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Resumo
As Estorias compostas pelo Rei Alfonso X são obras que refletem [não gosto muito do termo “reflete”
– sempre me parece uma relação muito direta, sem mediações – sugiro “são obras que expressam e
constituem”] o imaginário e o horizonte histórico do Reino de Castela, mas também alguns indícios
das nuances das forças de dominação. Através do estudo das representações dos judeus, se pode tentar
identificar elementos de dominação cristã e agência judaica para fins de resistência, e para isso refletir
sobre estratégia e tática pode enriquecer esse [qual¿] aparato teórico-metodológico.
Introdução
As crônicas medievais podem ser definidas como uma “narrativa registrada de eventos
passados” (MENACHE, 2006, p.344), como está definido nos dicionários da Idade Média, e
incitam aos profissionais da pesquisa histórica medieval o problema de extrair delas os dados
que possam ser utilizados para a construção de uma fidedigna interpretação historiográfica
[essa afirmação não te parece muito positivista e empirista¿] (MENACHE, 2006, p,344). De
acordo com Sofia Menache, as crônicas do século XIV parecem ter um viés de aspectos
fantásticos, preconceitos e anedotas os quais compõem esta complexidade na extração [esse
1
Bolsista CAPES de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.
mquinhoz@hotmail.com. Em 12/12/2019.
termo me parece problemático] e interpretação de dados confiáveis. Entretanto, elas poderão
revelar uma porção de elementos a serem analisados pela ponderação do historiador:
Crônicas seguem merecendo plena atenção não somente porque elas fornecem dados
fatuais, o qual em muitos casos constituem uma única fonte de informação, mas
também, e talvez primariamente, porque elas constituem uma genuína fonte de
verificar atitudes que prevalecem entre seus autores, seja monges, mercadores,
notários, e/ou outros membros da burguesia nascente num dado tempo e num dado
espaço. Em consideração a isso, dados prosopográficos, não somente afiliação
nacional ou regional dos cronistas, mas também a circunstância de fundo
socioeconômica, cultural e política, é de primordial importância para uma melhor
compreensão das posturas e fatores por trás das diferentes abordagens expressadas em
seus escritos. (MENACHE, 2006, p.344)
O termo “judeu”, cuja referência remonta desde a tribo de Judá da antiga civilização
de Israel, será considerado como uma construção histórica que faça referência ao judaísmo,
isto é, a religião dos judeus. No entanto, conforme Daniel Boyarin, da Universidade de
Berkeley, a religião judaica teria se formado desde uma perspectiva cristã do “judeu”. A
noção de judaísmo fora construída historicamente, uma vez identificada pelos hospedeiros
cristãos, na Antiguidade Tardia, como uma crença alheia ao cristianismo resistente à
conversão. Antes disso não haveria um “judaísmo”, mas o povo judeu e a sua crença
monoteísta, com seus costumes e tradições baseados nas lei de Moisés (BOYARIN, 2016,
p.61). Em contrapartida, os judeus constituíram e se apropriaram do judaísmo a fim de resistir
ao constante vilipêndio perpetrado contra a sua cultura. Assim, o “judeu” seria o agente
histórico representado em convivência e conflito com as outras culturas, e o judaísmo como
uma religião construída pela resistência à dominação cristã.
Os conceitos de dominação2 e resistência3 são frutos da modernidade e por isso haveria
algumas questões a serem respondidas em sua constituição - tais como se isso se tornaria
aplicável se não há uma aquiescência judaica aos seus dominadores - para que pudesse se
ajustar a um aparato conceitual que ajudasse no entendimento e em uma descrição dos
acontecimentos e produções relativos ao medievo. Assim, tentaremos refletir sobre eles
usando duas abstrações conceituais de Michel de Certeau: estratégia e tática.
Estratégia
O local de produção cultural em Castela do rei Afonso não deveria ser ambiente onde
as forças de dominação fossem irrelevantes. Nas próprias estorias escritas sob a autoridade
afonsina há diversas intepretações antijudaicas, como as que parecem justificar a condução do
reinado pela exploração das riquezas dos judeus. No capítulo XXV da General Estoria, a
narrativa conta o final da vida de Abraão, e explica sobre o momento em que Deus lhe diz que
a sua linhagem será espalhada pelo mundo, mas que estariam protegidos de seus inimigos.
