca institucional, deixando lacunas entre o que pro-
Azevedo 423. 14090-180
mittee põe o modelo de gestão colegiada e a realidade vi-
Ribeirão Preto SP.
andrea-ber@uol.com.br venciada pelos trabalhadores.
2
Universidade Federal de Palavras-chave Gestão colegiada, Gestão demo-
São Paulo.
3
crática e participativa, Colegiado de gestão
Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo.
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Bernardes, A. et al.

Introdução nominar esta tendência de “instrumental”, isso é,


ela enfatiza a implementação dos meios visando
Vive-se, hoje, um crescente processo de raciona- o alcance dos fins estabelecidos pela organiza-
lização das práticas médico-hospitalares. A me- ção, mesmo que às custas da radicalização do
dicina se integra cada vez mais na atividade eco- processo de disciplinamento e controle das prá-
nômica global; portanto, suscetível de se consti- ticas dos trabalhadores, traduzida na busca de
tuir em alvo de avaliação de custo-benefício. O modos cada vez mais eficazes de captura da au-
hospital é pensado progressivamente como em- tonomia e do autogoverno que caracterizam suas
presa e torna-se peça central do complexo médi- práticas.
co-industrial, atravessado por estratégias das Outro caminho para a modernização geren-
indústrias de medicamentos e equipamentos. cial tem se pautado na aposta de que seria possí-
Decisões cruciais para a vida hospitalar são to- vel se conseguir a modernização da gestão hospi-
madas em órgãos e instâncias externos a ele, ao talar a partir de uma perspectiva mais dialógica e
mesmo tempo em que se observa o surgimento comunicativa, apoiada na mobilização dos cole-
de uma tecnoestrutura hospitalar constituindo, tivos existentes no hospital, em torno da constru-
muitas vezes, um sistema consultivo médico/ad- ção de um projeto de qualificação da assistência.
ministração. A decomposição do ato médico glo- Tal caminho foi intensamente experimentado a
bal em atividades isoladas, diversificadas e cen- partir da década de 1990 pelo grupo que se agru-
tralizadas pela organização hospitalar, decorrente pou em torno do Laboratório de Planejamento e
da crescente especialização, coloca novos e com- Gestão (LAPA) da Unicamp7 e tem como caracte-
plexos problemas para o processo de coordena- rística importante a ênfase na gestão colegiada do
ção do trabalho de um grande número de pro- hospital em todos os níveis, a partir do conceito
fissionais que se mobilizam em torno da organi- de co-gestão8. A ênfase na co-gestão (trabalha-
zação do cuidado. Além do mais, a própria com- dores e Governo), em todos os níveis do hospital,
plexidade do hospital e seu cotidiano atravessa- tendo como dispositivo principal os colegiados
do por interesses conflitantes têm apontado, tanto de gestão, a preocupação com o verdadeiro des-
para a necessidade de se buscar referenciais teó- monte dos organogramas de recorte mais tradi-
ricos para se pensar a micropolítica hospitalar, cional, em particular as linhas de autoridade ver-
como de se experimentar novas formas de se fa- ticais que obedecem a lógica das corporações pro-
zer a sua gestão1,2,3,4,5. fissionais e o deslocamento do esforço de coorde-
Alguns caminhos têm sido seguidos na busca nação para as equipes que realizam o cuidado
de uma renovação da gestão dos hospitais. Um direto ao paciente, é o que nos autorizariam, em
deles, talvez o mais freqüente, tem sido a radica- princípio, a denominar tal modo de se fazer a
lização, digamos assim, do processo mesmo de gestão de “democrático e participativo”.
racionalização das práticas médico-hospitalares O presente estudo visa avaliar quase dez
ao apoiar e/ou reforçar, de forma expressa e in- anos de adoção deste último modo de se pen-
tencional, um ou mais dos seus componentes. sar a gestão em um hospital público, buscan-
Exemplos disso: tratar os médicos como clientes do caracterizar se houve algum impacto na sua
da organização, criando novas formas de relaci- micropolítica9, com particular ênfase no corpo
onamento hospital/médico, baseadas em explí- de enfermagem.
citos contratos bilaterais de direitos e deveres; o As questões iniciais da pesquisa foram: Quais
estreitamento da aliança da direção com o corpo aspectos gerenciais alteraram-se com a nova pro-
de enfermagem, visando a criação de mecanis- posta de gestão na percepção dos enfermeiros,
mos mais poderosos de controle dos processos técnicos, auxiliares de enfermagem e gestores?
