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DIÁRIO DE ATELIÊ: EXPERIMENTAÇÕES E DESCOBERTAS

Bruno de Abreu Mendonça1

Este diário refere-se à produção realizada no Ateliê de Gravura da Faculdade de


Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás no período relativo ao primeiro
semestre letivo de 2019, sendo monitorado e instruído pelo Prof. Dr. José César
Climaco – à partir daqui, “Zé César”, como prefere. Optei aqui por não ordenar
as descrições temporalmente, mas sim por peça produzida.

GRAVURA 01 – O QUE HÁ DENTRO

Retomei os trabalhos de gravura após anos sem entrar em contato com uma
matriz. Optei então pela minha técnica favorita: ponta seca. Decidi usar uma
chapa de alumínio de offset como matriz, pois o material é macio e dócil, fácil de
executar a técnica.

Figura 1 – à esquerda, chapa de offset utilizada como matriz e, à direita, pontas montadas
artesanalmente utilizadas na produção da peça.

Ao invés de propor apenas uma gravura simples, sobre a chapa limpa, optei por
experimentar texturas, lixando a chapa com uma lixa 400 com finalidade de
adicionar ranhuras e relevo para a aderência posterior da tinta. Após a
preparação da chapa fiz todo o trabalho a mão livre, sem esboço prévio, riscando
com a ponta diretamente sobre a chapa. Tive certa dificuldade em executar
linhas longas – provavelmente pelo uso de ferramentas rudimentares e cegas

1
Bruno de Abreu Mendonça é aluno doutorando do Programa de Pós-graduação em Arte e
Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG. E-mail: bruno.oubam@gmail.com.
e/ou pela falta de prática – e preferi trabalhar com sulcos mais profundos para
tentar, posteriormente, experimentar melhor o trabalho de sombreamento.

Figura 2 – matriz finalizada da obra “O que há dentro”.

Minha primeira ideia era de realizar a impressão em preto, sobre papel Canson
224g/m², depois transferir a impressão para um computador e efetuar
colorização digital para, por fim, transferir a imagem digital impressa para uma
placa de madeira, utilizando o processo do médium acrílico.

Realizei então os primeiros testes de impressão da gravura 01, que me


mostraram alguns pontos da matriz que não me agradaram. Voltei à gravação
para tentar obter mais profundidade nas partes escuras da imagem, além de
reforçar algumas linhas e trabalhar melhor alguns sombreamentos. Após esses
ajustes executei novo teste que julguei, agora, escurecido demais, talvez por
algum erro no processo de limpeza da chapa. Decidi então fazer um novo teste
sem reentintar a matriz. Primeiro passei a pela prensa uma única vez,
percebendo que o papel não havia penetrado suficiente na chapa. Passei outras
duas vezes e obtive o resultado desejado. Repeti o processo exatamente da
mesma forma e, mais uma vez, fiquei satisfeito com a impressão resultante da
segunda tiragem, com três passagens pela prensa. Executei então uma série de
quatro impressões, no total. Após esse passo, digitalizei uma das impressões e
iniciei o processo de colorização digital.

Figura 3 – à esquerda, impressão 1/4 da peça “O que há dentro”. À direita, arquivo


digitalizado e levemente editado e com a colorização digital executada.

A colorização gerou bons resultados e, logo, realizei a impressão em impressora


laser utilizando papel Sulfite 80g/m², visando a execução da técnica de
transferência para a madeira. Entretanto, passei um bom período de tempo –
cerca de duas semanas – sem encontrar uma placa de madeira interessante
para aplicar a impressão. Neste meio tempo, executei experimentações com
outras técnicas – detalhadas à frente – e continuei a busca por uma placa.

Com duas placas de madeira em mão, executei a transferência utilizando o


método via médium acrílico, onde se aplica com pincel largo o médium sobre o
papel impresso e sobre a madeira previamente limpa de maneira suave e
evitando deixar uma camada muito espessa. Após, coloca-se a folha sobre a
madeira suavemente e, fazendo uso de uma espátula plástica, fixa-se o papel
sobre a madeira da mesma forma que se aplica um adesivo sobre um vidro,
eliminando bolhas e visando manter uma superfície uniforme. Depois de alguns
dias secando, pude verificar os resultados.

