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Se entendêssemos o passado como algo que se foi, como algo que está
morto, não poderíamos sequer pensar em montar uma tragédia grega... dada
a distância no tempo... a distância da língua, dos costumes, das crenças, da
cultura, do modo de pensar, a distância do próprio conceito de sujeito.
Meu primeiro espetáculo profissional foi uma ousada incursão pela tragédia
grega. Não sei se o fato de ter começado com uma tragédia fez com que uma
maldição se abatesse sobre mim ou se as questões que levantei na época
impulsionaram meu trabalho num sentido determinado. Não sei se deu sorte
ou azar começar com uma tragédia... o fato é que esta foi uma experiência
que se estendeu por toda a minha trajetória.
Eu tinha, na época, 23 anos. Foi uma direção conjunta com Helena Varvaki,
também com 23 anos. Antígona foi a peça escolhida para ser imolada por um
grupo de atores bem jovens. Aquela ousadia de juventude e o mergulho na
tentativa de amadurecer uma idéia sobre a tragédia deixaram, entre várias
perguntas que não puderam ser respondidas ao longo daquela experiência,
uma que sintetizava uma sensação que esteve latente durante todo o
processo de trabalho e por toda a temporada: a tragédia é possível nos dias
de hoje? E se for, o que é o trágico?
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Como eu disse há pouco, a Grécia das tragédias está num tempo muito
longínquo, está no horizonte da origem do teatro. E quando pensamos no
contexto daquela Grécia Antiga, é muito difícil nos reconhecermos ali.
Principalmente quando aludimos à conceituação do sujeito. As pessoas
daquela época descreviam-se de outra maneira, estabeleciam outras relações
com o divino e com seus próprios sentimentos. Assim, quando pensamos na
possibilidade do trágico hoje, estamos procurando entender um tempo com o
qual nos relacionamos. Um tempo que identificamos como a origem do nosso
tempo. Estamos, portanto, afirmando que existem pontos de convergência
entre estes diferentes tempos.
A peça de Ibsen, para quem não conhece, conta a história de um escultor que
realizou uma única grande obra, vivendo dos louros deste trabalho há anos.
Casou-se com uma mulher fútil que sequer compreende seu tédio e suas
motivações. Outrora, Rubek, o escultor, tinha um projeto em comum com Irene,
sua modelo: juntos eles produziriam um exemplo de pureza materializado na
obra intitulada O dia da ressurreição. A modelo, apaixonada pelo artista,
percebendo que ele só dá atenção à construção da obra, quando percebe que o
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trabalho está no fim, abandona-o. Rubek desespera-se e, na angústia provocada
pela ausência de Irene, altera a obra passando a representar nela a forma como
os horrores do mundo o afetam. Anos depois ele reencontra a modelo e, após um
ajuste de contas, resolvem realizar a relação há tanto tempo adiada. Sobem para
o alto de uma montanha, de onde poderiam contemplar “todos os esplendores da
terra”. Entretanto, uma avalanche colhe-os impedindo a realização deste amor.
Mas o que este drama simbolista teria a ver com a tragédia? Bem, neste
momento eu estava ainda tentando construir uma idéia do trágico que nos
satisfizesse. E, de alguma forma, este texto me ajudava neste sentido. As peças
de Ibsen, principalmente as últimas, falam de uma demanda que exige dos
personagens uma expiação. É como se a decisão tomada num dado momento,
reverberasse por toda a sua vida. E, um dia, aquela decisão revela-se ao
personagem como a falta que o mergulhou no vazio. Aquela decisão equivale a
um erro trágico levou-o ao vazio mais completo. A decisão era inevitável, mas as
conseqüências também serão inevitáveis e irremediáveis.
Alguns anos depois, me deparei com uma frase de Walter Benjamin – de novo
ele – determinante para meu trabalho a partir dali: a tragédia é um fato
lingüístico.
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A compreensão estrutural do drama de Ibsen adquiria plenamente seu
sentido trágico. E moderno. A tragédia é da ordem da linguagem. Se é da
ordem da linguagem, é da ordem da construção. Portanto, seu princípio não
passa pela emoção que a tragédia, vista do senso comum, evoca, mas pela
estrutura, pela composição.
Mas qual seria a função do coro para nós? Nos fazíamos esta pergunta quando
Josette Féral, num ensaio publicado em Folhetim onde descreve o processo de
montagem dos Átridas de Mnouchkine, fala do prazer pelo horror, fala da
delícia do sangue, da violência e da morte:
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A tragédia suscita certamente horror e indignação mas também delícia.
A violência faz parte e é preciso exprimi-la de uma forma ou de outra,
reconhecendo que ela tem motivos para agradar.
Como a tragédia era, de certa forma, contada pelo coro, personagens que
consideramos secundários como Creonte, Ama e Egeu foram absorvidos pelo
coro que dialogava com Medeia assumindo estes papéis através, apenas, da
fala, sem nunca se transformar fisicamente nos personagens. Tínhamos,
portanto, apenas 4 figuras em cena: Jasão, Medeia, Glauce e o Coro.
No aspecto geral, pode-se dizer que nosso protagonista era o Corifeu. Ele
assumia a responsabilidade por toda a história e instigava Medeia na direção
do seu destino. Na fala que antecedia o assassinato das crianças, ele chega
a explicitar seu papel:
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Vá, Medéia, complete o seu destino. Esqueça por um instante que são
seus filhos e chore depois a vida toda, porque você os ama e vai matá-los.
O texto foi totalmente reescrito por Fátima Saadi. Chegamos, mesmo a ficar
em dúvida se deveríamos manter o nome de Eurípides, na medida em que
nos apropriamos totalmente do mito, reestruturando, cortando,
redimensionando os papéis da tragédia. Finalmente, decidimos por manter a
parceria com Eurípides porque o encadeamento das cenas foi totalmente
respeitado.
FOTOS DE MEDÉIA
de Luiz Henrique Sá e Jorge Etecheber
Temos inúmeros exemplos de uma dramaturgia que está sendo produzida hoje,
mas reflete um modo de construção antigo, anacrônico, uma compreensão
textocêntrica da cena. E, por outro lado, temos vários exemplos de retomada da
dramaturgia clássica na qual o foco está centrado na descoberta de um tempo
passado, num excessivo respeito às palavras em detrimento do seu sentido
hoje. São exemplos que se equivalem.
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Acredito que ao retomarmos um texto de outro tempo, é preciso atentar para
os motivos que nos levam a fazer isto. Mais importante do que o fato de
lançarmos mão de uma dramaturgia de outra época é explicitarmos qual o
motivo que nos leva a fazê-lo.
Nosso próximo desafio é Peer Gynt. E decidimos por este texto porque apesar
de este personagem mítico ser de uma cultura tão diferente da nossa,
identificamos no seu temperamento individualista e alegremente
irresponsável, enormes semelhanças com figuras da política brasileira, do
mundo contemporâneo e, muitas vezes, com colegas tão próximos do nosso
cotidiano.
Setembro de 2005.