de trabalho no hospital, em particular aqueles Quais as dificuldades enfrentadas para implan-
referentes ao acesso e utilização dos seus recur- tação do novo modelo? Como estas mudanças
sos assistenciais estratégicos (controle da agenda interferem no cotidiano da assistência de enfer-
de bloco cirúrgico, controle do acesso para inter- magem? A construção de um organograma mais
nação, etc.), expropriando-os do controle médi- horizontalizado pode contribuir para a descen-
co; a terceirização de atividades importantes do tralização do poder e para uma comunicação mais
hospital; a informatização da maioria dos pro- efetiva, tanto verticalmente, entre os diferentes
cessos administrativos e assistenciais; a forte ên- níveis hierárquicos, como lateralmente, entre as
fase na protocolização de processos e adoção de unidades que compõem a organização?
mecanismos de acreditação hospitalar, entre ou- O objetivo desta pesquisa foi identificar e
tros6. Com alguma liberdade, poderíamos de- analisar como a equipe de enfermagem viveu a
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implantação do modelo de gestão colegiada em do pelo entrevistado. Interessava-nos garantir a
um hospital público, a partir do seu dia-a-dia. inclusão de alguém da direção superior (a pró-
Pretendeu-se, através de uma investigação de ca- pria diretora do hospital e uma enfermeira que
ráter qualitativo, conhecer como as equipes vêem estivesse atuando como coordenadora de algu-
tais propostas de mudança, em particular os ma linha de cuidado, cujo sentido se verá com
possíveis impactos no seu cotidiano. Ao se fazer mais detalhe na descrição do modelo de gestão
a valorização da escuta dos membros da equipe do hospital); enfermeiros ocupando a função de
de enfermagem “da base”, ligados diretamente à coordenação de unidades de cuidado; enfermei-
assistência, comparando-a à visão dos enfermei- ros exercendo a assistência diretamente, mas sem
ros que ocupam algum lugar na direção superi- função formal de coordenação ou “chefia”, e téc-
or ou nas gerências intermediárias, buscou-se, nicos ou auxiliares de enfermagem que compõem
intencionalmente, um deslocamento do “lugar” as equipes assistenciais. Portanto, dos 43 entre-
de Governo ocupado pela direção que implan- vistados, apenas oito profissionais, os oito mé-
tou o modelo de gestão e que, por isso mesmo, dicos, não faziam parte do corpo de enferma-
tende a ver tudo conforme uma certa macrorra- gem e exerciam a função de coordenação de al-
cionalidade organizacional10. guma unidade assistencial. Na elaboração do
presente artigo, e por uma questão de espaço,
foram utilizadas apenas as falas do pessoal de
Metodologia enfermagem, ressaltando-se as diferentes percep-
ções que os diferentes profissionais têm da pro-
A investigação foi realizada em uma instituição posta de gestão que está sendo analisada, em fun-
hospitalar localizada no estado do Rio de Janei- ção do “lugar” institucional que ocupam.
ro. A escolha se justifica pelo fato do hospital ter O material empírico recebeu dois níveis de
vivenciado de maneira bastante duradoura (1993- tratamento analítico. No primeiro, as falas dos
2004) um modo de se fazer a gestão baseado em atores foram agrupadas em blocos temáticos que
princípios mais comunicativos, formalmente ex- refletiam, em boa medida, o roteiro da entrevis-
presso em arranjos organizacionais mais colegi- ta. Os temas presentes neste primeiro nível analí-
ados e descentralizados, com ênfase na busca da tico foram: a mudança, a comunicação, a toma-
participação e democratização da gestão. A du- da de decisão, o poder, o enfrentamento das difi-
ração do trabalho, superior a uma década, me- culdades. Este primeiro nível analítico e seus blo-
rece destaque, tendo em vista a tradição de des- cos temáticos já deixavam entrever a diversidade
continuidade de experiências inovadoras em ges- de pontos de vista a respeito do modelo de ges-
tão pública, em função das mudanças de admi- tão, o que impossibilitava qualquer esforço de
nistração e seus dirigentes, o que dificulta sua “síntese” avaliativa, se fosse esta a pretensão. Foi
avaliação mais consistente no tempo. tal polifonia que nos instigou a realizar o segun-
Após a autorização da instituição e aprova- do nível analítico do material e que será o foco da
ção do Comitê de Ética em Pesquisa do hospital, discussão do presente artigo.
