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Resumo: Conhecido por romances que tratam de temas sérios e edificantes, José Saramago, em sua
última fase de produção romanesca, nos apresenta uma face humorística, que compreende os três últimos
romances publicados em vida. Neste artigo, buscamos fazer uma leitura do primeiro dessa tríade, As
intermitências da morte (2005), em que nos é apresentado um universo insólito a partir da greve de uma
morte-personagem a reivindicar seus direitos de ser notada. Assunto sério por excelência, é trabalhado
através do humor, e ocasiona um riso desconcertante no leitor, impelindo-o a refletir sobre sua própria
condição de ser humano. Com base nos estudos de Hutcheon (1985), Duarte (2006), Propp (1992),
D’Angelli e Paduano (2007), Alberti (1999), Minois (2003) e Roas (2014), é possível observar como a
narrativa transcende a realidade, subvertendo-a pelo riso, pela paródia e pela ironia, assim como pelo
recurso ao fantástico. Esses elementos são responsáveis por motivar uma nova reflexão sobre o tema da
morte. O riso desconcertante nesse romance atua como um indício de que é preciso revermos nossa
forma de enxergar a morte e nos transformarmos a partir dessa reflexão. É possível inferir que, por meio
do fantástico, Saramago estimula o desenvolvimento intelectual e ético do sujeito e nos exige ousadia
para transcender o velho e encontrar um novo significado para a morte.
Abstract: Known for novels that deal with serious and edifying themes, José Saramago, in his last phase
of novel production, presents us with a humorous face, which comprises the last three novels published
in his lifetime. This paper presents a reading of the first of this triad, Death with Interruptions (2005),
in which the reader is presented with an unusual universe based on a death-character’s strike claiming
her rights to be noticed. Despite being a serious subject par excellence, it is worked through humor, and
causes a disconcerting laughter in the reader, impelling him/her to reflect on his/her own condition as a
human being. Based on the studies of Hutcheon (1985), Duarte (2006), Propp (1992), D'Angelli and
Paduano (2007), Alberti (1999), Minois (2003), and Roas (2014), it is possible to observe how the
narrative transcends reality, subverting it through laughter, parody, and irony, as well as through the use
of the fantastic. These elements are responsible for motivating a new reflection on the theme of death.
The disconcerting laughter in this novel acts as an indication that we need to review our way of looking
at death and transform ourselves from this reflection. It is possible to infer that Saramago, through the
fantastic, stimulates the intellectual and ethical development of the subject and requires us to be bold
enough to transcend the old and find a new meaning for death.
Os romances de José Saramago são conhecidos pelos temas edificantes e pelo tom sério
em torno de discussões a respeito da desumanização do homem contemporâneo. Entretanto é
1
Doutora em Letras, área de concentração Literatura Comparada (UFC). Professora Adjunta do Curso de Letras
da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: carolina@ufpi.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
5271-0053
possível observar, em seus últimos três romances publicados em vida, a existência de uma face
cômica que os singulariza e também contribui para identificar uma nova fase de sua escrita. Ao
se observar as três últimas obras, As intermitências da morte (2005), A viagem do elefante
(2008) e Caim (2009), percebemos um tom humorístico mais acentuado que paradoxalmente
discute temas sérios, relacionados às contradições humanas.
No primeiro deles, As intermitências da morte, há uma preocupação central com o uso da
palavra para a representação do real e, sobretudo, para a edificação do romance por meio de seu
viés metaficcional. Na leitura da obra é possível vislumbrarmos como esse tipo de construção
narrativa se ajusta ao discurso paródico surgido a partir da primeira intermitência da morte-
personagem.
A escrita desse romance proporciona uma reflexão sobre a vida, através de sua imagem
invertida e especular, a morte. A primeira epígrafe, “Saberemos cada vez menos o que é um ser
humano” (SARAMAGO, 2005), do fictício “Livro das Previsões”, já indica o tom reflexivo
adotado.
