Você está na página 1de 8

VIOLÊNCIA NOS CONTOS “CREME DE ALFACE”, “OS ANÕES” E “ESPIRAL”

Luís André Pereira Gomes

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca analisar os contos Creme de alface, Os anões e Espiral,


respectivamente dos escritores Caio Fernando de Abreu, Verônica Sttinger e Geovani
Martins. Escritores que, grosso modo, em suas especificidades em lidar com a linguagem,
dividem uma geração e, consequentemente, as questões sociais, políticas, ideológicas e de
técnica de expressão artística que a estruturam. Desse modo, é a partir do tema da violência
que se analisará os contos citados, buscando traçar diálogos entre si e entre outros momentos
da literatura em que a temática é abordada, seja no contexto nacional, seja no internacional.

A VIOLÊNCIA NA LITERATURA: UMA LONGA TRADIÇÃO

Antes de entrar nos contos propriamente ditos, vale a pena situar, ao modo de
introdução, o tópico da violência na literatura ocidental. O texto que funda a literatura
Ocidental, a Ilíada de Homero, tem como primeira palavra de seu proêmio - canto
introdutório do poema épico, no qual se concentra a história que será contada em todo o
traquejo técnico de composição do poeta - a palavra Menin, a qual se traduz com mais
precisão para o português por “ira” - e não somente uma ira passageira, mas uma ira franca,
tenaz, prolongada. A respeito de toda uma tradição literária ocidental a filósofa francesa
Simone Weil, em seu texto A Ilíada ou o poema da força, diz

O verdadeiro herói, o verdadeiro assunto, o centro da Ilíada, é a


força. A força é manejada pelos homens, a força que submete os
homens, a força diante da qual a carne dos homens se contrai (...) A
força é aquilo que transforma quem quer que lhe seja submetido em
uma coisa. Quando ela se exerce até o fim, transforma o homem em
coisa, no sentido mais literal da palavra, porque o transforma em
cadáver. (WEIL, p. 379)
A a ira, a força, a violência são temas presentes nas manifestações poéticas desde o
primeiro momento da formação da cultura Ocidental, simultaneamente informando e sendo
informada pelos poetas que no olho do furacão dos grandes acontecimentos, da Antiguidade à
modernidade. Como diz Ginzburg: “a violência é constante no campo da experiência
humana” (2017, p. 22).

A VIOLÊNCIA NO CONTEXTO DA LITERATURA CONTEMPORÂNEA

Primeiramente, convém estabelecer, antes ainda de entrar nas narrativas dos contos
cotejados, uma resposta a uma pergunta: o que podemos chamar de literatura contemporânea?
Para responder uma pergunta complexa como esta em um espaço reduzido como o do
presente trabalho, cito a escritora e pesquisadora Regina Dalcastagnè estudiosa quanto ao
tema da literatura contemporânea:

Desde os tempos em que era entendida como instrumento de


afirmação da identidade nacional até agora, quando diferentes
grupos sociais procuram se apropriar de seus recursos, a literatura
brasileira é um território contestado. Muito além de estilos ou
escolhas repertoriais, o que está em jogo é a possibilidade de
dizer sobre si e sobre o mundo, de se fazer visível dentro dele.
Hoje, cada vez mais, autores e críticos se movimentam na cena
literária em busca de espaço – e de poder, o poder de falar com
legitimidade ou de legitimar aquele que fala. Daí os ruídos e o
desconforto causados pela presença de novas vozes, vozes “não
autorizadas”; pela abertura de novas abordagens e enquadramentos
para se pensar a literatura; ou, ainda, pelo debate da especificidade
do literário, em relação a outros modos de discurso, e das questões
éticas suscitadas por esta especificidade. (DALCASTAGNÈ, p. 13)

Ressaltando mais uma vez que o objetivo do presente trabalho é demarcado pelo
interesse em analisar as especificidades do tema da violência em cada uma das narrativas
trazidas, mas também os diálogos que travam entre si nos níveis linguísticos e nos aspectos
ideológicos, é interessante pensar junto com o crítico literário Antonio Candido que,

Assim, a primeira tarefa é investigar as influências concretas


exercidas pelos fatores socioculturais. É difícil discriminá-los, na
sua quantidade e variedade, mas pode-se dizer que os mais decisivos
se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às técnicas de
comunicação. O grau e a maneira por que influem estes três grupos
de fatores variam conforme o aspecto considerado no processo
artístico. Assim, os primeiros se manifestam mais visivelmente na
definição da posição social do artista, ou na configuração de grupos
receptores, na sua fatura e transmissão. Eles marcam, em todo caso,
os quatro momentos da produção, pois: a) o artista, sob o impulso de
uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões da sua
época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese
resultante age sobre o meio. (CANDIDO, p. 31)

