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O Teatro do Pequeno Gesto vai fazer, no próximo ano, 15 anos. O repertório da


Companhia é formado, em sua maioria, por peças de importantes
dramaturgos: Henrik Ibsen, Pirandello, Marivaux, Eurípides são alguns dos
autores já encenados. Já encenamos também autores mais modernos: Nelson
Rodrigues, Plínio Marcos.

Entretanto, mais importante do que montar grandes textos, é pensarmos nos


motivos que nos levam a montá-los. No que nos leva a montar esses e não outros.

Em nosso site, ao definirmos a companhia, entre outras coisas, está escrito o


seguinte:

Procuramos, em nossos espetáculos, estabelecer um diálogo com a


tradição, porque, como disse Walter Benjamin, a verdadeira obra de arte
rompe com a tradição ao mesmo tempo que a perpetua. Somos muito
velhos... o olhar contemporâneo é a memória de uma longa trajetória.

Uma das características do Pequeno Gesto, portanto, é estabelecer um


diálogo com a tradição teatral. Não para trazer à tona elementos
arqueológicos da nossa cultura, mas para redimensionar algumas idéias no
espaço contemporâneo. Não nos interessa o olhar arqueológico. A operação
que se faz ao olhar para a tradição é uma atualização do pensamento, uma
atualização do sentido daquela obra. E o resultado deste olhar é
contemporâneo, é a tradição vista daqui, de onde estamos.

A escolha de um texto é determinada pela necessidade de trabalhar sobre uma


idéia. É verdade que, na maior parte das vezes, é quase impossível definir o
que veio antes: a idéia ou a escolha do texto. Quase sempre esta descoberta é
simultânea. Apenas para dar um exemplo, nosso próximo trabalho será a
montagem de Peer Gynt, de Ibsen. Este texto está em nossa gaveta há uns 10
anos. Entretanto, neste momento, ao pensarmos em desenvolver algo em
torno da ÉTICA, redescobrimos este texto e o contexto necessário para encená-
lo.

Assim, o ponto de partida deste diálogo com a tradição no nosso trabalho é


uma necessidade de pensar sobre certas coisas. Ou seja, num primeiro
momento, definimos a idéia que queremos trabalhar. Depois vem a escolha
do texto. Mesmo que estes dois momentos se confundam, o importante é
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observar que um texto só se apresenta como proposta de montagem pelas
idéias que ele revela.

Entendemos que o presente, a contemporaneidade, é a soma de todos os


tempos. Não a exclusão do passado. Há pouco eu citava um trecho sobre a
conceituação do Pequeno Gesto e dizia que “somos muito velhos”. Isso
significa que temos uma longa história – nem sempre uma boa memória –
mas temos meios de estimular a lembrança. Não acredito que as grandes
questões da humanidade ou das culturas tenham se modificado muito com o
tempo. A forma como estas questões se apresentam é que variam. E é
exatamente por isto que consideramos estimulante o diálogo com a tradição.
A idéia de trabalhar com textos importantes tem duas motivações
fundamentais: o desejo de entender o vigor dessas idéias ao longo do tempo e
o fato de localizarmos, nos textos, questões que nos interessa aprofundar e
descobrir formas de recolocar estas questões.

Se entendêssemos o passado como algo que se foi, como algo que está
morto, não poderíamos sequer pensar em montar uma tragédia grega... dada
a distância no tempo... a distância da língua, dos costumes, das crenças, da
cultura, do modo de pensar, a distância do próprio conceito de sujeito.

Meu primeiro espetáculo profissional foi uma ousada incursão pela tragédia
grega. Não sei se o fato de ter começado com uma tragédia fez com que uma
maldição se abatesse sobre mim ou se as questões que levantei na época
impulsionaram meu trabalho num sentido determinado. Não sei se deu sorte
ou azar começar com uma tragédia... o fato é que esta foi uma experiência
que se estendeu por toda a minha trajetória.