Tema sério e grave, a morte é o assunto central dessa obra. Porém um aspecto que destaca
As intermitências da morte como marco transicional na escrita saramaguiana é a forma
inovadora como é constituída a obra, aliando o discurso humorístico a uma narrativa fantástica,
em que ambos funcionam como meios de transgressão, seja da linguagem ou do real. Tal
tendência de conjugar o sério e o humorístico, o real e o sobrenatural, podemos observar na
declaração da morte-personagem: “é o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando
faço rir, principalmente quando faço rir” (SARAMAGO, 2005, p. 206). Essa frase ilustra os
meios pelos quais esse romance constrói uma narrativa leve e edificante e, ao mesmo tempo,
séria e desconcertante, pois o romance de José Saramago, tal qual sua morte-personagem, fala-
nos a sério, mesmo quando nos faz rir, e nos convida a uma reflexão sobre a morte e o morrer
na contemporaneidade.
contrapõe-se ao discurso oficial, e por esse meio questiona certas “verdades” até então
consideradas fundamentais para o ser humano.
Configurando-se como um texto transgressor, que nega a realidade para certificá-la e, por
fim, questioná-la, o texto paródico caracteriza-se por ser uma “força ameaçadora, anárquica,
até, que põe em questão a legitimidade de outros textos” (HUTCHEON, 1985, p. 96-97).
Fortalecemos a tese da existência de um discurso paródico quando observamos que a obra em
questão subverte o discurso hegemônico vigente sobre a morte, assim como outros assuntos de
ordem social ligados a ela, que surgem no romance e são questionados.
Observamos no romance saramaguiano uma ruptura com o sistema ideológico vigente, o
que ocasiona seu questionamento por parte do leitor. Saramago aponta para o surgimento de
novas verdades, novas significações, em seu meio cultural, pois alerta, ao examinar os modos
de ritualização da morte e, sobretudo, da vida na contemporaneidade, que eles precisam ser
questionados e substituídos. Nesse sentido, concordamos com Camila Alavarce (2009) ao
entender que o momento da percepção da carência de algo novo é o momento da paródia.
Quando Saramago sugere um paradoxal cenário realista em que a morte não existe, ele
questiona o desejo de imortalidade do homem e revela as consequências de um mundo que
negligencia a morte e o morrer em todos os seus âmbitos. Assim, o romance nos conduz a uma
crítica da ideologia2 vigente, criando artifícios com o auxílio de recursos característicos do texto
fantástico, que possibilitam a retomada de uma narrativa como dissimulação. Ele remete aos
princípios de uma determinada época, que cremos ser a contemporânea, e reconduz o texto a
uma crítica dessa ideologia, por meio do caos instaurado no país-símbolo devido à insólita
paralisação das mortes. O romancista remete ao velho, com a necessidade de uma morte mais
presente e vivenciada ritualmente, para falar do novo, como o processo de interdição da morte
na contemporaneidade, revelando assim as contradições milenares advindas do embate do
homem com a morte.
Ao inserir a narrativa em um universo sem a morte, o texto se encaminha para uma escrita
da ruptura, tomando modelos anteriores de maneira invertida, desconstruindo o real para por
fim reconstruí-lo ficcionalmente e mostrar através do real transgredido o próprio absurdo que é
a realidade. Por meio dessa escrita transgressora, Saramago dilata o alcance do signo literário.
A escrita metaficcional auxilia nesse processo, uma vez que atua como reflexão crítica do
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De acordo com o Dicionário de conceitos históricos (2010, p. 205-209), ideologias são formas de se entender o
mundo e de se posicionar nele, sendo um sistema de ideias, ou mais exatamente de crenças, mais ou menos
coerente. Para Marx, as ideologias não são um compêndio de ideias soltas, resultantes unicamente do pensamento
abstrato, mas funcionam como um instrumento da dominação de classe e como uma forma de luta de classes, que
só poderia ser compreendida e criticada a partir do terreno histórico e econômico que lhe dá origem.
próprio processo de composição do romance. Além disso, é por meio da subversão do tema da
morte e do morrer na contemporaneidade que se alcança sua essência na escrita. Nesse sentido,
a paródia atua no processo de produção do texto. Algo que fica latente pela oposição das vozes,
marcando uma divergência em vez de uma concordância, atuando na revisão crítica de discursos
anteriores.
deviam enxergar tal fato absurdo como uma dádiva. Tomando por princípio os dados que
refutam tais teses, tanto pelo equívoco das palavras que levaram ao mal entendido da repórter,
quanto pelo quadro caótico do país diante da ausência da morte, previamente apresentado pelo
narrador, vemos uma construção irônica. Antes de provocar o riso, a ironia suscita a reflexão
sobre como, no empenho da busca por explicações racionais para o acontecimento insólito, a
massa, manipulada pela imprensa, contenta-se com a solução fácil, porém mais distante do real
possível.
