Você está na página 1de 6

Êxtase, educação dos sentidos e evolução da criatividade.

PARTE I
O êxtase1 ou a realidade alterada é um estado de consciência que foi capaz de delinear os
avanços biológicos e cognitivos da comunicação humana. O estado alterado de consciência é
conhecido pelo homem desde a pré-história. O homem consome substâncias alteradoras de
consciência desde o final do Paleolítico passando pela revolução Neolítica e adiante até o
Mesolítico quando elas já estavam completamente dominadas.
No Paleolítico Superior, enquanto éramos coletor-caçadores, desenvolvemos a experiência
com os enteógenos2. Nós aprendemos que as plantas curam, que as plantas matam, e que as
plantas “perturbam” ao entrarem em contato com o corpo. Como aprendemos? Não há consenso
sobre know-how. O homem pode ter entrado em contato com essas substâncias de maneira
arbitrária ou deliberada, ter aprendido com os animais ou de modo “tentativa e erro” ou por um
esforço conjunto de associações e da memória. O uso das plantas se exemplifica de variadas
maneiras. Há 77 mil anos, o homem já tinha conhecimento sobre plantas, por exemplo,
repelentes, e preparavam uma substância com essas plantas para fazer camas e assentos
(caverna de Sibidu, África do Sul). É muito provável que os hominídeos desse período já
despusessem de um repertório de ervas para as mais diversas situações e usos, inclusive
medicinal. Quanto aos cogumelos e plantas psicotrópicas, há consenso de que o impacto dessas
substâncias, durante várias etapas do desenvolvimento humano, foi tão profundo que causou
alterações violentas no funcionamento químico do cérebro, alterando sinapses. E nós herdamos
essas transformações químicas, como também herdamos o hábito de alterar a percepção ou a
consciência. O álcool e os alcaloides são os principais responsáveis pela conhecida distorção da
realidade e a própria compreensão dela, e são comprovados o consumo há mais de 9 mil anos.
Provavelmente o consumo seja muito mais antigo, pois a fermentação de açúcares é um
processo natural e de pouca intervenção humana e com o tempo homem apenas aprendeu a
acelerar e melhorar esse processo. Essas substâncias foram essenciais para o desenvolvimento
da criatividade humana. Recentes conclusões científicas atestam que, diferentemente do que se
pensava, a capacidade criativa do homem em relação à arte e à tecnologia não dependeu
somente de um avanço biológico e lento, qual seja, o aumento da massa encefálica através de
um ganho qualitativo e quantitativo do consumo de proteínas. O funcionamento químico do
cérebro do Homo sapiens sapiens é o resultado da simbiose entre o consumo de proteína animal,
desenvolvendo a massa encefálica, e a alteração de químicas por substâncias.
Está claro que nosso apelo à tecnologia é milhares de anos mais antigo que nosso apelo à
arte. Há dois fatores para o desenvolvimento da criatividade: 1) aumento do cérebro e 2)

1
Êxtase
2
Êxtase, enteógeno, estado alterado de consciência, psicotrópicos são palavras
análogas nesse texto.
sociabilidade, ou a capacidade de estimular uns aos outros (esse impacto é gradativo à medida
que o homem se torna sedentário, e formam-se as primeiras comunidades).
Há mais ou menos 100 mil anos, aos olhos de antigos hominídeos, o mundo deixou de ser
plano e opaco, passou a ser profundo e misterioso, mas nada mudou de fato: apenas suas
mentes operaram de modo diferente, descreveram de forma diferente a natureza e foram capazes
de criar, inventar, somar ou agregar sentidos.