Desse modo, feito os devidos balanços históricos e posições teóricas tomadas, o


primeiro texto a ser O conto Creme de Alface, do escritor gaúcho Caio de Fernando de
Abreu. Compondo o livro Ovelhas Negras, lançado pela primeira vez no ano de 1995, o
conto em questão, contendo apenas quatro páginas, apresenta a história de uma moça que
caminha pela cidade e que a partir dessa caminhada a história se desenrola, mas não de uma
forma linear e convencional.

Enfim, enumerou na esquina, Raul se enforcara no banheiro, cinco


anos exatos amanhã, e este maldito velho com passinho de tartaruga
bem na minha feente, eu tenho pressa, quero gritar que tenho muita
pressa, Lucinda quebrou as duas pernas atropelada por um corcel
azul três dias depois da Martinha confessar que estava grávida de
três meses, e não quer casar, a putinha, desculpe, mas o senhor não
quer deixar eu passar? tenho pressa, meu senhor, o telegrama, a
putinha, crispou as mãos de unhas vermelhas pintadas na alça da
bolsas, pivetes imundos tinham que matar todos, venha urgente, ir
coo com aquele desconto de trinta por cento no salário e todos os
crediários, papai muito mal pt, apoiou-se não, não se apoiou , não
havia onde se apoiar, apenas pensou no apoio de alguma coisa sólida
que não estava ali, só havia corpos, centenas deles indo e vindo pela
avenida. (FERNANDO ABREU, p.68)

Dividido em três blocos, na primeira parte da narração, o que lemos é uma voz em
primeira pessoa que em jato na qual passado e presente se misturam numa organização
sintática estranha, é o dinamismo da cidade, a desumanização, a vulgarização das mais
distintas formas de violência, a violência em suas várias matizes (econômica, social, etc.)
apresentada em fulgores de luz que logo apagam para darem lugar a outro problema e assim
por diante.
Ao final desse primeiro pedaço, finaliza-se com um parágrafo (o menor dos três
parágrafos que compõem essa primeira parte) que acumula em seu corpo toda a tensão
narrada anteriormente, um acúmulo de microviolências que ficam em suspenso.

Quando ia começar a rir alto parada na esquina, viu a bilheteria do


cinema, a franja de Jane Fonda, imaginou a temperatura amena, o
escuro macio na medida exata entre o seco e o úmido, e pelo menos,
decidiu o relógio, ainda dá tempo, os crediários podem esperar, pelo
menos duas horas santas limpas boas de uma outra vida que não a
minha, a tua, a dela a nossa, uma vida em que tudo termina bem.
(FERNANDO ABREU, p. 69)

Tudo - a dinâmica caótica da cidade, a dinâmica caótica da vida íntima - que se


traduzira em linguagem a partir do fluxo contínuo que nos remete à montagem do cinema,
por um momento torna-se secundário ao prazer do cinema. Tem-se, pois, depois desse corte
que divide a primeira parte da segunda parte do conto, o estabelecimento de uma relação
tensionada entre o prazer e a violência. É o que será desenvolvido nos últimos dois blocos
narrativos, pois tão-logo temos a notícia do cinema - lenitivo diante do caos cotidiano - a
personagem principal (“mulher-monstro fabricada pelas grandes cidades”, como comenta o
próprio Caio Fernando Abreu no comentário que abre o conto) é interpelada por uma criança
pedinte. Antes mesmo de entrar no cinema a realidade (violenta) a puxa para fora da cabine
do cinema como um ímã.

Foi então que a menina segurou o seu braço pedindo um troquinho


pelo amor de deus pro meu irmãozinho que tá no hospital
desenganado, pra minha mãezinha que tá na cama entrevada, tia. Ela
disse não tenho, crispando as unhas vermelhas na alça da bolsa
enquanto puxava a entrada do outro lado do vidro da bilheteria. A
menina insistia só um troquinho pro meu irmãozinho e pra minha
mãezinha, moça bonita, tão perfumada. (FERNANDO ABREU,
p.69)

O que se segue é uma gradativa tensão. De um primeiro momento no qual se usam


palavras no diminutivo pela criança e até elogios para conseguir o objetivo da esmola e uma
recusa indiferente dada pela personagem principal, o que se segue é uma explosão:

Ela gritou não tenho, porra, e foi tentando andar em direção à porta
do cinema, não me enche o saco, caralho, em volta os outros
olhavam e não me chama de tia, mas a menina não largava seu
braço. Assim: ela segurou com força a alça da bolsa fechada
enquanto tentava andar, e sem querer arrastando a menina que não
parava de pedir. Ela sacudiu com força o braço como quem quer se
livrar de um bicho, uma coisa grudada, enleada, e foi então que a
menina cravou fundo as unhas no seu braço e gritou bem alto, todo
mundo ouvindo apesar do barulho dos carros, dos ônibus, dos
camelôs, das britadeiras, a menina gritou: sua puta sua vaca rica
fudida lazarenta vai morrer toda podre. (FERNANDO ABREU, p.
69)

E o que se segue é a reação destruidora, catártica. A criança é espancada friamente em


via pública, mas “não se esperou pelo sangue”, entrando finalmente na sala de cinema.
“Quase uma assassina, não pensou, meu deus, quase uma criminosa, espalhando-se sem
horror na poltrona no momento em que as luzes começavam a diminuir” (1995, p. 70).
Imediatamente depois do brutalidade, sem transição, têm-se o cinema, Jane Fonda, o prazer
do sexo com um desconhecido durante a sessão e a decisão da compra de um creme de alface.

Em seu livro de estreia, O sol na Cabeça, Geovani Martins procura situar suas
narrativas na dinâmica conturbada e profundamente marcada pelas desigualdades sociais da
cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, o conto Espiral faz emergir um exemplo de
violência diversa da que foi narrada pelo gaúcho Caio Fernando Abreu.

As pessoas costumam dizer que morar numa favela da Zona Sul é


privilégio, se compararmos a outras favelas na Zona Norte, Oeste,
Baixada. De certa forma, entendo esse pensamento, acredito que
tenha sentido. O que pouco se fala é que, diferente das outras
favelas, o abismo que marca a fronteira entre o morro e o asfalto na
Zona Sul é muito mais profundo (...) É tudo muito próximo e muito
distante. E, quanto mais crescemos, maiores se tornamos muros.
(MARTINS, p.

O termo “espiral” pode ser definido como “linha curva que se desenrola num plano de
modo regular a partir de um ponto, dele afastando-se gradualmente”. Interessante deter-se
sobre a definição do termo que dá título ao conto pois ele diz muito sobre um
desenvolvimento que tem seu início mas não tem um fim certo, podendo expressar tanto os
movimentos de ida e vinda das perseguições ou do simples trânsito entre duas realidades da
cidade.
Não mais a violência explícita, de um corpo massacrado aos olhos de todos, mas a
violência cotidiana do racismo estrutural que causa as profundas desigualdades do país.
Nesse sentido, é neste espaço de diálogo entre o perceptível e nomeável e o imperceptível e o
sem-nome que se passa Espiral. Conto que narra a relação de um jovem favelado, que assim
como no conto Creme de alface não tem nome, com a desigualdade extrema, o que o acaba
por fazer um experimento: se inevitavelmente, por conta da sua posição social, se é sempre
identificado como ameaça, como perseguidor, por aqueles que ocupam o outro lado da
estrutura social, decidiu-se tornar esses movimentos de perseguição mais metódicos, como
um desafio. Contudo, longe de ter sido um movimento do início ao fim racional, antes foi um
movimento de explorar os limites, numa espécie de jogo de gato e rato, da normalização
cotidiana dos movimentos de exclusão. Em seu livro Racismo estrutural, Silvio Almeida nos
diz:
Todas essas questões só podem ser respondidas se compreendermos
que o racismo, enquanto processo político e histórico, é também um
processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja
consciência e afetos estão de algum modo conectados com as
práticas sociais (ALMEIDA, p. 63)

Já na última narrativa a ser comentada, o conto que dá título ao livro de Verônica


