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Texto de Zé Vicente
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PERSONAGENS
IVO
40 anos, homossexual paulista, dono de uma
boutique.
ARTHUR
22 anos, ex-seminarista, que vive com Ivo.
NICOLAU
30 anos, diácono, irmão de Arthur.
CENÁRIO
AÇÃO
ARTHUR – Banco? Você tá louco! Ficar fechado oito horas por dia,
ouvindo barulho de máquina, de gente? O dia inteiro mexendo com
papéis, dinheiro, assinar, dar satisfações pra chefe, ter que
agüentar colega... não. Não sou louco. Banco não!
IVO – Não, você pode muito bem dar história, português... latim
você pode dar! Você não foi seminarista?
IVO – Que bonito. Você foi seminarista oito anos, não foi, Arthur?
Ou sete?
IVO – Por que você não gosta de falar que foi seminarista? É uma
experiência muito boa, meu querido, uma experiência, seu bobinho.
(Pausa) Já pensou se dos padres lá do teu seminário entrassem
aqui, agora, e te vissem deitado comigo, o quê não iam pensar?
ARTHUR – Não iam pensar nada, lógico, desde que você não
levantasse e começasse a dar a pinta...
IVO – Às três horas da tarde? Não tem mais ninguém na rua! O pior
é que eu tinha de ver o negócio das camisas... Eu devia ter
montado uma loja de mulher – de mulher mesmo! – já cansei desta
variação de cores pra moda masculina. Que excesso de
efeminação! Com essa invenção de ácido lisérgico, então...
ARTHUR – Ele queria que eu fizesse casa com aquela bicha, amiga
dela. Aquela bicha jornalista, que já foi até da Igreja dos Mórmons e
tem mania de Inglaterra. Ela arruma o apartamento da bicha e
arruma homem para ela.
IVO – Mas você me contou o ano passado, que ele tinha terminado
o curso de... de...
ARTHUR – Teologia.
IVO – Será que ele sai na rua, vai à zona, essas coisas? Será que é
isso?
IVO – E por que você não fala pra ele desistir? Imagina ser padre!
Que falta de imaginação!
IVO – Como se você desse o duro todo o dia! Até parece! (Pausa).
Arthur, você podia ser manequim! É fácil, e você tem o tipo
que serve!
ARTHUR – Pelo amor de Deus, não vem com essa conversa outra
vez. Sempre que você quer ter razão, você apela pra esse
argumento: seminarista! Fui seminarista, e daí?
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IVO – Ah! Por mim, você faça o que quiser! Vai ser ladrão,
assassino, bandido, soldado da força pública! Eu só estou
pensando no meu futuro! Depois, não vai dizer que eu não pensei
no seu. (Pausa).
Arthur: você está com raiva de mim, está?
IVO – Você pensa, é?... Você pensa... em que você pensa, Arthur?
(Arthur não responde) Engraçado, faz cinco meses...
ARTHUR – Seis!!!
IVO – Seis! É já faz seis meses! Seis meses que estamos juntos, e
eu ainda não te entendi! Você vive tão longe, que eu, às vezes,
ponho a mão em você, para ter certeza que você está aqui.
IVO – Não vai me dizer que você concorda com essa onda
psicodélica que está por aí?
IVO – Os hippies!
ARTHUR – Os hippies?
IVO – Porque eu sou uma mãe pra você, Arthur! Tenho certeza que
nem a sua mãe faz por você o que eu te faço. Imagina: comida,
roupa, cinema, teatro e ainda por cima, dinheiro! Que mais que
você quer? Sou uma mãe pra você!
IVO – Só faltava essa! (Pausa) Mas você não faz nada meu bem!
Você só entra com a pele e a idade. Só isso!
IVO – Você tem que reconhecer que você fica comigo porque você
sente prazer!
ARTHUR – Vigarice!
IVO – Você diz que não gosta de sexo. Não gosta, mas pratica, e
eu sei como! Enfim... você vive disso! (Pausa).
Não quer trabalhar, não trabalha. Não trabalha de jeito
nenhum. Não move uma palha dentro deste apartamento: te deixo
na cama, te encontro na cama. Você nunca foi comigo à boutique.
Bem... eu também não exijo: você só ia atrapalhar. Não lê, não
estuda, não faz nada. Diz que está pensando, pensando. Você é
filósofo?