As plantas psicotrópicas são artistas por excelência, e os estados alterados de consciência
que são as alucinações, as euforias, o entorpecimento do corpo físico e a descrição de uma
realidade alterada, foram o leitmotiv para o fazer criativo do homem. Esses elementos da
natureza (vegetais e fungos) foram responsáveis pelo impulso criativo e a invenção de Deus para
além de um domínio da natureza e da técnica. As primeiras manifestações artísticas foram
produtos sem preocupações com a sobrevivência, apenas como estímulos emocionais, surgiram
entre 60 mil e 40 mil anos atrás e já havia, portanto, um alto índice de consumo de substâncias
psicoativas. Não se trata de uma relação segmentada, mas sim de comunhão entre os
enteógenos e o homem, pois se o homem era capaz de seu desenvolvimento sem o uso de
enteógenos e o seu desenvolvimento fosse possível sem o uso alterado da consciência, não
podemos saber, mas sabemos exatamente que foi a partir dessa interação um dos motivos para
que pudéssemos desenvolver nossa linguagem, parte fundamental das faculdades humanas e
que está atrelada plenamente à criatividade e aos sentidos. Esse desenvolvimento passa pelo
estudo da linguagem3, já que se trata de descrição do mundo, ou visão de mundo.
No começo do desenvolvimento da linguagem nos comunicávamos com unidades de
linguagem mínimas (lógica natural, do menos complexo para o mais complexo) e com o passar
de milhares de anos fomos tornando mais complexas as relações morfômicas a ponto de
necessitarmos de sons desprovidos de sentido, mas necessários para articular os sons providos
de sentido (preposições, conjunções, desinências).
Primeiro inventamos os sons simples que significam uma emoção ou algum objeto, depois
articulamos diferentes sons de modos a distinguir emoções e objetos, e por último criamos sons
desprovidos de sentido para aglutinar diferentes distinções sonoras providas de sentido e assim
formar uma linguagem mais complexa. Há aproximadamente quarenta mil anos, essa
complexidade permitiu ao homem comunicar informação sobre eventos e entidades ausentes,
quer sejam contemporâneos, passados ou futuros, assim como fictícios ou mesmo inexistentes; o
nome dessa faculdade linguística é “deslocamento” (Hockett). E essa descrição está intimamente
atrelada ao desenvolvimento tecnológico e artístico, bem como ao uso de substâncias
3
nossa linguagem, segundo a moderna linguística, é duplamente articulada. A primeira
articulação da linguagem é constituída por unidades dotadas de sentido e a menor dessas
unidades chama-se morfemas. Os morfemas são unidades da língua que têm som e sentido. A
segunda articulação da linguagem é constituída por fonemas, cuja função de unidade tem
valor de distinção (a mudança de fonemas podem formar morfemas diferentes, como pode
aglutiná-los em sentido duplo; elementos significantes são produzidos a partir de
elementos não significantes).
psicoativas. Entre descrever o mundo da maneira como ele é, e deslocá-lo, há outra admissão da
palavra. “Do estudo das pedras lascadas é possível inferir o progresso da fala. A ordenação dos
talhos indica que tanto o objeto como a sua utilização foram concebidos previamente. A reunião
dessas representações – forma e finalidade – pressupõe sua expressão simbólica, a palavra”.
Outra articulação da linguagem só foi possível através do uso dos enteógenos, e não é
plenamente comunicável, mas plenamente experimentada. Essa articulação da linguagem
representa uma fronteira complexa entre o que pode ser dito e o que não pode ser dito, não
posso comunicar a outro o que não pode ser dito, mas posso o conduzir a experimentar o não
dito: uma espécie de cultura de emoções. A linguística moderna tem por base a teoria de que
podemos formar um número infinito de frases com elementos finitos. O que não pode ser dito não
é plenamente comunicável porque há modos finitos de se dizer o que “o que não pode ser dito”.
Só poderíamos comunicar “o que não pode ser dito” se tivéssemos um número infinito de
elementos linguísticos (morfemas e fonemas), daí teríamos que ter uma memória descomunal, e
um fluxo de sinapses compatível (o H. sapiens sapiens não tem essa capacidade, ou temos e não
usamos). Quando não podemos dizer algo, mas sentimos, o primeiro impulso de transmissão
dessa emoção é a arte, que foge à palavra muitas vezes ou que a utiliza com outras cargas
simbólicas como a poesia e a literatura. Gordon Childe, filósofo arqueologista, aproxima as
melhores palavras “a linguagem contribuiu para a emancipação do homem da servidão do
concreto”. Esse impulso de comunicação do indizível, do inefável e do inebriante fez o mundo,
como a arte fez o mundo.