Contudo, os judeus perderiam essa guarda divina:
4
A cronologia dessas narrativas históricas é referenciada pelos regentes dos povos – sennorio - que ocuparam
aquela territorialidade, e isso se faz mais relevante nessa obra que os aspectos da ação da Providência divina no
mundo (sacerdotium).
E também quis Deus que fossem destruídos e derrotados todos os inimigos deles, dos
judeus, até que eles perderam por sua culpa [...]. E da outra palavra que declara que
eles sairiam do cativeiro com grande riqueza, assim também foi, porque a maior parte
do quanto havia no Egito eles levaram, e todas as outras terras que roubaram e
destruíram5. (ALFONSO X, 1963, p.200)
5
Tradução livre do excerto original: “Et outrosi todos los ymiigos deles quiso Deus que fossem detroydos et
vencidos dos judios, ata queo ele perderõ por sua culpa [...]. Et da outra palavra que disso que sayriam deste
catyveyro cõ grande riqueza, esto asy foy, por que a mayor parte de quanto avia êno Egito eles oleuarõ, et de
todas las outras terras que rroubarõ et destroyrom despoys.”
6
Gênero de livros sagrados para o Judaísmo, que investigam e interpretam exegeticamente o texto bíblico.
E neste lugar o frade expõe dizendo que o rei Júpiter que fugiu dos gentios para o
Egito quer significar o Nosso Senhor Jesus Cristo que fugiu ao Egito diante da
maldade dos judeus [...] E os gigantes que eram os judeus e o grande gigante Trifoveo
que ia adiante deles era o rei Herodes7. (ALFONSO X, 1963, p.139)
Nesta passagem fica clara a intenção de criar uma situação de medo em relação
aos judeus, uma alteridade baseada no mito de um pérfido perseguido, que poderia estar
vinculado à uma estratégia de justificar o sacerdócio cristão, uma vez que a minoria judaica é
retratada como perigosa e poderosa em termos culturais. Essa manifestação se caracteriza
antijudaica, uma vez que o estigma do deicídio sempre representou uma mancha na linhagem
sanguínea, evidenciando assim o antissemitismo que se faz permanente, ou ao menos
incipiente, mesmo neste contexto. Também é interessante perceber o sentido escatológico
dado à história nesta passagem.
A partir deste espaço de dominação que se estabelece nas cortes e na produção cultural
castelhana onde o império do cristianismo ibérico é mais atuante e potente que quaisquer
outras visões de mundo, é que ele se constrói e se expande reconfigurando-se segundo as suas
próprias pretensões, não tendo, todavia, a sua concepção de Si Mesmo, um Próprio 8, acossada
por algum agente externo, ou ameaçada internamente. Portanto, é perfeitamente plausível que
a produção cultural tenha sido direcionada para uma posição de dominação e conquista de
7
Tradução livre do excerto original: “Em este lugar espõ ofrayre et dizque el rrey Jupieter que fogio ao Egyto
ante os gentis, que quer significar anoso señor Ihesu Christo que fugio ao Egyto ante amaldade dos judios [...].
Et os gigantes que erã os judios et Trifoueo ho grande gigante que ya em pos eles que foy rrey Herodes.”
8
“O ‘próprio’ é uma vitória do lugar sobre o tempo. Permite capitalizar vantagens conquistadas, preparar
expansões futuras e obter assim para si uma independência em relação à variabilidade das circunstâncias. É um
domínio do tempo pela fundação de um lugar autônomo” (CERTEAU, 2014, p.99)
novos espaços, haja vista aquele contexto e os seus desdobramentos. Dessa maneira, de
acordo com Certau:
Chamo de estratégia o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder (...) pode ser isolado. A estratégia
postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde
se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças. (...) toda
racionalização “estratégica” procura em primeiro lugar distinguir de um “ambiente”
um “próprio”, isto é, o lugar de poder e do querer próprios. (...) circunscrever um
Próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro. Gesto da
modernidade científica, política ou militar. (CERTEAU, 2014, p.99)
9
Representações amplamente difundidas segundo um imaginário cristão medieval.