IVO – Não faço mais análise, meu amor. Já sou analisada! Sou uma
pessoa normal!
ARTHUR – Normalíssima!
IVO – Claro que sou. Trabalho o dia inteiro. A boutique vai indo
cada vez mais para frente. Estou comerciando na elite! Já tenho
dois empregados, dirijo tudo, sei muito bem me portar em qualquer
ambiente, sei freqüentar qualquer lugar da sociedade – qualquer
lugar! – e não tenho problemas sexuais!
ARTHUR – Ivo: eu não sei com quem você aprendeu, mas você é a
realização! (Pausa. Longo silêncio entre os dois.).
ARTHUR – Tem milhões por aí... Tem até gente de boa família, o
que não é o teu caso.
IVO – Eu conheço muito bem essas que andam por aí. Queimam
qualquer um. Nenhuma delas ia te tratar como eu te trato. Imagina!
Deixar morar junto, dormir na mesma cama!
IVO – Você tem vinte e poucos anos. Você sabe muito bem que,
daqui a algum tempo, ninguém vai te querer mais. Isto é certo como
dois e dois são quatro. Até que eu não faço muita exigência! O
Cláudio, por exemplo, que é O Bofe, não pega mais ninguém!
ARTHUR – E no mínimo?
ARTHUR – Eu não estou! Não tenho saco pra ver a cara viciada da
sua gente!
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IVO – Eu tenho que fazer tudo sozinho nesta casa! (Arthur levanta-
se subitamente).
ARTHUR – Ivo!
NICOLAU – Quando vim para São Paulo, estive lá. A mamãe está
vivendo da aposentadoria do papai. Você não voltou lá e nem deu
mais notícias!
ARTHUR – É, o padre.
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ARTHUR – De balconista?
ARTHUR – Não. Você está com a cara muito boa. (Pausa.) Escuta,
a mamãe mandou você falar em dinheiro comigo?
IVO – Não, não põe o pé no chão, não, que faz mal! Aqui. Põe este
chinelinho! (Calça os chinelos em Nicolau.) Senta aí, fica à
vontade. Sabe que vocês dois se parecem? Parecem sim. O
Nicolau é mais velho, a gente nota, só que o Arthur tem a cara
mais... mais vivida, sabe como é, que o Nicolau não tem. Como é
que você descobriu o apartamento, Nicolau? Eu posso chamar você
de Nicolau?
NICOLAU – Foi mais difícil localizar... eu fui num hotel ali na rua... e
pedi informações...
IVO – Não, meu querido, não fica pensando muito na gente, não.
Pronto: se a gente descuida um pouquinho, o apartamento vira
zona! (Tempo.) Deixa eu levar você até ao banheiro. Vem. Vem.
Você está descalço?
IVO – Não, não põe o pé no chão, não, que faz mal! Aqui. Põe este
chinelo. Isso, agora, vem! (Ivo sai, levando Nicolau. Arthur
acende um cigarro e olha os livros de Nicolau. Depois de algum
tempo, Ivo volta).
O meu apartamento hoje virou a sede da Igreja Católica!
IVO – Para mim tanto faz! Além do mais, o seu irmão é entendido!
Eu percebi logo.
IVO – Pode ficar sossegado, Arthur. Seu irmão não faz o meu tipo.
Pode ficar sossegado. Não precisa ficar preocupado...
IVO – Nossa! Como você ficou agressiva comigo depois que o seu
irmão chegou! Como você ficou agressiva!
IVO – Arthur... fala que minha cara não está acabada. Não pode ser
verdade! Você está brincando... fala: eu estou muito velho?
IVO – Você sabe que eu detesto política. Imagina você sair agora.
Nós descemos os três juntos!
NICOLAU - E o Arthur?
IVO – Desceu. Foi comprar alguma coisa pra gente comer. Você
deve estar com fome, não está?
NICOLAU – Não decidi ainda. Faz quase um ano que estou parado.
IVO – Faz muito tempo que não vou à Missa, mas eu fiz a primeira
comunhão e tudo. Freqüentei a Igreja. (Pausa).
Eu vou arrumar um conhaque pra você. Você gosta de
conhaque?
IVO – Do interior.