Sttinger, Os anões. Livro lançado em 2010, dos três contos em questão é o que mais
experimenta formalmente a linguagem da narrativa curta. No caso, da narrativa super curta,
pois o que temos na maior parte do livro são microcontos. A esse respeito, em uma entrevista
concedia, Sttinger comenta que “a escolha por formas curtas, em alguns casos tão curtas e
tão rápidas me parecem funcionar como uma lufada inesperada de ar que golpeia o rosto do
leitor e o deixa sem saber o que, afinal, acaba de acontecer” (STIGGER, 2010b, s.p.).
No conto em questão temos uma narrativa que podemos compreender, na esteira dos
outros dois contos discutidos acima, como uma síntese. No primeiro conto, Creme de alface,
temos a tensão entre o prazer e a realidade (esta como sinônimo de despaisagem, de de
desumanização, de violência) que acaba por desembocar no hiperbólico da extrema violência
explicitada nem nenhum remorso de quem quer que seja (nem pelas personagens principais
e/ou secundárias, nem pelo narrador); e num segundo momento, no conto de Geovani
Martins, Espiral, temos uma outra dimensão da violência explorada, a de nível psicológico e
ideológico, que não chega a explicitar uma dimensão física de corpos abatidos, mas
representando de forma cabal a dinâmica subjetiva de profundas marcas, inevitavelmente
violentas, da desigualdade social.
Ele tinha a altura de um pigmeu, e ela batia na cintura dele. Os dois
eram tão pequenos que mal alcançavam o alto da bancada dos doces.
Ela dava saltinhos para tentar ver o que a confeitaria tinha de bom.
Ele, mais circunspecto, espichava o pescoço, apontava o nariz para
cima e aspirava fundo - como se pudesse, pelo olfato, identificar as
guloseimas que o olhar não divisava. Os dois até faziam um
conjunto bonitinho. Não eram deformados, nem tinham aquele
aspecto doentio característico de alguns anões. Pareciam tão
somente ter sido projetados em escala reduzida. Poderíamos sentir
compaixão ou mesmo simpatia por eles, se não fossem tão evidentes
suas graves falhas de caráter (...) Nisso, cheguei bem junto da
biscazinha e a puxei com força pelo braço. Sua idiota!, disse. Ela
estava em cima do banquinho. Com a minha puxada, desequilibrou-
se e caiu no chão, de cabeça. Meu marido, que vinha logo atrás de
mim, deu um empurrão no homenzinho, que parecia querer socorrer
a esposa. Ele também se desequilibrou e caiu do banquinho. Ao se
levantar, fez menção de revidar, e meu marido acertou-lhe um
joelhaço no meio do rosto. O narizinho começou a sangrar. Seu
Aristides veio correndo e deu outro joelhaço no rosto daquele
tipinho, enquanto a neta de seu Aristides chutava-lhe a canela. O
sujeitinho caiu no chão de novo, ao lado da mulher. A senhora que
estava na fila passou a dar bengaladas nas cabeças e nas costas do
casalzinho. Eu chutava, com muita vontade, a barriga da
mulherzinha caída. Minha perna doía, mas eu continuava a chutar,
sempre no mesmo ponto. A mulher de cerca de trinta anos se
ajoelhou ao lado do casalzinho, pegou o homenzinho pelo pescoço e
começou a bater com a cabeça dele no chão, várias vezes, até abrir
uma fenda na parte de trás. Uma gosma espessa verde-amarronzada
saía de dentro da sua cabeça e melava o chão. Nesse meio-tempo, a
senhora que estava na fila se concentrou apenas na mulherzinha: ela
levantava a bengala e abaixava com força naquele rosto
ensanguentado. Meu marido pulava em cima das pernas do
homenzinho, enquanto seu Aristides chutava seu tronco. E a neta de
seu Aristides, imitando meu marido, pulava sobre a barriga da
mulherzinha. (STTINGER, p. 6-7,10-11)

Nos dois trechos escolhidos, pode-se perceber bem o que compreendemos por uma
síntese: Os corpos estranhos que incomodam por isso devem ser retirados, o movimento
gradual de afeição; passando pela indiferença até a mais abrupta cena de linchamento em
espaço público, sem nenhum remorso, muito pelo contrário, sentindo antes de qualquer coisa
uma catarse no ato da violência. Tudo isso assimilado no campo da linguagem.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. IN: Literatura e sociedade.
DALCASTAGNÈ, Regina. Um território contestado: literatura brasileira
contemporânea e as novas vozes sociais. IN: revista IberIc@l - Numéro 2.
FERNANDO ABREU, CAIO. Ovelhas Negras. L&Mpocket, Rio Grande do Sul: 2002.
GINZGURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Editora Autores Associados Ltda,
São Paulo: 2017.
MARTINS, GEOVANI. O sol na cabeça. Companhia das letras, Rio de Janeiro: 2018.
STIGGER, Verônica. Os anões. Cosac Naify, São Paulo: 2010.
_________________. Veronica Stigger e suas estranhas e pequenas histórias.
Entrevista concedida a Bruno Dorigatti. Saraiva conteúdo . 2010b. Disponível em:
<http://www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10354>. Acesso em: 04 fev. 2016>.

Você também pode gostar