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SALGADO, Tiago2
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/Minas Gerais
Introdução
Cada vez mais as mídias participam dos modos como nos relacionamos, não
apenas intermediando esses processos, mas também os constituindo e os moldando.
Quem somos ou o que vamos nos tornando (nosso devir) são questões que podem e devem
ser respondidas à luz do fenômeno de intensa preferência pelos meios de informação e
comunicação como modos privilegiados de interação, nomeado como midiatização
(BRAGA, 2006).
Nesse sentido, os diferentes modos de ser e estar no mundo, ou seja, os processos
de subjetivação, atrelam-se crescentemente às tecnologias infocomunicacionais,
sobretudo as digitais e online. O uso recorrente desses meios evidencia o intenso acesso
cotidiano a variadas produções textuais e imagéticas que se fazem presente e circulam em
diversos aparatos técnicos. Estes dispositivos midiáticos, como iremos compreender ao
1
Trabalho apresentado no GT Redes Sociais e Tecnologias, do III Simpósio ArTecnologia, 2016.
2
Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista pela CAPES. Doutorado sanduíche no GSPR da EHESS (Paris,
França). Pesquisador pelo Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCon/UFMG) vinculado
ao Centro de Convergência de Novas Mídias (CCNM/UFMG). E-mail: tigubarcelos@gmail.com.
longo deste trabalho, enredam seres vivos (humanos) e suas relações mútuas, bem como
entrelaçam relações entre humanos e não humanos. Estes últimos, de maneira gradual,
assumem o controle daquilo que visualizamos em nossas telas, sejam elas do computador,
do smartphone ou do tablet que utilizamos.
Dessa maneira, os conteúdos que a nós se apresentam não são aleatórios, mas
fortemente sugeridos por sistemas de recomendação algorítmica que se fundamentam nas
maneiras pelas quais agimos online e nos rastros digitais deixados por nossas ações.
Estocados em bancos de dados e novamente cruzados com um gigantesco volume de
informações arquivadas (Big Data), nossos dados pessoais servem para a confecção e
delimitação de perfis comerciais que visam nos sugerir aquilo que devemos consumir
(BRUNO, 2012, 2013, 2016).
Nesta lógica capitalista, intensamente vinculada à cálculos matemáticos, a
subjetividade deixaria de se produzir pela diferença e passaria a ser produzida pelo
achatamento de preferências, previstas por sistemas de recomendação algorítmica. Neste
controle algorítmico, o individual cederia lugar ao dividual, como destaca Deleuze
(1992), uma vez que o sujeito passa a ser fracionado em conjuntos de dados que servem
de amostra e manipulação (no sentido manual do termo) por empresas que visam um
consumo calculado e previsível, em que nada parece escapar à antecipação de condutas
em função do que se fez e do que se pode fazer online.
Em vista disso, este trabalho procura investigar como a ação algorítmica em
dispositivos midiáticos online conforma subjetividades numéricas por processos de
dessubjetivação. Assim sendo, buscamos caracterizar os meios de informação e
comunicação como dispositivos midiáticos, especificando a ação algorítmica nesses
dispositivos. Igualmente, intentamos atentar para as subjetividades numéricas, efeitos
decorrentes do tensionamento entre os processos de subjetivação e dessujetivação
implicados nas relações entre humanos e dispositivos.
Para tanto, organizamos este texto em mais quatro seções. A primeira delas se
dedica à conceituação de dispositivos midiáticos online, recorrendo principalmente aos
trabalhos desenvolvidos por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben. A
segunda seção se volta para a definição do termo “algoritmo” e como os dispositivos
midiáticos online se orientam por uma lógica algorítmica, de controle dos corpos e das
subjetividades. Em seguida, a terceira parte especifica o que entendemos por
subjetividades numéricas e como a produção delas está atrelada ao tensionamento entre
processos de subjetivação e dessubjetivação operados pelos dispositivos midiáticos
online. Por fim, apresentamos algumas considerações finais que retomam o que
desenvolvemos neste artigo e alguns breves apontamentos para investigações futuras.