NICOLAU – Não...
IVO – Ah, lógico! Eu já tinha até esquecido que você é... Como é
mesmo que se chama quando uma pessoa chega até onde você
chegou, e não é padre?
NICOLAU – Tem uma menina que vai à Missa das sete. Todo o dia
ela vai. Ela sempre comunga comigo. Ela não é bonita. É meio
ruiva. Os outros acham que ela é feia, mas eu não. Quando ele
comunga comigo, a gente olha um para o outro... eu acho que gosto
dela, mas, é lógico, que não existe nada... às vezes, a gente
conversa.
O que foi mesmo que você disse do Arthur... quando
ele está... na cama?
IVO – Você acha que eu estou muito velho? Que idade você me
dá?
NICOLAU – Quarenta?
IVO – Vou buscar mais um conhaque pra você. (Ivo sai com os
cálices vazios.).
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IVO – Gosto. Eu gosto muito de rosas. Sempre que passo por uma
floricultura, eu compro.
IVO – Você guarda lá dentro para mim? O Arthur vai chegar logo.
Depois, se vocês quiserem se encontrar comigo, estou no Barba
Azul. O Arthur sabe onde é. Eu estou bem assim?
IVO – Não precisa meu querido! O Arthur vai chegar logo. (Sai).
ARTHUR – Ah, foi caçar! Hoje é sábado, dia de caça coletiva! Hoje,
aqui no centro da cidade, elas estão todas em bando, como os
hippies. Hoje é sábado... muita cara nova, gente do interior,
rapazinhos de subúrbio. Você não quer sair para caçar, Nicolau? No
inverno fica mais complicado, mas tem mais veludo, é mais
europeu. Esse europeu, que inventaram pra São Paulo. Dei uma
olhada, e já está começando a ferver... Você não fala nada?
ARTHUR – Foi aqui que eu aprendi a ver que nesse país inteiro, só
existe uma pessoa que conheceu a santidade. Ela é uma mulher, e
é a nossa mãe, que mandou você falar em dinheiro comigo.
NICOLAU – Claro!
NICOLAU – Eu?
ARTHUR – O ativo!
ARTHUR – Juntos.
NICOLAU – E aí?
NICOLAU – Relíquia?
ARTHUR – Vou contar uma coisa pra você: eu tinha inveja de você,
porque você era santo.
NICOLAU – É por isso que você não ajudava nas cerimônias! É por
isso que você nunca era escalado! Você cantava no coro...
NICOLAU – Você tinha talento, sim. Ele disse que você podia fazer
discursos. Lembra que você fazia poesias e recitava nas sessões
da academia?
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ARTHUR – Você não era piedoso! Você era o santo que eu não
era!
ARTHUR – Quando?
ARTHUR – Na paraliturgia?
NICOLAU – A Igreja...
ARTHUR – Não precisa ter nojo, ele faz parte de toda a cidade
grande!
NICOLAU – Não!
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ARTHUR – Você não vai perder o que São Paulo tem! (Silêncio de
Nicolau. Pausa).
(Depois de um tempo, Arthur volta, ainda de batina, mas agora,
desabotoada) Então nós ficamos aqui. Nós bebemos aqui. Vamos
tomar o vinho importado. Ele tem a mania de vinho importado de
Marseille. Vinho importado e rosas! Você percebeu que ele tem
mania de rosas?
ARTHUR – Ele disse que é. Ele sempre faz questão de dizer que as
coisas são caras. Os sapatos, as camisas, as roupas. Tudo é
caríssimo!
NICOLAU – O Ivo?
NICOLAU – É o Ivo?
ARTHUR – Existe este clima entre nós dois. Nossa relação virou
um perigo, para os dois...
NICOLAU – E você?
ARTHUR – Não sei como tudo isso vai acabar. Fomos longe
demais. Ele conhece tudo sobre mim, e eu conheço tudo sobre ele.
Criamos uma cumplicidade perigosa. (Pausa.) Mas não se
preocupe...
NICOLAU - Você não tem medo de viver aqui, sabendo que pode
ser assassinado de uma hora para a outra?
ARTHUR – É a minha!
NICOLAU – O que você faz? Você não faz nada, além disso?
NICOLAU – À toa?
NICOLAU – E ele?
NICOLAU - Quem?