foram agendadas e realizadas as entrevistas semi- O segundo nível analítico foi feito através de
estruturadas com os trabalhadores e gerentes uma leitura transversalizada dos temas anterio-
escolhidos para fazerem parte do estudo. As en- res, tendo como condutor da leitura o conceito
trevistas foram gravadas após autorização dos de “ruído”. O cotidiano é o lugar onde há, per-
entrevistados, sendo-lhes garantido o anonima- manentemente, mútuas invasões dos distintos
to. Os mesmos assinaram o Termo de Consenti- mundos. É, portanto, onde se produzem os “es-
mento Autorizado, conforme determinado na tranhamentos”, os “ruídos”, as “falhas” do mun-
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saú- do instituído e cheio de significados, onde os acor-
de. Foram entrevistados 43 profissionais, sendo dos e contratos existem e funcionam, e ao mes-
dezessete enfermeiros, dezoito técnicos e auxilia- mo tempo onde os instituintes impõem estra-
res de enfermagem e oito médicos, os quais esti- nhamentos, quebras, linhas de fuga, novos futu-
veram presentes e disponíveis no hospital no pe- ros possíveis em disputa11. Assim, adotamos o
ríodo da coleta de dados. conceito de “ruídos” como os elementos desto-
Foi critério de inclusão a data de admissão antes, os “estranhamentos”, as “falhas” ou con-
superior a dez anos, por julgarmos importante tradições que aparecem no processo de trabalho
que os entrevistados pudessem ter participado e que percebemos que as entrevistas pareciam
do processo de transição do modelo gerencial. O revelar com muita força.
outro critério para inclusão foi o “lugar” ocupa- Este segundo nível de análise foi se impondo
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no correr da investigação à medida que fomos foco de atenção da organização, a democratiza-


percebendo como eram importantes as diferen- ção da vida organizacional através da gestão co-
ças entre o discurso “oficial”, apresentado princi- letiva em todos os níveis, buscando sempre ga-
palmente por alguns componentes da Direção, e rantir a participação dos trabalhadores do hos-
a realidade percebida e vivenciada pelos traba- pital no processo decisório e o compromisso com
lhadores acerca do modelo de gestão colegiada. a qualidade do atendimento. Os colegiados de
Assim, aparecem na instituição, diferentes per- gestão, tanto ao nível das unidades de produção
cepções acerca do modelo de gestão adotado, que e/ou cuidado, como o colegiado de gestão mais
caracterizam a existência de falhas que provo- geral do hospital, ao congregar todos os coorde-
cam “ruídos” cotidianamente. nadores de todas as unidades, foram pensados
Tais “ruídos” são bastante expressivos quan- como instrumentos centrais para o processo de
do analisamos as falas da equipe de enferma- democratização da vida organizacional.
gem. Esses trabalhadores, especialmente os téc- O modelo de gestão do hospital passa por
nicos e auxiliares, vivenciam situações no cotidi- dois momentos principais. O primeiro vai da
ano da unidade de trabalho que divergem em formulação inicial (1993) e segue praticamente
vários aspectos das situações apontadas pelos sem ajustes até 2000. O segundo momento dura
componentes das gerências e coordenações, uma até o final da experiência, quando a diretora e
vez que estes últimos vivenciam as questões da toda sua equipe principal é exonerada no início
micropolítica das unidades de trabalho sob ou- de 2005, com a troca do executivo municipal.
tra perspectiva. No primeiro momento, as principais carac-
Podemos dizer, então, que o segundo nível terísticas do modelo, já descritas em trabalhos
analítico da investigação é um caminho que des- anteriores8 são: a adoção de um organograma
taca o dissenso, que dá voz à diferença e valoriza, horizontalizado, organizado em torno de unida-
intencionalmente, as múltiplas racionalidades des de produção ou de cuidado; a coordenação
existentes na organização. unificada das unidades de cuidado realizada por
qualquer profissional de nível universitário; a
ênfase na comunicação lateral entre os coorde-
O cenário institucional da pesquisa nadores das unidades; a constituição de um cole-
giado de gestão com a participação de todos os
Trata-se de uma unidade hospitalar integrada a coordenadores; a constituição de colegiados de
uma secretaria municipal de saúde, com vocação gestão em todas as unidades de cuidado e/ou
para atendimento de emergência e trauma, de produção; a criação de um grupo de apoio à ges-
nível terciário, com perfil de hospital geral, que tão em cada unidade de cuidado e/ou produção;
mudou muito desde 1993, quando adotou o sis- a prática do planejamento ascendente; a adoção
tema de gestão de recorte mais democrático e de uma política de gratificação por avaliação de
participativo. Duplicou sua área física, ampliou desempenho13; adoção de dispositivos de quali-
o número de atendimentos e os serviços ofereci- ficação da assistência, tais como comissão de re-
dos para a população e passou por um processo visão de óbito, comissão de prontuário, ouvido-
de profissionalização e modernização gerencial ria, entre outros arranjos.
com profundos impactos na cultura e vida orga-
nizacional. Pensamos que as importantes mu-
danças vividas pelo hospital devem ser vistas mais Resultados e discussão:
em uma relação de concomitância, do que como a enfermagem e sua fala ruidosa
desdobramento do modelo de gestão adotado.