Essa noção sintetiza, conforme destaca Castro (2016), o nexo entre esses
elementos heterogêneos mencionados por Foucault (1996), os quais se inscrevem nas
articulações entre poder e saber. Esse enredamento de linhas, as quais compõem o
dispositivo, é especificado por Deleuze (2003), quem aponta quatro dimensões distintas
que o integram, como sistematizam Alzamora e Silva (2014): a) Linhas ou curvas de
visibilidade e de enunciação: produzem formas de ver e de se falar a respeito de algo; b)
Linhas de forças: referem-se à dimensão assimétrica do poder e estabelecem jogos
estratégicos de poder; c) Linhas de subjetivação: remetem à subjetividade e à abertura de
dinâmicas criativas e ao potencial de modificação e rompimento com o dispositivo de
origem; e d) Linhas de brecha, fissura ou fratura: oriundas das linhas de subjetivação e
concorrem para a transformação do dispositivo.
Esses fios explicitados por Deleuze (2003) reforçam a dimensão multidimensional
abordada por Foucault (1996) e revelam a articulação entre o visível e o não visível ou
pouco visível, bem como entre o dito e o não dito. Nas palavras do primeiro, o dispositivo
diz respeito a uma meada, a um conjunto de múltiplas linhas de natureza distintas. Estas
linhas revelam ainda o cruzamento entre elementos materiais (suportes) e imateriais
(sentidos e discursos). Nesse tensionamento de pares complementares (visível/não
visível, dito/não dito, material/não material), estão implicados jogos de poder, os quais
remetem à dimensão assimétrica própria às linhas de força que conformam o dispositivo,
as quais, igualmente, atuam na produção de subjetividades.
As subjetividades são produzidas, nesse sentido, no entrelaçamento entre seres
vivos (humanos) e dispositivos (não humanos), como defende Agamben (2005). Segundo
ele, o dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar,
determinar, interceptar, modelar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os
discursos dos seres viventes” (Agamben, 2005, p. 13). Ao ordenar e dispor os elementos
que o tecem, o dispositivo modela as experiências, operando como máquina de produzir
subjetivações. Contudo, na atual fase do capitalismo, tal como sublinha este pensador, os
dispositivos não agem mais pela produção de um sujeito, mas por processos que podem
ser nomeados como de dessubjetivação.
Agamben (2005) exemplifica esses processos de dessubjetivação, que conferem
abstração às relações pessoas, com dispositivos midiáticos, sobretudo, ao mencionar o
uso do celular. Ao usá-lo, o sujeito se torna um número por meio do qual ele pode ser
controlado, assim como o telespectador passa a ser índice de audiência. Retomaremos
este aspecto e o aprofundaremos na terceira seção deste trabalho, quando atentaremos
para as sociedades de controle descritas por Deleuze (1992).
Por ora, cabe completarmos, de acordo com essas perspectivas que temos
abordado, que as mídias podem ser consideradas como dispositivos por operarem como
matrizes que ordenam sentidos. Conforme indica Mouillaud (2002), o dispositivo
distribui e organiza elementos materiais e imateriais visando constituir uma rede de
relações que orientam o sentido. Como ele elucida, “os dispositivos estão encaixados uns
nos outros” (Mouillaud, 2002, p. 32) e “não impõe ao mundo apenas uma interpretação
hegemônica dos acontecimentos, mas a própria forma do acontecimento” (Mouillaud,
2002, p. 32).
Os dispositivos midiáticos são, dessa maneira, matrizes que impõem formas aos
textos, apresentando elementos estáveis que possibilitam a ordenação do sentido e a
estruturação do tempo e do espaço, bem como pertencem a lugares institucionalizados,
ou seja, a instituições de poder e saber (Mouillaud, 2002; Alzamora; Silva, 2014). De
modo mais claro, os dispositivos midiáticos são um meio em que relações de
agendamento são construídas, de modo a realizar a gestão da dimensão comunicacional
das práticas coletivas (Antunes; Vaz, 2006).