Considerei os resultados ruins. A madeira, talvez por ser porosa demais,


absorveu muito o médium, o que tornou impossível a retirada de todo o papel.
As duas peças foram descartadas e, como resultado final para a gravura 01,
optei pela série impressa inicialmente.

Figura 4 – uma das aplicações da obra “O que há dentro” sobre madeira.

EXPERIMENTAÇÕES 01 – LITOGRAFIA À SECO

Durante o período em que procurava pela placa de madeira para a gravura 01


experimentei dois processos inéditos para mim, sendo um deles apresentado
pelo próprio Zé César e, o segundo, uma proposta pessoal: litografia à seco e
gravura em manta de borracha.

A técnica de litografia à seco, diferentemente do que o nome sugere, é realizada


sobre chapa de metal de offset, utilizando-se de um processo semelhante à
litografia tradicional. Para a execução da técnica, primeiramente deve-se lixar a
chapa com lixa d’água para que a superfície se torne levemente rugosa para
então, limpá-la e desengordurá-la com sal, água e vinagre de maçã. Feita a
preparação da chapa, desenha-se sobre a mesma (utilizando uma luva, tecido
ou papel para evitar o toque da pele com a chapa) utilizando caneta esferográfica
BIC® (essa especificidade trás melhores resultados, como experimentando pelo
próprio Zé César) ou lápis 6B. Em seguida, deve-se aplicar sobre toda a chapa
– de maneira suave e deixando apenas uma camada fina – silicone não-
entintável e esperar sua secagem, que demora cerca de dois dias. Após seco,
usar estopa e tinner para remover o desenho da chapa (área não protegida pelo
silicone), esfregando levemente e por igual. Por fim, entinta-se a chapa utilizando
rolo e faz-se a impressão.

Pessoalmente, optei pelo desenho com a caneta esferográfica sobre uma


pequena chapa de offset. Realizei uma ilustração rápida, sem muito apreço aos
detalhes e executei todo o processo. Como deveria esperar a secagem do
silicone para continuar a técnica, comecei as experimentações – neste interim –
com a manta de borracha – a qual relato mais à frente.

Após a impressão – a primeira de uma série de três – não fiquei muito satisfeito
com o resultado obtido por meio da técnica de litografia à seco. As linhas
impressas eram muito próximas do desenho tradicional, à caneta, não
apresentando em si elementos característicos que me atraíssem como método
de gravura. Por outro lado, a técnica pareceu também apresentar resultados
bastante caóticos – com manchas e interferências da limpeza da matriz – que só
são percebidos após a impressão. No entanto, acredito que esse caos esteja
mais ligado a falta de perícia com a técnica do que efetivamente uma
característica da mesma, como me advertiu Zé César. Embora interessante
como experimentação, o processo e o resultado não me foram atrativos e
abandonei novas possibilidades de criação com essa técnica.
Figura 5 – experimento: impressão 2/3 da gravura feita em litografia à seco: sem título.

EXPERIMENTAÇÕES 02 – MANTA DE BORRACHA

Iniciando no período de secagem do silicone da experimentação do processo em


litografia à seco, pensei em tentar gravar um material a muito guardado: uma
manta emborrachada, normalmente utilizada em gráficas em máquinas de offset.
A manta é composta por três camadas de materiais distintos – borracha macia
(azul, com cerca de 1 milímetro de espessura), borracha dura (preta, muito fina
e resistente) e tecido (branca, com quase 2 milímetros de espessura e muito
resistente) – sendo que todas garantem uma boa resistência e firmeza ao
material.