Eu tinha, na época, 23 anos. Foi uma direção conjunta com Helena Varvaki,
também com 23 anos. Antígona foi a peça escolhida para ser imolada por um
grupo de atores bem jovens. Aquela ousadia de juventude e o mergulho na
tentativa de amadurecer uma idéia sobre a tragédia deixaram, entre várias
perguntas que não puderam ser respondidas ao longo daquela experiência,
uma que sintetizava uma sensação que esteve latente durante todo o
processo de trabalho e por toda a temporada: a tragédia é possível nos dias
de hoje? E se for, o que é o trágico?
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Como eu disse há pouco, a Grécia das tragédias está num tempo muito
longínquo, está no horizonte da origem do teatro. E quando pensamos no
contexto daquela Grécia Antiga, é muito difícil nos reconhecermos ali.
Principalmente quando aludimos à conceituação do sujeito. As pessoas
daquela época descreviam-se de outra maneira, estabeleciam outras relações
com o divino e com seus próprios sentimentos. Assim, quando pensamos na
possibilidade do trágico hoje, estamos procurando entender um tempo com o
qual nos relacionamos. Um tempo que identificamos como a origem do nosso
tempo. Estamos, portanto, afirmando que existem pontos de convergência
entre estes diferentes tempos.

Partindo do princípio de que o trágico é um sentimento perdido no tempo, ele só


pode ser revisitado a partir de uma conceituação. É preciso dimensionar uma
idéia do trágico para que ele adquira sentido. Assim, tentemos desenhar os
limites desta idéia juntando os fragmentos que parecem fazer algum sentido:
O trágico tem a ver com o irremediável;
e tem a ver também com uma decisão.
Portanto, pode-se dizer que o trágico supõe uma decisão de conseqüências
irremediáveis.
Tem a ver com destino, também e, portanto, com a vida de um personagem;
tem a ver com um erro fundamental, um erro que se prolongará e interferirá
decisivamente sobre a trajetória de um personagem no mundo.

E enquanto eu tentava encadear este raciocínio na busca pela resposta a essa


questão minha trajetória se iniciou ainda de forma muito intuitiva. E a
primeira peça do Pequeno Gesto foi Quando nós os mortos despertarmos, de
Ibsen.

A peça de Ibsen, para quem não conhece, conta a história de um escultor que
realizou uma única grande obra, vivendo dos louros deste trabalho há anos.
Casou-se com uma mulher fútil que sequer compreende seu tédio e suas
motivações. Outrora, Rubek, o escultor, tinha um projeto em comum com Irene,
sua modelo: juntos eles produziriam um exemplo de pureza materializado na
obra intitulada O dia da ressurreição. A modelo, apaixonada pelo artista,
percebendo que ele só dá atenção à construção da obra, quando percebe que o
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trabalho está no fim, abandona-o. Rubek desespera-se e, na angústia provocada
pela ausência de Irene, altera a obra passando a representar nela a forma como
os horrores do mundo o afetam. Anos depois ele reencontra a modelo e, após um
ajuste de contas, resolvem realizar a relação há tanto tempo adiada. Sobem para
o alto de uma montanha, de onde poderiam contemplar “todos os esplendores da
terra”. Entretanto, uma avalanche colhe-os impedindo a realização deste amor.

Mas o que este drama simbolista teria a ver com a tragédia? Bem, neste
momento eu estava ainda tentando construir uma idéia do trágico que nos
satisfizesse. E, de alguma forma, este texto me ajudava neste sentido. As peças
de Ibsen, principalmente as últimas, falam de uma demanda que exige dos
personagens uma expiação. É como se a decisão tomada num dado momento,
reverberasse por toda a sua vida. E, um dia, aquela decisão revela-se ao
personagem como a falta que o mergulhou no vazio. Aquela decisão equivale a
um erro trágico levou-o ao vazio mais completo. A decisão era inevitável, mas as
conseqüências também serão inevitáveis e irremediáveis.

Montamos Quando nós os mortos despertarmos a partir da idéia de que a vida


atravessou os personagens sem que eles percebessem. Por uma decisão, por
um erro trágico, os protagonistas se separaram. Ao se reencontrarem anos
depois e resolverem superar o tempo perdido, um golpe do destino, uma
avalanche cai sobre os amantes impedindo a realização desse encontro.