Uma direção altamente qualificada e comprome- Como já havíamos explicitado na metodologia,
tida com a consolidação do SUS, mais uma con- no segundo nível analítico, buscamos dar desta-
juntura política municipal favorável à consoli- que para tudo que, nas falas, apontasse para
dação do papel do Estado na garantia da assis- aquilo que parece assumir um sentido oposto ao
tência aos cidadãos, talvez expliquem as melho- do pretendido pelo modelo de gestão: os ruídos.
rias observadas no hospital do que eventuais “Ruído” como o estranhamento ou não reco-
mudanças no modelo de gestão. De qualquer nhecimento das diretrizes do modelo, de forma
forma, analisar tal relação não é o objetivo do direta ou pelo silêncio dos protagonistas. Na
presente estudo. apresentação dos resultados, os entrevistados
Como afirmamos anteriormente, a mudan- foram identificados com uma sigla e o respectivo
ça no processo gerencial visava o paciente como número da entrevista, da seguinte forma: GLE
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(gerente de linha que é enfermeiro); CE (coorde- Mesmo tendo se passado mais de uma déca-
nador de unidade que é enfermeiro); E (enfer- da da implantação, alguns profissionais ainda
meiro assistencial, sem cargo de coordenação ou não aderiram ao modelo:
gerência); TE (técnico de enfermagem); AE (au- “[...] às vezes a gente sente que o funcionário,
xiliar de enfermagem). As entrevistas com os co- principalmente o meu setor que tem o maior nú-
ordenadores médicos não foram utilizadas na mero de funcionários antigos, têm uma certa difi-
elaboração do artigo, embora seja possível afir- culdade de se adaptar. Eles sempre fazem menção
mar que elas reforçam várias das percepções do ao outro tipo de gestão. São pessoas que precisam
pessoal de enfermagem. de alguém pra mandar, pra decidir [...] “ (CE1)
Tal fato nos remete a introjeção do modelo
Ruídos nas falas tradicional de gestão, que, no caso da equipe de
dos enfermeiros gerentes de linha enfermagem, há uma “chefia” que determina o
ou coordenadores de unidade trabalho a ser realizado, quem vai realizá-lo, quan-
do e com quais recursos materiais. Esse controle
Conforme tratado anteriormente, o grande exercido bloqueia a motivação e a criatividade
desafio é que se operacionalize um modelo geren- do grupo, rotinizando o trabalho. Alguns funci-
cial aberto e flexível, que incorpore a dimensão onários, especialmente os que têm maior tempo
comunicativa, a distribuição mais homogênea do de profissão, têm dificuldade de superar esse
poder, além de autonomia para decidir. No en- método instituído e acabam dificultando uma
tanto, percebemos pelas falas dos enfermeiros, forma mais participativa de gestão.
que são gerentes de linha ou coordenadores de
unidades de cuidado, que um “ruído” que opera Ruídos encontrados nas falas
no interior dessa organização é o não estabeleci- dos enfermeiros ligados à assistência
mento efetivo da comunicação lateral, ou seja, da
comunicação entre as várias unidades. O modelo de gestão do hospital preconiza a
“[...] em algumas unidades a gente tinha difi- profissionalização dos coordenadores das uni-
culdades no início e até hoje existe essa dificuldade dades para que os mesmos atuem como articu-
na comunicação lateral, então algumas resoluções ladores da equipe com vistas à garantia de uma
ainda precisam ser encaminhadas à Gerência de atenção qualificada. Os coordenadores podem
Linha ou à direção para se conseguir resolver”. ser médicos ou enfermeiros. Assim, os coorde-
(GLE3) nadores devem trabalhar com as respectivas equi-
“A comunicação lateral ainda não é efetiva, pes com um bom grau de autonomia para to-
ainda não, ela ainda não é como a gente idealizou, mada de decisões no seu dia-a-dia, estimulando
gostaria que fosse, ela ainda é muito truncada [...]” uma maior integração entre as várias profissões.
(GLM2) No entanto, emergem das falas de alguns enfer-
Um outro “ruído” que merece ser destacado é meiros ligados à assistência que:
a centralização exercida dentro de um modelo “[...] Eu tenho essa autonomia de estar inter-
“descentralizado” de gestão. ferindo, claro que dentro dos limites. Mas tem al-
“Quando o enfermeiro [...] trabalha com um gumas decisões que a gente percebe nitidamente
coordenador que é mais centralizador na caracte- que se a gente não puxar o coordenador ´espera aí
rística dele e autoritário, isso amarra muito o tra- que a gente tem que resolver isso junto´, ele decide
balho do enfermeiro”. (GLE3) sozinho. Ele decide sozinho e coloca que foi em
Percebe-se pelas entrevistas que determina- nome do grupo, que foi o grupo que resolveu”. (E2)
dos gerentes ou coordenadores mantêm práticas “[...] Quem decide tudo é a coordenadora que é
autoritárias, mesmo atuando em um modelo dito médica. Você pode ter razão, mas o que vale é a
democrático, não permitindo que as decisões se- opinião dela”. (E10).