A fim de clarear este argumento, pensemos em um aplicativo de leitura pelo
celular (smartphone). Ao abrirmos esse aplicativo, podemos identificar um livro ou um
jornal em função de elementos estáveis que eles apresentam. O livro se ordena por
capítulos, por uma capa. O jornal se organiza, por sua vez, por títulos, colunas, imagens,
entre outros itens que concorrem para a sua identificação. O celular, por seu turno – e
podemos incluir os computadores (desktops, laptops e notebooks) e os tablets – tomado
como dispositivo, refere-se aos vários fios que o enredam, como sua materialidade
(elementos físicos que o compõem) e as imaterialidades (sinais luminosos, rede de
telefonia, frequências, luminosidade etc.). Além disso, o celular é composto pelos
discursos que o atravessam, como as produções textuais e imagéticas que por ele circulam
e a tematização desses conteúdos nos aplicativos de “redes sociais” nele instalados, que
reconfiguram os sentidos de origem das mensagens e produzem outros à medida que as
conversações pessoais acontecem.
Ademais, cada vez mais digitais e com acesso à internet, os dispositivos
midiáticos online, operam por cálculos matemáticos que atuam na recomendação,
classificação, seleção, filtragem e visibilização de conteúdos em nossas telas. Os
algoritmos, essas fórmulas matemáticas que seguem protocolos para a execução de uma
tarefa específica (Gillespie, 2014a, 2014b; Manovich, 2015a, 2015b), agem na
configuração de condutas e preferências e na antecipação delas. Tudo isso se dá em
função da manipulação e cruzamento de dados pessoais estocados em imensos e
complexos bancos de dados que traçam perfis que permitem a sugestão de conteúdos
“adequados” e “adaptados” a cada pessoa (Manovich, 2015a, 2015b; Bruno, 2012, 2013,
2016; Jurno, 2016) que utiliza as plataformas midiáticas online (Gillespie, 2010), como o
YouTube, o Facebook, o Twitter, entre outras.
O fato de um conteúdo estar visível ou pouco visível nesses dispositivos
midiáticos online se relaciona às maneiras como agimos neles, seja acessando conteúdos
por tais ou tais aplicativos, inscrevendo-nos em canais no YouTube, criando um perfil no
Twitter, comentando ou curtindo postagens no Facebook, entre tantas outras
possibilidades. Desse modo, conteúdos com os quais nos associamos tendem a ser mais
recomendados a nós, pois as contas feitas pelos algoritmos se baseiam diretamente nos
rastros dessas ações. Esclareceremos este ponto a seguir.
Assim, nessa interseção entre dispositivos midiáticos online e pessoas que os
utilizam, conjugada com ações algorítmicas, as subjetividades são produzidas, como
vimos segundo Agamben (2005), não mais simplesmente por processo de subjetivação,
mas por processos de dessubjetivação. Antes, entretanto, de adentramos neste ponto de
produção de subjetividades numéricas, compete-nos clarearmos a lógica algorítmica dos
dispositivos midiáticos online e seu atrelamento à condição capitalista que é condição
para o que Deleuze (1992) nomeia como “sociedades de controle”, em que a vida é
reduzida à sua dimensão numérica.
Considerações
ANTUNES, Elton; VAZ, Paulo B. Mídia: um aro, um halo e um elo. In: GUIMARÃES,
César; FRANÇA, Vera. Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006. p. 43-60.
DELEUZE, Gilles. Qu’est-ce q’un dispositf ? In: DELEUZE, Gilles. Deux régimes de
fous: textes et entretiens 1975-1995. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. Cap. 50,
p. 316-325.
GILLESPIE, Tarleton. Facebook’s algorithm – why our assumptions are wrong, and our
concerns are right. Culture Digitally. 04 de julho de 2014. 2014a. Disponível em:
<http://culturedigitally.org/2014/07/facebooks-algorithm-why-our-assumptions-are-
wrong-and-our-concerns-are-right/>. Último acesso em: 15 nov. 2016.
GILLESPIE, Tarleton. The politics of ‘platforms’. New Media & Society, v. 12, n. 3,
p. 347-364, mai. 2010.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34,
2012.