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ARTIGO ARTICLE
de um modelo democrático e participativo de gestão hospitalar
Andrea Bernardes 1
Luis Carlos de Oliveira Cecílio 2
Janete R. S. Nakao 3
Yolanda D. Martinez Évora 3
Abstract A path leading to management moder- Resumo Um caminho para a modernização ge-
nization is based on an approach stressing dialog rencial tem se pautado na perspectiva mais dialó-
and discussions of the construction of a healthca- gica em torno da construção de um projeto de qua-
re enhancement project whose main characteris- lificação da assistência que tem como característi-
tic is its emphasis on joint management concepts ca importante a ênfase na gestão colegiada em to-
at all levels. This paper assesses almost ten years of dos os níveis, a partir do conceito de co-gestão. O
management by committee in a public hospital estudo visa avaliar quase dez anos de adoção do
in Rio de Janeiro State, Brazil, seeking impacts modelo colegiado de gestão em um hospital público
on its micro-policies. The intention is to identify do estado do Rio de Janeiro, buscando caracterizar
and analyze how the nursing staff experienced se houve algum impacto na sua micropolítica. O
the implantation of this management model in objetivo da pesquisa é identificar e analisar como
the hospital. Empirical matters were analyzed at a equipe de enfermagem viveu a implantação do
two levels: initially the comments of the players modelo de gestão colegiada neste hospital. O mate-
were grouped into themes, followed by cross-the- rial empírico recebeu dois níveis de tratamento
me readings that analyzed the concept of “noise”. analítico. Primeiramente, foi feito um agrupamen-
The remarks made by the respondents indicated to das falas dos atores em blocos temáticos. Já o
that this “noise” functions within the organiza- segundo nível analítico foi feito através de uma
tion, demonstrating that the selected management leitura transversalizada dos temas anteriores, ten-
process and the manner in which it was conduc- do como condutor da leitura o conceito de “ruído”.
ted are not sufficient to penetrate and intervene Notamos pelas falas dos entrevistados que estes “ruí-
in institutional micro-policies, leaving gaps be- dos” operam no interior da organização, demons-
tween the proposals set forth by this management trando que o processo gerencial adotado, da forma
1
Departamento de
model and the real situation of the workers. como vem sendo conduzido, é insuficiente para
Enfermagem, Centro
Universitário Barão de Key words Joint management, Democratic and conseguir adentrar e intervir sobre a micropolíti-
Mauá. Rua Ramos de participatory management, Management by com- ca institucional, deixando lacunas entre o que pro-
Azevedo 423. 14090-180
mittee põe o modelo de gestão colegiada e a realidade vi-
Ribeirão Preto SP.
andrea-ber@uol.com.br venciada pelos trabalhadores.
2
Universidade Federal de Palavras-chave Gestão colegiada, Gestão demo-
São Paulo.
3
crática e participativa, Colegiado de gestão
Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo.
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Bernardes, A. et al.
Notamos que alguns coordenadores, mes- por categorias, mas que se tenha um indivíduo
mo conhecendo os pressupostos desse modelo que seja capaz de integrar os vários profissionais
gerencial, trazem consigo uma forte resistência à que atuam na unidade. O gerente ou coordena-
relativização do poder e das decisões, especial- dor é o “animador da equipe” e deve integrar de
mente quando se trata de um profissional médi- fato todas as pessoas de forma que se consiga
co assumindo a coordenação. O paradigma he- quebrar a lógica segregadora das corporações.
gemônico da prática médica parece difícil de ser Ele deve conseguir que os membros da equipe
superado, principalmente quando se pretende conversem de forma sistemática entre si, assu-
criar novas instituições, novas formas de se fazer mindo sempre compromissos centrados na qua-
a gerência, com uma política baseada no diálo- lificação do atendimento prestado ao usuário.
go, no vínculo com as pessoas, no compartilha- Nesta perspectiva, o modelo de gestão im-
mento das responsabilidades e das decisões. plantado no hospital em estudo tem que enfren-
Dessa forma, destacamos o “ruído” presente tar uma tensão permanente entre uma concep-
nas falas dos enfermeiros quando afirmam que ção do poder como resultante da capacidade
alguns médicos são centralizadores. Tal fato nos humana de agir conjuntamente, onde a comuni-
leva a crer que estes profissionais rejeitam qual- cação, o debate e a busca de consensos para ação
quer forma de controle interno ou externo, reco- são essenciais, e outra centrada no controle, dis-
nhecendo os demais profissionais como “subor- ciplinamento, de exercício da autoridade e de
dinados” a eles. É justamente porque mantêm mando de um sobre o outro14.