jam tomadas pelo grupo de trabalho. Conforme podemos observar, embora a pro-
Método de gestão colegiada assenta-se na posta do modelo seja de que o coordenador da
idéia de participação e democratização das deci- unidade consiga articular os vários saberes para
sões, de forma que ninguém deveria decidir sozi- que se chegue a decisões grupais que garantam a
nho ou no lugar dos outros. Dessa forma, o fato qualidade do atendimento, ainda persiste a cen-
de se ter a centralização das decisões nas mãos de tralização das decisões no coordenador. Desse
alguns coordenadores ou gerentes, mesmo que modo, ele acaba decidindo sem que haja a parti-
em alguns casos, denota outro “ruído” nesse sis- cipação dos membros que compõem a unidade
tema gerencial. de trabalho.
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Bernardes, A. et al.

Notamos que alguns coordenadores, mes- por categorias, mas que se tenha um indivíduo
mo conhecendo os pressupostos desse modelo que seja capaz de integrar os vários profissionais
gerencial, trazem consigo uma forte resistência à que atuam na unidade. O gerente ou coordena-
relativização do poder e das decisões, especial- dor é o “animador da equipe” e deve integrar de
mente quando se trata de um profissional médi- fato todas as pessoas de forma que se consiga
co assumindo a coordenação. O paradigma he- quebrar a lógica segregadora das corporações.
gemônico da prática médica parece difícil de ser Ele deve conseguir que os membros da equipe
superado, principalmente quando se pretende conversem de forma sistemática entre si, assu-
criar novas instituições, novas formas de se fazer mindo sempre compromissos centrados na qua-
a gerência, com uma política baseada no diálo- lificação do atendimento prestado ao usuário.
go, no vínculo com as pessoas, no compartilha- Nesta perspectiva, o modelo de gestão im-
mento das responsabilidades e das decisões. plantado no hospital em estudo tem que enfren-
Dessa forma, destacamos o “ruído” presente tar uma tensão permanente entre uma concep-
nas falas dos enfermeiros quando afirmam que ção do poder como resultante da capacidade
alguns médicos são centralizadores. Tal fato nos humana de agir conjuntamente, onde a comuni-
leva a crer que estes profissionais rejeitam qual- cação, o debate e a busca de consensos para ação
quer forma de controle interno ou externo, reco- são essenciais, e outra centrada no controle, dis-
nhecendo os demais profissionais como “subor- ciplinamento, de exercício da autoridade e de
dinados” a eles. É justamente porque mantêm mando de um sobre o outro14.
uma relação de grande autonomia em relação à O fato de que as coordenações das unidades
organização que os médicos rejeitam qualquer de produção sejam ocupadas preferencialmente
“processo gerencial” que coloque em risco o sta- pelo profissional médico, por uma decisão da
tus quo atual. diretoria, mesmo que muitas vezes vá contra as
O enfermeiro tem um saber próprio, com expectativas e preferências do grupo, configura
critérios técnico-científicos de competência e va- outra tensão dentro do modelo.
lores éticos que devem ser respeitados e valoriza- Persiste sempre uma tensão entre quem deve
dos. Porém, em alguma falas dos enfermeiros ocupar a coordenação: o médico ou o enfermei-
pode-se perceber uma queixa em relação ao seu ro? Parece haver vantagens e desvantagens nos
poder de decisão, inclusive com diminuição da dois casos. No caso do médico, a permanência
autonomia para a execução do seu trabalho. por tempo limitado na instituição, somada ao
“ [...] aqui a gente é mandado, entendeu? Não fato de que alguns médicos não se interessam
tem autonomia pra decidir... Se a coordenadora pelas questões administrativas, faz com que estes
não quer que a incubadora fique naquele lugar, deleguem várias funções ao enfermeiro. Em mui-
não vai ficar naquele lugar porque ela não quer, tos casos, pode-se perceber pelos relatos, que
entendeu? Isso é um exemplo muito básico, mas formalmente quem exerce a coordenação da uni-
tem outro. Eu faço o procedimento que você viu, a dade é o médico, mas quem exerce a coordena-
implantação do cateter (epicutâneo), mas muitas ção informal (e real) é o enfermeiro, o que, afi-
vezes, eu percebo que aquele procedimento não vai nal, reproduz o modo tradicional de se fazer a
ter sucesso... E eu não sou ouvida por isso, enten- gestão do hospital.
deu? Eu tenho que fazer a minha tarefa. Se eu me “Não, eu não acho que o poder foi distribuído.