A faculdade de criar, a ideia de “criação” é a mesma coisa que chamamos genericamente de
“Deus”. Essa ideia surgiu por conta dos estados alterados de consciência dos nossos ancestrais.
A arqueologia registra que no período Paleolítico Superior houve uma religião, com sentido de
‘sistema’ em desenvolvimento, baseada no culto à mulher, no sagrado feminino e a associação
desta ao poder de criar a vida. Há 25 mil anos, encontramos estatuetas e amuletos que
caracterizam um estado avançado de realidade alterada, priorizando o sentido da fertilidade e do
sagrado feminino. A estatueta Vénus de Willendorf é o exemplo conhecido: trata-se da imagem
esculpida de uma mulher com vulva, seios e barriga extremamente volumosos. As características
dessa estatueta sugerem distorção da realidade, a imagem não-realista de uma mulher.
A morte foi outro aspecto da sistematização de uma consciência alterada: começamos a
enterrar ou sepultar os mortos por vários motivos, e um deles é o interesse pelo estado alterado
de consciência ou pela descrição totalmente abusada da natureza, qual seja o fato de que
duramos além da morte e da matéria. Sendo assim surge um conjunto de experiências do êxtase
sistematizado, podemos comparar isso ao desenvolvimento da religião. Só é possível religião se
há o divino, pois deve haver com que se reconectar, e essa conexão com o divino começa e
termina com uso de psicotrópicos atualizado ou através de herança.
Tanto nascer como morrer deixou de ser meros atos da natureza em estado bruto. Nascer e
morrer passou a significar passagens e não estados naturais, e no homem foi gerada a
necessidade de perdurar. Como e quando essa necessidade exatamente surgiu não é consenso
entre os estudiosos. A ideia de perdurar além da morte é mais antiga do que aquela de
nascimento, destino. O uso de substâncias enteógenas foi peça fundamental para as mudanças
do nosso antigo entendimento de mundo para o atual. A palavra enteógeno, que significa
literalmente "manifestação interior do divino", deriva de uma palavra grega obsoleta, da mesma
raiz da palavra "entusiasmo", que refere à comunhão religiosa sob efeito de substâncias
visionárias ou aos ataques de profecia, e paixão erótica. Entretanto este termo foi proposto como
uma forma elegante de nomear estas substâncias, sem tachar pejorativamente os costumes. O
mundo passou a ter uma descrição complexa.
Há 40 mil anos o Homo Sapiens Sapiens leva até as ultimas consequências essa aventura
de não só dizer o mundo, as coisas e os atos, mas criar um mundo em separado; temos os
primeiros sinais de uma moral e formação de tabus completamente sistematizados. Na revolução
Neolítica, quando o homem passou a ser sedentário, delinear território, instituir a agricultura e
domesticar animais, já se tinha uma concepção de consciência alterada muito desenvolvida. Já
havia uma relação muito profícua entre homem e deuses. O amadurecimento religioso se fazia
fecundo e é a partir daí que surgem os primeiros xamãs. A apoteose artística e criativa do homem
acontece entre 15 mil e 8 mil anos e chega ao amadurecimento que temos hoje com a Idade dos
Metais.
O xamã é um homem, que realiza uma função social definida e misteriosa. Xamanismo é um
termo emprestado do tungue (Rússia), usado para designar primeiramente a experiência extática
dos povos centro-asiáticos e secundariamente, de forma genérica, é usado para designar
técnicas arcaicas do êxtase cujas características reaparecem em várias culturas distintas. A
compreensão de suas funcionalidades foram herdadas dos gregos. “A funcionalidade do
xamanismo é que o xamã é capaz de deixar seu próprio corpo. Essa habilidade é chamada de
extasis (em latim) e significa “estar fora do corpo”. O xamã concebe algo dentro dele que é
descartável do corpo e essa é a fonte de suas habilidades de cura, é assim que ele traz o
conhecimento de outras habilidades para o seu povo. Os gregos, quando se depararam com os
xamãs do norte, devido às trocas comerciais, compreenderam o fenômeno xamã e o
generalizaram, especialmente entre os orfistas e os pitagoristas, começou a se acreditar que, não
apenas o xamã, mas todos os humanos de certa forma possuíam essa dualidade fundamental.