uma relação de grande autonomia em relação à O fato de que as coordenações das unidades
organização que os médicos rejeitam qualquer de produção sejam ocupadas preferencialmente
“processo gerencial” que coloque em risco o sta- pelo profissional médico, por uma decisão da
tus quo atual. diretoria, mesmo que muitas vezes vá contra as
O enfermeiro tem um saber próprio, com expectativas e preferências do grupo, configura
critérios técnico-científicos de competência e va- outra tensão dentro do modelo.
lores éticos que devem ser respeitados e valoriza- Persiste sempre uma tensão entre quem deve
dos. Porém, em alguma falas dos enfermeiros ocupar a coordenação: o médico ou o enfermei-
pode-se perceber uma queixa em relação ao seu ro? Parece haver vantagens e desvantagens nos
poder de decisão, inclusive com diminuição da dois casos. No caso do médico, a permanência
autonomia para a execução do seu trabalho. por tempo limitado na instituição, somada ao
“ [...] aqui a gente é mandado, entendeu? Não fato de que alguns médicos não se interessam
tem autonomia pra decidir... Se a coordenadora pelas questões administrativas, faz com que estes
não quer que a incubadora fique naquele lugar, deleguem várias funções ao enfermeiro. Em mui-
não vai ficar naquele lugar porque ela não quer, tos casos, pode-se perceber pelos relatos, que
entendeu? Isso é um exemplo muito básico, mas formalmente quem exerce a coordenação da uni-
tem outro. Eu faço o procedimento que você viu, a dade é o médico, mas quem exerce a coordena-
implantação do cateter (epicutâneo), mas muitas ção informal (e real) é o enfermeiro, o que, afi-
vezes, eu percebo que aquele procedimento não vai nal, reproduz o modo tradicional de se fazer a
ter sucesso... E eu não sou ouvida por isso, enten- gestão do hospital.
deu? Eu tenho que fazer a minha tarefa. Se eu me “Não, eu não acho que o poder foi distribuído.
recuso é um escândalo. Elas falam alto “você tem Eu acho que o enfermeiro deveria ser ouvido um
que tentar, porque o índice de infecção tem que ser pouquinho mais. [...]O enfermeiro trabalha mui-
mínimo, tem que ser zero... Existe uma coordena- to, muito, muito, e eu acho que a coordenação
ção e ela manda entendeu?” (E10). deveria dar um pouquinho mais de chance aos
As queixas de alguns enfermeiros sobre uma enfermeiros”. (E8)
sentida perda de autonomia talvez represente a Até aqui, podemos visualizar o quanto a in-
mais marcada contradição entre o que é pregado trodução de mudanças nos modos de se fazer a
oficialmente pelos gerentes e coordenadores e o gestão terá sempre que atravessar o denso cam-
que é percebido ou vivenciado pelos trabalhado- po dos instituídos.
res. Pareceu-nos que este aspecto “escapa” aos
olhos de alguns gerentes e coordenadores, já que Ruídos nas falas dos técnicos
não vislumbram essas contradições presentes na e auxiliares de enfermagem
micropolítica.
Não faz parte dos pressupostos desse mode- No que se refere aos profissionais de nível
lo gerencial que haja coordenações ou “chefias” médio, chama-nos a atenção o fato de que eles
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Por outro lado, a baixa participação do pes- fissional como, por exemplo, o enfermeiro no
soal de enfermagem de nível médio nos espaços cargo de coordenação.