recuso é um escândalo. Elas falam alto “você tem Eu acho que o enfermeiro deveria ser ouvido um
que tentar, porque o índice de infecção tem que ser pouquinho mais. [...]O enfermeiro trabalha mui-
mínimo, tem que ser zero... Existe uma coordena- to, muito, muito, e eu acho que a coordenação
ção e ela manda entendeu?” (E10). deveria dar um pouquinho mais de chance aos
As queixas de alguns enfermeiros sobre uma enfermeiros”. (E8)
sentida perda de autonomia talvez represente a Até aqui, podemos visualizar o quanto a in-
mais marcada contradição entre o que é pregado trodução de mudanças nos modos de se fazer a
oficialmente pelos gerentes e coordenadores e o gestão terá sempre que atravessar o denso cam-
que é percebido ou vivenciado pelos trabalhado- po dos instituídos.
res. Pareceu-nos que este aspecto “escapa” aos
olhos de alguns gerentes e coordenadores, já que Ruídos nas falas dos técnicos
não vislumbram essas contradições presentes na e auxiliares de enfermagem
micropolítica.
Não faz parte dos pressupostos desse mode- No que se refere aos profissionais de nível
lo gerencial que haja coordenações ou “chefias” médio, chama-nos a atenção o fato de que eles
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aparentemente não foram alcançados pelas mu- conjunto e não o governo de um sobre os ou-
danças pretendidas por este modelo gerencial. tros. Para o sucesso de um modelo que busca
Paradoxalmente, o estudo mostrou que é neste um sentido mais comunicativo de gestão, é pon-
grupo, os situados nos níveis mais inferiores da to fundamental que haja a participação de todos
escala de autoridade do corpo de enfermagem, os envolvidos e a co-responsabilização em todos
que se nota o alheamento, um quase estranha- os sentidos. Consideramos, então, como pro-
mento das diretrizes do modelo de gestão com blemático, o fato de não haver a incorporação
intenções de participação e democratização da desses agentes, que representam um quantitati-
vida institucional. vo expressivo na vida hospitalar e que trazem
“[...]quando eu tenho alguma coisa para falar, consigo uma vivência e um potencial que devem
eu falo com a minha supervisora [...]” (TE6) ser valorizados.
“Para mim está tudo igual [...]” (AE9). Com base na análise dos “ruídos” extraídos
“Para mim não mudou nada. Não houve alte- das falas da equipe de enfermagem, identifica-
ração” (TE1). mos que o processo gerencial adotado, da forma
Assim, os técnicos e auxiliares de enferma- como vem sendo conduzido, é insuficiente para
gem continuam atuando conforme faziam no conseguir adentrar e intervir sobre a micropolí-
modelo tradicional de gestão da enfermagem, se tica institucional, deixando lacunas entre o que
remetendo ao enfermeiro da unidade sempre que propõe o modelo de gestão colegiada e a realida-
necessário. de vivenciada pelos trabalhadores.
“[...] Nós temos, por exemplo, a nossa chefe
geral e, no caso, nós levamos à ela e ela toma as
providencias”. (AE7) Conclusões
“[...] Na minha época tinha uma chefe que
tinha que responder pelo hospital inteiro, depois Como conclusões preliminares, podemos afir-
foi se dividindo, foi entrando mais chefe, qualquer mar que, apesar das várias alterações no proces-
problema pode levar para aquelas pessoas”. (TE6) so de comunicação estimulados pelo modelo,
Percebemos pelas falas que os integrantes da muito há que se fazer para que haja uma comu-
equipe de enfermagem relatam que hoje há mais nicação mais fluida entre as várias unidades do
enfermeiros a quem podem se reportar, sendo hospital. A lateralização no processo de comuni-
que são estes profissionais que têm o poder de cação ainda é incipiente. Cada equipe trabalha
decisão. Desse modo, ao contrário do que se es- isoladamente dentro do seu espaço e, muitas ve-
pera em um modelo mais participativo e demo- zes, desconhece aspectos importantes dos outros
crático, não há participação desses funcionários setores.
