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Geen Texto 3 —Conto (fragmento) Este 6 um fragmento de um conto de Liev Tolst6i, escritor russo que resolveu dar voz a um cava- lo... Isso mesmo! Trata-se das memdrias de um cavalo que passa longo tempo observando o compor- tamento das pessoas e os valores do ser humano. Leia-o: O diabo e outras histérias [...] Era inverno, época de festas. Nao me deram nem de comer nem de beber durante o dia inteiro. Fiquei sabendo depois que aquilo acontecera porque 0 Cavalatig6 estava bébado. Naquele mesmo dia, 0 chefe velo & minha baia, deu pela falta de ragao e foi-se embora xingando com ‘08 piores nomes o cavalarigo, que néo estava ali. No dia seguinte, acompanhado de um pedo, 0 cavalarico trouxe feno a nossa bala; notel que ele estava especialmente palido, abatido, tinha nas costas longas algo significativo que despertava piedade, Ele atirou feno por cima da grade, com raiva; eu ia metendo a cabeca em seu ombro, mas ele deu um murro tao dolorido no meu focinho, ‘que me fez saltar pra tras. E ainda por cima chutou-me a barriga com a bota. ~ Nao fosse esse lazarento, nada disso tinha acontecido. ~ Mas 0 que aconteceu? ~ perguntou o outro cavalarico. ~ 0s potros do conde ele ndo inspeciona, mas este ele examina duas vezes por dia, ~ Seré que deram 0 malhado mesmo pra ele? ~Sederam ou venderam, s6 0 diabo sabe. O certo é que vocé pode até ma- tar de fome todos os cavalos do conde, ‘e nada acontece, mas voce se atreva a deixar 0 potro dele sem racdo... “l ta ai", diz ele, e tome chicotada. |... Ele mesmo contou as chicotadas que me deu, 0 barbaro. O general nao bate assim, ele defxou as minhas costas em carne viva [..}. Eu entendi bem o que eles disseram sobre os lanhdes |...], mas naquela época era absolutamente obseuro para mim o significado das palavras “meu”, “meu potro”, palavras através das quais eu percebiayque as’pessoas'es* tabeleciam uma espécie’de vinculo en» tre mim e 0 chele dos estabulos. Nao ‘conseguia entender de jeito henhum 0 {que significava me chamarem de pro: priedade de um homem As palavras “meu cavalo”, referidas a mim, um cavalo vivo, pareciam-me taovestranhas quanto as palavras “minha terra", “meu ar”, “minha agua”. No entanto, essas palavras exetciam uma enorme influéncia sobre mim. Eu nao parava de pen- {Ses 36 muito depois de ter as mais diversas relagbes com as pessoas compreendi finalmente ‘0 sentido que atribuiam aquelas éstranhas palavras. Era o seguinte: os homens no orientam suas > 28 vidas por atos, mas por palavras. Eles no gostam tanto da possibil- dade de fazer ou néo fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utiizan- do-se de palavras que convencio- nam entre si. Dessas, as que mais consideram so “meu” e “mi- nha”, que aplicam a varias coisas, seres e objetos, inclu- sive & terra, as pessoas e aos ca- valos. Convencionaram entre si que, para cada coisa apenas um deles diria “meu”. E aquele que diz “meu” para o maior nimero de coisas é considerado o mais feliz, ‘segundo esse jogo. Para que isso, nao sei, mas é assim. Antes eu fi- ‘cava horas a fio procurando algu- ‘ma vantagem imediata nisso, mas no dei com nada Muitas das pessoas que me chamavam, por exemplo, de “meu cavalo” nunca me montavam; ‘as que 0 faziam eram outras, completamente diferentes. Também eram bem outras as que me alimentavam. As que cuidavam de mim, mais uma vez, no eram as mesmas que me chamavam “meu cavalo”, mas os cocheiros. Os tratadores, estranhos de modo geral. Mais tarde, depois que ampliei 0 circulo de minhas observagées, convenci-me de que, ndo s6 em relagao a nés, cavalos, ‘© conceito de “meu” ndo tem nenhum outro fundamento senéo 0 do instinto vil e animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento ou direito de propriedade. O homem diz: “minha casa”, mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em construt-la e manté-la. O