No primeiro teste com este material, escolhi um pequeno pedaço e tentei aplicar
a técnica da ponta seca (que foi descartado sem a realização de impressões),
como utilizado no metal. O material reagiu bem, permitindo uma gravação leve
e sem percalços, mas as rebarbas do processo de gravação davam um aspecto
grosseiro à técnica. Importante notar que a borracha mais dura (preta, sob a
borracha macia azul) impedia praticamente qualquer rompimento da matriz,
mesmo com a aplicação de gestos mais vigorosos. O material pareceu muito
resistente e de fácil manipulação, o que chamou rapidamente meu interesse
como uma base muito boa para gravação.

Figura 6 – manta de borracha e suas diferentes camadas: azul (macia e superficial), preta
(dura, logo abaixo da azul) e branca (em tecido, por baixo da preta).

Em seguida, fazendo uso de um novo pedaço pequeno do mesmo material, optei


por testar o uso do estilete de precisão, realizando linhas mais precisas e sem
rebarbas. Por meio dessa técnica, notei que ficava fácil remover grandes áreas
– que, se fossem impressas, não receberiam tinta – fazendo uso da ponta após
o corte com o estilete, decidindo por esta ferramenta para trabalhar doravante.
Assim, também notei uma grande capacidade do material de aceitar o trabalho
com linhas muito finas, o que me pareceu muito interessante. Executei então a
primeira matriz de teste para impressão.

Figura 7 – primeiro teste de impressão com matriz de manta de borracha e, ao lado, matriz
já retrabalhada (com relevo invertido) para impressão posterior.
Gostei muito dos resultados. Nos testes, embora tenha tido problemas no
processo de entintagem por conta da deformação que a manta apresentava,
percebi que era possível obter linhas firmes e preto bastante chapado, me
lembrando resultados obtidos em linóleo, no passado. Entretanto, a manta de
borracha me pareceu mais fácil e agradável de ser trabalhada do que o linóleo
ou a madeira, o que me fez dedicar mais tempo à experimentação com este
material.

GRAVURA 02 – GEMINI

Com uma técnica já um pouco mais apurada para trabalhar com a manta de
borracha, optei por aumentar as proporções da área gravada. Fazendo uso de
um recorte retangular de 24,5x36cm, iniciei o trabalho a partir de um esboço feito
diretamente sobre a manta de borracha, utilizando caneta esferográfica. Percebi
que a tinta da caneta, por vezes, borrava enquanto me apoiava sobre a manta
e, por isso, realizei todo o processo de esboço com um papel entre a matriz e
minha pele. Após executado, esperei por cerca de uma hora pela secagem da
tinta da caneta para iniciar a gravação.

Mesmo tendo optado por trabalhar de forma mista com o estilete de precisão e
a ponta, mais uma vez comprovei a facilidade de se trabalhar com o material
usando o estilete de precisão: mesmo quando ocorriam acidentalmente cortes
mais profundos, ou a camada preta ou o tecido não permitiam a danificação da
matriz ou mesmo da mesa onde me apoiava. As linhas eram suaves; finas e
grossas de acordo com meu desejo. As grandes áreas eram facilmente
delineadas ou removidas com o auxílio da ponta e, após cerca de duas horas de
trabalho ininterrupto, concluí a confecção da matriz. Os pontos onde trabalhei
usando a ponta ficaram mais grosseiros e muito diferentes dos trabalhados com
o estilete. Outro ponto importante a se notar foi que a deformação natural do
material (que estava guardado enrolado) foi praticamente removida com o
processo de gravação.

Observando o resultado da gravação, fiquei bastante satisfeito e consegui obter


uma peça muito próxima do esboço planejado previamente. Sem mais querer
perder tempo, parti para o processo de entintagem usando rolo. As impressões
de teste foram realizadas em papel Marquer 70g/m² e as impressões finais –
uma série de seis impressões – foram impressas em papel Canson 224g/m².

Figura 8 – matriz em manta de borracha (à esquerda) e uma das impressões finais de


“Gemini” (à direita).