nos processos decisórios. A realidade é que há A tomada de decisão aparentemente está au-
agentes com distintas cotas de poder, diferentes mentada nas unidades de trabalho, segundo o
capacidades de análise e de intervenção na reali- relato de alguns entrevistados. Os profissionais
dade e com diversos graus de autonomia pessoal que ocupam cargos de gerência de linha e coor-
e social12. denação sentem-se com maior autonomia para
Assim, chamamos a atenção para a baixa ou resolver problemas internos ao hospital. Con-
nula inserção do pessoal de nível técnico de en- traditoriamente, os mesmos atores queixam-se
fermagem nos espaços colegiados de decisão, já da falta de governabilidade tanto para dar pe-
que quase não têm poder nenhum, nem tam- quenas respostas no cotidiano, como para as-
pouco a capacidade de intervir nos problemas e suntos cuja decisão depende da prefeitura muni-
decisões no âmbito da sua unidade de trabalho, cipal. Isto ocorre porque a instituição, que é uma
ou menos ainda, ao nível de instituição como autarquia pública, necessita do aval do prefeito
um todo. Os trabalhadores de enfermagem de para os aspectos que envolvem os recursos hu-
nível médio ainda têm como referência de auto- manos. Entendemos ser este um aspecto negati-
ridade a sua chefia de enfermagem direta, não vo que vem prejudicar a consolidação do mode-
havendo em suas manifestações nenhuma refe- lo de gestão adotado, uma vez que este prevê
rência a qualquer coisa parecida com decisões autonomia para decidir, em todos os níveis, in-
colegiadas, compartilhadas, nos arranjos insti- clusive no que tange à gestão de pessoal. Portan-
tucionais pensados para tanto, quais sejam, os to, é discutível a viabilidade da descentralização
colegiados de gestão das unidades. do poder quando não há plena autonomia por
Salientamos que o que se pretende no mode- parte da organização para gerenciar os recursos
lo gerencial participativo é que haja um governo necessários para garantir o cuidado.
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Bernardes, A. et al.

Por outro lado, a baixa participação do pes- fissional como, por exemplo, o enfermeiro no
soal de enfermagem de nível médio nos espaços cargo de coordenação.
colegiados reproduz a hierarquia na equipe de Há que se ressaltar, no entanto, que mesmo
enfermagem, na medida em que o poder de deci- com as dificuldades encontradas na implantação
são fica ainda muito concentrado no enfermei- do modelo de gestão colegiada, um número ex-
ro, reproduzindo traços do estilo tradicional de pressivo dos profissionais considera que houve
gestão, detectável tanto na dificuldade de partici- mudanças positivas no hospital, em particular a
pação nas decisões, como no servilismo, na re- duplicação da área física, aumento do número de
núncia aos próprios desejos e idéias por parte leitos, uma quantidade muito maior de serviços
dos trabalhadores de menor escolaridade. oferecidos à população, com tecnologias avança-
Cabe salientar que, apesar dessa desarticula- das e um faturamento que possibilita inclusive o
ção dos técnicos e auxiliares de enfermagem em pagamento trimestral de incentivo financeiro,
relação ao modelo adotado, os mesmos conse- baseado na avaliação de desempenho, a todos os
guem visualizar que houve algum incremento da profissionais contratados. Como afirmamos an-
autonomia para decidir no seu espaço de traba- tes, pensamos que estas melhorias devam ser vis-
lho, ainda que sejam outros profissionais que tas mais como simultâneas do que como desdo-
utilizem destas ferramentas da gestão. Assim bramento necessário de um modelo de gestão que,
como os funcionários de nível médio, todos os em princípio, apostou numa gestão mais demo-
profissionais que atuam no período noturno crática. Pensamos que os “ruídos” identificados
também se sentem desvinculados desse modo de evidenciaram que há contradições no processo
se fazer a gestão, na medida em que têm pouco gerencial que necessitam ser revistas.
ou nenhum contato com o coordenador da uni- Como afirmamos na metodologia, a ênfase
dade ou com a gerência de linha, visto que os na leitura que fazemos neste artigo está focalizada
coordenadores e os gerentes permanecem na ins- em uma “leitura do dissenso”, a partir da valori-
tituição apenas no período diurno e não assu- zação das diferentes formas de como “o modelo
mem a responsabilidade total pelo plantão no- de gestão” é vivido, percebido e significado pelos
turno. Tal fato acarreta em informações não re- trabalhadores, em particular pelo pessoal de en-
cebidas ou distorcidas e na não participação des- fermagem. Sem desconhecer que o material em-
ses funcionários nas decisões relativas à sua pró- pírico permite apontar uma série de pontos posi-
pria unidade de trabalho ou à instituição de ma- tivos, em particular quando se observa a fala dos
neira geral. Isto contribui para a descaracteriza- dirigentes ou de alguns coordenadores, intencio-
ção do modelo gerencial, uma vez que os enfer- nalmente voltamos nossa atenção para o movi-
meiros supervisores e os demais funcionários que mento de diluição, dispersão ou de borramento
trabalham no noturno continuam executando que “o” modelo - que traz a promessa de impri-
as mesmas atividades e da mesma forma que mir maior racionalidade no modo de se fazer a
faziam no modelo anterior. gestão do hospital - vai sofrendo ao nível da mi-
A maioria das demais coordenações é ocupa- cropolítica do hospital, ali onde se cruzam os po-
da por médicos que não cumprem seus horários deres instituídos e se vive a dinâmica das relações
de trabalho na instituição, o que gera conflitos entre os atores que habitam a organização. As
entre as equipes e entre as diferentes categorias falas do pessoal de enfermagem foram particu-
profissionais. Freqüentemente são delegadas ao larmente ricas para caracterizar este movimento.