colegiados reproduz a hierarquia na equipe de Há que se ressaltar, no entanto, que mesmo
enfermagem, na medida em que o poder de deci- com as dificuldades encontradas na implantação
são fica ainda muito concentrado no enfermei- do modelo de gestão colegiada, um número ex-
ro, reproduzindo traços do estilo tradicional de pressivo dos profissionais considera que houve
gestão, detectável tanto na dificuldade de partici- mudanças positivas no hospital, em particular a
pação nas decisões, como no servilismo, na re- duplicação da área física, aumento do número de
núncia aos próprios desejos e idéias por parte leitos, uma quantidade muito maior de serviços
dos trabalhadores de menor escolaridade. oferecidos à população, com tecnologias avança-
Cabe salientar que, apesar dessa desarticula- das e um faturamento que possibilita inclusive o
ção dos técnicos e auxiliares de enfermagem em pagamento trimestral de incentivo financeiro,
relação ao modelo adotado, os mesmos conse- baseado na avaliação de desempenho, a todos os
guem visualizar que houve algum incremento da profissionais contratados. Como afirmamos an-
autonomia para decidir no seu espaço de traba- tes, pensamos que estas melhorias devam ser vis-
lho, ainda que sejam outros profissionais que tas mais como simultâneas do que como desdo-
utilizem destas ferramentas da gestão. Assim bramento necessário de um modelo de gestão que,
como os funcionários de nível médio, todos os em princípio, apostou numa gestão mais demo-
profissionais que atuam no período noturno crática. Pensamos que os “ruídos” identificados
também se sentem desvinculados desse modo de evidenciaram que há contradições no processo
se fazer a gestão, na medida em que têm pouco gerencial que necessitam ser revistas.
ou nenhum contato com o coordenador da uni- Como afirmamos na metodologia, a ênfase
dade ou com a gerência de linha, visto que os na leitura que fazemos neste artigo está focalizada
coordenadores e os gerentes permanecem na ins- em uma “leitura do dissenso”, a partir da valori-
tituição apenas no período diurno e não assu- zação das diferentes formas de como “o modelo
mem a responsabilidade total pelo plantão no- de gestão” é vivido, percebido e significado pelos
turno. Tal fato acarreta em informações não re- trabalhadores, em particular pelo pessoal de en-
cebidas ou distorcidas e na não participação des- fermagem. Sem desconhecer que o material em-
ses funcionários nas decisões relativas à sua pró- pírico permite apontar uma série de pontos posi-
pria unidade de trabalho ou à instituição de ma- tivos, em particular quando se observa a fala dos
neira geral. Isto contribui para a descaracteriza- dirigentes ou de alguns coordenadores, intencio-
ção do modelo gerencial, uma vez que os enfer- nalmente voltamos nossa atenção para o movi-
meiros supervisores e os demais funcionários que mento de diluição, dispersão ou de borramento
trabalham no noturno continuam executando que “o” modelo - que traz a promessa de impri-
as mesmas atividades e da mesma forma que mir maior racionalidade no modo de se fazer a
faziam no modelo anterior. gestão do hospital - vai sofrendo ao nível da mi-
A maioria das demais coordenações é ocupa- cropolítica do hospital, ali onde se cruzam os po-
da por médicos que não cumprem seus horários deres instituídos e se vive a dinâmica das relações
de trabalho na instituição, o que gera conflitos entre os atores que habitam a organização. As
entre as equipes e entre as diferentes categorias falas do pessoal de enfermagem foram particu-
profissionais. Freqüentemente são delegadas ao larmente ricas para caracterizar este movimento.
enfermeiro atribuições que deveriam ser execu- Uma conclusão, então, é de que “o” modelo de
tadas pelos próprios coordenadores, já que estes gestão, enquanto um encadeamento de dispositi-
permanecem pouco tempo na instituição. Por vos, de lógicas e de sentidos bem precisos existe
outro lado, a dificuldade do médico atuar como mais como um discurso racional portado pela
coordenador pode ser explicada pelo caráter au- direção do que uma compreensão compartilha-
toritário e centralizador de sua prática. Aqueles da pelo conjunto dos atores organizacionais. Tal
que conseguem lidar com as questões do cotidi- discurso vai sendo transformado, reelaborado e,
ano em condições mais horizontais com as de- no caso dos trabalhadores mais subalternos, ri-
mais categorias normalmente conseguem mais gorosamente ignorado na medida em que não
adesão dos trabalhadores e, portanto, menos consegue ou conseguiu, na experiência analisada,
conflitos no seu ambiente de trabalho. Porém, transformar efetivamente os seus cotidianos, sub-
notamos que o poder médico ainda é bastante metidos que ficam ao poder de suas chefias.
forte no hospital onde se deu o estudo. A hege- Uma outra conclusão do estudo poderia ser
monia médica prejudica a inserção de outro pro- no sentido de interrogarmos a potência de ar-
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Colaboradores
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Versão final apresentada em 24/11/2006