Alguns detalhes se fizeram perceber nessa primeira obra e as particularidades


da impressão com o uso da matriz de manta de borracha: o uso da ponta acabou
atuando em desfavor da peça, quando comparado ao uso do estilete; a pressão
aplicada pelo rolo – assim como seu tamanho – são fundamentais para evitar
manchas que não deveriam ocorrer nas partes brancas, pois a camada dura
(preta) da manta absorve a tinta e é difícil limpa-la depois. Tendo esses
resultados em mente, iniciei a produção da gravura 03.

GRAVURA 03 – MÃE

Para esta peça, planejei aplicar meus aprendizados obtidos com a produção da
gravura 02 e, ainda, experimentar a realização de impressões em materiais
diversos, buscando notar sutilezas que estes poderiam apresentar. A gravura –
uma peça menor, com cerca de 16x25cm e feita totalmente usando o estilete de
precisão e buscando obter linhas mais suaves e consistentes – foi executada
rapidamente sobre um esboço desenhado com caneta esferográfica sobre a
própria manta. Em menos de uma hora e meia já havia iniciado os testes de
impressão.

Optei por iniciar com o tradicional Canson 224g/m² usando tinta preta, obtendo
resultados muito satisfatórios e consistentes. Ainda, no mesmo dia, estendi as
impressões para o tecido de algodão, obtendo resultados igualmente bons. Dois
detalhes importantes sobre a impressão em tecido de algodão, notados
posteriormente, foram: a resistência da impressão a processos de lavagem, que
nem ao menos desbotou após cinco lavagens em máquina de lavar e; a rápida
secagem da tinta, que pareceu ocorrer de forma mais ágil à notada no papel
Canson.

Figura 9 – matriz em manta de borracha (à esquerda), impressão em tecido de algodão


(centro) e uma das impressões finais de “Mãe” (à direita).

Ainda, realizei experimentações com mais dois materiais: impressão sobre


chapa de alumínio e sobre plástico semi-opaco (PSO). A impressão no alumínio,
embora tenha trazido bons resultados, se mostrou difícil e trouxe alguns erros
antes de obter uma impressão com qualidade. Isso ocorreu pelo fato da chapa
ser muito lisa e, durante a passagem pela prensa, fazia com que a matriz
escorregasse e manchasse toda a chapa. Então, limpava eu toda a chapa
novamente e tentava uma nova impressão. Foram executadas 6 tentativas com
diferentes níveis de pressão da prensa até se obter um único resultado
satisfatório, impresso em preto.

Figura 10 – impressão em alumínio (à esquerda) e duas em PSO (centro, com todas as


impressões realizadas do mesmo lado do material; à direita, com com a impressão em
preto de um lado e vermelho do outro, explorando a transparência do material).

Com o PSO, os resultados foram mistos: por ser um plástico, a tinta não era
absorvida e, por vezes, manchas, deslizes e outros problemas surgiram com as
impressões. Além disso, a tinta demorou muito tempo para secar (preferi deixar
por pelo menos dois dias em descanso), o que também atrapalhou o andamento
de testes que exploravam a transparência do material. De maneira geral, os
resultados obtidos foram bastante interessantes, alguns explorando a
transparência do PSO, outros pelo uso de sobreposições em preto e vermelho.
Acredito que o PSO seja um material interessante para a exploração futura em
impressões.

Figura 11 – matriz de “Mãe” separada para experimentos com o método puzzle.


Como a ideia com a gravura 03 era de experimentar ao máximo – novas tanto
com a impressão em diferentes materiais que encontrava pelo ateliê, lojas e
minha casa, quanto em cores – decidi desmembrar a matriz, cortando-a em
diversos pedaços para poder trabalhar de forma separada cada cor e, depois,
remontar toda a matriz seguindo o processo puzzle. Este processo, que em
tradução livre remete aos quebra-cabeças, consiste justamente na montagem de
uma matriz fragmentada, encaixando as peças da forma “correta” (a desejada
pelo artista) para a obtenção do resultado esperado.

