Você está na página 1de 7

Lima, Simone A.?

Corpo e Poder no discurso de Foucault

Resumo:
Este trabalho estuda o corpo e suas potencialidades em relação ao poder. Indaga acerca da ação do poder
sobre o corpo do indivíduo, através das disciplinas de controle e domínio de suas forças produtivas.

Palavras-Chave:
Corpo; poder; Foucault

Michel Foucault (1926-1984), filósofo e historiador francês, procurou desvendar as


formas constitutivas do pensamento moderno, investigando e analisando as bases dos
saberes, mediante um método que denominou genealógico.
... o acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a
constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas
táticas atuais... trata-se de ativar saberes locais, descontínuos,
desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que
pretende depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um
conhecimento verdadeiro, em nome de uma ciência detida por alguns
Foucault,1984: 171.
O autor objetiva a busca da origem das transformações dos saberes através da
análise do sistema de poder, não se interessando pela análise de um determinado corpo
teórico, fechado em si mesmo. Ao contrário, considerando o saber um campo poroso,
investiga como o poder invade ou perpassa suas cavid ades.
É factível que o poder descrito pelo autor seja um sistema de relações. Nasce e
sobrevive da práxis social não como sua unidade representativa, mas como resultado de
teias funcionais que se enraízam no corpo social, armando uma espécie de trama, cujos fios
exercem reciprocamente sua força uns sobre os outros.

? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ??
?
Simone Almeida Lima graduanda do Curso de Psicologia da Faculdade Ruy Barbosa.
A interrogação da genealogia, portanto, dirige-se para o homem presente,
procurando compreendê-lo como indivíduo-efeito-e-produto de uma série de experiências
políticas e sociais que sobre ele se abate, mediadas pelos mecanismos do saber.
No entanto, qual a especificidade desse método? Por que não deve ser considerado
simplesmente como um método histórico, que escarafuncha os fatos e acontecimentos no
calor do presente do indicativo? A especificidade reside, como aqui se compreende, em
fazer uma manobra historiográfica em busca do que está contido nas entrelinhas do
discurso dos saberes. Quer dizer, Foucault não compreende um corpo teórico qualquer
como algo inerte e meramente descritivo da realidade que observa. Ele não abraça essa
idéia de teoria e prática pensadas dicotomicamente. Ao invés disso, pretende que as duas
realidades se interpenetrem, quando se trata de compreender a realidade humana, já que
acredita no fato de o homem não ser somente resultado da descrição dos saberes e,
portanto, de os saberes constituírem, através dos seus discursos, o próprio homem.
Outro elemento presente na leitura do autor acerca dessa questão é o fato de este não
se dedicar exclusivamente ao discurso oficial e instituído dos saberes. Quer dizer, não
somente nos escritos teóricos, mas também nos jornais, documentos populares, arquivos,
etc. pode-se descobrir as verdades que impregnam os fatos humanos, porque
...nada no homem, nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para
compreender outros homens e se reconhecer neles (...) a história será
efetiva na medida em que ela reintroduza o descontínuo em seu próprio ser.
Donde se percebe que o homem é produzido num movimento gerundivo, no qual ele
mesmo também exerce sua força de constituição. A prova disso reside no próprio corpo.
Questão recorrente no pensamento de Foucault é a seguinte: De que maneira a Psicologia, a
Psiquiatria, a Medicina, a Pedagogia e o Direito lidaram com ele? Para respondê-la, é
insuficiente sustentar o homem como fruto e vítima do seu meio. A complexidade do
problema exige outro modo de encará-lo. É preciso capturar, sob as lentes da genealogia,
um corpo que se tece a partir das ações que se abatem sobre ele. O desafio da genealogia
(...) deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história
arruinando o corpo.
Essa simples constatação demonstra haver uma tecnologia do poder que exerce sua
força sobre o corpo, que, por sua vez, atualiza suas forças.
Vigiar e punir (1975) inaugura o método genealógico de Foucault. Essa obra narra
não apenas o nascimento das prisões, mas uma nova forma de poder investida no corpo,
modelando e controlando o indivíduo. Para Foucault, o que o seu método apresenta é o
nascimento de uma nova realidade social na Idade Moderna, baseada na disciplina, cujo
investimento é realizado maciçamente sobre o corpo. Sob essa perspectiva, o corpo
significa muito mais do que efeito biológico: é a superfície sobre a qual o poder-saber se
exerce, presente na constituição e na manutenção do próprio poder. Se por um lado o poder
o detém, investe, manipula, exigindo-lhe formas e condutas, por outro esse investimento
político sobre o corpo instalará um sistema complexo e recíproco de sua utilização,
visando sua força produtiva. Em outros termos: se o poder-saber se abate sobre o corpo, o
próprio corpo se apóia nesse resultado para realizar seus movimentos que redundam em sua
composição e/ou transformação.
Surge, então, um ponto de tensão: para que o corpo se torne útil é necessário
aplicar sobre ele um sistema de dominação. Primeiro, instituindo um processo produtivo;
segundo, submetendo o corpo a medidas disciplinares, de forma a serem incorporadas
como co-naturais aos movimentos espontâneos do corpo. Para alcançar esse nível de
aceitação, não é necessária a utilização de nenhum tipo de prática violenta ou lavagem
cerebral ideológica. Basta que se utilizem os saberes erigidos de uma tecnologia de eficácia
política sobre o corpo. O exemplo exponencial é o presídio. Em sua concepção estrutural,
residem as leis, o equipamento arquitetônico, o sistema de vigilância, o sistema de controle
burocrático, os serviços de manutenção, etc. Contudo, algo inesperado ocorre: o próprio
presidiário cria modos próprios de conduta, referidos negativa ou positivamente sobre esse
aparato oficial.
Deve-se entender que o poder não se aplica pura e simplesmente a partir de um
comando central, nem tampouco é imposto como obrigatório. Ele sobrevive por meio de
redes relacionais, isto é, investe nos indivíduos e, através deles, impõe-se. Deste modo, o
poder não se trata de uma relação diretiva do Estado para com os cidadãos; ele se
estabelece nos sistemas de dispositivos complexos invisivelmente e forma sua concretude
nas ações, nos corpos, gestos e comp ortamentos de toda uma série de mecanismos que
constitui as relações humanas.
Além disso, o poder e o saber estão implicados, ou seja, o poder origina -se de
alguma fonte do saber, e este se determina ou se articula sustentado em alguma relação de
poder. Portanto, o poder-saber é uma unidade mecânica global que estrutura as relações do
conhecimento e das ações que se precipitam sobre os sujeitos.
A análise adequada da relação poder-saber, assim pensada, não se ocupa, por
exemplo, da estrutura do corpo do Estado – sua força, seus elementos, etc. Ocupa-se de um
conjunto de dispositivos técnicos de reforço, meios de comunicação que interligam o poder
e o saber no trabalho de investimento sobre o corpo, cujo resultado desencadeia uma
modelagem.
O autor trata o corpo como um ativador de forças impulsionadas pela alma, cuja
realidade é produzida pelo poder-saber, que constrói um discurso centrado em substantivos
como psique, subjetividade, personalidade etc., que, na realidade, surgem como peças
discursivas a partir da ação das tecnologias do poder-saber sobre o corpo. Esse processo é
desencadeado a partir da vigília, do controle, modelados sobre os sujeitos participantes da
sociedade, e permite que o indivíduo incorpore um sistema de produção e de controle que
o modelará por toda a sua existência.
A noção de alma aqui subjacente indica uma estrutura real resultante do controle