Diante dessa construção de um humor engajado que nos leva à reflexão pelo fantástico,
dialogamos com Robert Louis Stevenson (apud CESERANI, 2006, p.72) ao afirmar que
existem momentos em que a mente não se contenta com a evolução e pede uma apresentação
mais forte da experiência. Essa pode vir pelo medo ou mesmo por meio de uma risada. No caso
do romance de Saramago, os habitantes do país recusam-se a crer na aparente explicação
racional e preferem acatar o insólito, como modo de representar o elemento incerto e inquietante
no qual habitam. Nesse sentido, o romance de Saramago satisfaz a razão por meio da arte.
Mesmo se tratando de uma situação completamente insólita, tal construção problematiza
os códigos cognitivos e hermenêuticos do leitor. Para compreender esses acontecimentos na
narrativa é necessário que o leitor tenha consciência do discurso paródico presente nela. Nesse
caso a paródia colabora tanto para tornar verossímil o que é narrado, como no esmaecimento
das fronteiras entre realidade e ficção. No caso do romance de Saramago, os elementos
conflitantes não deixam de ser problematizados, e isso é ressaltado pelo narrador metaficcional,
distanciando-o da narrativa de teor real-maravilhoso.
Nesse sentido, David Roas (2014, p. 103) entende que, diferentemente do fantástico, que
problematiza os limites entre realidade e irrealidade, a narrativa pós-moderna harmoniza esses
conflitos. Para ele, esse tipo de narrativa, que contém a paródia como mecanismo de articulação
do texto, tende a apagar essas fronteiras, harmonizando aquilo que se identificaria como natural
e como sobrenatural. Sendo uma exigência do fantástico que o fenômeno sobrenatural seja
contrastado tanto com a lógica insólita construída no texto, quanto com a visão compartilhada
do real. Ademais, para a existência do fantástico é necessário o conflito entre essas duas ordens
diametralmente opostas. Por isso, a aparente normalidade em que as personagens se movem é
estranha, absurda e insólita.
Ao contrário do que observa Roas (2014) nas narrativas ditas pós-modernas, no romance
de Saramago problematiza-se o fenômeno impossível ao ser contrastado com a lógica da
realidade extratextual que organiza a narrativa. Portanto, com base nessa obra, refutamos a ideia
de que a paródia, como recurso discursivo, afastaria o efeito fantástico contido na narrativa.
Assim, trabalhando de modo colaborativo com os recursos do texto fantástico, a paródia amplia
a percepção do mundo exterior à narrativa através da ficção. Percebemos que ao problematizar
as questões relacionadas com a morte e o homem contemporâneo Saramago não incita um riso
escarnecedor, seu texto propõe uma ironia inquietante, que nos leva à reflexão.
Nesse sentido, dialogamos com Linda Hutcheon, para quem não há necessidade de a
crítica presente no texto ser representada na forma de um riso ridicularizador para ser
considerada paródia, podendo se configurar sob a forma de uma crítica séria, não
necessariamente ligada a um texto parodiado, assim como uma alegre e genial zombaria de
formas codificáveis. Portanto, essa é uma categoria que possibilita a revisão crítica de discursos
históricos e literários. O riso saramaguiano por um lado se torna sério, ressoa um tom grave,
carregando consigo a tragicidade da vida, aproximando-se do humorístico. Por outro, ele
também promove uma espécie de distanciamento do tema, ampliando o horizonte do leitor, que
experimenta “o prazer de pensar, o gosto do engano e a capacidade de subverter
provisoriamente, através do jogo, a condenação à morte e tudo aquilo que a representa”
(DUARTE, 2006, p. 51).
Em As intermitências da morte, a transgressão do real atua de forma a desestabilizar a
sociedade do país, de modo que as instituições sejam questionadas naquilo que fragilmente as
mantém – sua própria verdade. O riso, assim, aparece como uma vingança do homem contra o
mundo. Nesse sentido, o cômico revela a indignação frente a uma sociedade que dita suas leis
e ao mesmo tempo as descumpre. A obra de Saramago resgata, através de seu discurso cômico,
algumas reflexões acerca das lutas políticas, dos sermões edificantes, das campanhas de
moralização.
Nesse caso, o cômico tem a função de suavizar a repercussão hostil das críticas às
instituições na obra. Assim, é como “uma suavização generalizada da força agressiva e,
portanto, [...] um desvio da consciência crítica do público, da qual se espera que surja e se
alimente o gesto de reação contra a estrutura social atacada” (D’ANGELLI; PADUANO, 2007,
p. 17).