Esta avalanche, por estar sendo dimensionada no âmbito do destino, perdeu,


para mim, seu aspecto episódico para ganhar um sentido estrutural:
entendemos este acontecimento como uma determinação do conto, como
uma interferência do autor. Como se um golpe narrativo determinasse a
impossibilidade de realização plena do desejo dos personagens.

Nesta montagem, entendemos o efeito trágico como uma estrutura narrativa


que interfere no drama. Como se, para o trágico, a história fosse tão
importante quanto a maneira como ela é apresentada. A tragédia, portanto,
teria algo a ver com a estrutura da peça.

Alguns anos depois, me deparei com uma frase de Walter Benjamin – de novo
ele – determinante para meu trabalho a partir dali: a tragédia é um fato
lingüístico.
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A compreensão estrutural do drama de Ibsen adquiria plenamente seu
sentido trágico. E moderno. A tragédia é da ordem da linguagem. Se é da
ordem da linguagem, é da ordem da construção. Portanto, seu princípio não
passa pela emoção que a tragédia, vista do senso comum, evoca, mas pela
estrutura, pela composição.

Alguns textos de Jean-Pierre Vernant me levaram a acreditar que o foco da


tragédia, mesmo na Grécia antiga, passava pela composição. A estrutura
dramatúrgica da tragédia articulava os tempos que estavam em jogo – o
mitológico e o da cidade – principalmente através dos níveis de linguagem – o
do coro e o dos personagens. Uma estrutura formal que prescindia da
compreensão de um sentimento trágico. A tragédia começava a se mostrar
como um jogo no qual sentidos ambíguos convivem em tensão sem nunca se
excluírem.

Isto começava a aproximar dois tempos, o nosso e o trágico, antes muito


distantes. Começava a enxergar aquele ponto de intersecção entre o nosso
tempo e um tempo originário.

Depois de Ibsen, passei por outros dois autores de tragédias modernas:


Nelson Rodrigues e Luigi Pirandello. Nelson, menos interessado em conceituar
sua obra, prefere colocar-se ao lado de autores como O’Neill e Pirandello, com
quem tinha alguma afinidade, referindo-se a eles em entrevistas ou artigos.
Eles, sim, enunciaram algumas idéias acerca da tragédia. Entretanto, Nelson
escreve no programa de estréia de A falecida, a primeira de suas tragédias
cariocas, falando da peça da seguinte maneira:

“[ A falecida ] é, convenhamos, uma peça que se individualiza, acima de


tudo, pela tristeza irredutível".

O interessante nesta fala de Nelson é a associação da tragédia não a uma


simples tristeza, mas a uma tristeza irredutível. Ou seja, irremediável. Não se
trata de uma infelicidade episódica, mas uma infelicidade atávica.

Pela juventude das peças de Nelson – nem mesmo sei se já poderíamos


classificá-lo como um clássico brasileiro – não me estenderei sobre a minha
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montagem de A serpente. Escrevi longamente sobre o trágico em Nelson
Rodrigues na apresentação ao volume 4 da nova edição do Teatro Completo
de Nelson que a Nova Fronteira lançou, recentemente. Refiro-me a Nelson
aqui apenas para sublinhar o fato de que, também ele, lança um olhar sobre
a tragédia buscando a atualização de um sentimento que, sem dúvida
alguma, é do interesse da contemporaneidade.

Pirandello, ao falar de sua obra, também se mostra interessadíssimo pela


matéria originária:

"Não sou um autor de farsas, mas um autor de tragédias. E a vida não é


uma farsa, é uma tragédia. O aspecto trágico da vida está precisamente
nessa lei a que o homem é forçado a obedecer, a lei que o obriga a ser
um. Cada qual pode ser um, nenhum, cem mil, mas a escolha é um
imperativo necessário".

O que considero interessante neste passeio ao longo da minha trajetória,


este passeio por autores que construíram conceituações diferentes e
modernas sobre a tragédia, é perceber como o passado originário pode, ao
ser atualizado, adquirir variadas formas, sempre se apresentando, de novo,
revestido de uma preocupação contemporânea mas sem abrir mão de
elementos que atravessaram toda a história.