Assim se pode tentar visualizar como se configurava a inclusão do judeu e a sua
relativa liberdade nas escolas de tradução de Toledo e outros recantos de produção cultural
castelhanos. Embora os judeus tivessem o seu espaço nas aljamas ou juderias, o seu espaço
esse era controlado, ora se tornando mais flexível dentro da estrutura de dominação cristã, ora
mais isolado e excluído. De qualquer maneira, controlado. A liberdade só podia ser concebida
dentro dos oráculos e dos lares judaicos. Mas mesmo nas mentes, no âmbito do imaginário, os
judeus deveriam responder às atribuições que lhes eram feitas nas cortes e na vida social.
Quanto mais num espaço de produção de saber, que também é poder, segundo Certeau:
Embora na modernidade o poder com o qual se é hegemônico seja muito mais sutil, e
por isso mais efetivo, na Castela dos fins da Reconquista podemos já perceber a criação deste
espaço de poder no qual o Império Espanhol elaboraria as suas estratégias. Certeau afirma que
“As estratégias são ações que, graças a um postulado de lugar de poder (a propriedade de um
próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um
conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem” (CERTEAU, 2014, p.102). Portanto,
isso é o que permitiria o controle e enfraquecimento da identidade dos cristãos novos ou
criptojudeus e o domínio sobre os povos indígenas na colonização da América. No entanto,
essa dominação sempre teve que se ajustar e se conformar às resistências que foram surgindo.
Tática
Assim, a ocasião se tornaria favorável para que os judeus gozassem de relativa paz,
mas também de colocar em relevo a sua interpretação do mundo. O repovoamento da Espanha
durante a Reconquista concedeu aos judeus um lugar mais próximo à Coroa para suprir as
demandas por conhecimentos econômicos e administrativos, enquanto a nobreza cristã ainda
estava demasiada ocupada com o esforço bélico. Por conseguinte, este momento é um período
positivo para um esforço tático:
As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – as
circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação
favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações
entre momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de durações e
ritmos heterogêneos etc. (CERTEAU, 2014, p.102)
Outras visões que podem ser consideradas heterodoxas pela perspectiva cristã, e que
estariam presentes em fontes judaicas, são aquelas como os apócrifos, tais como o livro de
Enoque10. Uma representação comum entre cristãos e judeus presente nessa fonte é a
consideração de que a serpente seria Satã. Mas considerar que Deus ensinou o homem a lavrar
a terra é interpretada segundo uma significação originária de fontes judaicas (Genesis Rabba
xxiv; Pes. 564a). O redator evitou explicar esta nova interpretação, apenas alegando que
escritos de “árabes sábios” teria discorrido sobre tal coisa (FERNANDEZ, 2013, p.554).
Assim suscita-se a questão: por que o redator ocultaria uma fonte judaica, atribuindo-a aos
árabes? A resposta mais gritante que se apresenta é a de uma ação racionalizada para o fim de
fazer um discurso representativo da crença judaica prevalecer na narrativa a qualquer custo.
Um ímpeto de resistência que parece ser movido por essa mesma crença de reagir
culturalmente, pois após um longo período de ausência de liberdade criativa, e de ter
carregado o jugo sobre si da imposição de um discurso que o lançava na marginalidade,
10
Texto apócrifo, de caráter sagrado, que conta uma visão mística da criação e dos sete céus e o lugar onde Deus
habita. É um dos manuscritos mais antigos, tendo sido encontrado entre os pergaminhos do Mar Morto.
aquele poderia ser o momento de fazer as palavras reverterem a realidade ao seu favor
(segundo a proposição cabalista de que as letras criam mundos). Por inferência, essa agência
judaica poderia causar uma interação inserida num círculo hermenêutico de crenças relativas
ao que aqueles agentes históricos tanto percebem como se comportam11 (SMITH, 1997,
p.107).