Embora o processo de remontagem da matriz tenha sido parcialmente


trabalhoso – algumas peças não se encaixavam muito bem por conta do material
ou partes da matriz entintada acabavam tocando outras também já entintadas –
obtive bons resultados que, confesso, me surpreenderam. Neste momento,
realizei impressões usando diferentes cores de tintas sobre papel Pérsico
180g/m² e MDF (3mm), ambos conseguindo resultados interessantes.

Figura 12 – impressões em papel Pérsico da gravura “Mãe”.


Sobre o Pérsico, obtive dois resultados muito interessantes: no primeiro, o
trabalho com quatro cores distintas me fez observar as complexidades da
montagem e o cuidado extra a ser tomado na impressão afim de se evitarem
manchas indesejadas e; no segundo, consegui explorar a textura do papel,
dando uma aparência fugaz e de movimento natural aos cabelos da figura
representada.

Figura 13 – impressão em MDF da gravura “Mãe”, retrabalhada após impressão usando


tinner e cotonetes.

O MDF abriu a possibilidade para retrabalho sobre a impressão utilizando tinner


e cotonetes, onde experimentei acrescentar sombreamento sobre a peça
utilizando as próprias manchas da impressão – um resultado final único. Ainda
nessa impressão, experimentei criar degradês no momento da entintagem,
utilizando tinta preta e azul e aplicando sobre o pedaço do matriz referente ao
cabelo da figura. Embora tenha gostado do resultado, acredito que precise
explorar mais esta técnica para a obtenção de melhores resultados.
EXPERIMENTAÇÕES 03 – ÁGUA TINTA E ÁGUA FORTE EM COBRE

Logo após a finalização das impressões da gravura 03 recebi de presente de um


amigo uma placa de cobre, com cerca de 20x30cm, com o qual nunca havia
trabalhado. Antes de realizar qualquer trabalho com ela, me sentei com o prof.
Zé César para discutir possibilidades de gravura sobre o cobre, onde concluí que
gostaria de experimentar métodos além da ponta seca. Foi me sugerido, então,
usar a técnica da água forte, onde se utiliza ácido para gravar a chapa.

Passando por todo o processo de preparação da matriz, que envolve limpeza


com vinagre e sal, aplicação de verniz de proteção em ambos os lados da chapa
e, após secagem, criam-se ranhuras no verniz por meio do uso de uma ponta
que corresponderão às áreas gravadas pelo ácido (áreas não protegidas pelo
verniz). Decidi por criar traços soltos e abstratos para esta experimentação.
Depois de feitas as ranhuras, a chapa é mergulhada em ácido, onde ocorre a
gravação. Utilizamos ácido nítrico. O processo tomou um dia de ateliê e a
gravação, embora tendo ocorrido, não pareceu muito profunda. Deixamos as
impressões para o encontro seguinte.

Figura 14 – chapa de cobre após a gravação em ácido nítrico.

No retorno ao ateliê, realizei testes de impressão em papel Canson 224g/m²,


papel Kraft 200g/m² e papel Pérsico 180g/m². De maneira geral, as impressões
não me satisfizeram e, levando em conta todo o tempo necessário no processo,
desisti de novas impressões. No entando, o prof. Zé César me propôs um novo
teste, sobre a chapa já gravada, fazendo uso de outra técnica para tentar
adicionar manchas à peça: água-tinta. Ainda com a experimentação em mente,
decidi provar a técnica.

O processo geral é bem semelhante ao utilizado na água forte. Entretanto, no


processo de água-tinta faz-se uso do breu, moído e disperso de forma
equivalente por toda a superfície da chapa por meio de uma caixa. Após a
aplicação do breu, a chapa é aquecida para que o breu derreta e, após a
remoção do mesmo em certos pontos utilizando solvente, criam-se espaços
desprotegidos que se tornarão manchas. Realizado todo o processo, com nova
gravação usando ácido nítrico e mais um dia de ateliê, preparei quatro níveis de
manchas, deixando a impressão para o encontro seguinte.