comerciante diz: “meu bazar”, “meu bazar de las", por exemplo, mas nao tem roupa feita das melhores las que hé no seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de “meus” outros seres humanos, mas nenhuma vez sequer botaram. (8 olhos sobre eles, e toda a sua relagdo com essas pessoas consiste em Ihes causar mal. Existem homens que chamam de “minhas” as suas mulheres ou esposas, mas essas mulheres vivem com ‘outros homens. As pessoas ndo aspiram a fazer na vida o que consideram bom, mas a chamar de “minhas” 0 maior niimero de coisas. Agora estou convencido de que € nisso que consiste a diferenca essencial entre nés e os homens. E por isso que. sem falar das outras vantagens que temos sobre eles, jé podemos dizer sem vacilar que, na escada dos seres vivos, estamos acima das pessoas: a vida das pessoas — pelo menos daquelas com as quais convivi ~ traduz-se em palavras: ‘a nossa, em atos. E eis que foi o chefe dos estabulos que recebeu o direito de me chamar de “meu cavalo”; por isso acoitou o cavalarico. Essa descoberta me deixou profundamente impressionado [...] levou-me a me tornar o malhado ensimesmiado e sério que eu sou. TOLSTOI, Liev. O diabo e outras histdrias.Sio Paulo: Cosae Naily, 2003. ‘GLOssARIO CCavalarigo:indkduo que cuida de arimais em cavalari, eStio. Ensimesmado: vltado para dentro de si mesmo; concenttado,recohido. |Lanhiio: golpe, frimento feito com instrumento coftante;frimento.no.cofpo Fovenionlé {do arrancamento de tras de couro ou de pele; marca de agote na Pela, eee nic) Liev Nikolaievitch Tolstoi (1828-1910) - Escritor russo, era filho de uma importante familia ligada aos cza- 4 res e teve uma vida pessoal cheia de conflitos, dividida entre 0 pa- 7 Cifismo e 0 anarquismo. Foi um pensador social e moral e um dos mais relevantes autores da narrativa realista de todos os tempos. En- tre suas obras, destacam-se: Infancia (1852), Contos de Sebastopol (1855-1856), Guerra e paz (1865-1869), Anna Karenina (1875-187), A morte de Wvan litch (1886), A sonata de Kreutzer (1889) e seu ultimo romance, Ressurreicao (1899). POR DENTRO DO TEXTO 41. O primeiro pardgrafo do texto situa o letor. De que maneira isso 6 feto? 2. Que tipo de narrador esse conto apresenta? Quem é ele? 3. Leia as informagdes do quadro. Em um texto narrativo, 0 tempo 6 muito importante, porque situa o leitor, ajudando-o a com- preender os fatos. Dessa forma, em narrativas como romances, novelas e contos, ha dois tipos fundamentais de tempo: 0 cronolégico e o psicolégico. © tempo eronolégico se caracteriza por seguir 0 ritmo do relégio, @ estagéo do ano, a divisdo ‘om dias, 0 calendério etc. Nesse tipo de tempo, os fatos podem ser apresentados no momento em que acontecem. Veja: .] Era inverno, época de festas. Nao me deram nem de comer nem de beber durante o dia inteiro |... .1 No dia seguinte, acompanhado de um pedo, 0 cavalarico trouxe feno a nossa baia |... (© tempo psicoldgico nao segue uma cronologia, transcorrendo no interior do personagem ‘0u do narrador conforme seu desejo, imaginacdo, vivencias subjetivas, entre outros. E comum, ‘na construcéo do tempo psicoldgico, as cenas se passarem na cabeca do personagem ou do nnarrador como um flashback, ou seja, como uma lemoranga, uma recordacéo. Exemplos: |...] Eu nao parava de pensar nisso e s6 muito depois de ter as mais diversas relagdes com as pessoas compreendi or Sentido que atribuiam aquelas estranhas palavras I...]. 01 L.1 Antes eu fi ‘fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas nao dei ‘com nada (1. * Indique o tipo de teffipo que Se referem as expressbes destacadas no trechos extraidos do conto lido. a) |... Mais tarde, depois que ampliel o circulo de mnhas observagdes, convenci-me de que, nao '86 6m ralacdo ands. cavalos. 