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Há poucos

diretores
cujos nomes se
tornaram
sinônimos de
cinema. Alfred
Hitchcock é
um deles.
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Nascido na Inglaterra, trabalhou


a maior parte da vida nos Estados
Unidos, e realizou, ao longo de seis
décadas de carreira, um total de cin-
quenta e três longas-metragens. A
menção de seu nome faz imagens
icônicas virem à mente, representan-
do, de forma inconteste, alguns dos
pontos mais elevados dessa arte.

Contudo, nem sempre foi assim.


No início, Hitchcock estava longe
de usufruir desse prestígio. Seu ci-
nema, com filmes de grande apelo
comercial, era para muitos apenas
uma boa diversão. Entretenimento
e arte pareciam não poder cami-
nhar juntos.

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Uma mudança de perspectiva co-


meçou a acontecer na década de
1950, na França. Após o término
da Segunda Guerra Mundial, uma
geração de jovens cinéfilos pôde
finalmente entrar em contato com
filmes estrangeiros que, durante a
ocupação nazista do país, perma-
neceram represados, sem poder
ser vistos nas telas de cinema.

Tocando a retina de uma audiência


sedenta por novidades, muitos fil-
mes que até então eram conside-
rados meras reproduções uns dos
outros, produtos massificados fei-
tos numa imensa indústria chama-
da Hollywood, passaram a revelar
valor artístico.

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Entre os filmes de guerra, vistos


aos borbotões, havia aqueles que
se destacavam, trazendo visões
mais realistas ou mais agudas dos
dramas dos campos de batalha. O
mesmo se passava com os filmes
de faroeste, comédia, romance,
policiais ou suspense: apesar de
se submeterem às regras de cada
gênero cinematográfico, algumas
obras carregavam marcas de uma
originalidade que as diferenciavam
das demais.

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Questionando-se a respeito do fa-


tor que ocasionava essas diferen-
ças, aqueles cinéfilos admitiram
uma hipótese revolucionária à épo-
ca. Para eles, o maior responsável
por um filme ser bem sucedido
não era, como se acreditava, o seu
produtor ou o roteirista de ocasião.
O elemento decisivo, aquele que
transformava a pedra em ouro, era
o diretor.

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No set de filmagem, no corpo a


corpo com os atores, ao escolher o
tipo de iluminação e os movimen-
tos dos aparelhos de câmera, es-
culpindo detalhes em função do
que acreditava ser mais importante
enfatizar nas cenas, o diretor impri-
mia sua visão de mundo nos filmes,
deixando uma assinatura lá onde
predominaria o anonimato.

Antes, os diretores eram tidos por


cumpridores de tarefas, meros rea-
lizadores. A partir daquele momen-
to, alguns passavam a ser chamados
de autores, como os da literatura,
pois se serviam da câmera como
que de uma caneta para expressar
seus pensamentos. Comparando

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seus filmes, percebia-se um fio con-


dutor que os unia em função do es-
tilo ou das temáticas. Cada um era
como uma peça de um quebra-ca-
beça em construção.

No entanto, como foi dito anterior-


mente, isso representava uma mu-
dança de paradigmas na maneira de
encarar o cinema, e gerou polêmi-
cas também por trazer na dianteira
a afirmação de que os responsáveis
por filmes comerciais eram também
alguns dos maiores artistas da séti-
ma arte, donos de uma voz própria
e única. Para aqueles cinéfilos, não
havia exemplo mais bem acabado
disso do que Alfred Hitchcock.

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Começando a trabalhar com cinema


na década de 1920, época do cine-
ma mudo, Hitchcock sempre se inte-
ressou pela parte técnica do ofício.
Cada nova tecnologia desenvol-
vida era observada atentamente
pelo jovem artista, que imaginava
as melhores formas de uti-
lizá-las. Em Chantagem
e confissão (1929), por
exemplo, o som é uma
novidade aproveitada
para representar esta-
dos psicológicos da
personagem princi-
pal, que passa a vi-
ver num estado de
estresse após as-
sassinar o homem
que a atacava.
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À curiosidade se unia o talento. Para


o crítico Jacques Lourcelles, Hitch-
cock finalizou muito cedo o apren-
dizado do cinema, dedicando-se
nos anos seguintes a aperfeiçoar
o estilo que o notabilizou. Filmes
como Assassinato (1930) e Os 39
degraus (1935) pertencem à fase
inicial do cineasta, ainda de quan-
do ele filmava na Inglaterra, e neles
já figuram aspectos recorrentes em
sua obra: o virtuosismo técnico, a
metalinguagem, e o interesse pela
temática da culpa e da inocência,
fruto de sua formação católica.

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À esquerda, lendo um
livro, Alfred Hitchcock
atua como figurante em
“Chantagem e confissão”.

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Autor de cinema, até mesmo em fil-


mes produzidos por encomenda,
inseridos em contextos muito espe-
cíficos, como é o caso de Bon Voya-
ge (1944) e Aventura Malgache
(1944), algumas de suas
marcas se sobressaem.
Nesses curtas-metra-
gens feitos para o Mi-
nistério da Informação
inglês como homena-
gem aos membros da
resistência contra os na-
zistas, fazem-se presen-
tes o tema das identidades
duplas e construções narrativas
inventivas, que utilizam flashba-
cks e mudanças de ponto de
vista para contar a história.