ARTHUR – Não sei como vai ser o desfecho. Ainda não sei. Pode
ser que não aconteça nada. E pode ser que aconteça tudo. (Pausa)
Têm muitos problemas. O principal deles, é que você começa a
ficar marcado na praça.
NICOLAU – E você já é?
NICOLAU – E daí?
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NICOLAU - Sozinho?
ARTHUR – Não, não foi nada! Eu acho que o vinho me fez mal...
(Nicolau ampara Arthur, segurando-o.).
ARTHUR – O Ivo ainda tem que chegar... Enquanto ele não chegar,
não podemos dormir, porque ele pode chegar acompanhado!
NICOLAU - Acompanhado?
ARTHUR – Ele não sai faz tempo. Saiu hoje, porque você apareceu
e não quis ir para a cama com ele.
ARTHUR – Às vezes, sim. Mas, se vierem hoje, é claro que não vão
dormir.
ARTHUR – E aí?
ARTHUR – Hoje você veio. Mas você não pode fazer mais nada por
mim! Meu Deus, como é alto este apartamento! Estamos no alto de
São Paulo! (Arthur fecha a janela. O ruído de carros cessa.) Está
chovendo. (Pausa. Silêncio.) Uma vez, num sábado de noite, como
hoje, eu saí na rua e encontrei uma moça que estava perdida, como
eu, no centro de São Paulo. Era do interior, e tinha vindo para
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procurar emprego na cidade. Foi na rua. Nós nos vimos, e foi como
se já tivéssemos nos conhecido, um ao outro, há muito tempo.
Andamos nós dois juntos pela rua, e ficamos juntos até de
madrugada... O meu sangue ferveu, e ela me fazia sentir como um
animal selvagem... Depois, fomos a um hotel, nós dois juntos. As
ruas estavam desertas e já era quase de manhã, em São Paulo.
Era como se nós estivéssemos saindo de São Paulo... indo embora
de São Paulo, de manhã... saindo de São Paulo... indo embora de
São Paulo... (Barulho de elevador.) Você ouviu? Agora é ele. O
Ivo!
IVO – Que frio! Que porra de cidade é essa que faz frio e chuva de
madrugada! Ah, eu estou tremendo! Me dá um conhaque!
ARTHUR – Não. Você já está bêbado. Você não vai querer beber
conhaque agora!
IVO – Por que você não foi me encontrar? Eu fiquei sozinho a noite
inteira... Vocês dois aqui, brincando de padre, e eu me estrepando
aí na rua, sozinho!
ARTHUR – Quem mandou você sair? Você podia muito bem ter
ficado.
IVO – A polícia!
IVO – Nós vamos varrer a coisa de São Paulo... Vamos deixar São
Paulo branca... limpa... surda... Mas sem a coisa.
IVO – Acho que vou vomitar... Amanhã eu vou dar queixa! Ah, acho
que vou vomitar! E você, eu vou te mandar embora da minha casa!
IVO – Não quero mais ver a tua cara! Você já é igual a eles!
Amanhã, você pode pegar as suas coisas, e se mandar daqui! E eu
não quero ver este teu irmão padre aqui no meu quarto!
(Arthur volta trazendo um vidro de gardenal).
NICOLAU – O que você vai fazer? Você vai dar o gardenal pra ele?
ARTHUR – Ele vai tomar... ele vai tomar com vinho importado de
Marseille! Traz a garrafa de vinho importado de Marseille! (Arthur
pega a garrafa de vinho e despeja num cálice) Você vai tomar
vinho importado de Marseille! E, com música! Eu vou pôr um disco
para você. Vou botar aquele disco dos hippies, que você gosta.
Sabe qual? Eu vou botar para você. (Arthur vai até a sala e põe
um disco de rock.).
IVO – Vou falar com os meus amigos, e aí você vai ver o que vai lhe
acontecer! (Arthur despeja todos os comprimidos do vidro, na
mão) Você vem dormir comigo, Arthur?
NICOLAU – Eu te absolvo!
ARTHUR – É impossível!
ARTHUR – Não.
ARTHUR – Você sabe que pra mim, já não tem jeito de voltar atrás!
IVO (da cama) – Arthur, você vem ou não vem dormir? (As luzes
começam a baixar).
FIM