enfermeiro atribuições que deveriam ser execu- Uma conclusão, então, é de que “o” modelo de
tadas pelos próprios coordenadores, já que estes gestão, enquanto um encadeamento de dispositi-
permanecem pouco tempo na instituição. Por vos, de lógicas e de sentidos bem precisos existe
outro lado, a dificuldade do médico atuar como mais como um discurso racional portado pela
coordenador pode ser explicada pelo caráter au- direção do que uma compreensão compartilha-
toritário e centralizador de sua prática. Aqueles da pelo conjunto dos atores organizacionais. Tal
que conseguem lidar com as questões do cotidi- discurso vai sendo transformado, reelaborado e,
ano em condições mais horizontais com as de- no caso dos trabalhadores mais subalternos, ri-
mais categorias normalmente conseguem mais gorosamente ignorado na medida em que não
adesão dos trabalhadores e, portanto, menos consegue ou conseguiu, na experiência analisada,
conflitos no seu ambiente de trabalho. Porém, transformar efetivamente os seus cotidianos, sub-
notamos que o poder médico ainda é bastante metidos que ficam ao poder de suas chefias.
forte no hospital onde se deu o estudo. A hege- Uma outra conclusão do estudo poderia ser
monia médica prejudica a inserção de outro pro- no sentido de interrogarmos a potência de ar-
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Ciência & Saúde Coletiva, 12(4):861-870, 2007


ranjos institucionais formais como o colegiado caracteriza-se como parcialmente colegiado, des-
de gestão (CG) para se democratizar efetivamente centralizado ou participativo.
as relações, ou, no mínimo, para reduzir as tão Para finalizar estas conclusões, construídas a
marcadas assimetrias de poder que existem na partir da opção metodológica de colocar um foco
organização hospitalar. intencional na escuta do dissenso e na polifonia
Ora, o CG foi pouco problematizado nas fa- dos atores organizacionais, vamos nos reportar
las dos vários profissionais entrevistados. O si- a uma reflexão de Sahlins15, quando ele afirma
lêncio sobre o CG pode ser um bom indicativo do que as diferenças de percepções e significados,
quanto a gestão colegiada e participativa preten- que um estudo como este que relatamos capta,
dida não foi concretizada plenamente. O CG não expressam os valores e interesses posicionais dos
aparece como um espaço importante de demo- falantes em uma certa ordem sociopolítica. As
cratização da vida institucional. Ele não parece se discrepâncias nas falas refletem posições discre-
constituir, na experiência dos atores que estão vi- pantes dos atores no espaço social que é o hospi-
venciando há dez anos um “modelo de gestão tal, bem como sua experiência neste universo. O
colegiada”, uma experiência que contribua para a que as pessoas dizem não é aleatório do ponto
inovação da micropolítica do hospital. Os profis- de vista de sua existência social. Por outro lado,
sionais parecem ainda estar muito referenciados ele alerta para que não imaginemos que a pre-
às suas corporações, construindo sua identidade sença de vozes dissidentes seja assistemática. A
na referência às “outras” corporações. Praticamen- consciência de uma diferença é a consciência de
te não aparece nas várias falas o conceito de “equi- uma conexão, diz ele apoiado em Cassirer. Ha-
pe”, a preocupação com a construção comparti- veria, assim, uma relação ou uma trama que, de
lhada do cuidado ou, mesmo, indícios de que os alguma forma, entretece os pontos de vista con-
espaços colegiados estejam facilitando a constru- flitivos. Este é um dos desafios que o hospital
ção de coletivos mais solidários. As corporações coloca para aqueles que se propõem a compre-
parecem ainda muitos auto-referenciadas. Neste ender melhor seu funcionamento: aprender a es-
sentido, toda a expectativa posta no funciona- cutar o diferente, o singular, o dissenso e, tam-
mento do CG, enquanto construto teórico que bém, a possibilidade de linhas de fuga, de cria-
aspira reinventar as relações na organização, não ção, de protagonismo dos atores, mas, ao mes-
se cumpre. Os mecanismos de coordenação per- mo tempo, a sua relação com uma complexa rede
manecem muito referenciados às corporações11. de instituídos que teima em reproduzir modos
Desse modo, entendemos que o modelo gerencial de se construir relações que julgamos tão neces-
adotado, por todas as dificuldades ressaltadas, sário e urgente mudar.
870
Bernardes, A. et al.

Colaboradores

A Bernardes procedeu à coleta de dados, bem


como trabalhou na concepção e na redação final
do estudo. LCO Cecílio trabalhou na concepção
e na redação final do estudo. JRS Nakao e YDM
Évora colaboraram na concepção e na redação
final do estudo.

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Versão final apresentada em 24/11/2006

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