sobre o corpo, efetivado pelo sistema de saberes que envolvem os discursos científicos de
psicólogos, educadores, juristas, etc, saberes estes articulados com o poder. A alma, de
acordo com o autor, nasce do controle do corpo pelo poder e sobrevive do saber sustentado
por esse poder. Trata-se de uma ferramenta de sustentação do poder estabelecido. Portanto,
o sujeito é constituído pelo corpo e controlado pela alma, já que é ela quem sustenta e
uniformiza os dispositivos do poder.
A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do
corpo. Foucault, p. 29 (Vigiar e Punir).
Como nasceram as tecnologias de controle do corpo? Para o autor, esse percurso se
inicia no século XVII, reforçando-se com a Revolução Francesa, em que a sujeição do
homem se dava, de modo privilegiado, pela punição. As práticas punitivas eram expostas
no corpo do condenado através de açoites, coleiras, correntes, etc. Todos os processos
deveriam marcar, registrar no corpo a sua punição. Assim, é na punição física que o poder
mostra a sua eficácia. A punição torna-se um mecanismo da representação do poder.
A partir do século XVIII, especialmente no início do século XIX, cria-se um
discurso de humanização da punição baseado nos princípios do Iluminismo.
Nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros. A liberdade
é um presente do céu, e cada indivíduo da mesma espécie tem o direito de gozar dela logo
que goze da razão...Toda outra autoridade (que a paterna) vem duma outra origem, que
não é a da natureza. Examinando-a bem, sempre se fará remontar a uma destas duas
fontes: ou a força ou a violência daquele que dela se apoderou; ou o consentimento
daqueles que lhe são submetidos, por um contrato celebrado ou suposto entre eles e a
quem deferiram a autoridade. O poder que se adquire pela violência não é mais que uma
usurpação e não dura senão pelo tempo porque a força daquele que comanda prevalece
sobre a daqueles que obedecem... O poder que vem do consentimento dos povos supõe
necessariamente condições que tornem o seu uso legítimo útil à sociedade, vantajoso para
a República, e que o fixem e restrinjam entre limites; pois o homem não pode nem deve
dar-se inteiramente e sem reserva para outro homem 1 .
Essa reflexão, que caracteriza o pensamento instituído com a Revolução Francesa,
permite antever em que termos a nova ordem política, econômica e social é erigida. No que
tange à punição, ela vai tornando-se aos poucos um dispositivo desnecessário de controle,
exatamente porque os novos tempos propõem uma nova dinâmica de tratamento das
subjetividades, de modo especial as insurgentes. Foucault destaca o fato de, a partir dessa
nova concepção, a Justiça não mais tratar da aplicação do castigo explícito (punição,
suplícios), mas se ocupar da correção do transgressor. E de que modo ocorreria tal correção?
Como seria visualizada a ação corretiva sobre o corpo? Disciplinando, transformando
indivíduos em sujeitos (produtos de uma sujeição) – produtivos e úteis – em corpos
docilizados, aumentando a força do corpo e da sua utilidade. Portanto, o corpo disciplinado e
sujeitado é valioso economicamente e diminui o desgaste do poder. Ou melhor, em termos
políticos de obediência, a força utilizada é mínima.
Dentro desta perspectiva de controle do corpo acontece a formação da identidade do
sujeito, já que o ato criminoso deixa de ser o objeto da punição para direcionar suas
aplicações ao próprio indivíduo. Esta nova ordem estratégica se baseia nas classificações
formuladas pelo saber especializado do médico e do psicólogo. Assim, o indivíduo, objeto
dessas especialidades, pode ser classificado de criminoso ou transgressor, visualizando nele
o corpo, alvo de novos mecanismos de poder. Tal processo desencadeia a representação da
própria identidade do indivíduo: transgressor. O resultado é visível: esta nova lógica
permite uma maior vulnerabilidade do sujeito frente aos mecanismos disciplinares.
A época clássica caracteriza-se por uma supervalorização do corpo e de sua força de
produção. Investe-se nele em termos disciplinares e não punitivos, porque docilizado,
domesticado, ele pode reverberar favoravelmente o fluxo do poder. Se o poder busca a
produção e o corpo possui a força produtiva, é necessário manipulá-lo para adestrá-lo,
torná-lo obediente e, conseqüentemente, útil.
As reformulações de redes estratégicas do poder sobre o corpo foram estruturadas
através de vários dispositivos – como regulamentos militares, escolares, hospitalares –, com
o objetivo de controlar, corrigir e treinar o indivíduo, ou seja, potencializar o
funcionamento do corpo. Assim, o indivíduo torna-se sujeito submisso e utilizável. No
dizer paradigmático de Foucault: um corpo dócil.
Apesar de já existirem tais modalidades disciplinares ao longo da história do
homem, como se pode conferir nos conventos, no exército etc, foi nos séculos XVII e
XVIII que se estruturou a dominação como algo geral, de necessidade social produtiva.
Houve uma nova reformulação no modo de compreender o corpo humano, não apenas no
sentido da representação, mas de sua força e utilidade física. A mecânica do poder atinge o
homem na sua maior potencialidade de ação: o corpo, que se transforma em um tipo de
compactação de fazer, esteja ele inserido no exército, na escola, na fábrica ou em qualquer
outra instituição. O que importa é que cada um esteja no seu lugar e promova realizações
úteis para o sistema que o controla.
A partir dessa perspectiva de investigação do homem moderno, pode-se inferir que
existe um saber sobre o corpo que controla suas forças. Seu entendimento é possível
considerando as técnicas que têm como objetivo uma modelação “física” dos corpos, bem
como o poder disciplina. O corpo é a peça central para a vitalização desse sistema,

? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? ??
1
DIDEROT,Denis. “ Autoridade política”. In: FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de história. V.
?
III. Lisboa, Plátano. 1977. pp. 22-3.
“originado” das relações, das experiências estabelecidas pelo sujeito no desenvolvimento
de sua existência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento das prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.


FOUCAULT, M. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
MELLO, L. I. História moderna e contemporânea. SP: Editora Scipione, 1990.

Você também pode gostar