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INTRODUÇÃO
Antes de entrar nos contos propriamente ditos, vale a pena situar, ao modo de
introdução, o tópico da violência na literatura ocidental. O texto que funda a literatura
Ocidental, a Ilíada de Homero, tem como primeira palavra de seu proêmio - canto
introdutório do poema épico, no qual se concentra a história que será contada em todo o
traquejo técnico de composição do poeta - a palavra Menin, a qual se traduz com mais
precisão para o português por “ira” - e não somente uma ira passageira, mas uma ira franca,
tenaz, prolongada. A respeito de toda uma tradição literária ocidental a filósofa francesa
Simone Weil, em seu texto A Ilíada ou o poema da força, diz
Primeiramente, convém estabelecer, antes ainda de entrar nas narrativas dos contos
cotejados, uma resposta a uma pergunta: o que podemos chamar de literatura contemporânea?
Para responder uma pergunta complexa como esta em um espaço reduzido como o do
presente trabalho, cito a escritora e pesquisadora Regina Dalcastagnè estudiosa quanto ao
tema da literatura contemporânea:
Ressaltando mais uma vez que o objetivo do presente trabalho é demarcado pelo
interesse em analisar as especificidades do tema da violência em cada uma das narrativas
trazidas, mas também os diálogos que travam entre si nos níveis linguísticos e nos aspectos
ideológicos, é interessante pensar junto com o crítico literário Antonio Candido que,
Dividido em três blocos, na primeira parte da narração, o que lemos é uma voz em
primeira pessoa que em jato na qual passado e presente se misturam numa organização
sintática estranha, é o dinamismo da cidade, a desumanização, a vulgarização das mais
distintas formas de violência, a violência em suas várias matizes (econômica, social, etc.)
apresentada em fulgores de luz que logo apagam para darem lugar a outro problema e assim
por diante.
Ao final desse primeiro pedaço, finaliza-se com um parágrafo (o menor dos três
parágrafos que compõem essa primeira parte) que acumula em seu corpo toda a tensão
narrada anteriormente, um acúmulo de microviolências que ficam em suspenso.
Ela gritou não tenho, porra, e foi tentando andar em direção à porta
do cinema, não me enche o saco, caralho, em volta os outros
olhavam e não me chama de tia, mas a menina não largava seu
braço. Assim: ela segurou com força a alça da bolsa fechada
enquanto tentava andar, e sem querer arrastando a menina que não
parava de pedir. Ela sacudiu com força o braço como quem quer se
livrar de um bicho, uma coisa grudada, enleada, e foi então que a
menina cravou fundo as unhas no seu braço e gritou bem alto, todo
mundo ouvindo apesar do barulho dos carros, dos ônibus, dos
camelôs, das britadeiras, a menina gritou: sua puta sua vaca rica
fudida lazarenta vai morrer toda podre. (FERNANDO ABREU, p.
69)
Em seu livro de estreia, O sol na Cabeça, Geovani Martins procura situar suas
narrativas na dinâmica conturbada e profundamente marcada pelas desigualdades sociais da
cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, o conto Espiral faz emergir um exemplo de
violência diversa da que foi narrada pelo gaúcho Caio Fernando Abreu.
O termo “espiral” pode ser definido como “linha curva que se desenrola num plano de
modo regular a partir de um ponto, dele afastando-se gradualmente”. Interessante deter-se
sobre a definição do termo que dá título ao conto pois ele diz muito sobre um
desenvolvimento que tem seu início mas não tem um fim certo, podendo expressar tanto os
movimentos de ida e vinda das perseguições ou do simples trânsito entre duas realidades da
cidade.
Não mais a violência explícita, de um corpo massacrado aos olhos de todos, mas a
violência cotidiana do racismo estrutural que causa as profundas desigualdades do país.
Nesse sentido, é neste espaço de diálogo entre o perceptível e nomeável e o imperceptível e o
sem-nome que se passa Espiral. Conto que narra a relação de um jovem favelado, que assim
como no conto Creme de alface não tem nome, com a desigualdade extrema, o que o acaba
por fazer um experimento: se inevitavelmente, por conta da sua posição social, se é sempre
identificado como ameaça, como perseguidor, por aqueles que ocupam o outro lado da
estrutura social, decidiu-se tornar esses movimentos de perseguição mais metódicos, como
um desafio. Contudo, longe de ter sido um movimento do início ao fim racional, antes foi um
movimento de explorar os limites, numa espécie de jogo de gato e rato, da normalização
cotidiana dos movimentos de exclusão. Em seu livro Racismo estrutural, Silvio Almeida nos
diz:
Todas essas questões só podem ser respondidas se compreendermos
que o racismo, enquanto processo político e histórico, é também um
processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja
consciência e afetos estão de algum modo conectados com as
práticas sociais (ALMEIDA, p. 63)
Nos dois trechos escolhidos, pode-se perceber bem o que compreendemos por uma
síntese: Os corpos estranhos que incomodam por isso devem ser retirados, o movimento
gradual de afeição; passando pela indiferença até a mais abrupta cena de linchamento em
espaço público, sem nenhum remorso, muito pelo contrário, sentindo antes de qualquer coisa
uma catarse no ato da violência. Tudo isso assimilado no campo da linguagem.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. IN: Literatura e sociedade.
DALCASTAGNÈ, Regina. Um território contestado: literatura brasileira
contemporânea e as novas vozes sociais. IN: revista IberIc@l - Numéro 2.
FERNANDO ABREU, CAIO. Ovelhas Negras. L&Mpocket, Rio Grande do Sul: 2002.
GINZGURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Editora Autores Associados Ltda,
São Paulo: 2017.
MARTINS, GEOVANI. O sol na cabeça. Companhia das letras, Rio de Janeiro: 2018.
STIGGER, Verônica. Os anões. Cosac Naify, São Paulo: 2010.
_________________. Veronica Stigger e suas estranhas e pequenas histórias.
Entrevista concedida a Bruno Dorigatti. Saraiva conteúdo . 2010b. Disponível em:
<http://www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10354>. Acesso em: 04 fev. 2016>.