Henrique IV, um dos Pirandellos que encenei, conta a história de um homem


que, numa festa a fantasia, onde todos os convidados viriam vestidos com
um personagem da História do mundo, cai do cavalo, bate a cabeça numa
pedra e passa a acreditar que é realmente o personagem que representava
naquela festa. Sua irmã mantém aquela fantasia, contratando conselheiros e
mandando fazerem figurinos de época ao longo dos 16 anos de duração da
sua loucura. Entretanto, vamos descobrir no segundo ato, há oito anos ele se
recuperou do transe e, percebendo que esteve ausente do mundo real por
tanto tempo, prefere se manter aquele mundo fictício, visto que ali, num
momento exato da história de Henrique IV, imperador alemão do século XIII,
a vida parecia ser mais intensa, pois não estaria à mercê do fluxo do devir.
Porque a vida no passado está congelada, fixa, definida. E a vida presente
nunca é porque está freqüentemente se tornando passado.
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Ele, portanto, se condenou a viver eternamente na história de outro, de outro
tempo, mergulhado na invenção de um passado que não poderia mais
mudar. Aqui, a tensão entre a realidade e a ficção, a impossibilidade de os
personagens se identificarem com uma ou outra dimensão, forma o sentido
trágico da história.

Assim, somos jogados numa diversidade de sentidos trágicos possíveis. Desde


a compreensão de erro trágico como o desejo proibido em Nelson até o
convívio de passado e presente, de ficção e realidade em Pirandello.

Em 2002 volto a me encontrar com uma tragédia grega. Este reencontro


anunciado por quase todo o tempo, acontece 16 anos depois daquela
primeira experiência de juventude. Ao longo deste período, fui elaborando
uma idéia sobre o trágico. Uma versão convincente e que partia da
descoberta daquela afirmação de Benjamim: a tragédia é da ordem da
linguagem, da dimensão nomeadora da linguagem.

Há muito tempo eu havia me desvencilhado da habitual necessidade que o


senso comum tem de dar à tragédia uma leitura que deve se dirigir à
emoção. Esta noção precária acabaria por repetir uma experiência de
montagem de tragédias que acabou por se transformar em outro gênero: o
melodrama. Não, definitivamente não é à emoção primordialmente a que a
tragédia se dirige. Ao pensar em montar uma tragédia grega, sempre
latejava em mim a frase do Benjamin.

Na tragédia importa, menos a surpresa, e mais a compreensão das forças


que entram em jogo na história. Já na Grécia, as histórias eram de
conhecimento do público. Importava a maneira como ela seria contada DE
NOVO. Importava a articulação das forças que se disporiam na visão deste ou
daquele dramaturgo. Busquei, da mesma forma, ignorar o truque cênico, a
surpresa, e atentar para dois pontos que considerei fundamentais:

1. O equilíbrio das forças representadas por Jasão e Medeia. Jasão, na


visão de um grego, não infringia a ordem na medida em que seu
casamento não tinha valor e seus filhos, portanto, nunca poderiam
ascender socialmente. Portanto, os seus argumentos no embate com
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Medeia sempre pareceriam falsos, visto que o público em geral
ignoraria o fundo legal de sua justificativa. Via, assim, uma
necessidade de equalizar esse jogo de forças.

(É evidente que a atitude de Jasão abandonando a esposa para casar com a


princesa seria sempre traidora, mas há uma diferença na medida em que para
um grego, mesmo havendo traição, haveria, também, um dado atenuante: o
direito à sua ascensão social e de seus filhos. A lei protegia Jasão em sua
decisão. Pensando eticamente, esta atenuante talvez não tivesse qualquer
valor. Mas não podemos deixar de levar em consideração exatamente qual era
o jogo de forças que se apresentava no embate entre os dois).

O segundo ponto fundamental:

2. O coro. Este sim um desafio ao pensar em montar uma tragédia. O


jogo entre os personagens supõe apenas a compreensão das
argumentações dimensionadas no tempo. Mas o coro supõe a
invenção de uma voz que não tem mais tanto sentido para nós, hoje.
Esta fala coletiva, esta fala que se surpreende junto com a platéia com
uma história conhecida de todos... Entender esta elocução é o lugar da
atenção especial na montagem de uma tragédia.