0 conceito de “meu” nao tem nenhum outro fundamento |... ‘By NaqUele mesmo'dial/o chefé veid’a minha bala, deu pela falta de racdo e foi-se embora xingando com os pidfes nomes 0 cavalatigo |...) c) .] Mut das pessoas(que me chamavam, por exemplo, de “meu cavalo” nunca me montavam 1 4. Releia 0 trecho a seguir, em que o personagem principal expde suas ideias. [...] 0 homem diz: “minha casa”, mas nunca mora nela, preocupa-se apenas em construi-la e manté-la. O comerciante diz: “meu bazar”, “meu bazar de lis", por exemplo, mas ndo tem roupa feita das melhores lis que ha em seu bazar. Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, ‘mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de “meus” outros seres hhumanos, mas nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relacao com essas pessoas consiste em Ihes causar mal...) * Indique qual das frases a seguir, retiradas do texto, corresponde & ideia apresentada nesse trecho: ‘@) As pessoas nao aspiram a fazer na vida o que consideram bom [...]- b) id podemos dizer sem vacilar que. na escada dos seres vivos. estamos acima das pessoas ©) [-.] Mais tarde, depois que ampliei o citculo de minhas observagdes, convenci-me de que, nao so fem relacao a nds, cavalos, o conceito de “meu” nao tem nenhum outro fundamento seno 0 do instinto vile animalesco dos homens, que eles chamam de sentimento ou direito de propriedade. ‘5. O que 0 cavalo pensava a respeito de ter um dono e nao ser esse dono o seu cuidador? 6. O que o cavalo percebeu sobre 0 uso que os humanos faziam da nalavra “meu”? Que relacdo ele estabeleceu entre essa palavra e 0 conceito de felicidade? 7. O cavalo conseguia compreender esse tipo de comportamento? Transcreva um trecho que compro- ve sua resposta. ‘8 Que sentido a palavra “meu” tinha para 0 cavalo? 8. E possivel afimar que, no texto, 0 personagem do cavalo foi humanizado? Por qué? 10.No conto, hd uma inversdo entre o que é humano e o que é animal. Explique essa afirmacao. 11.Estruturalmente, a que tipo de narrativa Iterdria essa conto se assemelha? lustiique, LINGUAGEM D0 TexTO i 4. Leia ainformagao do quadto. * Indique as alternativas que trazem trechos do texto que podem ser considetados exemplos de Paradoxo, ‘@) Ohomem diz: “minha casa’, mas nunca mora neta, Predcupa-se apenas'em conistfui-la e manté- a : 'b) Nao conseguia entender de jeito nenhum o que significava me chamarem de propriedade de um homem. ©) As palavras “meu cavalo”, referidas a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tao estranhas quanto as palavras “minha terra’, “meu ar”, “minha gua’. ) Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela. 2. Nos trechos indicados como resposta a questo anterior, qual palavra foi empregada para introduzir a relagdio de oposigao entre as ideias que os constituem? 3. Leia a informagao deste outro quadro. A anéfora 6 uma figura de linguagem que se caracteriza pela repeticao de uma mesma pale- vra, ou varias, sucessivamente, no comego de oragdes, periodos ou em versos. a) Transcreva do texto um exemplo de andifora 'b) Que efeito 0 uso dessa figura de inuagem produz no texto? ‘4, Releia este trecho do conto. |... Existem pessoas que chamam a terra de “minha”, mas nunca a viram nem andaram por ela. Existem outras que chamam de “meus” outros seres humanos, mas nenhuma vez sequer botaram os olhos sobre eles, e toda a sua relagdo com essas pessoas consiste em Ihes ‘causar mal. Existem homens que chamam de “minhas” as suas mulheres ou esposas, mas ‘essas mulheres vivem com outros homens. [...] * As expressoes destacadas so exemplos de andfora ou de paradoxo? eee @)1. Em sua opiniéo, nés realmente necassitamds de tudo aquilo que deséjamos cénsumir? 2. As reflexdes feitas pelo caval6 no onto de Tolstci estéo relacionadas a atitude humana de ada bens que, muitas vezesy'néo S8a-Recessérios. Vocé concorda, discorda ou concorda parciaimente com as reflexdes que esse naffador-personagem apresenta? Justifique seu ponto de vista. 32

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