A crítica à imprensa se apresenta no rol de ataques do cômico saramaguiano. Percebe-se
na reação dos jornais após a leitura da carta pelo director-geral da televisão uma função
avaliadora do cômico. Como se pode observar: “Os jornais, nem seria necessário dizê-lo,
tiveram uma procura enorme, maior ainda do que quando pareceu que se tinha deixado de
morrer” (SARAMAGO, 2005, p. 110). No início do relato da greve da morte, os jornais se
isentaram de tecer quaisquer comentários e preferiram publicar manchetes menos polêmicas,
dadas as incertezas do momento, pois sem a morte a normalidade havia se retirado do mundo.
Quando ela retorna, restabelecem-se os padrões anteriores, e a imprensa também retoma seu
tom:
mas é muito fácil de compreender que existe uma certa diferença entre a imagem
nervosa de um director-geral falando ontem à noite no pequeno ecrã e estas páginas
convulsas, agitadas, manchadas de títulos exclamativos e apocalípticos que se podem
dobrar, guardar no bolso e levar para reler em casa com todo o vagar e de que nos
contentaremos com respingar aqui esses poucos, mas expressivos exemplos, Depois
Do Paraíso O Inferno, A Morte Dirige O Baile, Imortais Por Pouco Tempo, Outra Vez
Condenados A Morrer, Xeque-Mate, Aviso Prévio A Partir De Agora, Sem Apelo E
Com Agravo, Um Papel Cor De Violeta, Sessenta E Dois Mil Mortos Em Menos De
Um Segundo, A Morte Ataca À Meia-Noite, Ninguém Foge Ao Seu Destino, Sair Do
Sonho Para Cair No Pesadelo, Regresso À Normalidade, Que Fizemos Nós Para
Merecer Isto, et cætera, et cætera (SARAMAGO, 2005, p. 110).
Pelas manchetes que começam a circular nos jornais, percebemos como a imprensa atua
na formação de opiniões. Os poucos, mas expressivos, exemplos trazem um repertório de
manchetes alarmistas e, ao invés de informar, emitem opiniões implícitas, que colaboram com
o novo caos ocasionado pelo retorno da morte.
Ressaltamos o papel fundamental da ironia ao atuar como avaliadora das críticas
presentes no romance, obrigando “a imoralidade a sair do esconderijo, imitando seus defeitos,
provocando-os, parodiando sua hipocrisia, de forma que ninguém possa acreditar nela. O riso
do ironista é sempre calculado, intelectualizado, refletido” (MINOIS, 2003, p. 570). Para que
a ironia tenha sucesso, ela deve manter um posicionamento crítico, o que se observa na
comunicação desse tipo de recurso estilístico com as diferentes comunidades discursivas
representadas no romance: governo, igreja e imprensa.
Nesse sentido, observamos que o texto leva em conta, além do aspecto linguístico, o seu
contato com os aspectos sociais e culturais de seu contexto de produção. Sendo assim, é
importante destacar que a ironia se constrói nesse diálogo com os repertórios sociais, históricos
e culturais. Ademais, é importante destacar, a partir das observações de Rosalba Campra (2001,
p. 186-187), a propriedade polissêmica da linguagem no relato fantástico, uma vez que em
textos dessa natureza o valor metafórico dá lugar ao literal. O texto fantástico parece contaminar
cada palavra, tornando-se difusamente significativo em diferentes graus, colocando um véu
sobre a suposta transparência comunicativa da língua, refletindo também na perda de
estabilidade do real característica do relato fantástico.
O riso despertado pela obra de José Saramago advém justamente dessa desestabilização
do real com vistas a atingi-lo de forma crítica por intermédio da ironia. Assim, é necessário
entendermos essa ligação entre o texto fantástico e o riso. Propp avalia o alogismo ligado ao
exagero como uma das faces do humor. Este pode ser identificado no improvável quando entra
Revista Graphos, vol. 23, n° 1, 2021 | UFPB/PPGL | ISSN 1516-1536
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no domínio do caricatural. Sendo assim, “um exagero que extrapola completamente os limites
da realidade e penetra nos domínios do fantástico” (PROPP, 1992, p. 91). Exemplo desse
exagero são as soluções encontradas para superar a crise nos setores ligados à morte no início
da narrativa.