Figura 15 – teste de impressão da matriz de cobre, após processos de água forte e água-
tinta, em azul.

Mais uma vez as impressões de teste ficaram abaixo do esperado. As manchas,


mesmo adicionando resultados interessantes à peça, não ficaram dentro das
expectativas as quais me propus. Sendo assim, considerei bem-sucedido o
teste, mas decidi abandonar a técnica por hora e me dedicar a outros processos.
GRAVURA 04 – KISMET

Voltando à manta de borracha, material pelo qual adquiri um certo fascínio


durante o período de ateliê, optei então por me arriscar mais ainda com o
material. Fazendo uso de uma matriz grande – com cerca de 30x40cm – iniciei
a gravação sobre um esboço prévio feito em caneta esferográfica sobre a manta.
O esboço apresentava uma figura mais complexa, com diversas linhas em
diferentes espessuras que se cruzavam, curvas sinuosas, detalhes muito
pequenos e muitos pontos de contraste. Dos trabalhos que executei com a manta
de borracha, este foi o que demandou mais tempo de gravação, num total
aproximado de quatro horas. Mais uma vez, o material se mostrou resistente às
incisões do estilete e ações da ponta, o que já me agradava pela grande
facilidade e sucesso esperado nos testes futuros.

Figura 16 – testes de impressão da gravura “Kismet” que apresentaram defeitos.

Mas todos os testes iniciais resultaram em falhas - todos feitos em papel Pérsico
180g/m². No dia definido para impressão das provas no ateliê, tive muita
dificuldade de regular a prensa e, por diversos momentos, tive resultados
manchados, sobrepostos ou simplesmente irregulares. Pela primeira vez com o
uso desse tipo de matriz não obtive resultados consistentes, então decidi deixar
para o encontro posterior para realizar novos testes.

Após analisar os testes malsucedidos, decidi testar outros materiais e, ainda me


ater mais ao processo de entintagem. Dai surgiram os primeiros resultados
interessantes: o tecido e o PSO. A impressão em tecido deu resultados
excelentes, inclusive quando trabalhei com tom sobre tom de uma mesma cor.
Já nas impressões no PSO optei por tentar um processo de entintagem diferente,
utilizando duas cores no mesmo rolo – o que exigiu o uso de um rolo maior –
para aplicar um efeito degradê na impressão.

Figura 17 – matriz da gravura “Kismet” (à esquerda), já preparada para entintagem com


técnica de degradê. Ao centro e à esquerda, testes com a impressão em degradê.

Mais uma vez, obtive resultados muito interessantes ao tentar aplicar o degradê
pela própria entintagem. Embora tenha me faltado certo controle sobre a
quantidade de tinta em cada lado do rolo, os resultados me agradaram muito.
Mas ainda não havia alcançado o impacto que queria com esta peça. E foi então
que, novamente, a experiência do prof. Zé César trouxe uma nova visão: realizar
a impressão sem tinta.

De início, acreditei que a proposta não fosse dar resultados tão interessantes e
titubeei para começar, até por não possuir bons papéis para o processo. Mas,
por acaso, no mesmo dia uma colega de ateliê havia me dado uma grande folha
de papel Snow White 400g/m², o que seria perfeito. Após algumas discussões
breves sobre o processo, chegamos à conclusão que obteria melhores
resultados (mais relevo) utilizando o papel umedecido, a prensa com bastante
pressão e uma espuma sob o feltro de proteção. Passados dez minutos de
imersão em água, o papel foi levemente seco e, junto com a matriz sem qualquer
tinta, realizei a primeira prova com a técnica.
Confesso que não esperava um resultado tão impressionante como o obtido. Os
diferentes níveis da matriz adicionaram relevos belíssimos ao papel, dando uma
visualidade efêmera e leve à peça.

Figura 18 – “impressão” sem tinta da gravura “Kismet”.