Se, como eu disse no início, trabalhar com a tradição é um movimento de lançar


um olhar para o passado, mas a partir do presente; e disse ainda que a
arqueologia cultural não me interessa, o coro da tragédia corporifica o lugar a
ser redimensionado numa montagem contemporânea. É o nó a ser desatado.

Com relação ao primeiro ponto, a equalização das forças, procuramos


investir na motivação que nos levou a escolher, em 2001, Medeia como o
próximo espetáculo do nosso repertório: a paixão. Este era o mote que
estávamos buscando naquele momento. E a forma de aproximarmos a
indefensável decisão de Jasão de uma compreensível justificativa
contemporânea era criando a possibilidade de ele estar apaixonado por
Glauce. Esta leitura tornava, Jasão um homem fraco, é verdade, pois
mostrava a troca de uma relação sólida, construída ao longo de muitos anos,
pela paixão de uma jovem. Fazia dele um fraco, mas a possibilidade de esta
troca acontecer é muito grande... apostamos na plausibilidade do jogo.
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Logo após esta decisão, chegou a nós uma versão de Medeia, dirigida por
Lars Von Trier para a TV dinamarquesa. E vimos, ali, esta mesma aposta...
não era uma tragédia na tv, é claro. Não era teatro. Não havia coro e quase
não havia texto. Mas, a história, estava toda lá e a abordagem era muito
parecida com a nossa: uma Glauce linda, que trazia consigo o poder, levava
Jasão a fazer a sua escolha. Os homens aqui presentes, mesmo não
concordando com tal decisão de Jasão, como eu mesmo, podem entender
claramente esta atitude.

Mas não se trata aqui de buscar identificações com os personagens, mas


plausibilidade nos seus argumentos. Assim, esperávamos que Jasão pudesse
se contrapor aos ataques de Medeia. Um Jasão injusto, mas coerente,
tornaria a decisão final de Medeia um tanto desmedida.

O segundo ponto: o Coro. Se no jogo de forças entre os personagens a


solução era, podemos chamar assim, de ordem dramatúrgica, pois exigia a
criação de um artifício que tornasse pertinente as razões de Jasão, o coro
determina a ação, determina a relação desta história com a platéia. O que
quero dizer é que o papel que escolhermos para o coro vai fundamentar a
encenação. O sentido do espetáculo estará no sentido do coro. Afinal, ele é
uma peça da estrutura do espetáculo, assim como cada personagem.

O Coro na tragédia grega funciona como um elemento intermediário entre a


história e a platéia. O coro comenta, sofre, aconselha, interpela, pondera as
decisões dos personagens. Funciona como uma platéia com direito a voz.
Mas funciona como uma platéia que não existe mais... uma platéia de outra
época, pois evoca deuses e um tempo mítico que não têm hoje o menor
sentido para nós. Portanto, reproduzir este papel de intermediação neste
nível não significaria atualizar esta fala coletiva. Se não descobrirmos qual
seria a dimensão atual do coro, vamos repetir um texto aludindo,
arqueologicamente, a uma relação grega com as decisões e com o destino.

Mas qual seria a função do coro para nós? Nos fazíamos esta pergunta quando
Josette Féral, num ensaio publicado em Folhetim onde descreve o processo de
montagem dos Átridas de Mnouchkine, fala do prazer pelo horror, fala da
delícia do sangue, da violência e da morte:
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A tragédia suscita certamente horror e indignação mas também delícia.
A violência faz parte e é preciso exprimi-la de uma forma ou de outra,
reconhecendo que ela tem motivos para agradar.

Estava descoberto o papel do coro em relação à tragédia: prazer em ver o que


está por vir e fazer, enfim com que os personagens cumpram seu destino.
Criamos um coro que, com enorme prazer, comenta cada passo dado por
Medeia e, mais, a conduz em direção ao assassinato dos próprios filhos
chegando a, no momento certo, entregar os “filhos” para que fossem
sacrificados.