O cômico se desenvolve no romance a partir dos efeitos da greve da morte, que ocasiona
uma série de situações desordenadas, todavia, possíveis em um contexto de ausência da morte.
Desde enterros de animais domésticos a construção de grandes edifícios para abrigar a horda
de velhos, como um “labirinto de cnossos” (SARAMAGO, 2005, p. 31). Por conseguinte,
observa-se que o humor pode existir aliado ao fantástico. Isso só é possível a partir de sua
ligação com o caricatural, o exagerado ou o insólito, que revelam seus defeitos repentinamente.
Portanto, têm-se no fantástico todos os elementos para torná-lo risível, visto que, através
da transgressão da lógica, operada seja no nível sintático, seja no nível semântico, atua-se na
formação de uma incoerência natural de um mundo aparentemente comum, mas que adentra a
esfera do fantástico subitamente, sem maiores explicações.
Para tanto, o papel do leitor é essencial nesse processo, visto que é preciso haver
cumplicidade entre ele e a obra para o sucesso dessa junção entre fantástico e humor. Ambos
os mecanismos de composição do texto dependem de um posicionamento do leitor: o fantástico
exige a inquietação diante do insólito; a ironia estabelece seu sentido através do horizonte de
leitura do receptor. Nesse sentido, há de se observar que somente o exagero e a falta de lógica
não são suficientes para o desencadeamento do riso.
Porém, se colocados em um contexto favorável, como é o caso da insólita greve da morte
no romance, eles parecem admissíveis e plausíveis. O riso nasce justamente do embate entre o
insólito e o real, ocasionando uma desarmonia, que provoca o riso pela constatação do absurdo.
O riso no romance é libertador pelo fato de no momento da leitura ser possível pensar na
vastidão da criatividade humana com sua capacidade de evasão através da imaginação. Ao
mesmo tempo, essa fuga remete ao próprio absurdo da realidade, formulando um riso que fica
entre o desejo da imortalidade e o medo dela. Afinal o homem é o único ser que tem consciência
da própria morte, por isso deseja a imortalidade, e é também o único animal que ri.
Com base no que se discutiu até o momento, observamos como a ironia se constrói entre
as páginas do livro de forma a atingir o leitor desde o sentimento de superioridade,
experimentado pelo distanciamento, ao de pertencimento às esferas sociais trabalhadas no
romance, ocasionando uma identificação profunda com o tema discutido pela narrativa. Por
meio do cômico e do humor, temos uma abertura para tratar de temas graves como a morte e
todos os caminhos sociais e individuais que levam a ela.
É a partir do discurso paródico que o leitor tem a oportunidade de alargar sua percepção,
pois, ao buscar compreender o contraste existente em sua formação, ele entende a necessidade
de revisão de seus próprios conceitos puramente abstratos.
Nesse sentido, dialogamos com Verena Alberti (1999, p.12), que identifica no riso a
faculdade de desvendar “o não-normativo, o desvio, o indizível” que fazem parte da existência,
revelando aquilo que a razão séria não alcança. Para essa autora, o riso e o cômico são
indispensáveis para a apreensão da realidade, pois “sua positividade é clara: o nada ao qual o
riso nos dá acesso encerra uma verdade infinita e profunda, em oposição ao mundo racional e
finito da ordem estabelecida” (ALBERTI, 1999, p. 12).
Dessa forma, o riso abarcaria uma realidade mais essencial do que a limitada pela razão
séria. Por isso, entendemos o riso como uma reação que instaura uma possibilidade, ressaltando
a ambivalência da realidade, em vez de sua certeza, tornando ainda mais clara a instabilidade
do real. Assim, é válido fazer um comentário a respeito do riso. Essa modalidade, assim como
a paródia e a ironia, compartilha a função de questionar as verdades absolutas e a ilusória rigidez
da realidade, ressaltando o elemento dissonante nelas presente.
Para entender melhor esse percurso é preciso nos distanciarmos e buscarmos sua gênese
na Antiguidade Clássica. O filósofo Cícero já identificava no riso uma ferramenta retórica para
tratar do sério. Para ele, o riso acrescentaria aos discursos um tom amigável e descontraído,
algo que estreitaria a relação entre orador e público, sendo, portanto, um recurso eficaz para
alcançar o convencimento e a persuasão. Acompanhando o pensamento de Cícero, Quintiliano
também enxergava no riso um procedimento para se atingir um fim determinado no discurso.