Bastante impressionado pelo resultado, realizei mais três impressões, sendo


mais uma em papel Snow White 400g/m² e duas outras em papel Pérsico
180g/m². Diferentemente das impressões obtidas no papel de maior gramatura,
o papel Pérsico reagiu mal à umidade e enrugou bastante, sendo descartado.
Disso, fiz uma curta série de apenas duas impressões que defini como finais.
EXPERIMENTAÇÕES FINAIS – PIROGRAFO E DESENHO COM RELEVO

Após a execução das impressões finais da gravura 04, restavam poucos


encontros no ateliê para desenvolvimento de novas peças complexas. Dessa
forma, escolhi utilizar o tempo disponível para a experimentação de mais
técnicas. Lembrei-me de ouvir o prof. Zé César comentar sobre a existência de
um pirógrafo no ateliê – que ele mesmo não sabia do seu estado ou
funcionamento – e, entre os armários e utensílios, o encontrei.

O aparelho estava funcionando bem, aquecendo rapidamente a ponta metálica.


Como nunca havia utilizado o aparelho antes, decidi realizar figurações
geométricas e abstratas sobre um pequeno pedaço de madeira e, para meu
espanto, o pirógrafo era extremamente leve e fácil de manusear. Logo me vi
experimentando traços longos, linhas de diferentes espessuras, letras grandes
e pequenas. O material e o aparelho me deram muito prazer na experimentação
de possibilidades.

Figura 19 – gravações experimentais utilizando pirógrafo em madeira.

Por fim, e já sem tempo de ateliê disponível, realizei uma última experiencia
utilizando os conhecimentos obtidos com a gravura 04: realizei um desenho com
caneta nanquim sobre o papel Snow White 400g/m² e decidi aplicar relevo a ele.
Passando por um processo que se mostrou muito mais complicado que imaginei
de início – onde imprimi cinco cópias do desenho e, pelo recorte e remoção de
certas áreas, montei uma máscara em relevo para aplicação sobre o papel – tive
várias dificuldades e, por diversas vezes, acreditei no fracasso absoluto: ao
umedecer o papel desenhado, a tinta da caneta naquin começou a sair do papel,
quase manchando-o. Além disso, desconsiderei o fato de o papel umedecido
dilatar-se, o que já ocasionaria um erro de registro com a máscara.

Figura 20 – experimentação de aplicação de relevo sobre desenho.

Mesmo com todos os problemas relatados, acredito que obtive um resultado


bastante acima do esperado. Os relevos – que imaginava que mal fossem
aparecer devido a máscara ser feita de papel – ficaram evidentes e, mesmo com
certos pontos de erro de registro, o efeito obtido adicionou profundidade à peça.
Em suma, considero um experimento muito bem-sucedido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O semestre dedicado ao ateliê e às experimentações em gravura foram cruciais


para a expansão da compreensão sobre as liberdades e limitações dos diversos
materiais e técnicas executadas. Além de resultados inusitados – tanto bons
quanto ruins – o convívio dentro do ateliê com os demais participantes e com o
prof. Zé César foi extremamente relevante para o contexto de produção. Acredito
que, independente dos resultados, o fator mais relevante para o gravador – se
assim posso me considerar neste momento – é, justamente, a convivência no
ateliê. A troca de informações onde experiencias pessoais, ideias e
compreensões sobre os processos auxiliariam muito no sucesso de grande parte
das produções.

Por fim, vejo que a experiencia provida nesse semestre dentro do ateliê de
gravura, antes de mais nada, me provocou: inquietações próprias do
investigador, do pesquisador que anseia por botar a prova suas ideias e que, por
meio da prática – e da paciência – obtém seus resultados. Essa é a força do
ateliê e, por conseguinte, a base da linha de pesquisa à qual me dedico. E é com
esse espírito ressurgido dentro do ateliê que pretendo encarar, de agora em
diante, os anos seguintes de pesquisa doutoral.

Que sejam anos pacientes, de experimentações e falhas. Pois daí surgem as


descobertas.

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