Os gregos então chamaram essa habilidade de psyche (alma).
O xamã é um extremo na experiência extática do homem: ele domina essa experiência,
domina o estado alterado de consciência e dá a ele um motivo simbólico e extremamente
complexo. O palco de ação do Xamã é a mente: a capacidade cognitiva, a capacidade de loucura
e desvio, a alteração do humor e dos sentidos. A principal ferramenta do Xamã é a natureza
humana, e a natureza externa com os alteradores de consciência que ela fornece.
O xamã é um elo entre homem natural e o homem sobrenatural. Durante o período de
desenvolvimento da primeira religião do homem (o sagrado feminino) o xamã foi se consolidando
nas comunidades que por ventura tornavam-se cada vez mais sedentárias. Ele é a figura
comunitária que aglutina toda uma carga simbólica e memorial de sua respectiva cultura, mas não
de forma política ou econômica (atrelado ao mundo natural), e sim de forma mística ou extática
(atrelado ao mundo sobrenatural). Sua memória e sua capacidade de autocontrole são
claramente superiores à média. Por exemplo, o vocabulário poético de um xamã compreende 12
mil palavras, ao passo que sua linguagem usual – a única conhecida pelo restante da
comunidade – não contém mais de 4 mil (Mircea Eliade). O xamã em raros casos se torna um
representante de uma organização religiosa ou chefe comunitário, nem representa a única via de
acesso ao êxtase, mas é consenso que ele é mestre no assunto e mais eficaz que o sacerdote-
sacrificante ou o líder político-religioso da comunidade.
Os xamãs eram aqueles que aparentemente aglutinavam todos os fazeres artísticos que
uma comunidade conhecia: ele praticamente inventou o drama, a capacidade de fingir e ou
representar de forma sistemática, ele era o poeta, ele era aquele que emprestava o corpo aos
deuses ou representava-os, ele era o louco e excêntrico, ele era quem usava roupas e objetos
extravagantes até mesmo para os membros de sua própria comunidade. É conhecido um caso
xamânico em que uma comunidade, afligida pela falta de alimentos marítimos, recorre a um
excêntrico xamã que vivia isolado para socorrê-los e desvendar os mistérios da má sorte. Esse
xamã fez uma viagem extática com a ajuda de psicotrópicos e chegou junto à deusa das águas.
Ele descobriu que a deusa castigava as pessoas daquela comunidade e retinha os alimentos
consigo; lhe informa sobre a quebra de tabus e lhe dá os procedimentos necessários para que ela
libere os alimentos e tudo volte ao normal. O xamã volta de sua viagem extática, cura as pessoas
que quebraram o tabu (cura individual) e auxilia os sacrifícios necessários para apaziguar a deusa
(cura coletiva), e os homens voltam novamente a pescar, tendo prosperidades e fartura.
Os xamãs eram médicos, mas não só isso. Eles obtinham conhecimento de formas bastante
específicas. Em alguns casos, o xamã aprendia com outro xamã, mais velho e iniciado na
medicina. Em outros casos o xamã aprendia a cura através de sonhos ou de uma realidade
alterada, ou em contato com os “espíritos” da natureza e os espíritos ancestrais.
Uma boa maneira de entender o xamã como artista está na pesquisa feita sobre a história
da arte. A história da arte se interessa pelas emoções, é uma história das emoções humanas e
essa história vem desde há muito tempo. Qualquer atividade humana ou produto realizado pelo
homem com propósito estético é tema da história da arte. O xamã é considerado então o primeiro
exemplo de artísta. O corpo do xamã é a obra, a palavra xamã é também uma obra de arte, a
mais antiga que se pode ter conhecimento além das pinturas rupestres, dos amuletos e dos
totens a eles associados.

Você também pode gostar