Para ele, quando uma asneira escapa por imprudência, ela é somente uma asneira, mas quando
seu emprego é calculado, torna-se um fingimento, algo que lembra o emprego da ironia.
Para Demócrito, “o filósofo que ri” (MINOIS, 2003, p. 61), o riso é fruto da insensatez
humana, pois “o homem [...] está sempre a se preocupar, a se criar problemas, a ter medo [...]
O riso é a sabedoria popular. Filosofar é aprender a rir. A aventura humana é ridícula, e só se
pode rir dela” (MINOIS, 2003, p. 61-62).
Dessa forma, chegamos ao entendimento de que o riso é uma ferramenta para revelar ao
homem sua própria incapacidade de conhecer a si e ao mundo. Assim, sem o autoconhecimento
e a noção do que se constitui mundo, o homem se vê imerso na ilusão, aparência e vaidade. O
riso nesse sentido aparece como uma reação a essa incongruência do homem que se acredita
racional, mas que se perde na ilusão de sua própria racionalidade. A união dos conceitos
trabalhados pelos três filósofos auxilia no entendimento do riso existente na narrativa
A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por isso seja triste. Se é certo que
nunca sorri, é só porque lhe faltem os lábios, e esta lição anatômica nos diz que, ao
contrário do que os vivos julgam, o sorriso não é uma questão de dentes. Há quem
diga, com humor menos macabro que de mau gosto, que ela leva afivelada uma
espécie de sorriso permanente, mas isso não é verdade, o que ela traz à vista é um
esgar de sofrimento, porque a recordação do tempo em que tinha boca, e a boca língua,
e a língua saliva, a persegue continuamente (SARAMAGO, 2005, p. 139).
Esse sorriso da morte reflete a própria incapacidade do homem em lidar com a condição
de ser mortal e revela a tragicidade por trás do humor em As intermitências da morte. Nesse
sentido, o riso se põe a serviço da reflexão filosófica, tal como explica Verena Alberti (1999)
sobre a função exercida pelo riso e pelo cômico, e acrescentemos a essas categorias também a
ironia e o humor. Para Alberti (1999, p. 12), o cômico tem o papel de fazer o homem reconhecer
e apreender a realidade que a razão séria não atinge. Dessa forma, o riso e o cômico são
indispensáveis para a apreensão da realidade plena.
Percebemos que, ao aliar o discurso paródico aos elementos do texto fantástico, José
Saramago torna o impossível possível, pois o riso atua como meio que possibilita ultrapassar o
mundo e o “ser que somos” (ALBERTI, 1999, p. 14). Por isso Lélia Parreira Duarte (2006, p.
53) explica que o riso pode indicar uma vitória sobre a morte: a sua explosão resulta na
Considerações finais
Mediante o exposto, a narrativa saramaguiana, a partir de seu mundo fantasticamente
invertido, traz em si uma determinada relação com a realidade. Assim, o ironista flutua entre o
real e o irreal. De acordo com Minois (2003, p. 436), ele esvazia o conteúdo objetivo e reduz o
mundo a palavras.
A linguagem, tema constantemente aludido, tende a ser a chave para a reflexão existente
nesse romance. Como exemplo dessa preocupação, podemos recordar quando a morte-
personagem alude à importância de atentarmos para as palavras, pois elas “movem-se muito,
mudam de um dia para outro, são instáveis como sombras, sombras elas mesmas, que tanto
estão como deixaram de estar, bolas de sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos
cortados [...]” (SARAMAGO, 2005, p. 112).
As palavras da morte-personagem advertem sobre a instabilidade da linguagem, algo que
também pode remeter à própria discussão sobre a instabilidade da vida transfigurada na obra
literária. Assim, com sua base no real a partir de um ser histórico, a literatura atua na formação
do homem, proporcionando um avanço em direção ao entendimento de sua própria natureza,
algo que é alcançado por meio da transgressão.
A obra de José Saramago transcende a realidade, subverte-a pelo riso, pela paródia e
ironia, assim como pelo recurso ao fantástico. Esses elementos no texto literário transcendem a
ordem natural da existência, o que nos leva à reflexão, tornando-nos os responsáveis por
motivar uma nova teoria do conhecimento.
Nesse sentido, o riso desconcertante de As intermitências da morte atua como um indício
de que é preciso revermos o pensamento presente sobre a morte, investigarmos suas falhas e
nos transformarmos a partir dessa reflexão. Por meio do fantástico, o escritor busca estimular o
Referências
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