Portanto, pode-se inferir que alguns artifícios alfonsinos devem fazer parte da
admiração do rei, ou redator, aos estudos da tradição judaica a fim de preencher as lacunas
não explicadas da narrativa bíblica. Ou então cogitar a participação e intervenção
determinante dos sábios judeus, quiçá cabalistas, na General Estoria num movimento tático12
11
De acordo com Smith: “O processo que acabamos de descrever pode parecer bastante próximo daquilo que a
epistemologia informal descreve como a resistência oferecida às nossas crenças (teorias científicas, explicações
históricas, interpretações literárias e assim por diante) pelos fatos, (...), os próprios textos...” (SMITH, 1997,
p,107)
12
Ver CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de Fazer. Cap.3: Fazer com: usos e táticas. Petrópolis:
Vozes, 2014. p. 91-106.
de resistência pelo qual a sua crença resultaria inscrita nas representações de uma obra de
significativo valor epistêmico, pois “as crenças são modificadas da mesma maneira, pelos
mesmos mecanismo gerais, com que são mantidas” (SMITH, 1997, p.103).
A figura de Caim também diverge de outras fontes cristãs, uma vez que aqui está
representado em uma forma mais humana, sendo alguém responsável por sua própria
perdição, ao passo que os outros escritos cristãos lhe conferem um caráter de representação do
mal e da perfídia, quase satânico. Muitas lacunas da trama na qual Caim está envolvido estão
completadas por representações de fontes cristãs e rabínicas na General Estoria, no entanto
elas evitam toda atribuição antijudaica presente na figura de Caim nessas fontes (Agostinho,
Beda, Isidoro de Sevilha e Pedro Comestor), tal como Fernandez afirma:
Conclusão
Sob este aspecto, a diferença entre umas e outras remete a duas opções históricas em
matéria de ação e segurança (opções que respondem aliás mais a coerções que
possibilidades): as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um
lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do
tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de
um poder. (CERTEAU, 2014, p.102)
Por fim, fazendo valer uma cultura que resistiria, ainda que em constante
transformação, até atualmente, apoiada nas crenças e postulados da tradição judaica e da
Cabala, podem ter fornecido muitos elementos referentes ao poder da linguagem, que
inclusive se desenvolveriam nas revoluções científicas procedentes. Portanto, investigar as
relações de dominação e resistência no medievo nos espaços de saber é também buscar o
entendimento de como o poder se distribuía e atuava naquela realidade. A dominação
enquanto conceito revela a maneira pela qual o poder se legitima e se exerce sobre um outro
que é dominado. Deste modo, ele se faz presente desde o inconsciente e a linguagem até se
manifestar em estruturas e papéis sociais, cuja substância se exprime através de um
aparelhamento [pensar no que significa essa palavra] do simbólico que é replicado desde
tempos imemoriais. Assim, dominadores e dominados, dentro do âmbito da dominação,
compartilham os elementos que resultam em definir os seus devidos lugares. A partir destes
lugares de poder se pode determinar estratégias para a manutenção ou expansão deste poder.
Já a resistência é uma força resultante que busca diminuir ou transformar o poder que lhe é
imposto pelo dominador. Ela se exprime socialmente desde rebeliões até atitudes
recalcitrantes de boicote e sabotagem cotidianos da ordem hegemônica. Ela é característica
determinante dos mais fracos, que não podem fazer vez ao poder dominante e pela ausência
de um espaço de poder, ele [quem¿] precisa usar da tática para empregar as suas forças nas
lacunas das estruturas de dominação. Assim, este artigo buscou compreender melhor a
dominação e a resistência através de conceitos como estratégia, tática, agência e crença.
Conceito trabalho: B+
Conceito disciplina: A
Fontes
ALFONSO X. 1963: General Estoria. Versión Gallega del Siglo XIV. Ed. R. Martínez-Lopez.
Oviedo, Facultad de Filosofia y Letras.
Referências Bibliográficas
BAER, Y. História de los Judíos en la España Cristiana. Tel Aviv: Am Oved 1945, revised
and expanded 1959. Tradução do hebraico: José Luis Lacave. Ed.: Riopiedras;
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2014 (cap. III);
EISENBERG, D. The General Estoria: Source and source treatment. Alicante: Biblioteca
Virtual Miguel de Cervantes, 2005. p.206-227;
MIGUEL, L.F. Dominação e Resistência: desafios de uma política emancipatória. São Paulo.
Boitempo, 2018;