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A percepção dos traços


estilísticos e temáticos
que atravessam os
filmes é um indício do
controle que Hitchcock
conseguia ter sobre
eles, mesmo no início de
sua carreira, quando
ainda não era um nome
de peso na indústria.

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Houve uma época, porém, em que


muitos eram céticos em relação às
suas capacidades, e foi preciso a
publicação em 1967 de uma entre-
vista que se tornaria célebre, feita
pelo crítico e cineasta francês Fran-
çois Truffaut, para que aconteces-
se um ponto de virada na aprecia-
ção da obra de Hitchcock.

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Comentando em detalhes os filmes


que havia dirigido, tal qual um má-
gico revelando truques, Hitchcock
expunha para os descrentes (e con-
firmava, para os admiradores) toda
a consciência que tinha quanto ao
seu trabalho, destacando-se como
um dos cineastas mais dedicados
e criativos na busca por formas de
despertar na plateia o interesse em
participar das tramas — não só com a
mente, mas também com o coração.

O suspense, gênero do qual ele foi


considerado o mestre, funda-se so-
bre a união entre esses dois pólos,
o do conhecimento e o da emoção.
Tal premissa o diretor definiu na en-
trevista com Truffaut, numa famosa

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passagem em que compara sus-


pense e surpresa.

Hitchcock descreve duas cenas


imaginárias. Na primeira, duas
pessoas conversam sentadas à
mesa, até que de repente uma
bomba explode. Na segunda, an-
tes da conversa e da explosão, a
plateia veria alguém armando a
bomba embaixo da mesa. “No pri-
meiro caso”, diz Hitchcock, “ofe-
recemos ao público quinze se-
gundos de surpresa; no segundo
caso, quinze minutos de suspen-
se”. De um lado, o sentimento de
ruptura próprio da surpresa. Do
outro, a tensão e a expectativa do
suspense. Neste segundo caso, a

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antecipação do que pode aconte-


cer aos personagens faz o espec-
tador — na ponta da cadeira, olhar
fixo na tela — querer avisá-los de
que suas vidas correm perigo.

O artesanato de situações visando


ao envolvimento da plateia atingiria
pontos muito altos na produção de
Hitchcock nos Estados Unidos. Em
Suspeita (1941), sobre uma tími-
da mulher que desconfia das inten-
ções de seu marido, e também em
Notorious (1946), uma história de
amor e espionagem, podemos ver
isso materializado. Esse último, em
especial, representa, nas palavras
de Truffaut, a quintessência de seu
cinema, ou seja, nesse filme a arte

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de Hitchcock encontra uma forma


extremamente depurada.

Curiosamente, a narrativa de No-


torious se passa no Rio de Janeiro.
A filha de um espião morto é re-
crutada e viaja até o Brasil para se
aproximar e descobrir os segredos
de um amigo do seu pai. Em meio
às investigações, ela e um agente
americano se apaixonam, mas o ro-
mance sofre abalos quando o outro
homem a pede em casamento.

Sobre uma trama simples, com


personagens cativantes, Hitchcock
constrói cenas memoráveis. Duran-
te uma festa, a protagonista deve
entregar para o agente a chave do

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depósito da mansão, onde algum


segredo está guardado. O dire-
tor inicia a sequência com um pla-
no sem cortes, que segue desde o
alto, de onde filma todos os convi-
dados, até a mão da personagem,
segurando o precioso objeto que
captura toda a atenção.

Trata-se de uma cena fundamental


do cinema de Hitchcock. Além de
exibir a precisão com que conduz o
olhar da plateia, ela exemplifica de
forma cristalina o seu entendimento
de suspense. Há uma chave, e nada
será mais importante no decorrer
da festa do que garantir que essa
chave chegue às mãos que devem
recebê-la.

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Em Notorious, outros objetos pos-
suem uma presença marcante: gar-
rafas de vinho, uma xícara de café.
São objetos banais, comuns, mas
que o diretor, por meio de closes,
movimentos de câmera e diferen-
tes enquadramentos, consegue
transformar em artefatos raros, em
torno dos quais parecem orbitar os
mistérios e o destino das coisas.
Talvez esta seja, enfim, a
mágica do suspense do mestre
Alfred Hitchcock e a principal
assinatura deste autor
que se tornou referência:
a utilização de todos os
recursos disponíveis para
construir mundos em que
tudo, tudo é extraordinário.
Na Lumine
você sai da
superficialidade
assistindo aos
clássicos dos
grandes artistas
do cinema.

ENTRETENIMENTO CULTURA DEVOÇÃO


COORDENAÇÃO EDITORIAL

Matheus Bazzo
ASSISTENTE EDITORIAL

Nathalia Matychevicz
DIREÇÃO DE ARTE

Yuri Silva
PRODUÇÃO DE CONTEÚDO

Matheus Cartaxo

© 2020. Lumine. Todos os direitos reservados.

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