Assim, o coro de nossa montagem adquiria um papel fundamental no


espetáculo. Considerávamos história como uma imagem produzida pelo Coro
e, portanto, os personagens eram também imagens produzidas pelo Coro.
Levamos esta idéia às últimas conseqüências. Com relação à movimentação,
por exemplo, por serem uma imagem do Coro, os personagens eram quase
estáticos. Foram trabalhados com o mínimo de gestos, apenas o necessário
para que não ficassem robotizados. Esta contenção contrastava com o
movimento do Coro que envolvia toda a cena.

Como a tragédia era, de certa forma, contada pelo coro, personagens que
consideramos secundários como Creonte, Ama e Egeu foram absorvidos pelo
coro que dialogava com Medeia assumindo estes papéis através, apenas, da
fala, sem nunca se transformar fisicamente nos personagens. Tínhamos,
portanto, apenas 4 figuras em cena: Jasão, Medeia, Glauce e o Coro.

Quanto à fala coletiva, optamos por utilizá-la de forma bastante econômica


considerando-a um signo importante. O Coro fala, se manifesta em vários
momentos mas, concretamente, a maior parte das suas falas foi designada ao
Corifeu, que, destacando-se do grupo, assumia a expressão de prazer que esta
história proporcionava.

No aspecto geral, pode-se dizer que nosso protagonista era o Corifeu. Ele
assumia a responsabilidade por toda a história e instigava Medeia na direção
do seu destino. Na fala que antecedia o assassinato das crianças, ele chega
a explicitar seu papel:
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Vá, Medéia, complete o seu destino. Esqueça por um instante que são
seus filhos e chore depois a vida toda, porque você os ama e vai matá-los.

O texto foi totalmente reescrito por Fátima Saadi. Chegamos, mesmo a ficar
em dúvida se deveríamos manter o nome de Eurípides, na medida em que
nos apropriamos totalmente do mito, reestruturando, cortando,
redimensionando os papéis da tragédia. Finalmente, decidimos por manter a
parceria com Eurípides porque o encadeamento das cenas foi totalmente
respeitado.

FOTOS DE MEDÉIA
de Luiz Henrique Sá e Jorge Etecheber

O cenário de Doris Rollemberg se constituía de um palco redondo no qual havia


um dispositivo giratório que era movido pelo coro. Mais uma vez o coro fazia
com que a história caminhasse e tinha total interferência sobre o espetáculo.

Costuma-se contrapor à encenação de clássicos a dramaturgia


contemporânea. Não seria correto dizer que não há diferença entre estas
duas abordagens cênicas em relação ao texto, mas também considero um
exagero a contraposição.

Quando lançamos um olhar sobre um texto de outra época, além de


procurarmos entender aquele momento, queremos encontrar o lugar onde
ele ainda adquire sentido hoje em dia. Por isso, ao falarmos de dramaturgia
contemporânea, é sempre necessário se perguntar pelas fronteiras, hoje,
entre a cena e o texto.

Temos inúmeros exemplos de uma dramaturgia que está sendo produzida hoje,
mas reflete um modo de construção antigo, anacrônico, uma compreensão
textocêntrica da cena. E, por outro lado, temos vários exemplos de retomada da
dramaturgia clássica na qual o foco está centrado na descoberta de um tempo
passado, num excessivo respeito às palavras em detrimento do seu sentido
hoje. São exemplos que se equivalem.
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Acredito que ao retomarmos um texto de outro tempo, é preciso atentar para
os motivos que nos levam a fazer isto. Mais importante do que o fato de
lançarmos mão de uma dramaturgia de outra época é explicitarmos qual o
motivo que nos leva a fazê-lo.

Assim, espero ter podido apresentar, através do exemplo de releitura da


tragédia, um caminho, o do Pequeno Gesto, ao insistir em retrabalhar idéias
e seus diferentes aspectos ao longo do tempo.

Nosso próximo desafio é Peer Gynt. E decidimos por este texto porque apesar
de este personagem mítico ser de uma cultura tão diferente da nossa,
identificamos no seu temperamento individualista e alegremente
irresponsável, enormes semelhanças com figuras da política brasileira, do
mundo contemporâneo e, muitas vezes, com colegas tão próximos do nosso
cotidiano.

Setembro de 2005.

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